Tratamento Jurídico-Penal do “Contrabandista” de Medicamentos, o Paraguai e a Fronteira Oeste do Paraná
DOI: 10.19135/revista.consinter.0007.16
Carla Liliane Waldow Esquivel[1] – ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8115-0590
Héctor Luis Lovera Esquivel[2] – ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6702-9137
Candida Joelma Leopoldino[3] – ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1937-3598
Resumo: O grave problema do contrabando, especialmente realizado através da fronteira entre o Paraguai e os municípios localizados na região Oeste do Paraná, tem diversas repercussões, inclusive de natureza econômica-social. No entanto, a internalização no país de medicamentos controlados ou até mesmo proibidos reflete inevitavelmente na saúde da população, podendo gerar comprometimentos à integridade física e até mesmo à vida dos consumidores. A criminalização desse comportamento, pelo direito penal brasileiro, merece particular atenção, especialmente diante da possibilidade de adequar-se a diferentes comandos normativos. Desta feita, o presente estudo teve por escopo, além de destacar a seriedade do problema do contrabando de medicamentos a partir do Oeste do Paraná, sua repercussão na saúde pública nacional e as diferentes formas de responsabilidade penal a que o autor possa ser submetido, podendo ocorrer a subsunção ao descrito no art. 273, § 1º-B ou no 334-A, ambos do Código Penal, ou no art. 33 da Lei 11.340/2006. Para alcançar tais objetivos, foi realizada uma pesquisa qualitativa e teórica (hipotético-dedutiva), com abordagem interdisciplinar, mas com ênfase na investigação jurídico-penal.
Palavras-chave: medicamento – contrabando – tráfico – saúde pública.
Abstract: The serious problem of smuggling, especially through the border between Paraguay and the municipalities located in the western region of Paraná, has several repercussions, including in the economic and social nature. However, the internalization in the country of controlled or even banned drugs/ remedies inevitably reflects the health of the population, which can lead to compromise of physical integrity and even the consumers’ lives. The criminalization of this behavior, according to Brazilian criminal law, deserves particular attention, especially in view of the possibility of adapting to different normative commands. In this way, the present study aims to, besides highlight the seriousness of the problem of the drug smuggling from the West of Paraná, its repercussion on national public health, and the different forms of criminal responsibility to which the author may be subjected, mainly about what is described in art. 273, § 1º-B or 334-A, both of the Penal Code, or in art. 33 of Law no. 11,340 / 2006. To achieve these objectives, a qualitative and theoretical (hypothetical-deductive) research was carried out, with an interdisciplinary approach, but with an emphasis on criminal-legal investigation.
Keywords: drug – contraband – trafficking – public health
INTRODUÇÃO
Com mais de 1.000 km de contorno de fronteira com o Paraguai, incluídos os braços do Lago de Itaipu, a região oeste do Paraná se constitui em área propícia à prática do contrabando, crime que, repetidamente, é visto como inofensivo por grande parte da população, principalmente a local, integrando as operações, colaborando com esse tipo de criminalidade e, por vezes, promovendo seu próprio sustento ou de seus familiares.
Diversos são os produtos objeto de contrabando, havendo, entre os consumidores e as organizações criminosas, algumas preferências. Ganha destaque, nesse contexto, o ingresso, por meio dessas fronteiras, de produtos médicos, terapêuticos e, especialmente, medicamentos. Isso ocorre principalmente porque determinados medicamentos, a depender da enfermidade enfrentada, onera sobremaneira os consumidores em razão dos elevados preços praticados no Brasil. Em outras hipóteses, alguns medicamentos dependem de receita médica ou outros requisitos formais para sua aquisição, o que é desnecessário no Paraguai, por exemplo. O que atrai os contrabandistas, entretanto, são os elevados lucros que a internalização de tais produtos pode gerar, aliada ao controle deficiente das fronteiras.
No entanto, se há o controle ou a proibição do ingresso de determinados produtos no território nacional, elemento fundamental do crime de contrabando previsto no art. 334 do Estatuto Penal, é porque os riscos no seu consumo são elevados, colocando em risco ou efetivo dano os seus adquirentes.
Referido comportamento tem dignidade penal e merece a sanção mais severa do ordenamento jurídico. No entanto, por vezes, a importação irregular de medicamentos pode adequar-se a diferentes normas jurídico-penais, à vista, principalmente, da interpretação operada pelos Tribunais.
Assim, levando em consideração as opções metodológicas e objetivos propostos do presente estudo, qual seja a o tratamento jurídico- penal do crime de contrabando, em especial de medicamentos, nas fronteiras oeste do Estado do Paraná com o Paraguai, a discussão será especialmente desenvolvida a seguir, recorrendo-se, para tanto, a uma pesquisa qualitativa e teórica (hipotético-dedutiva), com abordagem interdisciplinar, mas com ênfase na investigação jurídico-penal.
1 OS MEDICAMENTOS COMO OBJETO DE CONSUMO E DE IMPORTAÇÃO CONTROLADA OU DESAUTORIZADA
Antes de ingressar na discussão central desse trabalho, ou seja, no contrabando de medicamentos pela fronteira Oeste do Paraná, importa fazer algumas importantes considerações.
Nesse sentido e em relação à definição de medicamentos, Alice Desclaux aduz que são objetos particulares e estão carregados de significações e de usos, transitando sobre saberes ou poderes, legitimando a organização de instituições, de sistemas e de redes (polissemia do medicamento) (2006, p. 113-114). A respeito do assunto, Fernando Lafèvre atribui diferentes significados para o medicamento: um agente quimioterápico, uma mercadoria e um símbolo.
A primeira definição se ajusta às diretrizes implementadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA); no entanto, a concepção de medicamento como símbolo leva em consideração a sua tradução, isto é, aquilo que concentra a saúde (em uma pílula, em gotas etc.) como uma verdadeira fórmula mágica. Mais do que isso, representa um avanço da ciência e da tecnologia para a prevenção, o controle e a cura de enfermidades e, por isso, objeto de confiança da comunidade (segurança contra os riscos).
De outra parte, está associado à sua eficiência e, em consequência, ao rápido restabelecimento das tarefas. Com relação a esse aspecto, os medicamentos são imitações da vida enquanto fato orgânico, reproduzindo, entre outras necessidades, o sono, a tranquilidade e a potência sexual. Sob a perspectiva mercadológica, o medicamento é um bem adquirível no mercado para dar resposta às necessidades naturais, criadas ou cultivadas no homem. Igualmente representa a institucionalização do consumo, fazendo parte das estratégias do médico na sua relação com o paciente, aumentando-lhe a produtividade na medida em que reduz o tempo de consulta (1991, p. 18, 23, 48, 51, 79).
É importante, ainda, agregar a visão do medicamento como instrumento de controle social sobre os corpos dos indivíduos, em que o poder não se manifesta ostensivamente, mas como uma peça desse controle social difuso, integrando, ao lado de outros elementos, um sistema de vigilância (BARROS, 1995, p. 29).
Quanto a esse último aspecto, no ambiente farmacológico houve o aprofundamento da medicalização[4] da prática médica, transformando os usuários dos serviços e dos recursos à saúde em consumidores: “[…] os quais visavam obter esse conjunto para solucionar problemas emoldurados pela ciência como doença ou para lograr uma melhor qualidade de vida” (BLANK; BRAUNER, 2009, p. 08). Nesse contexto de medicalização, como prática que viabiliza o aumento da utilização dos produtos de interesse para a saúde em detrimento de ações preventivas, sem dúvida foram ampliados os poderes dos médicos, especialmente proporcionados pelos avanços tecnológicos ou de novas alternativas para assegurar o bem-estar integral. Segundo Maria Cláudia Crespo Brauner e Dionis Mauri Penning Blank, essa medicalização da vida e, de sua vez, a explosão farmacológica, é induzida pelo mercado/publicidade estimulando principalmente o autoconsumo, que tantos prejuízos pode causar à saúde individual e coletiva (2009, p. 10-16).
Sob a ótica quimioterápica, os medicamentos podem ser definidos como produtos farmacêuticos, tecnicamente obtidos ou elaborados, a partir das preparações produzidas em farmácias ou na indústria, com finalidade preventiva, curativa, alívio de sintomas ou para fins de diagnóstico, consistindo em formas farmacêuticas terminadas que contêm o princípio ativo ou o fármaco associado aos excipientes (v.g. aditivos e coadjuvantes de tecnologia). Desse modo, o medicamento pode ser compreendido como a forma acabada de um produto destinado à efetiva recuperação da saúde e obtido por meio de operações farmacêuticas, no qual é imprescindível a presença de uma substância ativa (ou a combinação de duas ou mais) ou matéria de origem humana, animal, vegetal ou química que possui atividade apropriada para constituir um medicamento.
O termo “droga”, por sua vez, também tem como conteúdo a matéria-prima ou o ingrediente, de uso farmacêutico ou não, significando tanto produtos naturais como os obtidos por síntese, sendo comum designar por “fármaco” a toda e qualquer droga utilizada em farmácia e dotada de ação farmacológica (ANVISA, 2018). Pode-se dizer que é por meio dos medicamentos que se permite ao indivíduo recuperar-se, reduzir os riscos da doença e de outros agravos, preservar e prolongar seus processos vitais e sobreviver.
Não obstante os diferentes significados que os medicamentos e, de uma forma geral, os produtos de interesse para a saúde possam portar (agente quimioterápico, mercadoria ou símbolo), devem ser compreendidos como recursos fundamentais ou bens de interesse para a promoção, a proteção e a recuperação da vitalidade, como proposto pela Constituição Cidadã; são condições para a existência humana. Há, dessa maneira, uma íntima e inexorável conexão entre a saúde e os seus meios, particularmente em relação aos medicamentos. Agrega-se que o medicamento é considerado elemento essencial para a efetividade do direito à saúde e só é indubitavelmente garantido em sua plenitude mediante seu acesso seguro (CANOTILHO, 2011, p. 107).
Segurança, nesse caso, significa que os medicamentos possam ser efetivamente franqueados àqueles que deles necessitam para prevenir, controlar ou curar determinadas enfermidades, seja no âmbito público ou no privado. Ademais da acessibilidade ao medicamento, é imprescindível que qualquer modalidade de medicamento disponibilizada ao consumo tenha qualidade e que seja eficaz, além de não ser tóxico ou prejudicial à saúde e de não ser produzido em desconformidade com as disposições que regem a sua segurança. Exprime-se também que deve conter as propriedades esperadas pelo consumidor como boa qualidade, eficiência e ausência de contaminantes de natureza química, biológica, física ou de quaisquer substâncias.
Por sua vez, os medicamentos inseguros podem causar prejuízos irreversíveis à saúde e até mesmo a morte do paciente ou consumidor. Nesse sentido, gera insegurança a indisponibilidade, por parte do Poder Público, àqueles que necessitam de medicamentos, especialmente os excepcionais ou da impossibilidade de seu acesso em razão dos elevados preços praticados pelo mercado, em decorrência da incorporação de novas e caras tecnologias. Serão ainda mais inseguros os medicamentos fraudados, como da mesma forma aqueles produtos defeituosos, em razão da inobservância das boas práticas de fabricação ou que são colocados no mercado sem o controle ou a aprovação da ANVISA, ingressando nessa seara também os medicamentos contrabandeados ou traficados.
Destaca-se, nesse trabalho, a insegurança gerada pelos produtos de interesse para a saúde internalizados no território nacional, irregular ou indevidamente por meio do contrabando, que podem colocar em risco inevitável ou gerar dano irreversível à higidez e à vida daqueles que, de alguma forma, a eles tem acesso, violando o direito fundamental à saúde, aos bens de interesse e às condições sanitárias que compõe referido direito, assunto que ressaltado no tópico subsequente.
2 CONSIDERAÇÕES FUNDAMENTAIS A RESPEITO DO CRIME DE CONTRABANDO
O crime de contrabando está definido no art. 334-A[5] do Código Penal, cuja alteração ocorreu por meio da Lei 13.008/2014. Referida alteração[6] teve como principal desdobramento a divisão entre os crimes de descaminho e contrabando, cujos bens jurídicos são distintos.
Nesse sentido, o bem jurídico fundamental tutelado pela norma incriminadora em comento é o equilíbrio financeiro do Estado que se realiza por meio do controle do fluxo comercial de importação e exportação, o que ocorre não apenas via tributação, mas pela podem seleção de produtos que ou não ser externalizados ou introduzidos no país. A burla a esse controle por meio do contrabando produz perigo concreto sobre a balança comercial que compõe o equilíbrio econômico do país (BUSATO, 2016, p. 646). Mas esse não é o único bem jurídico tutelado, razão pela qual pode o delito sob análise ser denominado como plurissubsistente.
Assim, assegura-se, ainda, com a incriminação do contrabando, a depender do produto internalizado ou externalizado de forma proibida, a proteção à segurança e à moralidade pública, ao produto e à indústria nacional e, particularmente, no caso de medicamentos, à saúde dos consumidores (PRADO, 2017, p. 241).
Tem o delito de contrabando, como objeto material mercadoria proibida, ou seja, tudo aquilo que pode configurar um objeto de negociação, cuja importação e exportação seja total ou parcialmente vedada pelo Estado brasileiro[7]. Cuida-se de uma norma penal em branco, que deve ser aplicada à vista da legislação extrapenal que disponha a respeito de quais produtos podem ou não ser objeto de comércio internacional.
Quanto a esse aspecto, para que seja possível importar qualquer tipo de medicamento, droga ou insumo farmacêutico, é preciso expressa autorização da ANVISA, nos termos do art. 10, da Lei 6.360/1976. Essa condição alcança, inclusive, aquisições ou doações que envolvam pessoas de direito público. Para sua industrialização ou comercialização posterior, convém, ainda, o preenchimento dos requisitos previstos na Lei 9.782/1999 e, particularmente, na RDC 81/2008. Sendo assim, a importação pessoal de medicamentos, além dos demais requisitos para transposição territorial indicados na referida Resolução, fica sujeita à apresentação da prescrição profissional. A importação por pessoa jurídica, dependendo da destinação final dos bens de interesse importados, deverá atender formalidades específicas, nos termos da mesma RDC. De sua vez, tratando-se de substâncias e de medicamentos sujeitos a controle especial, há ainda a necessidade de Autorização Especial, Autorização de Importação e Licença Prévia para importação, em conformidade com as Portarias ns. 344/1998 e 06/1999-ANVISA. Outrossim, de acordo com a legislação sanitária, o registro no Brasil igualmente acompanha a exigência da prévia autorização da autoridade competente, para que um produto farmacoterapêutico ingresse no território nacional[8].
As condutas incriminadas no art. 334-A da lei penal referem-se fundamentalmente à importação ou exportação fraudulenta, em que o agente ludibria o controle sobre o fluxo de mercadorias do Brasil para o exterior ou do exterior para o país (BUSATO, 2017, p. 648).
À despeito da correta criminalização à vista de sua objetividade jurídica, o contrabando apresenta-se, na atualidade, como um grave problema de ordem social e econômica. Por várias razões é possível acreditar que talvez essa situação não seja tão sentida pela população brasileira, por diversas razões. Pode-se destacar, entre outros aspectos, o grave problema da falta de emprego regular no Brasil que empurra muitos indivíduos para a atividade informal ou até mesmo para a criminalidade. Em muitas oportunidades o contrabando de produtos a preços inferiores e vendidos no Brasil, se torna uma opção para a sobrevivência de alguns.
De outra parte, o Brasil é um território que contempla um espaço gigantesco de fronteira, por onde ingressam mercadorias proibidas. Nesse sentido, um interessante estudo realizado pelo Instituto de Desenvolvimento Econômico e Social de Fronteiras – IDESF destaca que em todo o Brasil, são aproximadamente 16.850 km de fronteira, passando por 10 países e 11 estados da Federação. Somente na região oeste do Paraná, são mais de 1000 km de contorno de fronteira, considerando os braços do lago de Itaipu. Claro é que todas as fronteiras são suscetíveis de contrabando, entretanto, a fronteira do Paraguai é a mais movimentada. Assim é que pela fronteira entre o Paraguai e a cidade de Foz do Iguaçu, no Paraná, que integra essa região, cruzam aproximadamente 30.000 veículos diariamente através da Ponte da Amizade. Mas o mais impressionante é que, segundo o Ministério Público Federal de Foz, apenas 5% a 10% das mercadorias de contrabando que entram no país são apreendidas, pois a fiscalização é feita por amostragem porque há falta de efetivo e escassa é a infraestrutura (IDESF, 2017(a), p. 4).
O contrabando traz efeitos nefastos para a sociedade. Do ponto de vista econômico, além de concorrer de forma desleal com os produtos e a indústria nacional, gera enormes prejuízos econômicos com a não arrecadação de impostos e com a ameaça que representa para o crescimento da indústria brasileira e a geração de empregos formais (IDESF, 2017(a), p. 4)[9]. De outra parte, a falta de arrecadação, ainda, impacta o próprio desenvolvimento e a assistência social, pois é por meio da arrecadação que é possível ao Estado manter educação, saúde, segurança, moradia, entre outras necessidades. A propósito dos investimentos em segurança, muitos recursos são dispendidos em segurança na fronteira, além de gastos que são alusivos à instauração de inquéritos policiais e denúncias pelos crimes de contrabando (IDESF, 2017 (b), p. 09-10).
No âmbito social, é possível destacar o
[…] abandono escolar por jovens que trocam os bancos das escolas pelas trincheiras do crime, passando pela desestruturação das sociedades nas cidades de fronteira, onde a informalidade das atividades econômicas, empurra cidadãos sem formação profissional para as atividades criminosas, chegando ao fim com índices de criminalidade equiparados aos estados de guerra, pois segundo a ONU mais de 60 homicídios por 100 mil habitantes, reflete características muito próximas aos cenários de guerra, infelizmente esses alarmantes números podemos encontrar nas cidades fronteiriças que estão dominadas pelo contrabando. (IDESF, 2017 (b), p. 2)
Um fator extremamente relevante, diz respeito à saúde dos consumidores que adquirem produtos contrabandeados. Diante de toda a divulgação midiática a respeito do consumo de cigarro, é possível assimilar o uso dessas mercadorias, constituídas por produtos ordinários e com fabricação às avessas às normas técnicas de higiene e segurança. Exemplo idêntico é o da internalização de agrotóxicos de fabricação e comercialização proibida no território nacional que são largamente utilizados na agricultura nacional, em particular por agricultores da região Oeste do Paraná, acarretando inúmeros problemas de saúde, como os altos índices de câncer e infertilidade constatados na região (BASTOS; ESQUIVEL, 2017, p. 179-185). No entanto, inúmeros outros produtos contrabandeados, por serem fabricados sem qualquer controle ou segurança sanitária ou, simplesmente por serem falsificados[10], podem conter ingredientes tóxicos, metais pesados, resíduos de insetos e de outros coadjuvantes nocivos. O consumo ou a utilização desses produtos pode acarretar problemas severos à integridade física e psíquica dos indivíduos, tenham eles diretamente contrabandeado esses produtos ou adquirido irregularmente no território nacional.
Nesse ambiente ingressam os medicamentos contrabandeados que deixam de ser considerados apenas como produtos para a prevenção ou a cura de enfermidades, transformando-se, nas mãos dos criminosos, em verdadeiros mercadorias ou objetos de consumo. O que atrai os consumidores de medicamentos importados irregularmente é o preço muito inferior ao praticado no território nacional e que compromete, consoante se viu acima, a segurança farmacológica, no sentido de acesso à população aos medicamentos essenciais. Há ainda que se destacar à facilidade na aquisição de alguns medicamentos que, no Brasil, são controlados, necessitando de autorização específica para aquisição e consumo. A respeito dessa afirmativa, o IDESF destaca as possíveis causas:
[…] esse fator se dá não apenas porque os preços de venda praticados no Paraguai sejam muito baixos, mas principalmente pelo valor agregado dessa mercadoria, que no Brasil, além de muito altos, têm acesso extremamente restrito, sendo possível sua compra no mercado legal, apenas com receita médica. Em contrapartida, os medicamentos contrabandeados podem ser comprados facilmente no mercado ilegal, ainda que por preços altos, sem registro sanitário e sem garantias de origem. Outro fator, ainda relacionado ao custo do medicamento contrabandeado, que resulta no aumento de seu preço final, está no fato do mesmo estar classificado, segundo a legislação brasileira, enquanto tráfico de drogas e, consequentemente, abarcando as mesmas penalidades legais. Dessa forma, o contrabandista, além de inserir esse produto no mercado ilegal, também o permite cobrar altíssimos preços pela aquisição do produto, que quase sempre é falsificado. (IDESF, 2017a, p. 9)
Some-se aos aspectos sociais e econômicos do contrabando, outros desdobramentos criminais. Nesse sentido, o contrabando é antecedido, inúmeras vezes, de furtos e roubos de veículos, que serão utilizados para introduzir, produtos de origem estrangeira proibidos ou nacionais destinados exclusivamente para exportação, e cujo reingresso é vedado pela lei brasileira. Além disso, há também o aumento da violência nas estradas, com os acidentes que são causados por condutores imprudentes de veículos carregados de contrabando. Sem dúvida esse é um tipo de situação – assim como os problemas de saúde decorrentes do consumo e utilização de produtos contrabandeados falsificados ou nocivos à saúde – que inevitavelmente traz desdobramentos sociais e econômicos na medida que vitimiza pessoas inocentes e impacta o Estado com pagamentos de diferentes benefícios. Esse aumento da violência na fronteira também pode ser apurada pelos altos índices de homicídios por habitantes nestas regiões que pode decorrer do confronto de criminosos com as forças de segurança, bem como pela rivalidade que liquida seus inimigos para ocupar ou dominar determinado território.
Acrescente-se a isso, que é possível vislumbrar a exploração do trabalho ou a redução à condição análoga a de escravo dos empregados do contrabando, cerca de 15.000 (quinze mil) trabalhadores informais cuja renda salarial média é de um salário mínimo nacional, valor este que pode deixar de ser pago se a mercadoria for apreendida. Fazem parte desse contexto inúmeros agentes, de atravessadores, condutores de veículos e batedores, proprietários de armazéns ou portos clandestinos, aos grandes patrões. Desse modo, ao contrabando relaciona-se particularmente com o crime organizado, envolvendo ainda outros delitos como a lavagem de dinheiro (IDESF, 2017(a), p. 8). A respeito das organizações criminosas, Ana Luiza Almeida Ferro magistralmente ensina que:
Os novos conquistadores não perseguem terras, mas mercados. São empresas do crime, em busca do lucro incessante. Concentram-se em uma ou em várias atividades ilícitas. Não conhecem fronteiras e não respeitam a soberania dos Estados. Organizam-se segundo uma hierarquia, dentro de uma estrutura preponderantemente vertical ou horizontal. Em regra, a partir de um território que lhes serve de base […], expandem-se por cobiça de dinheiro e poder, mediante redes, que os tornam, já em estágios mais avançados, impérios transnacionais, em conexão com outros impérios igualmente sedentos de lucro. Não operam unicamente no mercado ilícito; compram negócios lícitos, possuem participação em bancos e em empresas legítimas, dedicam-se ao branqueamento do dinheiro sujo e à sua reciclagem para fins de reutilização tanto em atividades lícitas como ilícitas, manipulam mercados financeiros. Sugam os recursos das nações, por intermédio de roubos […]. (FERRO, 2011, p. 616-617)
Outra característica interessante das organizações criminosas e destacada pela autora, e que igualmente gera imensos danos aos Estados e as sociedades e democracia em particular, é sua habilidade de infiltração nos pilares do Estado e das instituições sociais e políticas, o que fazem particularmente por meio da corrupção e do tráfico de influências (FERRO, 2011, p. 618). Esse é o mesmo entendimento de Flávia Schilling que, a propósito, menciona que não há crime organizado sem corrupção (2001, p. 400).
Trata-se de um negócio de alta rentabilidade, razão pela qual atrai a criminalidade. A propósito, o contrabando, especialmente de cigarros, tem lucros equiparados ao proporcionado pelo tráfico ilícito de drogas, com a diferença de que a matéria prima é mais barata e a atividade envolve menores riscos. No entanto, o contrabando considerado altamente rentável é o de medicamentos. De acordo com o IDESF, os medicamentos estão entre os 10 (dez) produtos mais contrabandeados, e cujo lucro pode variar de 732,51% a 901,85% (IDESF, 2017(a), p. 8)[11]. Em reportagem à Folha de São Paulo, vislumbra-se pesquisa realizada pelo Fórum Nacional contra a Pirataria e a Ilegalidade (FNCP) com base em dados da ANVISA em que estima que os medicamentos contrabandeados movimentem cerca de R$ 8 bilhões ao ano no país, ou quase 20% do mercado para o setor, incluídas as vendas realizadas por meio eletrônico (FOLHA DE SÃO PAULO, 2015). Assim, pode-se verificar que o contrabando desses produtos ou mercadorias é o que gera maior lucratividade para os envolvidos em detrimento dos riscos são baixos, fazendo com que esse tipo de criminalidade se aperfeiçoe e aprofunde, tornando-se extremamente difícil (ou impossível) a sua erradicação.
Sem dúvida nenhuma, é possível concordar com o IDESF quando afirma que o contrabando viola direitos fundamentais das mais diversas formas e que os custos desse tipo de criminalidade é “invisível” pois geram prejuízos imensuráveis e em diversos âmbitos da vida das pessoas (IDESF, 2017(b), p. 7-8). Em relação aos medicamentos introduzidos ilegalmente no país, é possível igualmente admitir que se trata de uma conduta extremamente perigosa, ultrapassando os controles do Estado que visam impedir ou limitar que determinados produtos sejam adquiridos ou consumidos pela impossibilidade de produzirem os efeitos desejados ou por causar danos irreversíveis à sua saúde ou à sua vida daqueles que a eles tem acesso. Tão grave é esse comportamento que há dignidade penal e necessidade de sanção, não obstante eventualmente possa dar lugar a diferentes formas de incriminação, conforme será analisado a seguir.
3 TRATAMENTO JURÍDICO-PENAL DO “CONTRABANDISTA” DE MEDICAMENTOS
Os produtos de interesse para a saúde, como são os medicamentos, muitas vezes têm origem estrangeira, desencadeando o contrabando e o tráfico de drogas. Esses delitos ocorrem com frequência, não apenas por meio da internet (que funciona como canal entre o consumidor e o contrabandista)[12], mas são facilitados pelo acesso simples e direto do Brasil com outros países, principalmente o Paraguai, a Argentina e a Bolívia. Através dessas fronteiras, inúmeros produtos ingressam irregularmente, entre eles, alimentos com traços de medicamentos e inúmeros suplementos nutricionais.
O mais grave é o ingresso ilegal de medicamentos cujos fármacos são controlados ou, até mesmo, proibidos no Brasil.
Compõem a lista de transposição desautorizada mais comum os medicamentos mais procurados pela população e cujos preços praticados no mercado oficial são muito elevados, como anorexígenos (v.g. Dimagrir – insumo marzidol; Atenix – insumo sibutramina), vasodilatadores (v.g. Pramil – insumo citrato de sildenafila), anabolizantes e até mesmo medicamentos para tratamento de câncer[13].
Os Tribunais têm subsumido a conduta de tráfico internacional de medicamentos no âmbito do art. 273[14] do Código Penal, quando não fazem verdadeira confusão entre os dispositivos constantes nesse diploma legal e a Legislação Especial. Por essa razão, cumpre proceder a alguns esclarecimentos fundamentais nessa matéria.
O art. 273, § 1º remete às mesmas penas do caput para quem importa, vende, expõe à venda, tem em depósito para vender ou, de qualquer forma, distribui ou entrega a consumo o produto falsificado, corrompido, adulterado ou alterado. Já o § 1º-B sujeita às mesmas penas quem pratica as ações incriminadas no § 1º, como importar, em relação a produtos nas condições descritas no parágrafo, particularmente sem registro, quando exigível, no órgão de vigilância sanitária competente (I); de procedência ignorada (V) ou adquiridos de estabelecimentos sem licença da autoridade sanitária competente (VI).
Assim, acaso seja o agente surpreendido introduzindo no país substância ou medicamento falsificado, será aplicado o art. 273, § 1º, do CP. Se essa transposição se der com medicamentos em que não exista a indicação da procedência, deve-se considerá-lo sem registro uma vez que este contém as informações imprescindíveis e atesta a segurança dos produtos de interesse a saúde permitindo a sua disponibilização pública. E consoante mencionado acima, além do registro, é imprescindível a autorização da ANVISA para que esse ingresso possa ocorrer. O descumprimento dessas formalidades sujeita o infrator às sanções previstas no art. 273, § 1º-B, I, do CP inclusive para o caso de medicamento de procedência estrangeira.
Contudo, se a quantidade importada de medicamentos ou de produtos de interesse para a saúde de uma forma geral for considerada pequena, embora não registrada na ANVISA ou previamente autorizado o seu ingresso, entende-se ser possível a aplicação do art. 334-A, § 1º-A do CP que especialmente trata do assunto e apresenta sanção significativamente menor que a prevista para as fraudes farmacêuticas. Esse é, inclusive, o entendimento que têm sido adotado pela maioria dos Tribunais Pátrios:
Direito Penal. Contrabando de Medicamentos. Pequena quantidade de fármacos e baixo potencial lesivo. Desclassificação para o crime do art. 334 do Código Penal. Retorno dos autos à origem para viabilização do oferecimento de suspensão condicional do processo. Art. 89 da Lei 9.099/95.
1. Quanto à importação de remédios em desacordo com os regulamentos da vigilância sanitária (ANVISA) a conduta constitui, em tese, o crime previsto no art. 273, parágrafo 1º-B, do CP, podendo haver desclassificação para contrabando (art. 334, CP) acaso seja pequena a quantidade introduzida clandestinamente no país e não haja especial potencialidade lesiva à saúde pública.
2. Capitulada a conduta do réu no art. 334 do Código Penal, o qual, na redação vigente à época dos fatos, cominava a pena mínima de um ano de reclusão, afigura-se viável, em tese, a suspensão condicional do processo. Desta forma, devem retornar os autos à Vara de Origem para possibilitar a manifestação do Ministério Público Federal quanto ao seu oferecimento. (TRF – 4ª, ACR: 5000156-40.2013.404.7002/PR, –7ª T. – j. em 01.03.2016)
De acordo com o exposto anteriormente, o crime de contrabando está previsto no art. 334-A do CP, que estabelece pena de reclusão de dois a cinco anos para quem importar ou exportar mercadoria proibida. O parágrafo primeiro, por sua vez, equipara ao contrabando e sujeita às mesmas sanções, entre outros comportamentos, a importação ou a exportação clandestina de mercadoria que dependa de registro, análise ou autorização de órgão público competente, como a ANVISA. De acordo com as definições delineadas anteriormente, o medicamento, embora seja genericamente uma mercadoria, é mais propriamente uma droga (necessariamente composto por algum fármaco, insumo farmacêutico ou matéria-prima). A despeito disso, na hipótese de existir a importação de um medicamento sem as formalidades necessárias, mas em quantidade modesta, haverá responsabilidade pelo crime de contrabando, de acordo com o que foi consignado acima.
Porém, em se cuidando de medicamento, ou seja, de produto que possua um princípio ativo ou droga sujeita a controle especial (Portaria 344/1998) e que é trazido para o país sem os requisitos mencionados, não há que se falar em crime contra a saúde pública previsto no art. 273 do CP, embora esta seja inevitavelmente atingida (v.g. Atenix, princípio ativo sibutramina, de fabricação paraguaia). Nessa hipótese, a conduta enquadra-se no tipo de injusto de tráfico de drogas, ou seja, no art. 33 da Lei 11.343/2006, cuja pena é de reclusão de cinco a quinze anos e multa.
O tipo penal é composto de diversos verbos nucleares (tipo misto alternativo) e tem como objeto material as drogas, introduzidas sem autorização ou em desacordo com a determinação legal ou regulamentar. Nessa hipótese, caso se trate de medicamento, conforme se falou supra, é imprescindível a autorização da ANVISA para o ingresso no território nacional e seu posterior registro. Dependendo do produto introduzido sem o preenchimento das formalidades legais e da respectiva quantidade, ainda que não se refira à substância proibida ou que cause dependência física ou psíquica, ajusta-se a conduta ao art. 33 da Lei de Drogas, ao art. 273 ou ao art. 334, § 1º, II, do CP:
[…] 6. É valida a aplicação do art. 273 do Código Penal, na sua íntegra, à importação ilícita de grande quantidade de medicamentos, forte no seu elevado potencial lesivo à saúde pública e à alta reprovabilidade da conduta. 7. Tratando-se de importação ilícita de medicamentos em média quantidade, a aplicação do preceito secundário do art. 273 do Código Penal acaba por violar a Constituição, porquanto a pena mínima fixada em abstrato apresenta-se, para a hipótese, demasiadamente gravosa e desproporcional. Como meio de expurgar o excesso, aplica-se o preceito secundário do art. 33, caput, da Lei 11.343/2006 (Lei de Tóxicos), que estabelece pena de reclusão de 5 a 15 anos e multa, com as respectivas causas de aumento e de diminuição de pena, inclusive a redução de 1/6 a 2/3 se preenchidos seus requisitos, o que confere maior amplitude à individualização da pena. (TRF4, ARGINC 5001968-40.2014.404.0000. Corte Especial, rel. p/ acórdão Leandro Paulsen, juntado aos autos em 11.02.2015)
Em todos os tipos de injusto está embutida, ainda que de forma mediata, a tutela penal da saúde pública e a segurança dos medicamentos a serem disponibilizados à coletividade. Identicamente, a importação ilegal de medicamentos por meio do contrabando ou do tráfico de medicamentos pode, sem dúvida, ser incluída nas denominadas fraudes farmacêuticas. Os elementos que as caracterizam estão presentes, a saber: comportamento fraudulento daquele que realiza o contrabando ou o tráfico, emprego de falácias ou ardis para a ocultação da verdade, indução da vítima a erro, possibilidade ou o efetivo prejuízo à vítima.
Todas as condutas destacadas no presente título evidenciam o risco a que estão expostos os pacientes e consumidores de medicamentos e produtos de interesse para a saúde, de uma forma geral. Consoante ficou claro alhures, o risco incorpora naturalmente a tecnologia médica e farmacêutica. É, entretanto, potencializado por meio das condutas até aqui analisadas, ou seja, o contrabando e tráfico de medicamentos que viabilizam o acesso a produtos considerados inseguros.
CONCLUSÃO
Como consignado acima, o crime de contrabando não é inofensivo como muitos pensam ou fazem pensar, envolvendo o incremento de outros tipos penais como, por exemplo, o furto, o roubo, a corrupção, a violência nas estradas e o trabalho escravo, particularmente articulados pelas organizações criminosas que eliminam concorrentes e garantem sua supremacia em determinadas áreas.
Por outro lado, tem-se que o que mais atrai os contrabandistas, entretanto, são os elevados lucros que a internalização de tais produtos pode gerar, aliada ao controle deficiente das fronteiras, em contraponto à busca do equilíbrio financeiro do Estado e proteção à saúde e segurança pública, proposto pelo legislador ao criminalizar tal conduta.
Verificou-se, assim, que dentre os itens contrabandeados, os medicamentos (seja ele entendido como um agente quimioterápico, uma mercadoria ou um mero símbolo) ocupam lugar de destaque (entre os 10 produtos mais contrabandeados), uma vez internalizados, aliciam seus compradores seja pelo preço infinitamente menor do que os praticados nacionalmente, seja pela desnecessidade de formalidades para sua aquisição, quando retornam ao contrabandista lucro a 700%.
De outra sorte, o que atrai os consumidores de medicamentos importados irregularmente, por seu turno, é o preço muito inferior ao praticado no território nacional e que compromete, consoante se viu acima, a segurança farmacológica, no sentido de acesso à população aos medicamentos essenciais. Há ainda que se destacar à facilidade na aquisição de alguns medicamentos que, no Brasil, são controlados
Observou-se ainda, que dos 16.850 km de fronteira brasileira, passando por 10 países, a fronteira do estado do Paraná (em especial na cidade de Foz do Iguaçu, dentre os 1000 km de suas fronteiras estaduais) com o Paraguai é, de fato, a mais movimentada. Outro dado que alarma é o fato de que, de acordo com o Ministério Público Federal de Foz, apenas 5% a 10% das mercadorias de contrabando que entram no país são apreendidas
Com esta mercancia sofre o Fisco, que deixa de arrecadar, sofre a indústria e o comércio, que deixam de vender, afinal o negócio movimenta cerca de R$ 8 bilhões, vindo a prejudicar investimentos em saúde, educação, segurança, diminuindo vagas de empregos formais, e, ainda pior, causando prejuízo à saúde, visto que o acesso a medicamentos seguros, produzidos conforme especificações técnicas e contendo os princípios ativos e excipientes que deve conter, é condição para o restabelecimento das condições de saúde ou de controle da enfermidades.
Por fim, no que se refere ao tratamento jurídico-penal do contrabandista de medicamento, os Tribunais têm subsumido a conduta de tráfico internacional de medicamentos no âmbito do art. 273 do Código Penal cuja pena é de reclusão, de 10 (dez) a 15 (quinze) anos, e multa. Se for, outrossim, medicamento ou produto que possua um princípio ativo ou droga sujeita a controle especial (Portaria 344/1998) e que é trazido para o país sem os requisitos mencionados tipo de injusto de tráfico de drogas, ou seja, no art. 33 da Lei 11.343/2006, cuja pena é de reclusão de cinco a quinze anos e multa. Por outro lado, se a quantidade importada de medicamentos ou de produtos de interesse para a saúde de uma forma geral for considerada pequena, embora não registrada na ANVISA ou previamente autorizado o seu ingresso, entende-se ser possível a aplicação do art. 334-A, § 1º-A do CP que especialmente trata do assunto e apresenta sanção significativamente menor que a prevista para as fraudes farmacêuticas (com pena de dois a cinco anos para quem importar ou exportar mercadoria proibida) importação de um medicamento sem as formalidades necessárias, mas em quantidade modesta, haverá responsabilidade pelo crime de contrabando, de acordo com o que foi consignado acima.
Desta forma queda plenamente demonstrado o merecimento da tutela penal para o ilícito, sendo que a despeito do imbróglio legislativo que contrapõem os arts. 33 da Lei de Drogas, o art. 273 e o art. 334, § 1º, II, do CP, a construção doutrinária e jurisprudencial cuidou de deixar mais palatável a aplicação desta ou daquela norma de acordo com as quantidades, e do controle a que é submetido o produto, harmonizando a aplicação das penas.
Se há o controle ou a proibição do ingresso de determinados produtos no território nacional, é porque os riscos no seu consumo são elevados, colocando em risco ou efetivo dano à higidez e vida de seus adquirentes, violando, assim, o próprio direito fundamental à saúde, aos bens de interesse e às condições sanitárias que o compõe.
REFERÊNCIAS
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Notas de Rodapé
[1] Docente do Curso de Direito da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), Campus de Marechal Cândido Rondon/PR, Mestre em Direito pela Universidade Estadual de Maringá (UEM) e Doutora em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Pesquisadora do Núcleo de Estudos Criminais da Universidade Federal do Paraná (NEC/UFPR) e do Produção Agroalimentar, indústria, consumo e regulamentação estatal: direito humano à alimentação adequada e direito à água”, da Universidade Federal Fluminense (UFF).
[2] Graduado em Direito e em Segurança Pública. Pós-graduado em Segurança Pública Cidadania e Direitos pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), Integrante do Projeto de Pesquisa “Fraudes Farmacêuticas: estudo de caso na região Oeste do Paraná”. Pós-graduando em Direito Penal e Direito Processual Penal.
[3] Docente do Curso de Direito do Instituto Federal do Paraná (IFPR), Campus de Palmas/PR, Mestre e Doutora em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Pesquisadora do Núcleo de Cooperativismo e Cidadania da Universidade Federal do Paraná (NCC/UFPR) e Núcleo de Riscos Urbanos da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (NUPRU/UTFPR).
[4] O termo medicalização refere-se à habilidade de conduzir acontecimentos naturais da vida (da gravidez à ansiedade) em enfermidades e para as quais se necessita da intervenção médica, tratamentos terapêuticos e medicamentos. É dizer que cada vez mais fenômenos de natureza não médica são medicalizados e tratados com medicamentos (BARROS, 1984, p. 12).
[5] “Art. 334-A. Importar ou exportar mercadoria proibida:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos.
§ 1o Incorre na mesma pena quem:
I – pratica fato assimilado, em lei especial, a contrabando;
II – importa ou exporta clandestinamente mercadoria que dependa de registro, análise ou autorização de órgão público competente;
III – reinsere no território nacional mercadoria brasileira destinada à exportação;
IV – vende, expõe à venda, mantém em depósito ou, de qualquer forma, utiliza em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria proibida pela lei brasileira;
V – adquire, recebe ou oculta, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria proibida pela lei brasileira.
§ 2º Equipara-se às atividades comerciais, para os efeitos deste artigo, qualquer forma de comércio irregular ou clandestino de mercadorias estrangeiras, inclusive o exercido em residências.
§ 3o A pena aplica-se em dobro se o crime de contrabando é praticado em transporte aéreo, marítimo ou fluvial”.
[6] A outra importante alteração foi a elevação do mínimo e do máximo da pena cominada em abstrato ao crime.
[7] Paulo César Busato esclarece que não existe proibição de um objeto, mas de seu uso, emprego, venda etc. Portanto, a redação do legislação não é adequada, requerendo que se faça uma interpretação no sentido de que seja “mercadoria cuja importação ou exportação é proibida” (2016, p. 648).
[8] Nos termos do art. 12, da Lei 6.360/1976, nenhum dos produtos de interesse para a saúde tratados pelo diploma legislativo, nestes incluídos os importados, poderá ser industrializado, exposto à venda ou entregue ao consumo antes de registrado na ANVISA. E de acordo com o art. 18 da lei em referência, “O registro de drogas, medicamentos e insumos farmacêuticos de procedência estrangeira dependerá, além das condições, das exigências e dos procedimentos previstos nesta Lei e seu regulamento, da comprovação de que já é registrado no país de origem”.
[9] Reportagem da Folha de São Paulo, intitulada “Contrabando: crime sem castigo”, indica que “O impacto do contrabando se faz sentir na economia do país. Levantamento do FNCP com 15 setores da indústria brasileira reunidos entre seus 30 associados estima em R$ 65 bilhões as perdas para o comércio legal em 2014, e parte deles aponta a alta carga tributária como um dos principais incentivos para os contrabandistas. Já o impacto na arrecadação federal, a partir dessa estimativa, seria de R$ 29,3 bilhões. Se a estimativa for exata, é como se o Brasil perdesse anualmente o equivalente ao PIB do Panamá para os contrabandistas (2015)”.
[10] O dado mais alarmante apresentado é, entretanto, de que cerca de 10% dos medicamentos do mercado farmacêutico mundial são falsificados, podendo esse número variar de 25% a 50% nos países em desenvolvimento. Agrega-se a isso que o produto da fraude de medicamentos pode chegar ao consumidor de diferentes formas, inclusive por estabelecimentos de saúde regularmente instalados no país, ganhando destaque, nessa seara, as ciberfarmácias cuja abrangência é de 25% a 30%. É importante ainda destacar que 20% dos medicamentos ainda chegam aos mercados fora dos padrões de qualidade exigidos internacionalmente e de que 50% são vendidos ou utilizados inadequadamente. No Brasil, igualmente, estima-se que entre 10% a 15% da produção de medicamentos, o equivalente a cerca de 400 milhões de unidades, é importada ilegalmente, apropriada indevidamente ou fraudada. Para corroborar essa afirmativa, de acordo com a Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (INTERFARMA), só no ano de 2010 foram apreendidas 400 toneladas de produtos farmacêuticos falsificados, contrabandeados, sem registro ou impróprios para o consumo. Todos esses medicamentos são adquiridos pelos consumidores individuais, pelas redes hospitalares ou pela rede pública de assistência farmacêutica, podendo gerar as mais diferentes reações adversas, como tratamentos ineficazes, intoxicações, debilidades, comprometimentos físicos ou mentais e até mesmo a morte, sem contar os prejuízos de ordem econômica, o ônus ao serviço público de saúde e o abalo na confiança das pessoas nas instituições e profissionais de saúde (HURTADO; LASMAR, 2014, p. 892; INTERFARMA, 2018; RODRIGUES, 2015).
[11] O Batalhão de Polícia de Fronteira, criado por meio do Decreto Estadual 4.905 de 06 de junho de 2012, resultado de uma parceria entre o Governo Federal, através do Programa de Estratégia Nacional de Segurança Pública nas Fronteiras (ENAFRON), e o Governo do Estado do Paraná, atende a faixa fronteiriça – 150 km – abrangendo a cento e trinta e nove municípios da região fronteiriça, fez-se um estudo de caso, copilando os dados tabulados das apreensões realizadas no período compreendido entre 2012 e 2016, apreendeu cerca de 60.000 unidades de medicamentos entre estimulantes sexuais, anabolizantes, abortivos e suplementos alimentares com a presença de substancias controladas. Tais dados são alarmantes considerando que o número de apreensões não retrata a realizada das internalizações proibidas (Relatório de atividades do BPFRON, 2017). Já o relatório da Polícia Rodoviária Federal – PRF, traz com dados das apreensões realizadas no período de 2013 a 2017, apenas na região Oeste do Estado do Paraná, cerca de 100.000 unidades de medicamentos apreendidas (Relatório de atividades da PRF, 2017).
[12] Em busca realizada em 10 mar. 2018 no site de vendas mercado livre é possível encontrar inúmeros medicamentos como: sibutramina (https://produto.mercadolivre.com.br/MLB-991660209-escova-rotativa-sibrutramine-mondial-ceramic-ion-plus-_JM) Ritalina <https://produto.mercadolivre.com.br/ MLB-990181035-quadro-decorativo-gitalina-original-1cx-11500-ricfarma-_JM#redirectedFromSimilar>, citotec <https://produto.mercadolivre.com.br/MLB-989132328-relogio-masculino-luxo-inox-automatico-citotech-esqueletizad-_JM>, Efedrina <https://produto.mercadolivre.com.br/MLB-991239495-blackmamba-original-hyperrush-melhor-q-lipo6-black-90caps-_JM>, Pramil <https://produto.mercadolivre.com.br/MLB-991427873-samsung-galaxy-j5-promil-40-unidades-frete-gratis-_JM>. Em regra se observa que há dissimulação do nome do medicamento pois sua venda contraria a política do site e sua menção implicaria na retirada imediata do anúncio.
[13] “Desde 2010, a Receita Federal apreendeu 40 milhões de reais em medicamentos contrabandeados. O Paraguai é uma das principais portas de entrada, responsável por dois terços do ingresso de 20 bilhões de reais por ano em produtos ilegais. O meio mais importante para a divulgação e venda são 1,2 mil sites fora da lei para comercialização de fármacos identificados no Brasil por uma pesquisa do Ministério da Saúde realizada em 2012. Entre os principais produtos comercializados estão inibidores de apetite, abortivos, anabolizantes e fitoterápicos. As falsificações identificadas com mais frequência pelos órgãos de vigilância são as de produtos para impotência e hormônios de crescimento. Também são encontradas versões piratas para tratamento de câncer. Os sites oferecem curas milagrosas e seduzem o consumidor. O preço e a facilidade de pagamento são atrativos irresistíveis para muitos” (MAIA, 2014).
[14] “Art. 273. Falsificar, corromper, adulterar ou alterar produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais:
Pena – reclusão, de 10 (dez) a 15 (quinze) anos, e multa.
§ 1º Nas mesmas penas incorre quem importa, vende, expõe à venda, tem em depósito para vender ou, de qualquer forma, distribui ou entrega a consumo o produto falsificado, corrompido, adulterado ou alterado.
§ 1º-A. Incluem-se entre os produtos a que se refere este artigo os medicamentos, as matérias-primas, os insumos farmacêuticos, os cosméticos, os saneantes e os de uso em diagnóstico.
§ 1º-B. Está sujeito às penas deste artigo quem pratica as ações previstas no § 1º em relação a produtos em qualquer das seguintes condições:
I – sem registro, quando exigível, no órgão de vigilância sanitária competente;
II – em desacordo com a fórmula constante do registro previsto no inciso anterior;
III – sem as características de identidade e qualidade admitidas para a sua comercialização;
IV – com redução de seu valor terapêutico ou de sua atividade;
V – de procedência ignorada;
VI – adquiridos de estabelecimento sem licença da autoridade sanitária competente.
Modalidade culposa
§ 2º Se o crime é culposo:
Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa”.