A LEGITIMIDADE E A SUA VINCULAÇÃO À CONSTITUIÇÃO DEMOCRÁTICA
DOI: 10.19135/revista.consinter.00008.19
Saul Tourinho Leal[1] – ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8816-4514
Nara Pinheiro Reis Ayres de Britto[2] – ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0106-1062
Resumo: É imprescindível entender a importância que a legitimidade normativa tem em um Estado Democrático de Direito, sendo ela fundamental para a convivência harmônica entre o Estado e os seus cidadãos. Desse modo, apenas os requisitos puramente formais do modelo de normatividade kelseniano não se mostram mais suficientes para o desenvolvimento do ordenamento jurídico regido pelo princípio da democracia, pelo respeito aos direitos fundamentais de seus cidadãos e à dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, tanto a Constituição da República Portuguesa, quanto a Constituição da República Federativa do Brasil fizeram jus a esse salto normativo e implementaram em seu ordenamento o princípio da legitimidade e da democracia como princípios continentes que devem ser seguidos e respeitados por todos.
Palavras-chaves: Legitimidade. Direito da Norma. Justo Constitucional. Democracia. Princípios Continentes. Constituição Portuguesa. Constituição Brasileira.
Abstract: We must understand the importance of normative legitimacy in a Democratic State of Law, as it is essential for the harmonious coexistence between the State and its citizens. In this sense, the purely formal requirements of the Kelsenian normative model are no longer sufficient for the proper development of the legal system governed by the principle of democracy, respect for citizen’s fundamental rights and the dignity of human beings. Thus, both the Constitution of the Portuguese Republic and the Constitution of the Federative Republic of Brazil have done justice to this normative leap and have implemented in their legal system the principle of legitimacy and democracy as continents principles that must be followed and respected by all.
Keywords: Legitimacy. Normative Law. Constitutional Fairness. Democracy. Continent Principles. Portuguese Constitution. Brazilian Constitution.
INTRODUÇÃO
Este artigo tem por objetivo analisar, à luz dos princípios da legitimidade e da democracia, que o modelo normativo de legitimidade idealizado por Hans Kelsen não encontra mais escopo em ordenamentos jurídicos cujo regime busca essencialmente o alcance da democracia material, como ocorreu em Portugal e no Brasil.
O primeiro capítulo do presente trabalho trata da legitimidade da norma jurídica.
Conceitos inerentes à legitimidade da norma, como validade e vigência, serão abordados. Também se discorrerá sobre quais seriam os requisitos para que uma norma fosse legitimamente considerada como válida, principalmente sob o marco teórico de Hans Kelsen e Miguel Reale.
Na sequência, a democracia será tratada como princípio normativo constitucionalmente positivado e forma garantidora da legitimidade em um Estado Democrático de Direito, isso na ótica de teóricos como J. J. Gomes Canotilho, Jorge Miranda, Arthur Kaufmann, Norberto Bobbio, Amartya Sen, Manuel Valente e José Reis de Novaes.
Por fim, será feito um paralelo da colaboração da Constituição da República Portuguesa à Constituição da República Federativa do Brasil, no sentido de inserir ao Magno Texto brasileiro a legitimidade e a democracia como “princípios continentes”.
1 A LEGITIMIDADE DA NORMA
Miguel Reale (1999, p. 105), ao tratar de validade da norma jurídica, conceitua a respeito da validade formal ou vigência. Explica que, para que a norma jurídica seja obrigatória, ela deve cumprir certos requisitos de validade. Tais requisitos devem se dar sob três aspectos necessários: a validade formal, que seria a vigência, a validade ética, que seria o seu fundamento e a validade social, que se refere à eficácia ou efetividade.
Em um primeiro momento, é “preciso entender que a norma jurídica deve ser elaborada por um órgão competente”. A Constituição da República Federativa do Brasil dispõe quais são os órgãos competentes para a tarefa de legislar.
“Vigência ou validade formal é a executoriedade compulsória de uma regra de direito, por haver preenchido os requisitos essenciais à sua feitura ou elaboração” (REALE, 1999, p. 108). Esse conceito é essencial à compreensão da proposta teórica deste texto.
Isso porque, dentre os requisitos da vigência, está a legitimidade do órgão criador da lei. É condição sine qua non que tal órgão possua legitimidade para promulgar essa regra. Para Reale, essa legitimidade do órgão é composta segundo duas óticas distintas: a primeira delas seria a legitimidade subjetiva, que se relaciona ao próprio órgão; a segunda ótica seria quanto ao teor sobre o qual a legislação trata.
Para Reale, se não há a presença do órgão competente e legítimo, não há regra jurídica que possa ser considerada válida. Juntamente com a legitimidade subjetiva, que, como tratado, se relaciona com o órgão, deve haver a presença da competência da matéria que está a ser legislada (REALE, 1999, p. 108).
Miguel Reale anota ainda que para que uma lei seja considerada válida, é necessária a presença de dois requisitos: o primeiro deles seria que a sua promulgação se desse por um órgão competente, o segundo requisito seria que essa competência se desse em razão de sua matéria. São requisitos formais cuja desobediência contamina a norma, que, caso atacada perante os órgãos judiciais, pode ser invalidada por ser inconstitucional.
Em termos práticos, significa dizer que para que uma lei seja válida, ela precisa ser emanada por um órgão competente. Caso contrário, esse diploma legal não produzirá qualquer tipo de consequência jurídica, uma vez que o seu processo de promulgação não se deu por meio de um processo legitimamente válido.
Além dos dois requisitos acima mencionados, é necessário que o poder seja exercido cumprindo todas as exigências legais, o que podemos considerar como um terceiro elemento, que seria, como recorda Miguel Reale, o que o Direito estadunidense chama de “legitimidade do procedimento”, compreendido como due process of law (REALE, 1999, p. 110).
A legitimidade do procedimento contempla “a legitimidade da própria maneira pela qual o órgão executa aquilo que lhe compete, ou a norma jurídica elaborada”. Esse terceiro e último requisito está relacionado com a conduta do agente estatal, que deve condicionar os seus atos ao devido respeito aos trâmites legais. A legitimidade do procedimento, ao contrário de expressar mero cumprimento de algo elementar, constitui a própria consecução do princípio do estado de Direito, pelo qual as normas editadas pelas autoridades competentes atendem ao caminho próprio disposto pela lei máxima que é a Constituição.
A partir do momento em que a regra de Direito contempla e observa esses três requisitos, ela possui condições de vigência.
Esses elementos teóricos decorrem do pensamento do jurista brasileiro Miguel Reale. Mas ele não está só na abordagem da questão.
Para Hans Kelsen (2014, p. 232-233), a legitimidade e a efetividade da norma jurídica caminham juntas. Contextualizando melhor a respeito do tema da legitimidade da norma, é de se utilizar o raciocínio kelseniano e tratar sobre a validade normativa.
Sabe-se que a norma pode possuir um domínio temporal de validade. Isso significa dizer que ela pode ter um prazo de vigência, ou seja, por um determinado período ela será válida e gerará efeitos jurídicos. São as chamadas normas de eficácia exaurível.
No que tange à validade das normas, a sua vigência pode ser determinada e tal determinação pode ser estabelecida pela norma que a gerou ou por outra hierarquicamente superior. A norma jurídica será válida enquanto a sua vigência perdurar.
Sobre o que seria o princípio da legitimidade, leciona Kelsen (2014, p. 233) “O princípio de que a norma de uma ordem jurídica é válida até a sua validade terminar por um modo determinado através desta mesma ordem jurídica, ou até ser substituída pela validade de uma outra norma desta ordem jurídica, é o princípio da legitimidade”.
No entanto, é importante compreender que o princípio da legitimidade somente encontra escopo em uma ordem jurídica estadual onde não exista uma revolução. Isso significa dizer que a “revolução” aqui tratada não poderia partir de um ato ilegítimo. A “revolução” é o próprio desmoronamento do estado de Direito então em vigor, estabelecendo outro ambiente que pode ser propício, ou não, para a construção de uma nova ordem jurídica. Todavia, ela, a revolução, por si mesma, põe abaixo as bases sobre as quais os conceitos trabalhados até o momento se erguem.
Nesse contexto, imperioso trazer os ensinamentos de Hannah Arendt acerca do tema, em “Sobre a revolução”, quando a filósofa diz: “Em uma última análise, toda autoridade se assenta na opinião, e nada demonstra isso mais claramente que o fato de que uma recusa universal em obedecer pode dar início, de súbito e inesperadamente, a algo que então se converte numa revolução” (ARENDT, apud ARENDT, 2011, p. 24-25). Opinião, aqui, compreendida como assentimento inerente ao Estado democrático de direito, pelo qual vitoriosos e derrotados em processos eleitorais concordam em seguir as regras do jogo apresentadas por aquele que foi escolhido como legítimo representante do povo.
Para que o princípio da legitimidade seja válido, é necessário que haja previsão constitucional. Assim, ele será considerado legítimo à luz daquela constituição vigente à época dos fatos.
Portanto, toda e qualquer ilegítima modificação da Constituição ou substituição desta por uma nova sem previsão de substituição na primeira, afasta por completo a aplicação do princípio da legitimidade. Daí a afirmação anterior sobre os efeitos deletérios de uma “revolução” sobre a ordem jurídica antecedente.
Kelsen afirma que não importa se a mudança da situação jurídica se deu por meio de uma revolução[3] causada contra um governo legítimo ou mesmo pelos seus governantes. O fato é que a modificação não prevista na Constituição alterada torna todo o processo ilegítimo (KELSEN, 2014, p. 233).
Quando do advento da nova Constituição, a probabilidade de algumas normas essenciais da Constituição anterior terem sido recepcionadas pela nova é grande. No entanto, tal recepção modifica por completo o arcabouço do que se dava validade às normas anteriores.
Assim, o que passa a estar em vigor são as normas que vieram a partir do advento da nova Constituição. Há aqui “a recepção de normas de uma ordem jurídica por uma outra”. O fundamento da validade da ordem jurídica passa vigorar de acordo com a nova Constituição (KELSEN, 2014, p. 233).
Nesse contexto, com o advento da nova Constituição, esta se torna, portanto, eficaz, nas palavras de Kelsen (2014, p. 234) “Com o tornar-se eficaz da nova Constituição, modificou-se a norma fundamental, quer dizer, o pressuposto sob o qual o fato constituinte e os fatos em harmonia com a Constituição podem ser pensados como fatos de produção e aplicação de normas jurídicas”.
Pode-se afirmar que a mudança da norma fundamental equivale à alteração dos fatos que serão interpretados como criação e aplicação de normas jurídicas válidas.
É importante compreender que essa norma fundamental a que tal referência tem relação unicamente com a Constituição que foi estabelecida e determinada em conformidade com os costumes ou ato legislativo cuja eficácia não é questionável. Portanto, pode-se dizer que uma Constituição deve ser considerada eficaz quando as suas normas são efetivamente aplicadas e observadas (KELSEN, 2014, p. 234).
Voltando ao exemplo anterior, tudo o que se havia construído normativamente tendo como fundamento de validade a Constituição antiga passa a não ter mais validade e o que vigora é o que vem a partir da nova Constituição. E somente aquilo que foi recepcionado da antiga Constituição pela nova Constituição é que possui validade jurídica.
2 CONSIDERAÇÕES SOBRE LEGITIMIDADE E O “JUSTO” CONSTITUCIONAL
Luigi Ferrajoli, citado por Manuel Guedes Valente, entendia que a legitimidade normativa não poderia se esgotar na legitimidade formal, aquela positivada normativamente por meio de um ato legislativo, mas que deveria respeitar a legitimidade jurídica material. Isso significa dizer que as normas de um Estado devem estar de acordo com princípios jus naturais assimilados nas constituições mais recentes, principalmente quanto aos direitos e liberdades fundamentais (FERRAJOLI, apud VALENTE, 2017, p. 202).
Guedes Valente trata do princípio da tolerância como princípio da justiça e da humanidade, de modo que os princípios basilares do Direito, como o da presunção de não culpabilidade, por exemplo, devem ser primordiais quando da abordagem pelo Estado para com o seu cidadão, mais especificamente, por meio de seus agentes policiais detentores da missão de assegurar a segurança pública. O professor explica que a limitação da tolerância só pode ser considerada legítima quando há eminente perigo contra o “desenvolvimento harmonioso da comunidade” (VALENTE, 2017, p. 207-209).
Para J. J. Gomes Canotilho (1992, p. 113), “a constituição não se basta com o manto da legalidade, exige ou postula a dimensão mais profunda da legitimidade”. A partir dessa premissa, surge a insegurança jurídica a respeito de como se deve dar a atuação do poder constituinte no sentido de inserir ao magno texto as soluções materialmente justas.
Como garantir que o legitimado, ao legislar, não vai inserir às normas elementos que ele considera justos, mas que, na prática, poderão causar um dano social significativo? Canotilho acredita que é dever do Direito Constitucional e da constituição estabelecer uma tendência para a “tecnicização” das normas, e que o aplicador dessas normas que irá valorá-las de acordo com o que é considerado “justo” naquele momento e época em que está inserida a lei na sociedade.
Sobre a legitimidade da constituição, esta pressupõe cordialidade com os interesses, valores e aspirações de um povo em relação ao momento histórico em que ela está inserida. Assim, ela não representará apenas uma positivação do poder, mas também uma concretização de valores sociais e jurídicos.
A legitimação do poder constituinte não se concretiza apenas com a simples posse do poder, ela também deve observar os ideais de justiça da sociedade em que está inserida.
“Poderia talvez dizer-se que o fundamento de validade da constituição (= legitimidade) é a dignidade do seu reconhecimento como ordem justa (HABERMAS) e a convicção por parte da colectividade, da sua ‘bondade intrínseca’” (CANOTILHO, 1992, p. 115).
Canotilho acredita na teoria dos valores para a solução dos problemas a respeito da legitimidade de uma constituição. Essa teoria determina que todo direito seria a concretização de determinados princípios de valores que a sociedade que ele integra consagram. Pelo racional, apenas o conteúdo constitucional deve abranger os valores consagrados pela sociedade em que ela se insere e que, portanto, a constituição poderia suprir o critério válido de legitimidade.
Fazendo uma introdução à democracia, Canotilho discorre a respeito da legitimidade através do consenso. Inspirada em Rousseau, a democracia “é a vontade de todos” de dirimir a respeito dos fins políticos da sociedade.
Assim, a vontade individual acaba por ser a última opção para estimar o que seria “justiça”. A democracia seria o meio de superar a subjetividade individual e o instrumento para alcançar uma convergência social e se aferir a justiça.
“O ‘justo constitucional’ assentaria no contrato ou consenso dos indivíduos sobre os princípios ou estruturas básicas da justiça da comunidade” (CANOTILHO, 1992, p. 118).
Se no modelo de Kelsen a constituição poderia ser considerada “justa” a partir de um processo que seguisse o que ele denomina como “parâmetros de legitimidade por meio de uma justiça do procedimento”, o modelo de legitimidade através do consenso alcançaria a justiça por meio de um contrato social. Essa legitimidade se deu pelo fato de todas as pessoas terem livremente participado desse processo constituinte.
Contudo, é importante ressaltar que essa legitimidade através do consenso seria apenas um modelo teórico para presumir a legitimidade, não explicaria de fato a justiça inerente da constituição. Bem como não significa a vinculação do contrato social, uma vez que ainda existem minorias que foram vencidas pela maioria democraticamente representada.
3 A DEMOCRACIA COMO PRINCÍPIO NORMATIVO CONSTITUCIONALMENTE POSITIVADO PELA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA
Ao tratar do constitucionalismo republicano, a persecução teórica presente se inicia a partir dos ensinamentos de J.J. Gomes Canotilho, deparando-se com a visão global de seus princípios e nessa visão está a república democrática.
A primeira Constituição da República Portuguesa de 1911, era democrática e consagrou novos princípios. Os mais inovadores deles são os seguintes: 1) Soberania nacional, que está relacionada à Nação; 2) regime representativo, o que significa dizer que a soberania nacional se efetivava por meio de representantes eleitos democraticamente pelo povo por meio do sufrágio universal. Tais representantes possuem independência dos colégios que os elegeram (art. 7º, § 1º), além de possuírem mandato livre (art. 15º); 3) separação dos poderes: os poderes são independentes e harmônicos entre si (art. 6º); 4) sufrágio universal: como dito anteriormente, há a figura do voto direto e da eleição direta das assembleias legislativas; 5) bicameralismo partidário; 6) parlamentarismo e regime parlamentar de assembleia: regime monístico – governo de assembleia (CANOTILHO, 2003. p. 162-165).
Antes de se discorrer mais detidamente sobre o que se denomina uma constituição democrática, é interessante compreender alguns elementos a respeito do constitucionalismo português a partir da Revolução de 1974, que iniciou a caminhada de Portugal para um regime democrático pluralista culminado na promulgação da Constituição da República Portuguesa de 1976, que é o resultado dessa revolução. Esse marco trouxe o que Jorge Miranda denomina como constitucionalismo democrático, a partir da nova constituinte, onde o sufrágio universal foi devidamente consignado (MIRANDA, 2007, p. 140).
Para Jorge Miranda, a Constituição Portuguesa de 1976 pode ser considerada como a única normativa, uma vez que ela é fundamentada na democracia representativa da liberalidade política.
A Constituição de 1976 tem consideração pelos direitos fundamentais dos cidadãos, dos trabalhadores e pela justa e igualitária divisão do poder, a partir da consagração de uma democracia descentralizada que prima pelo princípio da autonomia das entidades locais.
A Constituição da República Portuguesa surgiu depois de cerca de dez meses de um contexto de conflitos entre a legitimidade revolucionária e a democrática, tendo esta última prevalecido.
A Magna Carta portuguesa se preocupa com os direitos fundamentais de seus cidadãos, com os seus trabalhadores e com uma forma equilibrada de divisão do poder. Ademais, ela é tida como uma Constituição compromissória, haja vista o seu compromisso histórico devido a sua “representação proporcional”, pela circunstância de seu país quando da sua promulgação (MIRANDA, 2006).
Sobre o Estado Constitucional democrático, J. J. Gomes Canotilho acredita que o Estado deve ser visto como “um sistema processual e dinâmico” e somente pode ser considerado como democrático por ter uma lei fundamental escrita – sua Constituição, que abarca as estruturas básicas da Justiça (CANOTILHO, 1992, p. 45).
A democracia, como princípio normativo, é baseada na “fórmula de Lincoln”, imortalizada pela máxima “governo do povo, pelo povo e para o povo”.
Na concepção de Arthur Kaufmann (2014, p. 441), a democracia deve ser constituída pelo povo. Ela até sustenta a possibilidade de ela ser representada por “medíocres”, contudo, jamais resistirá ao comportamento passivo do povo.
Quando a Constituição da República Portuguesa de 1976 consagrou o princípio democrático, ela buscou uma arrumação normativa para um país e para a sua realidade histórica.
Canotilho (2003, p. 288) afirma que a Magna Carta portuguesa solucionou normativamente as questões a respeito da legitimidade da ordem jurídico-constitucional e que isso se deu tanto de modo normativo-substancial, quando a constituição adequou a legitimidade do domínio político à execução de certos fins e à realização de certos valores e princípios, quanto de modo normativo-processual, uma vez que ela vinculou a legitimação do poder do Estado a certas regras e processos, como no modelo proposto por Hans Kelsen.
É importante entendermos que o princípio democrático consagrado pela Constituição de 1976 é muito maior do que um mecanismo pelo qual os detentores do poder (governantes) escolhem as diretrizes do que fazer com os seus governados, uma vez que esse princípio visa, primeiramente, ser impulso dirigente de uma sociedade.
Tudo isso pode ser percebido em algumas passagens do texto normativo constitucional português, como no art. 2º, que diz que a República Portuguesa é um Estado de direito democrático baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democrática e respeita a efetivação e aprofundamento da democracia participativa. Esse dispositivo transmite a real intenção constitucional de se realizar um objetivo por meio da democracia.
Nas palavras de José Reis de Novais (2014, p. 36): “É no aperfeiçoamento da ineliminável dimensão democrática e pluralista que o Estado de Direito dos nossos dias recolhe a legitimidade que o habita à plena assunção do princípio da socialidade”.
Na democracia, a lei que vale é a lei da maioria. O princípio da maioria é consagrado e não pode ser abolido, bem como não se pode abolir os direitos fundamentais e humanos, que são protegidos pelo Estado (KAUFMANN, 2014, p. 441). Ou seja, a democracia é democrática desde que, guiada pelo princípio da maioria, perceba que há minorias destituídas de direitos que não podem ser esmagadas em um certo mínimo existencial – notadamente nos Estados de bem-estar social–, muito menos em suas dignidades. Isso, sob pena de não se ter uma democracia, mas uma tirania da maioria que tudo pode contra a minoria.
Cabe mencionar que o princípio democrático-normativo abarca tanto a teoria democrática representativa, onde se inserem os órgãos representativos, bem como as eleições periódicas e a diversidade de partidos políticos e a devida separação dos poderes.
Esse princípio também abarca a teoria democrática participativa, em que há uma participação dos cidadãos nos processos de decisão. Constata-se isso tanto no art. 2º da Constituição de 1976, quanto em seu art. 9º, que trata a respeito da participação direta dos cidadãos (CANOTILHO, 2003. p. 288).
Assim, percebe-se que a dimensão participativa passou a compor a democracia para se fazer efetivamente representante de seus cidadãos.
Nesse contexto, Arthur Kaufmann (2014, p. 441) afirma que tanto a democracia quanto o Estado de Direito são realidades de caráter processual e, como tal, merecem que a participação do povo seja ativa, pois sem ela a democracia jamais sobreviverá.
Destarte, por democracia social considera-se como elemento essa participação popular que é o que estabelece a legitimidade das normas sociais pelas quais os cidadãos são devidamente regulamentados.
Norberto Bobbio, ao tratar de democracia num contexto do Estado social em que as sociedades minimamente civilizadas vivem, se manifesta no seguinte sentido: “por ‘democracia’ entende-se uma das várias formas de governo, em particular, aquelas em que o poder não está nas mãos de um só ou de poucos, mas de todos, ou melhor, da maior parte, como tal se contrapondo às formas autocráticas, como a monarquia e a oligarquia” (BOBBIO, 1997, p. 7).
Para Rousseau, a legitimidade normativa está relacionada à liberdade que o cidadão tem perante o poder que o rege. Enquanto houver a participação democrática dos agentes políticos, cada cidadão estará representado e as normas sociais estarão asseguradas. Sem a participação social no conjunto normativo, não pode haver legitimidade democrática.
A natureza do Estado social pressupõe o controle do poder por parte de seus agentes, caso fosse assim, não se estaria falando de um regime democrático. A intervenção social na tomada de decisões políticas é legítima num Estado Democrático de Direito e deve ser reconhecida (NOVAIS, 2014, p. 36).
Ao teorizar sobre a prática da democracia, Amartya Sen (2010, p. 204) explica que “as realizações da democracia dependem não só de regras e procedimentos que são adotados e salvaguardados, como também do modo como as oportunidades são usadas pelos cidadãos”. Nesse contexto, de nada adianta viver num Estado democrático se os cidadãos não se utilizam das oportunidades que esse Estado deveria efetivamente lhes ofertar.
Para Sen (2010, p. 205-209), é necessário que a democracia crie a oportunidade de dar eficácia tanto à sua “importância instrumental”, quanto para o seu “papel construtivo”. Uma vez que é essencial que, além de se reconhecer a necessidade da democracia, é preciso que se salvaguardem todos os meios que garantam a amplitude para o efetivo alcance do processo democrático, pois somente dessa forma poderia ser alcançada, de fato, uma justiça social.
Assim, para que essa democracia seja realmente considerada eficaz, num contexto de estado democrático de direito, é preciso que ela aja como fonte fundamental de oportunidade social, de modo a conquistar a real participação de todos.
Manuel Guedes Valente (2017, p. 186-187) manifesta-se no sentido de que a ação do Estado deve manter um equilíbrio entre liberdade e segurança entre os seus cidadãos. De modo que deve haver uma harmonização entre ambos os institutos, uma vez que a restrição da liberdade não poderá ferir a dignidade da pessoa humana, de modo que o Estado democrático de direito deve respeitar o que está positivado, sem ferir os princípios fundamentais do povo para o qual esse ordenamento jurídico se dirige.
Fazendo uma relação entre liberdade, dignidade da pessoa humana e democracia, Daniel Sarmento afirma que, para que a dignidade de todos seja atendida, é preciso que a pessoa humana esteja em contato com a sua inclusão política, que se daria por meio da democracia (participação da maioria por meio do sufrágio universal), como ocorreu em Portugal a partir da promulgação da Carta Maior de 1976. Ainda sobre democracia, Sarmento (2016, p. 148-149) destaca que esta “enlaça a liberdade de igualdade do cidadão”.
De fato, ao ilustrar com a atividade policial, tanto no contexto da ordem pública quanto da segurança social, o que se sustenta é importante que essa atividade seja exercida em equilíbrio com a norma positivada e siga outras premissas supralegais, ou até mesmo aquilo que Guedes Valente (2017, p. 187) cita como supra positivas.
Assim, o modelo kelseniano de legitimidade da norma deve passar por adaptações ao contexto em que ele se insere, de modo que não se pode legitimar uma ação do Estado, a partir da sua representação por meio da polícia, que fira direitos fundamentais de seus cidadãos ao tomar medidas que vulnerabilizem tanto a comunidade como a própria eficácia de comandos constitucional destinados à proteção das pessoas, apenas porque essa medida está prevista no texto normativo adotado por aquele Estado.
Guedes Valente coaduna com os ensinamentos de Jürgen Habermas, ao afirmar que o Direito deve ser interpretado e aplicado “à luz de princípios supremos constitucionais e de uma compreensão holista da constituição” (HABERMAS apud VALENTE, 2017, p. 190).
Nesse contexto, o presente texto se harmoniza com os ensinamentos de Valente no sentido de que a justiça se presta para substituir os mecanismos de vingança do cidadão comum (VALENTE, 2017, p. 210).
Portanto, é legítima atribuição do Estado quando da tomada do poder no modelo do famoso “contrato social”, pois a justiça veio para assegurar os direitos humanos, tanto dos agentes criminosos quanto de seus atingidos, de modo que só há legitimidade em atos praticados pelo Estado que visem garantir a segurança pública e quando respeitados os direitos fundamentais e supraconstitucionais de toda pessoa humana, tudo isso devendo estar em conformidade com o Estado Democrático de Direito.
4 LEGITIMIDADE E DEMOCRACIA: UM BREVE PARALELO COM A CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL
Não é diminuta a contribuição que a Constituição da República Portuguesa deu para a Constituição da República Federativa do Brasil em relação ao respeito à legitimidade da norma como meio de se alcançar o respeito à democracia.
Promulgada em 1988, após doze anos da promulgação da Carta portuguesa, a Constituição Federal, que também veio para legitimar o fim de um período de restrição da vida cívica democrática, qual seja, o regime militar, tem como preocupação a legitimidade e a democracia, que são consideradas “princípios continentes”. A assertiva pode ser percebida nas normas do Magno Texto.
O art. 37, caput, da Constituição Federal, trata de cinco princípios, quais sejam: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
Há, todavia, para além da explicitude dos princípio acima citados, a implicitude do princípio da legitimidade. Isso porque, logicamente, não basta aplicar a lei, (primeiro princípio do art. 37 – legalidade). Antes disso, é preciso aplicar a lei por um modo impessoal, por um modo moral, bem como por um modo público ou transparente e, da mesma forma, é preciso aplicar a lei por um modo eficiente.
Então, a aplicação da lei não pode se dar de um modo mecânico, pois é preciso que ela seja aplicada de acordo com os cinco princípios acima citados.
Nesse contexto, e aplicando os referidos princípios, o poder público salta para o patamar da legitimidade. Pois só é legítimo o ato do poder público que signifique a aplicação da lei segundo os cinco princípios impregnados no caput do art. 37, da Constituição Federal. Apenas a partir desse momento o ato administrativo seria legítimo.
Portanto, a legitimidade seria um princípio continente, implícito e lógico da Constituição brasileira e, os outros cinco princípios seriam conteúdos desse continente.
Quanto à democracia brasileira, o Preâmbulo da Constituição Federal, inspirado no Preâmbulo da Constituição da República Portuguesa[4], faz uma referência emanada pelo Poder Constituinte à democracia, dispondo que esta foi o fim, ou a finalidade última da Assembleia Nacional Constituinte. Isso porque está dito “nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático”. Essa premissa é confirmada pelo corpo de dispositivos da Constituição Federal.
Nesse contexto, o que contém no preâmbulo constitucional em prol da democracia, ou seja, a democracia como objetivo da Assembleia Nacional Constituinte, é confirmado pelo corpo de dispositivos da Constituição, em que a palavra “democracia” aparece várias vezes.
Percebemos isso ainda no art. 1º do texto constitucional, onde está escrito que a República Federativa do Brasil se constitui em Estado Democrático de Direito. Nesse diapasão, importante explicar que a democracia apenas ganhou uma nova roupagem vocabular quando foi inserido ao Magno Texto o termo “Estado Democrático de Direito”.
Aqui também se está a falar da democracia como um princípio continente. Por exemplo, o inc. XLIV, do art. 5º, da Constituição Federal[5], considera crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, independentemente se civis ou militares, que atentem contra a ordem constitucional e o Estado Democrático.
Outro exemplo é o art. 17, do Magno Texto, onde se indica que é livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, contanto que este resguarde, além de outros princípios, o regime democrático, bem como ao final do artigo, ele indica a necessidade do compromisso com a democracia. A democracia aqui é duas vezes valorizada e tida como sinônimo de princípio continente.
Sem esquecer do princípio da legitimidade como fim de se alcançar uma Constituição Democrática, o inc. I, do art. 23, da Constituição Federal, reza que é de competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas[6].
A Constituição excepciona a intervenção da União nos Estados e no Distrito Federal em seu art. 34, inc. VII para assegurar a observância do regime democrático, isso por considerá-lo um princípio constitucional[7].
Um último exemplo, mas não exaustivo da preocupação que a Constituição brasileira tem com a democracia, está no Título V do Magno Texto. As forças armadas foram regradas pela constituição nesse título que é autoexplicativo, uma vez que ele trata do Estado e das Instituições Democráticas, no sentido de que a defesa realizada pelas forças armadas também age em conformidade com a democracia.
Portanto, de modo coerente com a Constituição da República Portuguesa, que foi uma das maiores inspiradoras da Constituição da República Federativa do Brasil, principalmente no plano dos princípios, temos a confirmação de que a democracia e a legitimidade foram inseridas no ordenamento jurídico brasileiro como princípios continentes.
CONCLUSÃO
A passagem pela estrutura meramente formal da legitimidade normativa, até a sua aplicação ao caso concreto, nos leva a fazer uma análise da legitimidade da norma para a efetivação de um Estado Democrático de Direito.
A partir dessa análise, podemos emitir o posicionamento de que para uma norma ser legitimamente válida, ela precisa ultrapassar o modelo kelseniano de legitimidade e “dar um salto normativo” que objetive respeitar os direitos fundamentais de seus cidadãos.
Nesse sentido, a Constituição da República Portuguesa e a Constituição da República Federativa do Brasil seguiram um caminho de ultrapassagem dos requisitos meramente formais da legitimidade normativa para alcançar um objetivo maior, qual seja, um sistema democrático legitimamente válido, que visa efetivar os direitos fundamentais de seu povo.
Portanto, conclui-se que é preciso que toda norma, para ser considerada essencialmente legítima e democrática, tenha como fim o alcance da dignidade da pessoa humana por meio da implementação de uma democracia justa, fraterna e solidária em que haja um equilíbrio entre o processo formal de elaboração da norma por meio do Poder Legislativo, com o respeito aos direitos e garantias fundamentais e supraconstitucionais de todos.
REFERÊNCIAS
ARENDT, Hannah. Sobre a Revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1997.
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Notas de Rodapé
[1] Doutor em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
[2] Mestranda em Ciências Jurídicas pela Universidade Autónoma de Lisboa.
[3] “De um ponto de vista jurídico, o critério decisivo de revolução é o de que a ordem em vigor foi derrubada e substituída por uma nova ordem de modo que a primeira não tinha previsto” (KELSEN, 2005, p. 171).
[4] Constituição da República Portuguesa. Preâmbulo. […] “A Assembleia Constituinte afirma a decisão do povo português de defender a independência nacional, de garantir os direitos fundamentais dos cidadãos, de estabelecer os princípios basilares da democracia, de assegurar o primado do Estado de Direito democrático e de abrir caminho para uma sociedade socialista, no respeito da vontade do povo português, tendo em vista a construção de um país mais livre, mais justo e mais fraterno”. […]
[5] “Art. 5º, XLIV – constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático”.
[6] “Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
I – zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas e conservar o patrimônio público;”.
[7] “Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para: VII – assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais:
a) forma republicana, sistema representativo e regime democrático;”.