A Função Social como Fato Limitador ao Direito de Propriedade

DOI: 10.19135/revista.consinter.00014.19

Recebido/Received 31.07.2021 – Aprovado/Approved 10.01.2022

Carlos Magno Alhakim Figueiredo Júnior[1] – https://orcid.org/0000-0002-9840-4681

Vinicius Ribeiro Cazelli[2] – https://orcid.org/0000-0002-9191-6932

Resumo

Este estudo visa analisar a função social da propriedade como fator limitador do direito de propriedade no Brasil e em Portugal. O conceito de propriedade privada criado no início dos tempos, já não traduz toda a complexidade do Direito de propriedade contemporâneo. A hipótese consiste no questionamento da função social da propriedade como fator limitante ou não do exercício da individualidade do direito à propriedade. O método de abordagem usado no estudo é o dedutivo-hipotético. Para fins de pesquisa, a metodologia baseou-se na literatura e pesquisa bibliográfica, analisando a doutrina, a legislação e jurisprudência na evolução da sociedade diante da ideia de propriedade e direito do indivíduo sobre ela. Nesse contexto foram estudados conceitos basilares do direito de propriedade, da função social da propriedade, e algumas características específicas do direito brasileiro e do direito português que levaram à compreensão de que a função social da propriedade passou a ser vista como uma norma que visa regular, da melhor forma, o exercício do direito de propriedade, e não como uma norma limitadora em sua origem. Como resultado, concluiu-se que embora haja características próprias entre as legislações, à função social da propriedade busca ser uma norma reguladora que mesmo mantendo o caráter individual visa ao uso adequado do exercício do direito a propriedade para diminuição da desigualdade social.

Palavras-chave: Direito de Propriedade, Fatores limitantes, Propriedade privada, Função Social da Propriedade, Exercício do Direito de Propriedade

Abstract

This study aims to analyze the social function of property as a limiting factor for property rights in Brazil and Portugal. Since the concept of private property created in the beginning of time, it no longer reflects all the complexity of contemporary property law. The hypothesis consists in questioning the social function of property as a limiting factor or not of the exercise of the individuality of the right to property. The approach method used in the study is the deductive-hypothetical. For research purposes, the methodology was based on literature and bibliographic research, analyzing the doctrine, legislation and jurisprudence on the evolution of society in face of the idea of property and the individual’s right over it. In this context, basic concepts of property law, the social function of property were studied, and some specific characteristics of Brazilian law and Portuguese law that led to the understanding that the social function of property came to be seen as a norm that aims to regulate, in the best way, the exercise of the right of property, and not as a limiting norm in its origin. As a result, it was concluded that although there are specific characteristics between the legislations, the social function of the property seeks to be a regulating norm that, even maintaining the individual character, aims at the adequate use of the exercise of the right to property in order to reduce social inequality.

Keywords: Property Law, Limiting factors, Private property, Social Function of Ownership, Exercise of Property Right.

Sumário: 1. Introdução; 2. Síntese Histórica do Direito de Propriedade; 3. Função Social da Propriedade; 3.1. Função social da propriedade no Brasil; 3.2. Função social da propriedade no ordenamento jurídico de Portugal; 4. Função Social da Propriedade: Fator Limitante do Direito Individual; Conclusão; Referências.

LISTA DE SIGLAS

CC – Código Civil Português.

CRP – Constituição da República Portuguesa.

CRFB – Constituição da República Federativa Brasileira.

1 INTRODUÇÃO

Uma das principais características do processo de urbanização no século XXI é a ocupação desordenada do espaço urbano, onde a disputa pela propriedade provoca uma exclusão social. Segundo Nunes e Figueiredo Junior (2018, p. 888) “há uma luta cotidiana pela apropriação do espaço urbano que também afeta dimensões políticas, econômicas e sociais”.

É onde se instauram os conflitos que necessitam da intervenção jurídica, pois os processos informais de ocupação do solo urbano produzem um impacto negativo sobre as cidades e sobre a população urbana como um todo. Assim, o direito se apresenta sempre como um produto da vida organizada enquanto manifestação das relações sociais proveniente de necessidades humanas (WOLKMER, 2003).

Função social da propriedade é um conceito que dá a esta um atributo coletivo, não apenas individual. Significa dizer que a propriedade não é um direito que se exerce apenas pelo dono de alguma coisa, mas também que esse dono exerce em relação a terceiros. Assim que a individualidade do direito permanece, mas a utilização desse direito de propriedade está condicionada ao bem coletivo. Como hipótese, o estudo foi fundamentado na seguinte indagação: a função social da propriedade pode ser considerada como um fator limitante do exercício da individualidade do direito à propriedade?

A metodologia foi baseada em literaturas específicas e pesquisas bibliográficas, em doutrinas e legislação do Brasil e de Portugal, no tocante ao caráter individual do direito de propriedade condicionado ao bem-estar social. Levando a entender que em ambos os países, no que tange à propriedade, não se pode mais considerá-la um direito individual, nem instituição de direito privado.

A ideia de propriedade evoluiu junto com a sociedade que retoma das mais diversas gerações o conceito de coletividade, legitimando seu papel social, atenuando, assim, seu caráter absoluto e transitando por um processo histórico de relativização (RESCHKE e PEZZELLA, 2016). Diante desse cenário, o objetivo da pesquisa foi analisar a função social da propriedade como fator limitador do direito de propriedade no Brasil e em Portugal. Como resultado, concluiu-se que embora haja características próprias entre as legislações, à função social da propriedade busca ser uma norma reguladora que mesmo mantendo o caráter individual visa o uso adequado do exercício do direito à propriedade para diminuição da desigualdade social.

2 SÍNTESE HISTÓRICA DO DIREITO DE PROPRIEDADE

A configuração do conceito de propriedade, que transita por um processo histórico de relativização, é objeto de estudo dos civilistas das mais diversas gerações, marcado pelas transformações decorrentes da Revolução Francesa e do Direito Moderno, e caracterizado por um sistema constitucional pautado na idealização de Justiça Social (SOARES, 2006). Etimologicamente, constitui a propriedade de alguém aquilo que lhe é próprio. Também, pode-se dizer que a propriedade é o direito que alguém possui em relação a um bem determinado. Segundo Pereira (2014) apud. Tartuce (2017) a propriedade é o direito de usar, gozar e dispor da coisa, e reivindicá-la de quem injustamente a detenha.

Também, pode-se dizer que a propriedade é o direito que alguém possui em relação a um bem determinado. A propriedade, portanto, possui um caráter exclusivo da coisa, que pertence em caráter próprio a determinada pessoa, encontrando-se à sua disposição como patrimônio. De tal modo que a propriedade deve ser entendida como um dos direitos basilares do ser humano.

A doutrina aponta que o direito de propriedade é complexo, na visão de Gagliano (2017) devido a sua gênese derivar de um conjunto de direitos e faculdades. Em relação ao Direito de Propriedade contemporâneo, este é geralmente tratado, numa perspectiva social, em face da função social da propriedade estabelecida nas constituições e que retira da propriedade uma visão individualista. E embora o direito seja o mesmo, em cada lugar onde se apresente, este terá conteúdos diversos nas legislações. Ou ainda, o conteúdo do direito de propriedade em cada história, foi definido em cada sociedade e em cada momento, e ainda está em constante evolução.

O direito humano à propriedade privada, não apaga a originária e fundamental destinação comum de todos os bens, nem o sentido solidário da sua apropriação e utilização. Nesse contexto, o direito de propriedade, é visto cada vez menos como um direito subjetivo de caráter absoluto, para se transformar em uma função social do proprietário. De tal modo, o conteúdo da função social da propriedade pode ser entendido como o poder e o dever que o proprietário possui, de realizar suas vontades sobre a propriedade, mas respeitando os limites legais.

Tem-se assim, que o princípio da função social da propriedade, importa na necessidade de vislumbrar a relação desta com o seu contexto social e não apenas sob o prisma individual. O direito de propriedade, de acordo com a legislação civil, consiste no direito de utilizar a coisa de acordo com a sua vontade, com a exclusão de terceiros, de colher os frutos da coisa e de explorá-la economicamente e no direito de vender ou doar a coisa. E o estado passou a legislar sobre a propriedade tendo como foco a sua função social. O direito de propriedade passa a estar condicionado ao cumprimento de sua função social, sob pena de sofrer sanções, como o parcelamento do solo, dentre outras.

3 FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

A propriedade, direito subjetivo por excelência na época contemporânea, é uma construção social. Mas houve um tempo em que a propriedade concedia ao indivíduo, o proprietário, poderes ilimitados, entretanto, no direito português moderno a propriedade não dá ao dono poderes ilimitados. Desse modo, é certo afirmar que o instituto da propriedade evoluiu em conjunto com a sociedade, e na contemporaneidade traz a compreensão da propriedade voltado ao bem comum, dotando-a de uma função social, mitigando, assim, seu caráter absoluto.

O Direito Real em relação à propriedade é o direito que traduz o poder jurídico direto de uma pessoa sobre uma coisa, submetendo-a em todos (propriedade) (GAGLIANO, 2017). Portanto, para o seu exercício, prescinde-se de outro sujeito. Para o autor, o Direito Real na coisa própria deverá, necessariamente, levar em conta, sempre, o seu aspecto funcional.

O direito de propriedade, ao longo dos séculos, assumiu diferentes formas até chegar à compreensão atual, vinculada ao cumprimento de uma função social. O desenvolvimento deste instituto jurídico de ordem material se dá com base no texto da própria Constituição da República Portuguesa e principalmente pelo Código Civil português que em seu art. 1305 prevê que o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância aos limites por ela impostas. Entendendo-se por fruição o aproveitamento dos frutos e produtos de uma coisa, sendo eles materiais ou jurídicos. Ao se analisar ao disposto o início do art. 1305 tem-se a ideia de que a propriedade é absoluta e o proprietário poderia fazer o que bem entender com ela.

Nesse contexto, o direito de propriedade, é visto cada vez menos como um direito subjetivo de caráter absoluto, para se transformar em uma função social do proprietário. De tal modo, o conteúdo da função social da propriedade pode ser entendido como o poder e o dever que o proprietário possui, de realizar suas vontades sobre a propriedade, mas respeitando os limites legais. O direito de propriedade, de acordo com a legislação civil, consiste no direito de utilizar a coisa de acordo com a sua vontade, com a exclusão de terceiros, de colher os frutos da coisa e de explorá-la economicamente e no direito de vender ou doar a coisa. E o estado passou a legislar sobre a propriedade tendo como foco a sua função social.

A função social da propriedade é, entende-se, a função social da posse exercida pelo proprietário, mas limitada pelo Estado. Na visão de Canuto (2010, p. 42); “a função social deve, pois, ser entendida como um elemento determinante para estabelecer o grau de proteção constitucional de propriedade”. Assim, conceitua-se a função social da propriedade como um princípio no qual a propriedade deve ser explorada, devendo extrair dela benefícios individuais, que busquem os interesses do proprietário, mas, especialmente, os sociais em que se defendem os fins coletivos. Sendo encarado como um princípio a função social da propriedade, é visto como um ideal e não como regra determinada.

3.1 Função social da propriedade no Brasil

A função social da propriedade trata-se da vinculação da propriedade ao viés social e à satisfação do interesse público. A individualidade do direito permanece, mas a utilização desse direito de propriedade está condicionada ao bem coletivo. No Brasil, o direito de propriedade vem evoluindo ao longo dos anos. E a primeira menção legal em constituições a tratar da propriedade como uma questão social, foi a Constituição de 1946 que condicionou o uso da propriedade ao bem-estar social (CANUTO, 2010). Para a autora, a conversão da função social da propriedade em norma constitucional atendeu a uma necessidade e significa a consagração de um direito.

O Estado brasileiro, desde então, passou a considerar a individualidade do direito à propriedade privada condicionado ao cumprimento de sua função social. Posteriormente, na constituição de 1967, a função social constava como cânone informador da ordem econômica; na de 1988, além de sua manutenção como um dos pilares da ordem econômica, passou a fazer parte do capítulo dos direitos e garantias fundamentais, como corolário do próprio direito de propriedade.

Fato é que após a constituição cidadã (como ficou conhecida a Constituição de 1988), a função social modificou a natureza da propriedade, que não pode mais ser concebida como um direito meramente individual. Tal qual prevê o capítulo II, do título VII da CF, que cuida da ordem econômica e financeira, a fim de assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, serão observados os seguintes princípios:

(…)

I – propriedade privada;

III – função social da propriedade (CRFB/88).

De modo a preservar o direito do indivíduo em consonância com os ditames da justiça social. Assim a Constituição de 1988 firmou a compreensão de que embora exista o direito individual à propriedade, este não poderá ser exercido haja vista a realização do fim previsto pela ordem econômica e de interesse social (CANUTO, 2010).

No inc. XXIII da CRFB/88 fica estabelecido que “a propriedade atenderá a sua função social”. O direito do dono deve ajustar-se aos interesses da sociedade (PINHO, 2011, p. 151). O art. 186 da CF dispõe sobre a função social da propriedade, orientando que esta é cumprida se e quando forem atendidos, de forma simultânea, os quatro requisitos estabelecidos nos seus incs. I a IV, é dizer o seu aproveitamento racional e adequado, a utilização adequada de recursos naturais disponíveis e a preservação do meio ambiente, a observância das disposições que regulam as relações de trabalho, e, por fim, a exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

Para a efetivação da função social da propriedade, a CRFB/88 elenca meios de restringir o direito de propriedade, reduzindo os poderes reconhecidos ao proprietário. Por exemplo, o descumprimento do requisito da função social da propriedade poderá implicar na desapropriação, por interesse social, a que se refere o caput. Do art. 184 da CF, mediante justa e prévia indenização. Assim, entende-se que o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e também sociais. De modo que sejam respeitados e seguidos a legislação que defende o meio ambiente e o patrimônio histórico e artístico em detrimento da vontade do proprietário sobre a coisa.

Já sobre a função social da propriedade urbana, ela atenderá sua função social quando atender às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor. Esta demonstração clara de confiança nos administradores municipais cuja a normatização visará uma melhor implementação da função social bem como fornecer o bem-estar e suprir as necessidades de bem-estar de seus habitantes. Desse modo, o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e, também, sociais.

3.2 Função social da propriedade no ordenamento jurídico de Portugal

A Constituição da República Portuguesa – CRP; adota um conceito amplo de propriedade, em virtude das alterações sentidas nas relações econômicas da sociedade contemporânea, conceito esse que se destaca do conceito de propriedade utilizado pelo Código Civil Português – CC; englobando, para além do direito real de propriedade “sobre coisas móveis e imóveis, propriedade científica, literária e artística”, a propriedade sobre coisas não corpóreas com valor econômico, designadamente, todos os direitos reais menores, os direitos de crédito e as participações sociais. Deste modo, todos os direitos de valor pecuniário suscetíveis de apropriação pelos particulares gozam de força normativa constitucional, nos termos do art. 62.º CRP.

O CC, em seu art. 1305 prevê que “o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância aos limites por ela impostas”, porém, não define a propriedade em seu normal conteúdo. Apesar de se tratar de uma liberdade “enfraquecida, diminuída, porque sujeita a um número de restrições bem superior ao que normalmente onera os demais comportamentos que a CRP qualificou como comportamentos livres”, não se admitem restrições ao direito de propriedade que não sejam expressamente autorizadas e previstas pela legislação (art. 18.º, n. 2). Desde logo, o direito de propriedade privada pode ser restringido nos casos de requisição e de expropriação por utilidade pública, mediante o pagamento de uma justa indenização, nos termos do disposto no art. 62.º, n. 2 CRP.

Para além destes casos expressamente previstos, a Constituição permite, ainda, a existência de restrições implícitas ao direito de propriedade, ao estipular limites imanentes implícitos, ou seja, ao proteger o bem jurídico de propriedade que, embora dê cobertura a uma determinada faculdade de exercício, não o faz “sem condições nem reservas”. Acreditamos ser esse o sentido a atribuir à expressão utilizada pelo art. 62.º, n. 1 CRP: o direito de propriedade é garantido “nos termos da Constituição”, isto é, “o direito de propriedade não é garantido em termos absolutos, mas sim dentro dos limites e com as restrições previstas e definidas noutros lugares da Constituição (e na lei, quando a Constituição possa ela remeter ou quando se trate de revelar limitações constitucionalmente implícitas) por razões ambientais, de ordenamento territorial e urbanístico, económicas, de segurança, de defesa nacional”. Deste modo, afasta-se a ideia de uma “reserva geral imanente de ponderação e compatibilização dos direitos fundamentais com outros bens” que, embora não esvaziando por completo a força normativa constitucional atribuída ao direito de propriedade, ignora o “sentido literal expresso” do art. 18.º, n. 2 e 3 CRP e os requisitos de constitucionalidade exigidos às leis que impõem restrições aos direitos, liberdades e garantias e, consequentemente, aos direitos fundamentais de natureza análoga.

Canotilho e Moreira (1991) consideram que o direito fundamental de propriedade privada encerra, geralmente, quatro faculdades distintas, sem prejuízo das limitações a que possam estar sujeitas, a saber: “a liberdade de adquirir bens”; “a liberdade de transmissão, inter vivos ou mortis causa”, os bens de que se é proprietário; a faculdade “de não se ser privado da propriedade nem do seu uso”, salvo nos casos de requisição ou expropriação por utilidade pública, mediante o pagamento de justa indemnização; e, ainda que de forma implícita, “a liberdade de usar e fruir dos bens de que se é proprietário”.

Na verdade, a sistematização do direito de propriedade privada demonstra que “o primado da pessoa é o do ser, e não o do ter” e que “a liberdade prevalece sobre a propriedade”. Desta forma, a propriedade privada encontra-se subordinada a uma forte dimensão social, cabendo ao Estado promover “a igualdade real entre os portugueses” (art.9.º, al.d CRP), criando condições favoráveis para que cada vez mais pessoas usufruam da propriedade, enquanto meio de realização econômica e social (art. 81.º CRP). Coloca-se em destaque ainda que no CC, em seu art. 334 declara-se expressamente ilegítimo o exercício de um direito quando o proprietário exceda manifestamente os limites impostos à boa-fé, à função social e econômica.

Mesmo tendo conhecimento que, na Constituição da República Portuguesa e no código civil, o direito de propriedade não se limita ao direito das coisas. De outra parte, é importante considerar que as transformações na vida, decorrentes da atividade principalmente econômica de exploração, ressaltam e viabilizam a intervenção do Estado no direito de propriedade. E a função social da propriedade tem papel ativo, o que pressupõe afirmar que a propriedade que não possui sua função social respeitada, pode vir a sofrer sanções, a exemplo da expropriação.

A título de esclarecimento, deve-se clarificar o próprio corpo da CRP, que em seu art. 62 diz:

1.A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição. 2. A requisição e a expropriação por utilidade pública só podem ser efetuadas com base na lei e, fora dos casos previstos na Constituição, mediante pagamento de justa indenização.

Assim, se caracteriza a função social da propriedade na CRP, de uma forma genérica, que a proteção da propriedade (dos bens de produção) resolve-se, tendencialmente, na proteção da utilidade produtiva de bens, isto é, a função social. De tal modo, está embutido nas obrigações utilizar o bem de acordo com a sua função produtiva, de modo que traga alguma contribuição para o incremento da produção nacional, e sem lesão dos interesses dos consumidores e utentes dos bens e serviços produzidos. Demonstrando a importância da utilidade produtiva do bem, visando à coletividade, ocorrendo assim um incremento ao conceito de propriedade que passa a englobar uma abertura a novas relações de produção, bem como a novas relações comerciais.

4 FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE: FATOR LIMITANTE DO DIREITO INDIVIDUAL

A constitucionalização do direito de propriedade e da exigência do cumprimento da sua função social é uma realidade expressa na Constituição do Brasil e de Portugal. E essa concepção jurídica da propriedade vinculada ao princípio da sua função social decorre da adequação do Direito às modificações sociais consequentes da Revolução Industrial, representando uma relação intrínseca entre a ordem social e a ordem liberal (PEDROSO, 2018).

Atualmente, no regime jurídico brasileiro, a propriedade privada se submete às normas do direito civil, que, embora tratem de normas privadas, hão de ser compreendidas de acordo com as normas constitucionais, de direito público (CANUTO, 2018). Sendo a constituição um texto unitário, não se pode isolar o direito de propriedade, ignorando o que diz a Carta Magna, o direito de propriedade não pode sobrepor o bem da coletividade.

Já no regimento jurídico português, está escrito na CRP de 1933, no art. 35º, que a propriedade, o capital e o trabalho desempenham uma função social. Neste texto, não se lê que o proprietário goza de plenos poderes sob a propriedade privada a qual tem domínio. Dispõe Canotilho e Moreira (2014) que o direito de propriedade é garantido nos termos da Constituição; (n. 1, in fine). Ou seja, trata-se de sublinhar que o direito de propriedade não é garantido em termos absolutos, mas sim dentro dos limites e com as restrições previstas na legislação.

Uma vez que se tem uma ideia sobre intervenção do Estado em algumas especificidades jurídicas, tal qual o que ocorre em questões de propriedade e o processo de urbanização inadequado. Cabendo ao Estado através de contrato administrativo à representativa governamental de agregar as ações de desenvolvimento econômico e social, consubstanciadas nas transformações do promovidas pela reforma do Estado no final do século XX, onde se permeia a ideia sobre intervenção do Estado em algumas especificidades jurídicas, tal qual o que ocorrem em questões de propriedade e o processo de urbanização inadequado. Mesmo que isso se configure como uma crescente demanda nas atribuições do Estado.

Esse princípio passa a ser, nas questões do direito de propriedade um materializador da justiça, quando se estabelece uma solução definitiva ao conflito dentro da legalidade, implantando, por exemplo, projetos de interesse público, dever do Estado. São medidas proativas do poder público na propriedade privada para favorecer a coletividade, através da formalização do princípio da contratualização, que pode levar infraestrutura para a propriedade, correlacionada com uma solução ao proprietário, que vai de indenização, regularização fundiária de interesse social, dentre outras.

Isso implica na organização de procedimentos em nível de administração pública na forma de sanar o conflito. Nesse contexto, Mascarenhas (2010) traz que o direito de propriedade é o anteparo constitucional entre o domínio privado e o público. Sendo inegável, nos tempos atuais, que no cumprimento de mandados em relação ao direito de propriedade, é necessário submeter à intervenção estatal cujo propósito é superar o individualismo e buscar a implantação de uma sociedade presidida pela justiça social.

Indubitável afirmar que o direito de propriedade definido na Constituição é um direito real, e aponta Ascensão (2000, p. 191) que “(…) intimamente relacionado com a problemática do direito real está à função social deste”. Posto que os direitos reais são outorgados para a realização do sujeito, que os deve exercer em benefício social. Na versão da Constituição Portuguesa de 1976, adotou-se uma versão capitalista ao direito de propriedade, onde em consequência dos direitos reais privados sobre os meios de produção é recusada qualquer função. Dado esse vazio constitucional, o estudo ficou limitado à orientação da lei ordinária, assente no princípio do abuso do direito, salvo em matérias em que regras constitucionais específicas apontam intervenção.

Contraditório, todavia, a uma propriedade absoluta contrapõe-se uma propriedade limitada, e sobre esta pesará determinados limites e limitações que condicionam a função social da propriedade em Portugal. Com a revisão da Constituição no ano de 1982, alterou-se essa visão normativa do direito absoluto sob a propriedade. “A partir de então Portugal tem uma constituição plausível”, é o que afirma (ASCENSÃO, 2000, p. 195).

A partir de então, a visão individualista e absoluta do direito de propriedade não cabe, e passam a serem numerosas as disposições singulares em que se preveem intervenções do Estado para fazer respeitar as finalidades coletivas. E então, a função social não seria a restrição total à propriedade e sim apenas uma forma de limitar os interesses particulares egoístas e capitalistas que se dão sobre a propriedade.

Restará entender qual a repercussão efetiva das orientações constitucionais na prática, ou como questiona Ascensão (2000, p. 196) “qual o significado efectivo da atribuição constitucional directa ou indirecta de uma função social ao direito real?”. Outros juristas, assim como Dantas (2015), questionam até que ponto a exigência decorrente da necessidade de cumprimento da função social não descaracteriza o direito de propriedade.

Assim, verifica-se que os poderes do proprietário se limitam nas suas funções pelo subjetivismo que é o abuso de direito e que o proprietário tem que exercer os seus poderes em harmonia com os interesses da coletividade. Considerando os limites de gozo absoluto do proprietário pela norma, trata-se de um aspecto demasiado sutil arrancado a uma pura noção geral, mas diferente do que postulou os autores, no individualismo há outra concepção de propriedade é difundida, que é como a experiência se mostrará susceptível de desentranhar-se em muitas soluções práticas.

CONCLUSÃO

Concluiu-se que a função social da propriedade pode ser entendida como a utilização do imóvel exercida pelo proprietário, todavia limitado pelo Estado. Ou seja, à primeira vista, a função social pode-se mostrar como uma regra limitadora ao direito real de propriedade. E tem como objetivo buscar e alcançar uma equânime distribuição de riqueza, portanto, está diretamente ligada à concretização da justiça social, para assim atender as legislações vigentes em relação aos interesses da coletividade. Portanto a função social da propriedade é um conceito que dá à propriedade um sentido de coletividade.

Além disso, na constituição, o direito de propriedade é garantido dentro dos limites com restrições previstas e definidas noutros lugares da constituição. O direito unitário não pode isolar o direito de propriedade, assim como não pode sobrepor o bem da coletividade. Os poderes do proprietário têm ainda que ser exercidos em harmonia com os interesses da coletividade.

O fundamento das limitações ao direito de propriedade revela a pesquisa, encontra-se no primado do interesse coletivo, ou seja, do interesse público sobre o individual e na função social da propriedade, visando proteger o interesse público social e o interesse privado, considerado em relação à necessidade de justiça social. No Brasil, a Constituição de 1988, em relação à função social, modificou a natureza da propriedade, que não pode mais ser concebida como um direito meramente individual.

Na CRP, o direito de propriedade privada fica restringido nos casos de requisição e de expropriação por utilidade pública, mas não a uma menção explícita ao princípio que estabelece a função social da propriedade em detrimento do direito individual sobre ela. Em ambas, demonstrando a importância da utilidade produtiva do bem, visando à coletividade, ocorrendo assim um incremento ao conceito de propriedade que passa a englobar uma abertura a novas relações de produção, bem como a novas relações comerciais.

Ainda que ambas as legislações apresentem suas especificidades, é possível concluir que a função social da propriedade passou a ser vista como uma norma que visa regular da melhor forma, o exercício do direito de propriedade, e não como uma norma limitadora em sua origem. E que o direito de propriedade como advento do Estado Social do Direito, mantém o caráter individual da mesma, porém, passou a exigir que o proprietário adotasse uma função social capaz de operacionalizar a propriedade, com vistas a diminuir a desigualdade social.

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Notas de Rodapé

[1] Mestre, Doutorando em Direito pela Faculdade de Direito de Vitória, R. Juiz Alexandre Martins de Castro Filho, 215 – Santa Lucia, Vitória – ES, 29056-295, Doutor em Direito Processual e Acesso à Justiça na UNESA – Rio de Janeiro-RJ.. carlosmafj@gmail.com

[2] Doutorando em Direito pela Faculdade de Direito de Vitória, Doutor em Direito Processual e Acesso à Justiça na UNESA – Rio de Janeiro-RS, Oficial do Cartório de Registro de Imóveis e anexos de Marataízes/ES. Possui graduação em Direito pelo Centro Universitário do Espírito Santo (2003). Pós-Graduado em Direito Penal e Processo Penal, Direito Público, Direito Tributário, Direito Ambiental e Direito Eleitoral. Mestre em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Regional (2017). vinicius.cazelli@hotmail.com.