O Supremo Tribunal Federal e a licença-maternidade para mãe que não engravidou em união homoafetiva. Aparente avanço em meio ao retrocesso dos direitos sociais no Brasil

The Supreme Federal Court and maternity leave for mother who did not become pregnant in homoaffective union. An apparent advance in the midst of a regression of social rights in Brazil

DOI: 10.19135/revista.consinter.00019.30

Recebido/Received 30/06/2024 – Aprovado/Approved 19/09/2024

Augusto Grieco Sant’Anna Meirinho[1] – https://orcid.org/0000-0001-7124-2785

Resumo

O conceito de família sofreu mudanças com novos agrupamentos afetivos. A Constituição Federal de 1988 conferiu especial proteção à união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar e a jurisprudência passou a entender como entidade familiar outras formas de associação afetiva, com o Supremo Tribunal Federal equiparando à família as uniões homoafetivas. O objetivo do estudo é discorrer sobre a decisão do STF no Recurso Extraordinário nº 1.211.446 e a tese formada em repercussão geral no tema 1072 versando sobre a possibilidade de concessão de licença-maternidade à mãe não gestante, em união estável homoafetiva, cuja companheira engravidou após procedimento de inseminação artificial. A premissa assumida é que as decisões administrativas centradas na estrita legalidade, sobretudo quando ausentes normas específicas de tutela, em casos análogos de proteção social ao do RE nº 1.211.446, conflitam com os valores da dignidade da pessoa humana e do trabalho, sobretudo quando envolvem direitos de pessoas vulneráveis protegidos por princípios constitucionais expressos. O método utilizado para o desenvolvimento do trabalho foi o dedutivo tendo como procedimentos metodológicos as pesquisas bibliográfica e documental, associada com o estudo do caso selecionado. A pesquisa questiona se a tese adotada pelo STF cumpre o papel de tutela dos direitos fundamentais das crianças que compõe um núcleo familiar homoafetivo, sob a perspectiva da licença-maternidade e do benefício previdenciário. A hipótese é a insuficiência protetiva da tese formada na sistemática de repercussão geral no bojo do RE nº 1.211.446 com a autocontenção da Corte ao se limitar ao objetivo do recurso extraordinário.

Palavras-chave: salário-maternidade, união homoafetiva, proteção integral da criança, licença parental. 

Abstract

The concept of family has changed with new affective groupings. The Federal Constitution of 1988 gave special protection to common-law marriage between a man and a woman as a family entity and jurisprudence began to understand other forms of affective association as a family entity, with the Federal Supreme Court equating homoaffective relations with the family. The objective of the study is to discuss the decision of the STF in Extraordinary Appeal No. 1,211,446 and the thesis formed with general repercussion on topic 1072, dealing with the possibility of granting maternity leave to non-pregnant mothers, in a homoaffective union, whose partner became pregnant after an artificial insemination procedure. The method used to develop the work was descriptive, based on bibliographical research and jurisprudential analysis. The assumed premise is that administrative decisions centered on strict legality, especially when specific rules of protection are absent, in similar cases of social protection to that of RE No. 1,211,446, conflict with the values of human dignity and work, especially when involve the rights of vulnerable people protected by express constitutional principles. The method used to develop the work was deductive, with bibliographical and documentary research as methodological procedures, associated with the selected case study. The research questions whether the thesis adopted by the STF fulfills the role of protecting the fundamental rights of children in homoaffective union nucleus, from the perspective of maternity leave and social security benefits. The hypothesis is the protective insufficiency of the thesis formed in the system of general repercussion in the context of RE No. 1,211,446 with the Court's self-restraint by limiting itself to the objective of the extraordinary appeal.

Keywords: maternity leave, homoaffective relations, integral protection of child, parental leave.

Sumário: 1. Introdução. 2. Proteção à Maternidade sob a Perspectiva Trabalhista e Previdenciária. Algumas Considerações Necessárias. 3. A Decisão do Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário nº 1.211.446. O Direito da Mãe Não Gestante em União Homoafetiva à Licença-Maternidade. 4. Análise Crítica da Decisão do Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário nº 1.211.446. Avanço em Meio a Retrocessos. 5. Considerações Finais. 6. Referências.

1  INTRODUÇÃO

A concepção de família vem evoluindo, no Brasil, a partir de um modelo tradicional centrado no matrimônio entre homem e mulher, considerado como célula basilar da sociedade.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, incorporando as mudanças observadas no tecido social, expressamente conferiu especial proteção do Estado à união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, embora ainda tenha prescrito que a lei deveria facilitar a sua conversão em casamento.   

Diante da dinâmica social, a jurisprudência passou a entender como entidade familiar outras formas de associação afetiva, culminando com a equiparação a família das uniões homoafetivas pelo Supremo Tribunal Federal.

Nesse cenário, passou-se a reconhecer reflexos previdenciários a situações fáticas ocorridas nessas novas formas de família, sobretudo no âmbito da filiação natural e adotiva.

O objetivo do estudo é discorrer, ainda que resumidamente, sobre a decisão do Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário nº 1.211.446 e a tese formada em repercussão geral no tema 1072 versando sobre sobe a possibilidade de concessão de licença-maternidade à mãe não gestante, em união estável homoafetiva, cuja companheira engravidou após procedimento de inseminação artificial. Pretende-se, como objetivo adicional, destacar que a decisão formada pela Suprema Corte é garantista e converge com o princípio da proteção integral e do melhor interesse da criança.

A premissa assumida é que as decisões administrativas centradas na estrita legalidade, sobretudo quando ausentes normas específicas de tutela, em casos análogos de proteção social ao do RE nº 1.211.446, conflitam com os valores da dignidade da pessoa humana e do trabalho, sobretudo quando envolvem direitos de pessoas vulneráveis protegidos por princípios constitucionais expressos.

Como problema de pesquisa temos o questionamento se a tese adotada pelo Supremo Tribunal Federal no tema 1072 cumpre o papel de tutela dos direitos fundamentais das crianças que compõe um núcleo familiar homoafetivo, sob a perspectiva da licença-maternidade e do benefício previdenciário decorrente.

A hipótese é a insuficiência protetiva da tese formada na sistemática de repercussão geral no bojo do RE nº 1.211.446 com a autocontenção da Corte ao se limitar ao objeto do recurso extraordinário.

Para este propósito, o estudo encontra-se dividido em três partes.

A primeira parte apresentará a seguridade social brasileira como um sistema amplo de proteção social. Destacará, entre as contingências sociais previstas no subsistema previdenciário, a proteção à maternidade. Nesse contexto, pretende-se diferenciar a licença-maternidade, enquanto direito de afastamento do trabalho no caso do nascimento ou da adoção de filho, do salário-maternidade, benefício previdenciário pago pela Previdência Social ou pelo ente público durante o afastamento. Também será destacada a necessidade de se reconhecer as novas formas de arranjo familiar como fator de proteção integral das crianças destes núcleos familiares. 

A segunda parte, por sua vez, tem como objeto apresentar o caso levado ao conhecimento do Supremo Tribunal Federal que conduziu a Corte a formar a tese em repercussão geral do tema 1072 sobe a possibilidade de concessão de licença-maternidade à mãe não gestante, em união estável homoafetiva, cuja companheira engravidou após procedimento de inseminação artificial. Também pretende discutir os fundamentos sustentados pelo ente público municipal que negou, na via administrativa, o direito à servidora pública.

Por fim, na terceira parte do estudo, pretende-se analisar criticamente a decisão do Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário nº 1.211.446 chamando a atenção para alguns pontos considerados como premissas teóricas na decisão. Inicia-se com uma visão panorâmica concisa do estado de retrocesso social por que passa o Brasil, nos últimos dez anos, no âmbito legislativo e jurisdicional. Essa proposta de introito tem como objetivo ressaltar o avanço garantista alcançado pela Suprema Corte brasileira na decisão em análise, em meio a um ambiente de retração de direitos sociais, inclusive no âmbito da própria Corte.

Para se alcançar o objetivo proposto, adota-se como método o dedutivo, partindo-se da visão geral do sistema protetivo brasileiro, com ênfase na proteção à maternidade, para chegar na análise da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no caso selecionado.

Os procedimentos metodológicos utilizados foram a pesquisa bibliográfica, do tipo descritiva, com a coleta de dados a partir da leitura de autores nacionais e estrangeiros, associada com a pesquisa documental da legislação e de acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal Federal sobre o tema central, conjugado com o estudo do caso objeto do tema 1072 de repercussão geral.

Ao final, pelo diálogo entre os doutrinadores selecionados, e com centralidade em uma filtragem analítica do acórdão objeto de estudo, pretende-se indicar, como caminho para o Estado cumprir o papel de melhor proteção dos interesses das crianças em qualquer núcleo familiar, a adoção de um benefício parental dissociado do gênero dos genitores ou adotantes.

2  Proteção à Maternidade sob a Perspectiva Trabalhista e Previdenciária. Algumas Considerações Necessárias

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 é um marco para os direitos fundamentais no Brasil. De forma inovadora, trouxe para o início de seu texto os fundamentos do Estado Democrático de Direito, os objetivos fundamentais da República e os princípios que regem o Brasil em suas relações internacionais.

Não se trata de mera mudança topográfica, pelo contrário, revela a importância que o Constituinte de 1988 conferiu aos valores mais relevantes para um país que pretende se apresentar como democrático e social de direito.

Na sequência, o Constituinte passou a tratar, no Título II da CRFB/1988, em cinco capítulos, dos direitos e garantias fundamentais (artigos 5º a 17). Logo após prescrever as liberdades públicas, ou direitos fundamentais de primeira dimensão[2], elencou, em seu art. 6º, os direitos sociais.

Silvio Beltramelli Neto afirma que ao enumerar os direitos sociais dentro do mesmo Título que declara os direitos civis e políticos, confere-se a mesma importância que a concretização de todos eles deve experimentar, além do perfil social conferido a todo o ordenamento jurídico brasileiro de observância obrigatória nos âmbitos estatal e privado[3].

Entre os direitos sociais dispostos no art. 6º da Constituição Federal de 1988, encontram-se a saúde, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados.

Estes direitos fundamentais sociais estão associados ao sistema de seguridade social, que inova a ordem jurídica brasileira com uma proteção mais ampla, inspirada no modelo inglês de William Beveridge. Como na Inglaterra do período pós-Segunda Guerra, o sistema brasileiro pós-regime militar idealizou uma proteção “from de womb to the tomb”[4], ou seja, abarcando diversas fases da vida do sujeito protegido, mesmo antes de seu nascimento.

Pode-se afirmar, ainda, que estes direitos fundamentais associados ao sistema de seguridade social estariam abarcados no conceito de mínimo existencial.

No Brasil, embora a Constituição consagre um extenso rol de direitos sociais, a ideia do mínimo existencial faz sentido por ser utilizada com a finalidade de conferir maior efetividade a determinados direitos sociais, indispensáveis a uma vida humana digna. Delimita um subgrupo menor de direitos sociais para que tenha uma efetividade objetivamente assegurada[5].

Um dos mecanismos para cumprir os objetivos do art. 3º da CRFB/1988 é a seguridade social, que se organiza em sistema harmônico e equilibrado, voltado a proteger as pessoas frente às necessidades existenciais derivadas da vida em uma sociedade de riscos[6].

Segundo o art. 194 da CRFB/1988, a seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.

Lauro Cesar Mazetto Ferreira afirma ser a seguridade social a “peça fundamental para a preservação dos direitos humanos, na medida em que é um sistema organizado para a preservação da dignidade da pessoa humana”[7].

Em relação à Previdência Social, o modelo brasileiro é inspirado, desde a sua origem, na técnica do seguro social[8]. Por sua vez, diante da exigência constitucional da filiação obrigatória, a relação de proteção previdenciária, no Brasil, submete-se à regra da automaticidade da filiação. Isso significa que a filiação à Previdência Social decorre automaticamente do exercício de atividade remunerada para os segurados obrigatórios, ou seja, basta a pessoa exercer alguma atividade remunerada, formal ou não, para ela estar obrigatoriamente filiada ao Regime Geral de Previdência Social (RGPS)[9].

A regra da automaticidade de filiação é fundamental para entender as repercussões previdenciárias decorrentes das relações de trabalho, inclusive as decorrentes da maternidade natural ou adotiva.

Mais adiante, ao tratar do subsistema previdenciário, a Constituição Federal de 1988 inclui, entre os fatos a serem atendidos pela Previdência Social, a proteção à maternidade, especialmente à gestante (art. 201, inciso II). Esta proteção previdenciária decorre da licença maternidade prevista no inciso XVIII do art. 7º da CRFB/1988, segundo o qual é direito dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social, licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de cento e vinte dias.

É importante não confundir os dois institutos, ou seja, o salário-maternidade e a licença à gestante (ou licença-maternidade). Enquanto a licença à gestante é o direito trabalhista ao afastamento da trabalhadora (ou do trabalhador) durante o período de resguardo, no caso da maternidade natural, ou de adaptação do adotado à nova família, na adoção, o salário-maternidade é o benefício previdenciário que, em regra, é pago durante a licença.

Luciano Martinez apresenta uma síntese dos institutos, conforme o trecho que segue:

a empregada gestante, inclusive a doméstica, nos termos do art. 7º, XVIII, da Constituição, tem direito à licença-maternidade de cento e vinte dias, sem prejuízo do emprego e do salário, e que, durante essa licença, a trabalhadora terá direito a um benefício previdenciário chamado salário-maternidade[10].

Essa diferença quanto à natureza jurídica dos institutos tem fundamento na proteção do mercado da mulher e na prevenção contra discriminação de gênero quando da contratação, o que seria provável na hipótese de o empregador ser o responsável pelo pagamento da remuneração durante o período da licença-maternidade.

Inclusive, essa separação converge com o disposto na Convenção nº 103 sobre o Amparo à Maternidade da Organização Internacional do Trabalho[11], que prescreve, no seu  parágrafo 8 do artigo IV que, em hipótese alguma, deve o empregador ser tido como pessoalmente responsável pelo custo das prestações devidas às mulheres que ele emprega.

Também se destacada que a proteção à maternidade evoluiu com o tempo, de forma a abarcar a maternidade decorrente da adoção. Se no passado se limitava à maternidade natural, com a evolução do Estado Social ampliou-se a proteção para abranger também a adoção.

A maternidade deve ser considerada como um fenômeno existencial afetivo, desprendido das concepções naturalísticas da maternidade biológica.

Thaíssa Rocha Proni ressalta que a maternidade não é experimentada tão somente pelos meios tradicionais e biológicos, existindo “outras formas de uma mulher se tornar mãe (e um homem se tornar pai), formas cada vez mais exploradas pela medicina na atualidade, merecendo, assim, atenção e entendimento dos legisladores a aplicadores do Direito”[12]

Pensamos ser um avanço civilizatório significativo, ligado ao princípio constitucional da proteção integral à criança, igualando-se os direitos laborais e previdenciários da maternidade adotiva com a natural.

A proteção integral à criança não se limita aos direitos fundamentais enfeixados em sua pessoa humana, ou seja, que tem a criança como destinatária direta, mas também aqueles que alcançam as pessoas de quem a criança depende, materialmente e imaterialmente. É sob essa perspectiva que devem ser entendidos o benefício previdenciário salário-maternidade e o direito trabalhista licença-maternidade.

A proteção à maternidade foi se ampliando no ordenamento brasileiro. Nesse processo evolutivo, a Lei 10.421, de 15 de abril de 2002, estendeu à mãe adotiva o direito à licença-maternidade e ao salário-maternidade, alterando a Consolidação das Leis do Trabalho (incluindo o art. 392-A à CLT) e a Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991 (com o acréscimo do art. 71-A à Lei de Benefícios do RGPS). Posteriormente, a Lei 12.873, 24 de outubro de 2013, alterou a CLT (acrescendo o art. 392-C) e a Lei 8.213/1991 para permitir a concessão do salário-maternidade ao segurado do sexo masculino no caso de adoção.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal vem observando o princípio da proteção integral das crianças no que tange aos institutos ora em análise em diversos julgamentos submetidos à sistemática da repercussão geral.

Por exemplo, o STF declarou a inconstitucionalidade da fixação de prazos distintos de duração da licença maternidade para genitoras adotivas e biológicas, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 778.889 (Tema 782 da sistemática da repercussão geral). No julgamento foi fixada a seguinte tese de repercussão geral: “Os prazos da licença adotante não podem ser inferiores aos prazos da licença gestante, o mesmo valendo para as respectivas prorrogações. Em relação à licença adotante, não é possível fixar prazos diversos em função da idade da criança adotada”.

Outro exemplo é o julgamento do Recurso Extraordinário nº 1.348.854 (Tema 1.182 da repercussão geral), no qual o STF reconheceu ao servidor público do sexo masculino solteiro que adote uma criança o direito à licença-maternidade. Nesse julgamento foi fixada a seguinte tese: “À luz do art. 227 da CF que confere proteção integral da criança com absoluta prioridade, bem como do princípio da isonomia de direitos entre o homem e a mulher (art. 5º, I, CF), a licença maternidade, prevista no art. 7º, XVIII, da CF/88, e regulamentada pelo art. 207 da Lei 8.112/1990, estende-se ao pai, genitor monoparental, servidor público.”.

Por fim, outro julgamento relevante foi o Recurso Extraordinário nº 842.844 (Tema 842 da repercussão geral), no qual o STF afirmou o direito de servidoras públicas detentoras de cargos comissionados à garantia do direito à licença-maternidade e à estabilidade provisória. Nesse julgamento foi fixada a seguinte tese em repercussão geral: “A trabalhadora gestante tem direito ao gozo de licença-maternidade e à estabilidade provisória, independentemente do regime jurídico aplicável, se contratual ou administrativo, ainda que ocupe cargo em comissão ou seja contratada por tempo determinado, nos termos dos arts. 7º, XVIII; 37, II; e 39, § 3º; da Constituição Federal, e 10, II, b, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias”.

Outro aspecto que deve ser considerado é o reconhecimento de outras formas de constituição de família diversas da tradicional união matrimonial entre um homem e uma mulher. Gustavo Tepedino ressalta a necessidade de relativização do conceito de família

que, alterando-se continuamente, se renova como ponto de referência central do indivíduo na sociedade; uma espécie de aspiração à solidariedade e à segurança que dificilmente pode ser substituída por qualquer outra forma de convivência social. Além disso, ajuda a compreender que qualquer estudo sobre o tema deve pressupor a correta interpretação do momento histórico e do sistema normativo vigente. No caso brasileiro, há de se verificar, com base nos valores constitucionais, os novos contornos do direito de família, definindo-se, a partir daí, a disciplina jurídica das entidades familiares[13].

As mudanças ocorrem em duplo sentido: em sua estrutura interna, com relação aos sujeitos que integram o núcleo familiar, divergindo da família tradicional, e em suas relações externas, influenciando as relações jurídicas existentes na sociedade. Essas relações jurídicas externas, por sua vez, podem ser de natureza contratual como, por exemplo, as relações laborais, como de natureza institucional pública, como é o caso das relações de proteção social, sobretudo a de natureza previdenciária.

Destaca-se que essa evolução decorre da tutela internacional da pessoa humana, conforme explicado por Edna Raquel Hogemann e Thiago Serrano Pinheiro de Souza.

Portanto, a Declaração Universal, a Carta das Nações Unidas e vários tratados de direito internacional determinam obrigações para os Estados, a fim de materializar os mencionados princípios, cabendo a eles: proteger os indivíduos contra violência, tortura e tratamento cruel, desumano ou degradante; promulgar leis contra o ódio e a discriminação; criar sistemas destinados à apuração e julgamento de atos homofóbicos e transfóbicos; permitir asilo de indivíduos perseguidos em decorrência de sua orientação sexual; revogar leis que criminalizem ou exponham a conduta sexual heterodiscordante privada entre indivíduos capazes; promulgar leis outorgando direitos às parcerias entre pessoas do mesmo sexo; e, promover uma cultura de igualdade e diversidade, que englobe o respeito aos direitos dos indivíduos homossexuais e transgêneros[14].

Rodrigo da Cunha Pereira observa que a evolução tecnológica e a engenharia genética têm propiciado a interferência direta na formação das famílias, e consequentemente “somos obrigados a repensar constantemente sua organização e proteção, sob pena de o Direito perder o seu sentido”[15].

Assim, se a ciência permite que as pessoas que não tenham capacidade geracional de descendentes, ou que vivam em relacionamento homoafetivo, possam constituir uma família própria, com o seu material genético, e não havendo impedimentos éticos e/ou legais para isso, a busca da felicidade decorrente desta constituição familiar deve ser assegurada pelo ordenamento jurídico[16]. Inclusive por intervenção do Poder Judiciário, quando evidenciada a proteção insuficiente por parte do Legislador.

E o desejo de formar família pode ser atendido com o uso das técnicas de reprodução assistida, sendo certo que o Direito não pode interferir na esfera mais íntima da pessoa para ditar de que forma ela terá um filho, pois o projeto parental é individual e compõe o conteúdo da personalidade de cada um e o artigo 227 da Carta Federal é o berço dos direitos fundamentais do menor, ao lhe assegurar, por meio da família, da sociedade e do Estado, dentre vários outros, o direito à convivência familiar, além de colocar a criança e o adolescente a salvo de toda forma de negligência, discriminação, crueldade ou de opressão[17].

Feitas essas considerações, apresenta-se a decisão proferida pelo STF no RE nº 1.211.446, sobre o direito da mãe não gestante em união homoafetiva à licença-maternidade.

3  A Decisão do Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário nº 1.211.446. O Direito da Mãe Não Gestante em União Homoafetiva à Licença-Maternidade

Em maio de 2019, chegou ao Supremo Tribunal Federal o Recurso Extraordinário nº 1.211.466, interposto pelo Município de São Bernardo do Campo.

A ação fora ajuizada por uma servidora pública municipal cujo pedido principal era a condenação do Município em lhe conceder a licença gestante, pelo nascimento de sua filha. A criança fora gerada por meio da técnica da fertilização in vitro, com os óvulos da servidora pública, autora da ação, utilizados na fecundação que conduziu à gravidez da sua companheira.

Para compreender melhor a questão central da controvérsia levado ao Poder Judiciário de São Paulo, transcreve-se um trecho do relatório do voto do Relator do recurso extraordinário, Ministro Luiz Fux.

Aduz que a filha nasceu no dia 7 de outubro de 2017 e que a companheira, a qual alega ser profissional autônoma, sem filiação a qualquer regime de previdência e sem o direito ao benefício da licença maternidade, precisou voltar a trabalhar, ficando impossibilitada de cuidar da criança. Ressalta que deu entrada no pedido administrativo de licença gestante perante o Município, que o indeferiu, sob a justificativa de ausência de amparo legal. Afirma que, apesar de não ter engravidado, é a mãe biológica da criança. Aponta o risco de acarretamento de danos imensuráveis à criança, uma vez desprovida da companhia de suas duas mães na fase mais importante e delicada de sua vida. Argumenta ter sido discriminada em relação às mães adotantes, às quais a legislação assegura o direito[18].

A sentença proferida pelo juízo de primeiro grau julgou procedente o pedido, sob o fundamento de que “(a) autora, enquanto mãe não gestante, em união estável homoafetiva, não pode ser excluída do direito à licença-maternidade, sob pena de ofensa ao princípio constitucional da isonomia”, já que o direito é “garantido às mães não gestantes, em situação de adoção”. E ainda “deve ser considerado, também, o direito da criança de ter sua genitora ao seu lado, em período sensível da vida. E como se trata de período posterior à gestação, em que a lei busca garantir o convívio da mãe com o filho, não há razão para reservar o direito somente àquela mãe gestante”[19].

Interposto recurso da decisão pelo Município, o Tribunal de Justiça de São Paulo, por sua vez, manteve a sentença[20], por seus próprios fundamentos, assentando que, configurada a entidade familiar pela união estável, não se pode negar a extensão do direito à autora, tendo em vista o fundamento da maximização dos direitos fundamentais no âmbito familiar, tanto para as mães quanto para a criança[21].

No recurso dirigido ao Supremo Tribunal Federal, a municipalidade sustentou existir violação aos artigos 7º, XVIII, e 37, caput[22], da Constituição Federal de 1988, aduzindo que o acórdão recorrido, originário do Tribunal de Justiça de São Paulo, permitiu a concessão de licença-maternidade à recorrida, mãe não gestante, que convive em união estável homoafetiva com companheira que engravidou após procedimento de inseminação artificial.

O Município alegou, ainda, que a interpretação extensiva atribuída ao direito à licença-maternidade contrariou o princípio da legalidade administrativa, considerando inexistir qualquer autorização legal para a concessão da licença na hipótese em questão.

Por fim, argumentou que o direito ao afastamento laboral remunerado, previsto no art. 7º, XVIII, da CRFB/1988, é exclusivo da mãe gestante, que necessita de um período de recuperação após as alterações físicas decorrentes da gestação e do parto.

Como se verifica, o Ente municipal fundamentou a sua decisão administrativa, e que foi sustentada ao longo de todo o processo judicial, basicamente, na inexistência de norma prevendo a concessão da licença-maternidade para a mãe não gestante, portanto, fiando-se no princípio administrativo da estrita legalidade e, adicionalmente, de que a licença pleiteada pela servidora somente era destinada à mãe gestante.

O Município de São Bernardo do Campo limitou-se a observar a visão tradicional do princípio da legalidade administrativa[23], bem explicada por Lucas Rocha Furtado.

De acordo com a visão tradicional, e dominante em nossa doutrina, a legalidade administrativa, denominada de legalidade restrita, ou estrita, cria a situação de que a Administração Pública somente pode agir se e quando a lei autorizar a atuação. De acordo com essa interpretação dominante, ainda que a atividade estatal não importe em impor qualquer conduta positiva ou negativa de qualquer cidadão, a Administração estaria impedida de agir[24].

O Recurso Extraordinário foi indexado pelo STF com os seguintes objetivos do desenvolvimento sustentável (ODS) da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas[25]: ODS 03 Saúde e Bem Estar, ODS 05 Igualdade de Gênero, ODS 08 Trabalho Decente e Crescimento Econômico, ODS 10 Redução das Desigualdades e ODS 16 Paz, Justiça e Instituições Eficazes. 

Em 08 de novembro de 2019, o STF, por maioria, reputou constitucional a questão e reconheceu a existência de repercussão geral[26], ficando vencido o Ministro Edson Fachin e não tendo se manifestado o Ministro Gilmar Mendes. Transcreve-se o trecho do acórdão.

O debate ainda transcende os limites subjetivos da causa, porquanto passível de repetição em inúmeros feitos em que se confrontam o interesse da mãe não gestante, em união homoafetiva, a usufruir da licença-maternidade, e o interesse social concernente aos custos do pagamento do benefício previdenciário e à construção de critérios isonômicos em relação às uniões heteroafetivas. Configura-se, assim, a relevância da matéria sob os pontos de vista social e jurídico, bem como a transcendência da questão cuja repercussão geral ora se submete ao escrutínio da Corte[27].

Encaminhados os autos à Procuradoria-Geral da República, o então Procurador-Geral Augusto Aras opinou pelo desprovimento do recurso extraordinário e, considerados a sistemática da repercussão geral e os efeitos do julgamento do recurso em relação aos demais casos que tratem ou venham a tratar do mesmo tema, sugeriu a fixação das seguintes teses:

I – É possível conceder-se licença-maternidade à mãe não gestante, em união estável homoafetiva, cuja companheira engravidou após procedimento de inseminação artificial.

II – É defesa a concessão da licença-maternidade em duplicidade dentro da mesma entidade familiar, assegurado à segunda mãe benefício análogo à licença-paternidade.

Foram admitidos como “amicus curiae”[28] a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Seguridade Social (CNTSS/CUT), o Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero (GADvS) e o Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP).

Em 13 de março de 2024, o Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, apreciando o tema 1.072 da repercussão geral, negou provimento ao recurso extraordinário, nos termos do voto do Relator, fixando, por maioria, a seguinte tese: "A mãe servidora ou trabalhadora não gestante em união homoafetiva tem direito ao gozo de licença-maternidade. Caso a companheira tenha utilizado o benefício, fará jus à licença pelo período equivalente ao da licença-paternidade"[29]. Transcreve-se a ementa do acórdão.

EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. LICENÇAMATERNIDADE. ARTIGOS 7º, XVIII, E 201, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA. INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL. SILÊNCIO LEGISLATIVO. CONCEITO PLURAL DE FAMÍLIA. MULTIDIVERSIDADE. BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO INSTITUÍDO PRIMORDIALMENTE NO INTERESSE DA CRIANÇA. FUNDAMENTALIDADE DA CONVIVÊNCIA PRÓXIMA COM A GENITORA NA PRIMEIRA INFÂNCIA. PROTEÇÃO INTEGRAL À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE. PRINCÍPIO DA ISONOMIA. NECESSIDADE DE EXTENSÃO DO BENEFÍCIO À MÃE NÃO GESTANTE. IMPOSSIBILIDADE DE CUMULAÇÃO DE DOIS BENEFÍCIOS IDÊNTICOS EM UM MESMO NÚCLEO FAMILIAR. RECURSO EXTRAORDINÁRIO A QUE SE NEGA PROVIMENTO.

1. O sobreprincípio da dignidade da pessoa humana e a realidade das relações interpessoais no seio de nossa sociedade impõem regime jurídico que protege diversos formatos de família que os indivíduos constroem a partir de seus vínculos afetivos. Esta concepção plural de família resta patente no reconhecimento constitucional da legitimidade de modelos familiares independentes do casamento, como a união estável e a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, cognominada família monoparental (art. 226, §§ 3º e 4º da CF de 1988).

2. O Supremo Tribunal Federal assentou, no histórico julgamento da ADI 4.227 (Rel. Min. Ayres Britto, Tribunal Pleno, DJe 14/10/2011), o novel conceito de família, como instituição que também se forma por vias distintas do casamento civil e que abrange, com igual dignidade, uniões entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos, a partir de uma exegese não reducionista.

3. A licença-maternidade constitui benefício previdenciário destinado, em conjunto com outras previsões, a concretizar o direito fundamental social de proteção à maternidade e à infância, mencionado no caput do art. 6º da CF. A temática relaciona-se à inserção da mulher no mercado de trabalho, que conduziu os Estados a promoverem políticas públicas que conciliassem a vida familiar e o melhor interesse dos filhos com a atividade laboral, para o desenvolvimento pessoal e profissional da mulher.

4. A proteção à maternidade constitui medida de discriminação positiva, que reconhece a especial condição ou papel da mulher no que concerne à geração de filhos e aos cuidados da primeira infância, tendo como ratio essendi primordial o bem estar da criança recém-nascida ou recém-incorporada à unidade familiar.

5. O convívio próximo com a genitora na primeira infância é de fundamental importância para o desenvolvimento psíquico saudável da criança. É que a garantia de períodos estendidos de licença-maternidade está associada, na literatura médica, entre outras coisas à redução da mortalidade infantil em países de todos os níveis de renda (HEYMANN et al. Paid parental leave and family wellbeing in the sustainable development era. Public Health Reviews, 2017, 38:21).

6. A ratio essendi primordial de proteção integral das crianças do instituto da licença-maternidade, tem diversos precedentes no sentido da extensão deste benefício a genitores em casos não expressamente previstos na legislação. Nesse sentido, a jurisprudência consagrou que a duração do benefício deve ser idêntico para genitoras adotivas e biológicas (RE 778.889, Tribunal Pleno, Rel. Min. Roberto Barroso, DJe 01/08/2016); reconheceu-se o gozo da licença a servidores públicos solteiros do sexo masculino solteiro que adotem crianças (RE 1.348.854, Tribunal Pleno, Rel. Min. Alexandre de Moraes, DJe 24/10/2022); e garantiu-se o direito à licença também às servidoras públicas detentoras de cargos em comissão (RE 842.844, Tribunal Pleno, Rel. Min. Luiz Fux, DJe 06/12/2023).

7. As normas constitucionais relativas ao direito à licença-maternidade à mãe não gestante em união homoafetiva não podem ser interpretadas fora do contexto social em que o ordenamento jurídico brasileiro se insere, impondo-se opção por interpretação que confira máxima efetividade às finalidades perseguidas pelo Texto Constitucional.

8. O direito à igualdade, expresso no art. 5º, caput, da Constituição Federal, pressupõe a consideração das especificidades indevidamente ignoradas pelo Direito, especialmente aquelas vinculadas à efetivação da autonomia individual necessária à autorrealização dos membros da sociedade. Na linha da definição formulada por Ronald Dworkin, a igualdade equivale a tratar a todos com o mesmo respeito e consideração (DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 419).

9. À luz da isonomia, não há que se falar exclusão da licença-maternidade às mães não gestantes em união homoafetiva. A Constituição Federal de 1988 concede à universalidade das mulheres a proteção constitucional à maternidade, independentemente do prévio estado de gravidez.

10. O reconhecimento da condição de mãe à mulher não gestante, em união homoafetiva, no que concerne à concessão da licença-maternidade, tem o condão de fortalecer o direito à igualdade material e, simbolicamente, de exteriorizar o respeito estatal às diversas escolhas de vida e configuração familiares existentes.

11. À luz do princípio da proporcionalidade, verifica-se a impossibilidade da concessão do benefício na hipótese abstrata de concorrência entre as mães a ambas simultaneamente em virtude de uma única criança, devendo a uma delas ser concedida a licença-maternidade e à outra afastamento por período equivalente ao da licença-paternidade. Saliente-se no ponto que o Plenário desta Corte declarou, recentemente, no julgamento da ADO 20, a existência de omissão inconstitucional do Congresso Nacional no que concerne à regulamentação da licença-paternidade, assinalando prazo de 18 meses ao Poder Legislativo Federal para a colmatação da lacuna normativa.

12. In casu, tem-se quadro fático em que o direito de trabalhadora não gestante em união homoafetiva ao gozo de licença-maternidade foi reconhecido, em contexto em que sua companheira, a mãe gestante, não usufruiu do benefício, de sorte que a decisão recorrida se adéqua perfeitamente à melhor interpretação constitucional.

13. Recurso extraordinário a que se NEGA PROVIMENTO, com a fixação da seguinte tese vinculante: “A servidora pública ou a trabalhadora regida pela CLT não gestante em união homoafetiva têm direito ao gozo da licença-maternidade. Caso a companheira tenha usufruído do benefício, fará jus a período de afastamento correspondente ao da licença-paternidade”.

Portanto, a decisão do STF manteve o entendimento da Justiça do Estado de São Paulo, não acatando os argumentos aviados pelo Município de São Bernardo do Campo, reconhecendo o direito ao benefício previdenciário da “licença-maternidade” à servidora pública municipal não gestante em união homoafetiva com a gestante.

Alargando o objeto da ação original, o STF reconheceu, ainda, o mesmo direito à trabalhadora celetista (regida pela Consolidação das Leis do Trabalho) em condições análogas, conforme a tese formada no tema de repercussão geral nº 1072.

A seguir, algumas considerações sobre a decisão são necessárias, sobretudo pela relevância do tema para garantia de direitos fundamentais sociais nas relações homoafetivas.

4  Análise Crítica da Decisão do Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário 1.211.446. Avanço em Meio a Retrocessos

Desde maio de 2016, o Brasil vem passando por um processo de desconstrução dos direitos sociais sob os fundamentos da necessidade de modernização das relações laborais e do equilíbrio das contas previdenciárias.

Como observado nos últimos dez anos com mais intensidade, o alvo principal dos críticos, sobretudo economistas e comentadores de economia da grande mídia, é a legislação social, tanto a de seguridade social quanto a trabalhista.

As mudanças legislativas, capitaneadas pela reforma trabalhista de 2017 (Leis nº 13.467/2017[30] e nº 13.429/2017[31]), centraram-se em medidas de flexibilização das relações de trabalho, com avanço da terceirização, inclusive em atividades fins da empresa, banco de horas, discussão sobre a prevalência do negociado sobre o legislado, trabalho intermitente. Por sua vez, também houve uma nova da reforma previdenciária em 2019, o que se deu pela Emenda Constitucional  103/2019.

A pandemia da Covid-19 também foi um fator de agravamento das condições sociais das pessoas, levando o Estado a adotar medidas emergenciais de ajuda às empresas com o objetivo de preservação do emprego e da renda dos trabalhadores. Logicamente, tais medidas demandadas pelos diversos setores da economia, contrariaram o discurso do estado mínimo propagado por aqueles que defendiam (e ainda defendem) as reformas e que foram amplamente contemplados pela ajuda estatal emergencial.

Acrescenta-se que não há nada demais nessa ajuda, pois é esse o papel do Estado Social, criar condições equilibradas para que os princípios da ordem econômica possam coexistir em harmonia com os princípios da ordem social. O que parece contraditório é o discurso de crítica ao estado social ao mesmo tempo em que se pugna por benefícios e vantagens setoriais que contribuem para a manutenção das próprias desigualdades sociais.

Ainda mais recente, o Supremo Tribunal Federal vem revendo decisões de mérito da Justiça do Trabalho, em sede de reclamações constitucionais, para afastar o reconhecimento de vínculo de emprego quando a contratação do trabalho humano se der, formalmente, sob outras modalidades diversas da regência pela CLT.

Neste cenário, importante trazer a lume o princípio protetor como um princípio viabilizador do valor social do trabalho e da dignidade da pessoa humana. Sob essa perspectiva, tal princípio converge com a decisão tomada pelo STF no RE nº 1.211.446. Como assinala Helder Santos Amorim, a Constituição destina ao trabalhador

a garantia de uma espécie de relação jurídica com o capitalista – a relação de emprego – profundamente dirigida pela norma jurídica, em que a autonomia da vontade das partes é substituída pela vontade da lei como forma de compensar uma desigualdade, reconhecida como premissa fática, que vulnerabiliza profundamente a dignidade da pessoa do trabalhador. Trata-se da garantia essencial do direito do trabalho, incumbido de regular as condições elementares do trabalho subordinado, e que somente devolve às partes a livre disposição sobre sua relação quando satisfeitas as condições mínimas essenciais à preservação do valor-trabalho[32].

Embora o presente estudo não tenha como finalidade analisar as recentes decisões do STF nas reclamações constitucionais, nem o cenário de desconstrução da legislação social, é importante para se fazer um contraponto com a decisão adotada no bojo do Recurso Extraordinário nº 1.211.446, sobretudo o contexto fático-jurídico em que se deu.

Feitas essas considerações, passa-se à análise da decisão do STF que levou à adoção da tese em repercussão geral tema nº 1072 – Possibilidade de concessão de licença-maternidade à mãe não gestante, em união estável homoafetiva, cuja companheira engravidou após procedimento de inseminação artificial.

Como destacado acima, o STF negou provimento ao RE nº 1.211.446 interposto pelo Município de São Bernardo do Campo da decisão proferida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo que havia reconhecido o direito à licença-maternidade à servidora (recorrida), mãe não gestante, que convive em união estável homoafetiva com companheira que engravidou após procedimento de inseminação artificial.

O Ministro Relator Luiz Fux destacou que a controvérsia sub examine consiste em analisar, à luz dos arts. 6º, 7º, XVIII, 37, caput, 39, § 3º, 201, 203, I e 226, §§ 3º e 4º, da CF/1988, a possibilidade de concessão de licença-maternidade à mãe não gestante, em união homoafetiva, cuja companheira engravidou após o procedimento de inseminação artificial.

Como a Corte Suprema havia reconhecido a repercussão geral do tema objeto do recurso, fixou a seguinte tese vinculante: “A servidora pública ou a trabalhadora regida pela CLT não gestante em união homoafetiva têm direito ao gozo da licença-maternidade. Caso a companheira tenha usufruído do benefício, fará jus a período de afastamento correspondente ao da licença-paternidade”.

Como premissas teóricas, o Ministro Luiz Fux analisou as seguintes questões: I – o conceito plural de família da Constituição Federal; II – o direito fundamental à licença maternidade; e III – a coexistência do s princípios de proteção à maternidade e da supremacia do interesse público. 

Em primeiro lugar, por se tratar de decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, a máxima instância judicial do país, espera-se sempre o escorreito uso dos institutos. Se a licença-maternidade, no âmbito dos Regimes Próprios de Previdência Social, se confunde com o pagamento da remuneração da servidora pública estatutária, configurando-se como uma licença remunerada, no âmbito do Regime Geral de Previdência Social os institutos licença-maternidade e salário-maternidade possuem naturezas diversas, conforme explicado na primeira parte. O afastamento da trabalhadora de sua atividade laboral (licença-maternidade) configura-se como um direito trabalhista a ser observado pelo empregador. O pagamento da remuneração durante a licença-maternidade é benefício previdenciário a cargo do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).

Contudo, no voto proferido pelo Ministro Luiz Fux, houve confusão dos institutos, como se verifica do trecho que se transcreve: “A licença-maternidade constitui benefício previdenciário destinado justamente, em conjunto com outras previsões, a concretizar a proteção à maternidade e à infância mencionada no caput do art. 6º da CF”.

Embora esta confusão não prejudique a essência da decisão, é importante diferenciar os institutos, sobretudo quando se trata de trabalhadores regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho, cujo pagamento do benefício não é suportado pelo tomador de serviços da trabalhadora ou do trabalhador, ao contrário do servidor público estatutário.

Feita essa breve consideração terminológica, importante algumas considerações sobre os marcos teóricos considerados pelo Ministro Relator na elaboração de seu voto.

Quanto ao conceito plural de família, o Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de se debruçar sobre a questão. Na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.277, da Relatoria do Ministro Ayres Britto, o Plenário do STF assentou a necessidade de uma interpretação não reducionista do conceito de família, como instituição que também se forma por vias distintas do casamento civil e que abrange, com igual dignidade, uniões entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos. Transcreve-se trecho do voto do Ministro Relator.

E assim é que, mais uma vez, a Constituição Federal não faz a menor diferenciação entre a família formalmente constituída e aquela existente ao rés dos fatos. Como também não distingue entre a família que se forma por sujeitos heteroafetivos e a que se constitui por pessoas de inclinação homoafetiva. Por isso que, sem nenhuma ginástica mental ou alquimia interpretativa, dá para compreender que a nossa Magna Carta não emprestou ao substantivo “família” nenhum significado ortodoxo ou da própria técnica jurídica. Recolheu-o com o sentido coloquial praticamente aberto que sempre portou como realidade do mundo do ser. Assim como dá para inferir que, quanto maior o número dos espaços doméstica e autonomamente estruturados, maior a possibilidade de efetiva colaboração entre esses núcleos familiares, o Estado e a sociedade, na perspectiva do cumprimento de conjugados deveres que são funções essenciais à plenificação da cidadania, da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho. (...) Quando o certo − data vênia de opinião divergente – é extrair do sistema de comandos da Constituição os encadeados juízos que precedentemente verbalizamos, agora arrematados com a proposição de que a isonomia entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família[33].

Na atualidade, observa Aline Cavalcante de Souza Sanches, “reconhece-se um pluralismo de entidades familiares, não havendo primazia do casamento em relação às demais entidades familiares, sendo suficientes para caracterização de entidade familiar o afeto”[34].

Assim, parece sem sentido discussões acerca do reconhecimento dos núcleos familiares diversos do modelo tradicional de família, fundado no matrimônio como a união entre homem e mulher. O STF, a jurisprudência e a doutrina especializada já estabeleceram, de forma clara, a constitucionalidade de modelos diversos de famílias, inclusive as decorrentes de uniões homoafetivas.

Quanto ao direito fundamental à licença maternidade, segundo marco teórico, além das considerações sobre o benefício previdenciário ser uma prestação de proteção ao trabalho da mulher e de inserção desta no mercado de trabalho, ficou assentado no voto do Ministro Relator que a razão primordial do instituto é, “sem dúvida alguma, o bem estar da criança recém-nascida ou recém incorporada à unidade familiar (como se dá no caso de adoção)”[35], visando-se assegurar a assistência das necessidades essenciais da criança pela família, pelo Estado e pela sociedade, conforme previsto no art. 227 da CRFB/1988.

Portanto, ao mesmo tempo em que o benefício previdenciário pago pelo Estado previne discriminações em relação à mulher pela maternidade, confere suporte material e temporal para os cuidados iniciais da criança, seja na maternidade natural, seja na adotiva.

Assim, ficou assentado no voto a concepção protetiva do benefício salário-maternidade convergindo com o princípio da proteção integral e prioritária das crianças, em qualquer modelo de família em que ela esteja inserida.

Já em relação à coexistência dos princípios de proteção à maternidade e da supremacia do interesse público, constante no voto do Ministro Luiz Fux, ficou consignado que em situações nas quais existe o conflito principiológico, há de se ponderar os valores inerentes à situação apresentada e consequentemente decidir pela aplicação daquelas normas mais convenientes e mais necessárias para a concretização da justiça e da equidade.

In casu, em relação à mãe não gestante em união homoafetiva, a negativa da licença-maternidade decorreria dos princípios da legalidade e da supremacia expresso à ela na legislação municipal), os quais estariam em contraposição com os princípios da proteção da maternidade, da dignidade humana, do reconhecimento, da igualdade e do melhor interesse do menor. (...) No caso concreto, mãe não gestante em relação homoafetiva teve o seu direito à licença-maternidade negado pela Administração Pública sob o argumento da ausência de previsão expressa em lei que a reconhecia como beneficiária do direito. Contudo, ainda que ausente essa previsão, a proteção constitucional observa finalidade mais elevada: a de proteger a criança e a mãe. O custo social do não reconhecimento do benefício, uma vez em jogo direitos os quais a Constituição confere especial proteção, é consideravelmente maior que a ausência de previsão da situação jurídica específica no texto legal, mas cuja solução pode ser extraída o plexo de princípios constitucionais. Ademais, a excepcionalidade da hipótese, decorrente de uma legislação não adaptável à realidade social, reforça a necessidade de se minorar o peso atribuído à ausência de previsão legal expressa[36].

Afinal de contas, nessa ponderação principiológica, deve prevalecer o princípio que melhor atende aos valores previstos na Constituição da República, sobretudo o da dignidade da pessoa humana e do valor social do trabalho, de forma a conferir a máxima proteção aos mais vulneráveis.

E quanto à ausência de norma específica alegada pela municipalidade para privilegiar o princípio da legalidade estrita a fundamentar a não concessão da licença/salário maternidade à servidora, relevantes as palavras de Maria Berenice Dias, que entende que o silencia do legislador não pode calar o juiz, que precisa julgar com o compromisso de fazer justiça[37].

Tem-se, ainda, uma outra questão da tese firmada no tema 1072 de repercussão geral, mais precisamente na segunda parte da tese: “Caso a companheira tenha usufruído do benefício, fará jus a período de afastamento correspondente ao da licença-paternidade”.

A licença-paternidade, no Brasil, não está associada ao pagamento de um salário-paternidade pelo INSS. Na verdade, esse afastamento é suportado pelo empregador, sendo considerado como falta justificada, nos termos do inciso III do art. 473 da CLT.

Como bem observa Laura Carvalho Pastro, com sua natureza de falta justificada, “a licença-paternidade coloca todo o ônus financeiro da ausência paterna no emprego sobre os ombros do patrão, o que dificulta o aceite da iniciativa privada sobre a sua ampliação”[38].

Feitas essas considerações, e afirmando que se trata de uma decisão garantista de direitos fundamentais, pondera-se que o Supremo Tribunal Federal poderia ter avançado mais na garantia de direitos sociais, não limitando-se ao caso concreto que lhe fora submetido. E esse avanço teria sido alcançado se a proposta do Ministro Flávio Dino tivesse sido acolhida pela Suprema Corte. Veja-se como colocou a questão em seu voto.

Em relação à tese, eu apenas chamo a atenção para uma consequência, na medida em que nós estamos dizendo que, nessa hipótese de duas mulheres que adotam ou, nesse caso de inseminação artificial, venham a ter um filho, nós teremos uma hipótese em que uma terá a licença-maternidade e a outra algo equivalente, do ponto de vista temporal, à licença-paternidade. Por simetria, a consequência será que, quando se tratar de dois homens adotantes, do mesmo modo, nós teremos que um dos homens adotantes terá a licença-paternidade e outro, por igualdade, terá direito a uma licença, do ponto de vista temporal, similar à licença-maternidade. Então, talvez, Ministro Fux, até para que nós possamos cumprir essa missão inerente à função da Corte Suprema de trazer segurança jurídica, de complementar marcos normativos sólidos, quem sabe fosse o caso de, a partir da extrapolação desse caso concreto, na tese, nós acrescentarmos um terceiro item para já deslindar também essa situação por simetria para deixar claro que há igualdade de proteção entre as duas situações, sejam duas mulheres, sejam dois homens, havendo, portanto, essa equivalência temporal[39].

Caso o STF tivesse acolhido a proposta apresentada pelo Ministro Flávio Dino, teria decidido em observância aos princípios da proteção integral e do melhor interesse da criança, além de cumprir o mandamento constitucional da isonomia.

Destaca-se que o princípio do melhor interesse da criança está previsto no art. 227 da Constituição Federal de 1988 e no artigo 3° do Estatuto da Criança e do Adolescente, cuja finalidade é proteger de forma integral e com absoluta prioridade os direitos fundamentais da criança.

Nesse sentido, em observância a estes princípios, independe se estamos diante de adoção ou de procedimento de inseminação artificial em um núcleo familiar homoafetivo, feminino ou masculino, ou outra forma identitária de gênero. O resultado deveria ser o mesmo, pois o sujeito a ser protegido, em essência, é a criança e não os pais ou as mães.

Na Espanha, por exemplo, foi publicado o Real Decreto-Lei 6/2019, de 1 de março, relativo a medidas urgentes para garantir a igualdade de tratamento e de oportunidades entre mulheres e homens no emprego e na atividade profissional. Este Real Decreto-Lei inclui alterações ao Estatuto dos Trabalhadores (ET) e ao Estatuto Básico do Empregado Público (EBEP), bem como à Lei Geral da Segurança Social, com o objetivo de igualar os direitos das trabalhadoras. Por intermédio desta mudança, a partir de 01 de abril de 2019, os benefícios de maternidade e de paternidade foram unificados numa única prestação denominada por prestação de “assistência ao nascimento e à infância” (nacimiento y cuidado de menor)[40].

O STF teria cumprido o seu papel de tutelar direitos fundamentais das crianças, adotadas ou geradas em processo de inseminação artificial, em sua acepção maior, não se limitando a observar questão fática específica. Ainda mais em um processo em que foi reconhecida repercussão geral com efeitos vinculantes. O ODS 16 da Agenda 2030 que dispõe sobre a paz, justica e instituições eficazes teria sido observado pelo Tribunal.

Contudo, o Presidente da Corte, Ministro Luís Roberto Barroso, após a proposta apresentada, efetivamente tolhiu a possibilidade de se avançar nos debates, conforme trecho que se transcreve a seguir.

O nosso caso concreto são duas mulheres, sendo que uma delas fez a gestação com o material genético da outra. Eu nem discordo do que Vossa Excelência disse, mas eu sinceramente não me animaria a extrapolar aqui para muito além dessa situação. Até porque, entre dois homens, evidentemente não será possível que um tenha gestação. Então, eu, sem discordar de Vossa Excelência, talvez exercesse um pouco de autocontenção na tese, seguindo uma tradição que temos procurado manter de o máximo de proximidade com a situação concreta.

Por fim, independente da ponderação feita pelo Ministro Presidente de autocontenção ao caso concreto submetido à Corte, o melhor interesse da criança seria mais bem atingido se a Previdência Social ampliasse subjetivamente o benefício previdenciário de modo a igualar em direitos homens e mulheres, e em duplicidade. Essa nova concepção do benefício poderia ser denominada de salário parental[41], com igualdade de duração do período de afastamento do trabalho (licença parentalidade).

Para a Organização Internacional do Trabalho, enquanto a licença maternidade visa proteger as mulheres trabalhadoras durante a gravidez e recuperação do parto, “a licença parental refere-se a uma licença de duração relativamente longa disponível para um ou ambos os pais, permitindo-lhes cuidar de um bebê ou criança pequena durante um período de período, geralmente após a licença maternidade ou paternidade período”[42].

Assim, além de cumprir o mandamento constitucional de proteção integral da criança, ainda preveniria a discriminação da mulher no mercado de trabalho, na medida em que seria indiferente a contratação de homem ou mulher pelo empregador.

Logicamente, esse novo benefício demandaria a intervenção do legislador, sobretudo diante da regra constitucional da contrapartida, segundo a qual nenhum benefício ou serviço da seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio total (art. 195, § 5º, da CRFB/1988).

5  CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo buscou trazer à discussão recente decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal em recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida sobre a possibilidade de concessão de licença-maternidade à mãe não gestante, em união estável homoafetiva, cuja companheira engravidou após procedimento de inseminação artificial.

Negado provimento ao recurso interposto pelo Ente Público, a Corte Suprema fixou a Tese nº 1072, segundo a qual a mãe servidora ou trabalhadora não gestante em união homoafetiva tem direito ao gozo de licença-maternidade e, caso a companheira tenha utilizado o benefício, fará jus à licença pelo período equivalente ao da licença-paternidade.

Dividida em três partes, a pesquisa discorreu sobre a proteção à maternidade no âmbito da seguridade social, reconhecendo o benefício previdenciário salário-maternidade como a prestação protetiva a ser paga pelo INSS durante o período de afastamento da trabalhadora (licença maternidade). Na primeira parte do estudo, também se discorreu sobre a ampliação da proteção social ao abarcar, além dos casos da maternidade natural, a adoção. Por fim, fez-se referência à evolução da jurisprudência do STF em alguns processos relacionados ao tema do recurso extraordinário em análise.

A segunda parte tratou do caso objeto do RE nº 1.211.446 no qual o STF adotou a tese em repercussão geral do Tema 1072. Na mesma parte, discorreu-se sobre os fundamentos sustentados pelo ente público municipal ao negar o benefício à servidora pública.

Na terceira e última parte do estudo, analisou-se, de forma crítica, a decisão proferida pelo STF no RE nº 1.211.446. Destacou-se as premissas teóricas elencadas no voto da Relatoria para, ao final, ressaltar que a Suprema Corte poderia ter avançado na tese adotada no Tema 1072.

A pesquisa permitiu identificar algumas questões relacionadas à tese formada no Tema 1072 de repercussão geral.

A decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no RE nº 1.211.446 seguiu a orientação que vem se formando na Corte Suprema de assegurar isonomia às diversas formas de famílias, privilegiando os vínculos afetivos em detrimento de formas tradicionais de família centrada no matrimônio entre homem e mulher.

Também se observou a necessidade de proteger a mulher de discriminações em função da maternidade, sobretudo no âmbito das relações de trabalho.

A fixação da tese no Tema 1072 ampliou o espectro subjetivo do caso concreto, estendendo a proteção às trabalhadoras celetistas em situações análogas à julgada no RE nº 1.211.446.

Como ficou fixado na tese que, caso a companheira tenha utilizado o benefício salário-maternidade, a trabalhadora não gestante fará jus à licença pelo período equivalente ao da licença-paternidade, criou-se um ônus ao empregador de suportar o período como falta justificada, na medida em que não foi atribuído à Previdência Social o encargo financeiro da ausência da trabalhadora.

Como conclusão, o melhor interesse da criança seria integralmente observado se a tese fixada no Tema 1072 contemplasse a união homoafetiva masculina, na medida em que o foco protetivo do direito reconhecido no julgamento deve ser a criança.

Por fim, confirmando a hipótese estabelecida na introdução, a tese fixada no julgamento do RE nº 1.211.446, apesar do avanço observado, foi insuficiente diante da autocontenção da Corte ao se limitar ao objeto do recurso extraordinário, por deixar de fora da proteção crianças geradas no âmbito de uniões homoafetivas masculinas.

Prospectivamente, e dependendo de interposição legislativa, entende-se que deve ser buscada a criação de uma licença parental subjetivamente ampla, contemplando ambos os pais (independente de questão de gênero), em todas as formas de família.

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TEPEDINO, Gustavo, Temas de Direito Civil, Rio de Janeiro, Editora Renovar, 2008.

Notas de Rodapé

[1]     Pós-Doutor em Direitos Humanos e Constitucionalismo pelo IGC / Coimbra. Doutor em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestre em Direito Previdenciário pela PUC-SP. Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade de São Paulo. Procurador do Trabalho. Titular da Cadeira nº 20 da Academia Brasileira de Direito da Seguridade Social. E-mail: agrieco@terra.com.br. Orcid 0000-0001-7124-2785.

[2]     Peter Häberle destaca que a multidimensionalidade dos direitos fundamentais cria um conjunto flexível a serviço da proteção ideal dos direitos fundamentais, sendo “aberto ao longo do tempo, ou seja, em caso de novos perigos, será preciso desenvolver novos temas e novas dimensões para a proteção do cidadão e dos grupos. (HÄBERLE, Peter, Dimensões dos Direitos Fundamentais à Luz de uma Comparação de Níveis Textuais de Constituições, Direito Público, 11(55), 2014, p. 189).

[3]     BELTRAMELLI NETO, Silvio. Direitos Humanos, Salvador, JusPodium, 2014, p. 99.

[4]     Expressão associada ao sistema de proteção social britânico a cargo do Estado Social, provida antes do nascimento da pessoa até o seu falecimento.

[5]     LIMA, Marcus Vinicius Rodrigues (2024), Mínimo existencial e transformações sociais, A relevância dos direitos fundamentais em tempos de crise, Revista Internacional Consinter de Direito, 10(18), 293–312, https://doi.org/10.19135/revista.consinter.00018.11, p. 297.

[6]     Sociedade de riscos na concepção utilizada por Ulrich Beck (BECK, Ulrich, Sociedade de Risco, São Paulo, Editora 34, 2010.).

[7]     FERREIRA, Lauro Cesar Mazetto, Seguridade Social e Direitos Humanos, São Paulo, LTr, 2007, p. 128.

[8]     Pode-se denominar esse sistema de “bismarckiano” pois inspirado no modelo introduzido na Alemanha durante a segunda metade do século XIX, pelo chanceler Otto von Bismarck.

[9]     LEITÃO, André Studart, MEIRINHO, Augusto Grieco Sant´Anna e LIMA, Alexandre César Diniz Morais, Direito Previdenciário, São Paulo, SaraivaJur, 2022, pp. 157-158.

[10]    MARTINEZ, Luciano, Curso de Direito do Trabalho, São Paulo, SaraivaJur, 2023, p. 961.

[11]    O Brasil ratificou a Convenção nº 103 da OIT em 18 de junho de 1965, entrando em vigor, no plano interno, em 18 de junho de 1966.

[12]    PRONI, Thaíssa Rocha, Proteção Constitucional à Maternidade no Brasil, São Paulo, LTr, 2013, p. 70.

[13]    TEPEDINO, Gustavo, Temas de Direito Civil, Rio de Janeiro, Editora Renovar, 2008, p. 394.

[14]    HOGEMANN, Edna Raquel, SOUZA, Thiago Serrano Pinheiro de (2019), O Direito à Liberdade de Amor Homossexual: Da Interdição Moral do Desejo à Proclamação de um Efetivo Direito Fundamental, Revista Internacional Consinter De Direito, 5(9), 103–118. https://doi.org/10.19135/revista.consinter.00009.05, pp. 110-111.

[15]    PEREIRA, Rodrigo da Cunha, Direito das Famílias, Rio de Janeiro, Forense, 2020, p. 375.

[16]    Os modelos de parentalidade resultantes do emprego de técnicas de reprodução assistida, explica Gabriela Giaqueto Gomes, “se sustentam em dois grupos principais: a reprodução homóloga, em que se utiliza o material genético daqueles ou daquele indivíduo que irá receber o embrião, aproximando-se da reprodução através da relação sexual, e a reprodução heteróloga, que se aproxima da paternidade e filiação civil, eis que se utiliza material de um terceiro doador”. (GOMES, Gabriela Giaqueto, Homoparentalidade nas Relações Homoafetivas, Belo Horizonte, Editora Dialética, 2021, p. 95.)

[17]    MADALENO, Rolf, Manual de Direito de Família, Rio de Janeiro, Forense, 2019, p. 185.

[18]    Trechos constantes do voto do Ministro Relator Luiz Fux no Recurso Extraordinário nº 1.211.446. Disponível: <https://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=5701548>. Acesso em: 08 maio 2024.

[19]    Idem, ibidem, acesso em: 10 maio 2024.

[20]    Ementa do acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo: “Licença maternidade pelo período de 180 dias. Casal homoafetivo. Mãe que não gestou a criança. Extensão. Melhor interesse do menor. Sentença mantida por seus próprios fundamentos. Recurso não provido.”

[21]    Trechos constantes do voto do Ministro Relator Luiz Fux no Recurso Extraordinário nº 1.211.446. Disponível: <https://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=5701548>. Acesso em: 10 maio 2024.

[22]    O caput do art. 37 da Constituição Federal de 1988 elenca os princípios que regem a Administração Pública brasileira, in verbis: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (...)”.

[23]    Atualmente, já se vem entendendo que a prevalência dessa visão estrita da legalidade administrativa pode trazer violações aos direitos fundamentais dos administrados. Assim, com fundamento na Constituição da República de 1988, amplia-se o parâmetro de normatividade para abarcar os princípios e o seu sistema de direitos fundamentais previstos no texto constitucional como orientador da atuação da Administração Pública. Segundo Gustavo Binenbojm, o novo paradigma jurídico, que substitui o princípio da legalidade estrita, “traduz-se, assim, na vinculação da Administração Pública ao ordenamento jurídico como um todo, a partir do sistema de princípios e regras delineado na Constituição” (BINENBOJM, Gustavo, Uma Teoria do Direito Administrativo, Rio de Janeiro, Editora Renovar, 2014, p. 149).

[24]    FURTADO, Lucas Rocha, Curso de Direito Administrativo, Belo Horizonte, Fórum, 2012, p. 83.

[25]    Os processos de controle de constitucionalidade e com repercussão geral reconhecida indicados pelo Presidente para a pauta de julgamento devem ser classificados com o respectivo objetivo de desenvolvimento sustentável da Agenda 2030 da ONU.

[26]    Trata-se de instituto processual incluído no ordenamento jurídico brasileiro pela Emenda Constitucional n. 45/2004 e regulamentado pelos arts. 322 a 329 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal e pelos arts. 1.035 a 1.041 do Código de Processo Civil de 2015. Por intermédio da repercussão geral, o STF julga temas, em recursos extraordinários, que apresentem questões relevantes sob o aspecto econômico, político, social ou jurídico e que ultrapassem os interesses subjetivos da causa.

[27]    Excerto do acórdão referente à decisão de reconhecimento da repercussão geral no RE nº 1.211.446. Disponível:<https://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=5701548>. Acesso em 12 maio 2024.

[28]    Segundo o sítio da Defensoria Pública da União (DPU), “o amicus curiæ (Amigo da Corte) é um terceiro que intervém em processos judiciais a fim de fornecer informações adicionais e relevantes aos juízes da causa. Essa espécie de intervenção é historicamente adotada no ordenamento jurídico brasileiro como forma de auxiliar os tribunais na busca da melhor aferição da constitucionalidade e da interpretação das leis. Desde 2015, ademais, o amicus curiæ passou a ser admitido em qualquer espécie de processo e em todos os graus de jurisdição, considerando-se a relevância da matéria, a especificidade do tema objeto da demanda ou a repercussão social da controvérsia (art. 138 do Código de Processo Civil)”. Disponível: <https://direitoshumanos.dpu.def.br/amicus-curiae/>. Acesso em: 05 jun. 2024.

[29]    O acórdão transitou em julgado em 18 de junho de 2024.

[30]    A Lei 13.467/2017 promoveu diversas alterações na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) tanto de direito material quanto de direito processual. 

[31]    A Lei 13.429/2017, por sua vez, alterou dispositivos da Lei 6.019, de 3 de janeiro de 1974, que dispõe sobre o trabalho temporário nas empresas urbanas, além de dispor sobre as relações de trabalho na empresa de prestação de serviços a terceiros. Trata-se de uma norma que ampliou o fenômeno da terceirização, praticamente tornando-a irrestrita.

[32]    AMORIM, Helder Santos, “Responsabilidade nas Relações de Trabalho”, In TEPEDINO, Gustavo et al., Coord., Diálogos entre o Direito do Trabalho e o Direito Civil, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 449.

[33]    Trecho constante do voto do Ministro Ayres Britto na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4277. Disponível em: <https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628635>. Acesso em: 05 jun. 2024.

[34]    SANCHES, Aline Cavalcante de Souza, “Conceito de Família e os Novos Arranjos Familiares”, In FIUZA, César, Org., RODRIGUES, Edwirges Elaine, SILVA, Marcelo Rodrigues da e OLIVEIRA FILHO, Roberto Alves de, Coords., Temas Relevantes sobre o Direito das Famílias, Belo Horizonte, Editora D´Plácido, 2019, p. 54. 

[35]    Trecho constante do voto do Ministro Luiz Fux no Recurso Extraordinário nº 1.211.446. Disponível: <https://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=5701548>. Acesso em: 08 jun. 2024.

[36]    Trecho constante do voto do Ministro Luiz Fux no Recurso Extraordinário nº 1.211.446. Disponível: <https://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=5701548>. Acesso em: 08 jun. 2024.

[37]    DIAS, Maria Berenice, Manual de Direito de Família, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 108.

[38]    PASTRO, Laura Carvalho, Licença Parental no Brasil, Rio de Janeiro, Editora Lumen Juris, 2022, p. 17.

[39]    Trecho constante do voto do Ministro Flávio Dino no Recurso Extraordinário nº 1.211.446. Disponível: <https://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=5701548>. Acesso em: 10 jun. 2024.

[40]    Disponível em: <https://www.seg-social.es/wps/portal/wss/internet/Trabajadores/PrestacionesPensionesTrabajadores/6b96a085-4dc0-47af-b2cb-97e00716791e>.

[41]    O Projeto de Lei 1974/2021 trata da licença parentalidade remunerada de 180 dias às mães, pais e a todas as pessoas em vínculo socioafetivo para os cuidados necessários em caso de nascimento ou adoção em grupos familiares, custeados pela Previdência Social, que seria o salário parentalidade (Projeto de Lei disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2284867. Acesso em 25 jun. 2024.

[42]    ILO, Maternity and Paternity at Work, Law and Practice Across the World, International Labour Office, Geneva, ILO, 2014, p. 60.