Inimizade e Sistema Punitivo: Reflexos da Teoria do Direito Penal do Inimigo nas Ciências Criminais Modernas
ENMITY AND PUNITIVE SYSTEM: REFLECTIONS ON THE ADOPTION OF THE THEORY OF CRIMINAL LAW OF THE ENEMY BY CRIMINAL SCIENCES
Ana Clara Montenegro Fonseca[1]
Herleide Herculano Delgado[2]
Luciano do Nascimento Silva[3]
Resumo: Na perspectiva de um futuro que velozmente se aproxima e traz consigo questões sensíveis ao campo das ciências penais e efeitos nas formulações políticas criminais para controle do medo e da violência, é tarefa imprescindível ao pesquisador identificar o deslocamento dessas verdades pela sociedade e as suas conexões com a criação de “verdades” violadoras de garantias individuais. Logo, o objeto da pesquisa centraliza-se no direito penal do inimigo, de Günther Jakobs, e nas discussões proporcionadas a partir do conceito de inimigo no sistema penal, sobretudo na dogmática e política criminal. A finalidade é demonstrar que a adoção do paradigma da inimizade acarreta um controle punitivo excludente e sua lógica aproxima-se de um estado de exceção ao direito, resultando em políticas penais autoritárias, em afronte ao garantismo penal e aos direitos fundamentais. Sublinha-se o caráter teórico da pesquisa, com posição crítica e interdisciplinar (considerando o modelo de ciências penais integradas), no propósito de explicar as relações entre o fenômeno (inimizade/inimigo) e outros contextos (ciências penais e filosofia política). O artigo principia com a apresentação do paradigma da inimizade e suas bases filosóficas, de modo a identificar o expansionismo penal como fator de influência ao eficientismo; posteriormente, estuda os impactos da teoria tratada para as ciências penais. Ao final, observa-se que o direito penal do inimigo, objeto elaborado ideologicamente, contribui com a manutenção de certo regime de verdade excessivamente punitivista, reproduz mecanismos que fazem circular discursos antigarantistas incompatíveis com os fundamentos do direito penal pátrio e de um Estado de Direito.
Palavras-chave: Teoria do Direito Penal do Inimigo. Razão Garantista. Eficientismo. Políticas Criminais Simbólicas.
Abstract: From the perspective of a future that quickly approaches and brings sensitive issues to the field of criminal sciences and effects on criminal policy formulations for control of fear and violence, it is imperative task for the researcher to identify the displacement of these truths by society and its connections the creation of “truths” violators of individual guarantees. Therefore, the object of research centers on theory of criminal lawof the enemy, by The purpose is to demonstrate that the adoption of enmity paradigm entails an exclusive punitive control and logic approaches a state of exception to the law , resulting in authoritarian criminal policies, resulting in authoritarian penal policies, going against the criminal garantism and fundamental rights. It emphasizes the theoretical nature of the research, with critical and interdisciplinary position (considering the model of integrated criminal science), in order to explain the relationship between the phenomenon (enmity / enemy) and other contexts (criminal sciences and political philosophy). The article begins with the presentation of enmity paradigm and its philosophical basis in order to identify the criminal expansionism as a factor of influence to efficientism; later studies the theory of impacts treated for criminal sciences. Finally, it is observed that the criminal law of the enemy object prepared ideologically, it contributes to the maintenance of certain regime of truth, excessively punitive play mechanisms that circulate anti-guarantor speeches incompatible with the fundamentals of brazilian criminal law and rule of law.
Keywords: Theory of Criminal Law of the Enemy. Garantist reason. Efficientism. Policies criminal symbolic.
INTRODUÇÃO
O funcionalismo normativo-sistêmico traz à baila a construção do conceito de inimigo para o sistema punitivo, muito embora não seja nenhuma novidade o paradigma da inimizade como motivo ideológico do poder-dever de punir. Nessa trilha, já se afirmava que “a busca e identificação de inimigos foi uma tarefa permanente do poder punitivo ao longo dos últimos oito séculos” (ZAFFARONI, 2005, p. 5). Note que é deveras problemática a manipulação desse pensamento, vez que repercute nas chamadas ciências penais integradas (para Lizst, gesamte Strafsrechtwissenchaft, dogmática penal, criminologia e política criminal), ocasionando efeitos políticos concretos e antigarantistas.
De pronto, pode-se afirmar que o uso desse modelo belicista torna a potestade penal um instrumento puramente de rechaço do inimigo. Assim, “para o Estado, como uma entidade essencialmente política, decorre o jus belli, ou seja, a possibilidade real de decidir em uma situação concreta sobre o inimigo e a habilidade de combatê-lo com todo o poder que possui” (SCHMITT, 2007, p. 45).
Por essas razões, o objeto desta pesquisa centraliza-se na teoria do direito penal do inimigo, pensamento do funcionalista normativo-sistêmico Günther Jakobs, criado em 1985, e nas discussões em torno das transformações proporcionadas a partir do conceito de inimigo no sistema penal, sobretudo na dogmática penal e na política criminal. Intenta-se, pois, analisar os impactos da apropriação do conceito de inimizade pelo conjunto de instituições que promovem a criminalização.
Sabe-se que a política criminal por meio da valoração de dados criminológicos. Atua nas reformas legais (lege ferenda), mas também possui função dogmática (lege lata), porque o “sistema jurídico-penal como estrutura aberta permite a incidência direta da política criminal e indireta da criminologia na elaboração de suas categorias” (SILVA SÁNCHEZ, 1992, p. 99). Outrossim, tal abertura sistêmica deve se limitar a políticas criminais consoantes com os direitos e garantias positivados, evitando as autoritárias (D’AVILA, 2008, p. 480 e ss.).
Nesse sentido, a finalidade do artigo é demonstrar que a adoção do paradigma da inimizade acarreta um controle penal excludente e sua lógica aproxima-se de um estado de exceção ao direito, resultando em políticas penais autoritárias, em claro afronte ao garantismo penal, logo, aos direitos fundamentais.
Para tanto, sublinha-se o caráter teórico da pesquisa, com posição crítica e interdisciplinar (considerando o modelo de ciências penais integradas), no propósito de explicar as relações entre o fenômeno (inimizade/significado de inimigo no âmbito penal) e outros contextos (ciências penais e filosofia política).
O artigo principia com a apresentação do paradigma da inimizade e das bases filosóficas do conceito de inimigo, de modo a identificar o expansionismo penal como fator de influência ao eficientismo em confronto com o postulado garantista do Estado de Direito; posteriormente, estuda-se os impactos da teoria tratada para as ciências penais, tratando das punições antecipadas, da despersonificação do homem e das políticas emergenciais, eficientistas e simbólicas.
Ao final, observa-se que o direito penal do inimigo, como objeto elaborado ideologicamente, ao contribuir com a manutenção de certo regime de verdade excessivamente punitivista, reproduz mecanismos que fazem circular discursos antigarantistas que são incompatíveis com os fundamentos do direito penal pátrio e com os fundamentos de um Estado de Direito.
1 ENTRE A RAZÃO GARANTISTA E EFICIENTICISTA DO ESTADO COM A INVENÇÃO DO PARADIGMA DA INIMIZADE: A EXPANSÃO DO DIREITO PENAL E AS BASES JUSFILOSÓFICAS DO DIREITO PENAL DO INIMIGO
A sociedade moderna é marcada por notáveis avanços tecnológicos, biológicos, econômicos, nos meios de comunicação, dentre outros, que integram e aproximam os países, proporcionando mais facilidade e bem-estar ao indivíduo. A globalização, a integração supranacional como fenômeno político-jurídico, mostra-se como grande catalisador destes fenômenos sociais, o que impulsiona uma expansão também no âmbito do direito penal na sociedade tido como pós-moderna, principalmente no que concerne à delinquência econômica.
Inobstante os pontos positivos dessas inovações, o fato é que as possibilidades de manejo de tais técnicas, permite a quem as utiliza a decisão da finalidade a qual se destinará o meio empregado. Assim, boa parte das ameaças a que estamos expostos provém das decisões que outros cidadãos adotam no manejo dos avanços técnicos: “riesgos más o menos directos para los ciudadanos (como consumidores, usuarios, beneficiários de prestaciones públicas, etc.) que derivan de las aplicaciones técnicas de los desarrollos en la industria, la biología, la genética, la energía nuclear, la informática, las comunicaciones, etc. (SILVA SANCHÉZ, 2001, p. 27).
Percebe-se, pois, que essas inúmeras transformações sociais atingem o modo de agir do indivíduo, mormente, o agir delituoso. Decerto, tal complexidade social exige respostas pontuais do direito penal às emergentes modalidades delituosas, as quais parecem não ser suficientes no controle da violência.
Dito de outro modo, as ciências penais do presente, precariamente preparadas para atender as demandas do ontem, encontram-se também diluídas perante o futuro veloz acompanhado de novas formas de criminalidade, que exigem adequada praticidade da reprimenda e um maior viés preventivo, características, a priori, destoantes dos fundamentos liberais iluministas.
Nessa linha, ganham espaço diferentes observações sobre o direito penal, a fim de lhe garantir postura mais prática e efetiva contra esses novos modelos de criminalidade (organizada, crimes econômicos, ambientais, terrorismo etc.). Não se trata mais puramente de atender a aspirações teóricas, mas de abater significativamente essa nova onda de riscos oferecidos à sociedade.
Frente a tal macrocriminalidade, o Estado (diga-se, o direito penal) vê-se em busca de um equilíbrio entre o garantismo e a eficiência (eficientismo), mas se apressa para regular tantas demandas, com a hipertrofia legislativa, ocasionando tipos penais amplos, abrangentes, para configurar um “direito penal de gestão punitiva de riscos gerais” (CRESPO, 2006, p. 66), atropelando-se garantias individuais e abrindo espaço a uma administrativização de sua existência.
Nesse ritmo frenético, olvida-se um dos pilares do direito penal liberal, a intervenção mínima (subsidiária e fragmentária). Isso porque a realidade apresenta uma dogmática sobrecarregada de tipificações de perigo abstrato, crimes vagos e constante sobreposição de legislações penais simbólicas. Na prática, o sistema funciona por se disfuncional: torna-se mitológico, distante de conseguir solucionar adequadamente os conflitos e por iludir a sociedade com o slogan de que a lei penal máxima e severa mina a criminalidade.
Sendo assim, pode-se dizer que dar uma resposta imediata às emoções da sociedade é anseio errôneo, sendo nessas situações apressadas que o direito penal do inimigo extrai sua razão de ser. Isso significa que os avanços das modalidades criminosas não justificam uma fuga às garantias processuais para que se legitimem arbitrariedades inconcebíveis em um Estado de Direito, expressão maior da intenção de superar as máculas existentes na história mundial (a exemplo, recorde-se do nazismo).
É bem compreensível que o Estado esteja em uma busca implacável pela eficiência de suas instituições, porém, deve-se ter cuidado pelo que se entende por eficiência. Isso porque um Estado eficiente não é simplesmente o que pune com exatidão na medida das reclamações sociais. No entanto, é aquele que estabelece claramente e respeita seus próprios princípios e fundamentos, porque são essas garantias, que farão a defesa do indivíduo ante a “onipotência” do “Leviatã”, limitando a atuação do poder punitivo.
Porém, o que se vê, é que para atender clamores dos leigos, insuflados acriticamente pelos meios de comunicação em massa e a pretexto de reforçar a confiança nas instituições penais, legisla-se acerca desta e daquela situação. Criam-se acervos de leis, sem efetividade, assumindo o direito penal, na condição de gestor de riscos, um caráter simbólico. Assim, dá-se o simbolismo: determinado dispositivo legal, minimamente dotado de eficiência (aplicação), ganha validade (eficácia) no ordenamento, como se apenas sua promulgação bastasse para resolver o problema social em questão.
As normas penais que contextualizam o direito penal pós-industrial caracterizam-se ainda pela velha moda do endurecimento das penas, em um retrocesso com relação às últimas reformas iluministas, que aconteciam no sentido da humanização, seguido pela descriminalização ou sanções alternativas. Observa-se, pois, que o simbolismo e punitivismo são nitidamente a mesma face de um direito penal autoritário. Como consectário, as normas penais, buscando construir a imagem de uma identidade social, não apenas definem novos tipos penais, mas também indivíduos (autores de fatos típicos), que não deverão integrar esta identidade, sendo, portanto, excluídos.
Assim, erige-se a avassaladora expansão do âmbito do punível em flagrante contradição com a pretensão de reduzir o direito penal. A expressão direito penal mínimo perde-se como tópico desprovido de conteúdo concreto na práxis penal. Nasce um “novo” direito penal, chamado por alguns de direito penal acessório, dirigido a proteger novos bens jurídicos característicos da sociedade pós-industrial. Sobrepõem-se, portanto, as exigências de intervenção penal procedentes de uma sociedade caracterizada modernamente como uma sociedade de riscos. Esta apresenta uma série de peculiaridades, entre as quais a substituição dos contextos de ação individuais por contextos de ação coletivos, nos quais o contato interpessoal é substituído por uma forma de comportamento anônima e estandardizada.
Para Prittwitz há uma irritante discordância entre o programático de um direito penal submetido a limites e o dia a dia de uma criminalização crescente, coisa intolerável em um momento no qual se reconhece sabidamente a “incapacidade” do direito penal para solucionar problemas. Saber se o direito penal se encontra por essa razão ante uma situação “insustentável” ou simplesmente ante uma “nova” situação, que impele a uma mudança, é o núcleo das discrepâncias entre duas metodologias diferentes na hora de examinar o direito penal, que têm a ver, ao mesmo tempo, com pontos de partida epistemológicos distintos: o primeiro, de caráter personalista, e o segundo, de caráter funcionalista.
Nesse contexto, emerge a constante necessidade de invenção de um inimigo, o que se refere prioritariamente a fatores de funcionamento do Estado punitivo e suas restrições. Destarte, “el hecho de saber hasta donde llega el poder del estado frente al ciudadano es problema que no puede tener naturaleza diferente de la política” (ZAFFARONI, 2006, p. 118). Quer dizer, “todo Derecho penal responde a una determinada Política criminal, y toda Política criminal depende de la política general propia del Estado a que corresponde” (MIR PUIG, 2006, p. 3).
Desse modo, assevera-se que o modelo do inimigo no sistema penal, vale-se de uma dicotomia no poder repressor: de um lado, um sistema tradicional, de controle da criminalidade, por outro lado, um excepcional, de repulsa aos inimigos. Segundo Jakobs esse modelo já era “utilizado por boa parte dos filósofos da modernidade, em especial os contratualistas” (JAKOBS, 2005, p. 25). Assim, o autor embasa sua teoria em parte, em filósofos contratualistas (Rousseau, Hobbes etc.), e também, na teoria dos sistemas (de Niklas Luhmann).
Como a pretensão é apenas entender o surgimento do paradigma da inimizade, não focaremos neste momento da teoria dos sistemas[4], mas nos contratualistas. Destarte, Jakobs principia com a teoria do contrato social de Rousseau, ou seja, com o fundamento de que o delinqüente, infringindo o contrato, não deverá contar com os benefícios deste. Assim, “quem opõe-se ao direito social perde seus status de parte do estado, configura-se como um inimigo, posto que se declara, através de seus malfeitos, em guerra com ele” (ROUSSEAU, 1999, p. 44.). Também, o autor com base em Fichte afirma que “o que descumpre o contrato cidadão, quando o esperado seria sua observância, perde todos seus direito, sofrendo uma morte civil”, por assim dizer (JAKOBS, 2003, p. 26-27).
Observa-se que tanto em Kant e Hobbes o estado de natureza gera insegurança e quem não se submete ao pacto social coloca em perigo a manutenção do Estado. É o pacto social que garante segurança para por fim ao estado de guerra permanente, não tendo origem ética, altruísta, mas se funda no medo e no instinto de sobrevivência.
Dessa maneira, pode-se dizer que tais teóricos defendem a dualidade do sistema punitivo, admitindo a existência de inimigos, os quais deveriam ser tratados de forma diversa, obviamente sempre com mais rigor. Ainda, defendem um modelo autoritário de Estado, no qual o “soberano não pode ser questionado, ou seja, dentro do qual não se admite um direito de resistência à opressão estatal” (ZAFFARONI, 2006, p. 126).
Especificamente em Hobbes o inimigo representa somente aquele que resiste ao soberano. O Estado teria legitimidade para infligir qualquer mal contra ele, o bellum omium contra omnes. Já Locke afirmou que o estado de natureza não é estado de guerra permanente, porque seria “regido por um direito natural que se impõe a todos, e com respeito à razão, que é este direito, a humanidade aprende que, ninguém deve lesar o outro em sua vida, sua saúde, sua liberdade ou seus bens” (LOCKE, 2006, p. 84). O que diferencia o modelo de Hobbes do Locke é que, para o primeiro, quem se rebela é sempre um inimigo. Já para último, o cidadão que se rebela contra o poder tirano está no exercício de seu direito, que precede à própria formação do Estado (SANTOS, 2009).
Nota-se que modelo de Estado hobbesiano constitui-se pela preponderância dos interesses do Estado, não necessariamente interesse público, frente aqueles individuais. Essa predominância de interesses refere-se a chamada razão de Estado: “princípio normativo da política que faz do bem do Estado, identificado com a conservação e o aumento de sua potência, o fim primário e incondicional da ação de governo” (FERRAJOLI, 2004, p. 847). Esta pode até justificar uma decisão transgressora do direito, se necessária ou emergencial, isto é, vale o “primado de uma razão de circunstâncias sobre a razão jurídica” (PENALVA VITA, 2005, p. 234). Percebe-se que tal razão inspira ainda “a práxis, senão a teoria, do direito penal político: não somente sob o plano do direito substancial (…), mas ainda sob o plano do direito processual” (FERRAJOLI, 2004, p. 847).
A memória do direito punitivo é farta de ilustrações que evidenciam indivíduos oficialmente perseguidos e o modo como tais caças justificaram ideologias estatais repressivas. Sendo assim, essa relação conflituosa entre o Estado e seus inimigos não é inovação no contexto jurídico-penal. Todavia, cabe-nos verificar o significado de inimigo à luz do Estado democrático de direito.
Compreende-se pelo modelo estatal sobredito aquele que, entre outros requisitos, respeita o princípio da legalidade, incluindo a obediência a garantias mínimas, o que resulta em “vinculações e limitações formais (submissão à lei, jurisdicionalização dos conflitos), e também materiais (definição de conteúdos por meio do princípio da dignidade humana, igualdade, entre outros)” (FERRAJOLI, 2000, p. 65). Desse modo, o Estado de direito pauta-se pelo garantismo penal, de modo a salvaguardar os direitos fundamentais, garantias penais e processuais penais dos indivíduos que cometem infrações.
Entretanto, para justificar sua teoria, Jakobs propugna um sistema punitivo paralelo ao garantista, que servirá para o combate ao inimigo, e, segundo o autor, importante na manutenção do Estado, como se fosse uma espécie de legítima defesa para o Estado de direito. Mas, frisa o funcionalista, desde que “seja separado do destinado ao cidadão, para evitar intromissão nos institutos próprios de um direito penal do inimigo, insustentáveis frente ao estado de direito” (2005, p.49).
Este paradigma da inimizade representa um contrassenso à luz do garantismo penal, reflete uma tendência policialesca e refuta a própria essência do Estado de direito. Trata-se de uma “ruptura das regras do jogo que é, de fato, invocada para a tutela das mesmas regras do jogo”, e, dessa forma, “o Estado de Direito é defendido pela sua negação” (FERRAJOLI, 2004, p. 852). Sendo, portanto, inviável essa tese de dualidade de sistemas repressivos, não havendo possibilidade de coexistência entre razão de Estado eficientista, excepcionada apenas aos inimigos, e outra, garantista para salvaguarda dos tidos cidadãos, em um Estado de direito, que prima, dentre outros, por igualdade e dignidade humana.
O direito penal do inimigo acarreta a geração de “poderes e centros de poderes, não dispostos a serem desmobilizados, sobretudo, uma subcultura policialesca informada, prevalentemente, pelos valores pragmáticos de segurança e eficiência” (FERRAJOLI, 2004, p. 870). Não sendo propriamente um direito, mas uma “contradição em seus termos”, pois o Direito Penal do inimigo “só integra nominalmente o sistema jurídico-penal real” (MELIÁ, p. 54). Possui juridicidade precária, assemelhando-se mais a um sistema organizado de coação.
Pelo exposto, pode-se vincular o fenômeno da expansão, caracterizado pela administrativização do direito penal, a regionalização/globalização do direito penal e a progressiva desconstrução do paradigma liberal do direito penal e o direito penal do inimigo. Silva Sánchez (2001) estudou o assunto relacionando-o com as seguintes variáveis: criação de novos “bens jurídico-penais”, ampliação dos espaços de risco jurídico-penalmente relevantes, flexibilização das regras de imputação e relativização dos princípios político-criminais de garantia, e assumindo como via de solução a existência no futuro de um “direito penal de segunda e terceira velocidade”.
Certamente a regulamentação desses novos âmbitos pressupõe juízos de valor normativos, e, por isso, decide-se regulamentar os setores de riscos socialmente mais significativos como a energia nuclear, o meio ambiente, as investigações biomédicas, a produção alimentícia etc., o que traz como consequência a utilização de leis penais em branco nesse âmbito (CRESPO, 2008). Esse fenômeno, que pode ser denominado globalmente como administrativização do direito penal, caracteriza-se, como já se mencionou, pela combinação de fatores como a introdução de novos objetos de proteção, a antecipação das fronteiras da proteção penal e a transição, definitiva, do modelo de delito de lesão de bens individuais, para o modelo de delito de perigo de bens supra-individuais. Eis a semelhança com o direito penal do inimigo e seu viés eficientista.
A chave da questão radica no entendimento do conceito de bem jurídico, como assevera Moccia (1997): bem jurídico sofre uma crise que questiona a sua função mais significativa, a de delimitar a intervenção penal, e isso como consequência de entender legítimo a incriminação de condutas consideravelmente distantes da do “direito penal liberal” ao “direito penal do inimigo”. Assim, o direito penal, ao converter-se em grande parte em um direito de gestão punitiva de riscos gerais e não se limitar, como vinha fazendo, a reagir perante um fato lesivo individualmente delimitado, corre o risco de “administrativizar-se” e perder a sua configuração garantista.
Inobstante a constatação supra, tal fato apresenta uma vantagem: a observação de anomalias do sistema punitivo (situações de desrespeito às garantias instituídas), o que permite edificar um Estado de Direito efetivo, sem exceções às suas regras constituintes, mesmo sob o argumento de isso seria necessário para protegê-lo integralmente, frente aos riscos provocados por seus supostos inimigos.
Em suma e diferentemente do que o senso comum dissemina, a caça aos inimigos distancia-se de uma proposta de totalitarismo propriamente dito. Mas, aproxima-se de um câncer, autofágico por essência, que acomete as entranhas dos Estados democráticos e devora os institutos frutos de conquistas humanísticas. Insuflado por políticas criminais sectárias, o rechaço de inimigos é, por isso, um risco à existência do Estado de Direito.
A proposta do direito penal do inimigo sem dúvida reflete uma resposta às novidades jurídico-penais que permeiam a atualidade. De fato, há que se reconhecer um enrijecimento de diversas regras punitivas em legislações de todo o mundo. Assim, em primeiro momento, é de se pensar que o direito penal do inimigo inicia como uma sincera constatação da realidade. No entanto, isto não indica que esta realidade seja desejável. Portanto, um ponto de vista político-criminal, parece que na ciência penal houve certo consenso nas últimas décadas em torno da ideia de que o direito penal é a forma mais grave de intervenção do Estado frente ao indivíduo, que tem para este último algumas consequências, altamente estigmatizadoras, e que por isso é preciso restringir e justificar ao máximo sua intervenção (CRESPO, 2006).
Percebe-se, por tudo, que o fenômeno da expansão insere-se claramente em uma órbita geral de restrição ou na melhor das hipóteses, de “reinterpretação” das garantias clássicas do direito penal, devido a uma pluralidade de circunstâncias que estão vinculadas, como a natureza dos bens jurídicos que pretendem ser protegidos (bens jurídicos supra-individuais), a técnica de tipificação utilizada (delitos de perigo abstrato) e a autoria nesse âmbito (criminalidade empresarial, através de organizações de poder, de caráter transnacional). Logo, dentro dessa seara insere-se a construção da teoria do direito penal do inimigo, reflexo do expansionismo penal e exemplo de uma política penal meramente eficientista, contrária às garantias do Estado de Direito.
2 REFLEXOS DO DUALISMO DIREITO PENAL DO INIMIGO E DIREITO PENAL DO CIDADÃO NAS CIÊNCIAS PENAIS INTEGRADAS: DE UMA DOGMÁTICA PENAL EXCESSIVAMENTE PUNITIVA A UMA POLÍTICA CRIMINAL SIMBÓLICA
A teoria do direito penal do inimigo inventa uma dicotomia improvável a um mesmo sistema jurídico-penal: a coexistência entre um direito penal do inimigo, para os que descumprem sua função e competência social, e o direito penal do cidadão, aquele que não persiste na prática de condutas que ignoram o sistema punitivo. Por isso, a pretensão deste ponto é demonstrar algumas consequências, nada alentadoras, dessa dualidade para a dogmática penal e política criminal, dentre elas: a promoção de punições antecipadas e extremadas, a despersonificação do homem e o simbolismo dessas novas políticas criminais mais excludentes e estigmatizantes, contrárias ao espírito do programa criminal liberal.
Essa discussão entre direito penal do inimigo e do cidadão será perspectivada pela concepção do Estado de Direito, como já se mencionou antes. Isso porque a teoria do inimigo não pode ser discutida em um Estado totalitário, pois em tal caso, “toda legislação está eivada de sintomas de guerra contra os inimigos” (GRACIA MARTIN, 2005, p. 3). Dessa forma, o cenário de desenvolvimento deste debate são os Estados democráticos de direitos, é neles em que há garantias e liberdades fundamentais conquistadas por meio de décadas de lutas e, por isso, nutre-se certo rechaço às mesmas.
Primeiramente, cumpre lembrar que a parte de intersecção entre os conceitos direito penal do inimigo e direito penal do cidadão é a sanção. A coação instrumentalizada no direito penal representa a negação da conduta criminosa e a reafirmação da validade na norma, no sentido de que, inobstante o comportamento delituoso, o ordenamento segue vigente, estabilizando, assim, as expectativas normativas.
De se vê que, com fulcro na teoria dos sistemas, no tocante às expectativas normativas, Jakobs defende não ser suficiente a consciência do dever-ser. O indivíduo precisa ter uma garantia cognitiva de que determinada norma não será ferida pelos demais. Não basta apenas ter o direito, mas o convívio social estável necessita da garantia de que aquele direito não será vilipendiado. Jakobs (2003, p. 37) aduz que “sin uma suficiente seguridad cognitiva, la vigencia de la norma se erosiona y se convierte en una promesa vacía, vacía porque ya no ofrece una configuración social realmente susceptible de ser vivida”.
A partir daí, o autor desenvolve a diferença entre o cidadão e o inimigo. Jakobs (2003, p. 35) ilustra: “un sobrino mata a su tío, a quien está llamado a suceder, para acelerar la herencia. Ningún Estado sucumbe por un caso de estas características. Más aún, el hecho no se dirige contra la permanencia del Estado, y ni siquiera contra la de sus instituciones”. Nesse sentido, o cidadão é aquele que, apesar da prática de um crime, continua oferecendo à sociedade a garantia pessoal de que sua conduta não perdurará, através do cumprimento da pena. Em contrapartida, existe determinada classe de indivíduos que tem por princípio o pensamento de contrariar a ordem estatal.
Silva Sanchéz (2001, p. 164) define os inimigos como “os que de modo duradouro e não incidental, por seu comportamento, profissão, ou ingresso em determinadas organizações, não garantem a mínima segurança cognitiva, manifestando esse déficit por seu comportamento social”. Segundo os funcionalistas, é o que se pode observar em casos de tráfico de drogas, de pessoas, de armas ou organizações terroristas, por exemplo. Há certa profissionalização no agir delituoso, demonstrando que o indivíduo não se submete as mesmas normas que os cidadãos, e suas organizações estruturadas deixam claro que ali não vigora o poder estatal. A diferença reside no nível de aperfeiçoamento em realizar o feito delituoso, e sobretudo, a sua “pertinência a uma organização, e sua atividade a serviço dela; estes seriam os dados com os quais lidaria o direito penal do inimigo” (GRACIA MARTÍN, 2005, p. 6).
Mediante seus atos, estes inimigos ignoram a legitimidade do ordenamento jurídico, e objetivam a sua ruína, colocando em risco a segurança social institucionalizada através do Estado. É neste ponto, então, que se avalia a periculosidade de tais indivíduos: na medida em que sua conduta delituosa se torna mais habitual e especializada, o perigo por ele oferecido eleva-se. Assim, conforme Jakobs (2003, p. 51-54), “sólo es persona quien ofrece una garanfia cognitiva suficiente de un comportamiento personal”, o que decerto não é o caso dos indivíduos antes definidos.
Com relação aos cidadãos, como já afirmando, o direito presta-se a estabilizar as expectativas normativas e a pena reafirma a vigência de uma norma. Há de fato uma ordem normativa, regida por princípios que permeiam toda a estrutura social. Em contraponto, contra o inimigo, atua um direito penal de guerra, que tem como finalidade eliminá-lo da sociedade. Neste último, o Estado está na posição de combate contra o perigo, em legítima defesa da segurança dos cidadãos. “Quien por principio se conduce de modo desviado no ofrece garantía de um comportamiento personal; por ello, no puede ser tratado como ciudadano, sino debe ser combatido como enemigo”. Tal guerra tem lugar, continua o autor “con un legítimo derecho de los ciudadanos, en su derecho a la seguridad; pero a diferencia de la pena, no es Derecho también respecto del que es penado; por el contrario, el enemigo es excluido” (JAKOBS, 2003, p. 55).
Sendo assim, há uma clara defesa no sentido de que incluir o inimigo na classe de delinquentes cidadãos é admitir uma mescla de direito de guerra dentro do direito penal. Com esta afirmação, o direito penal do inimigo converte-se um direito de guerra, contra aqueles que não são pessoas nem cidadãos, a fim de preservar a segurança social. Tal instituto distancia-se do direito penal do cidadão, à medida que ignora princípios e garantias com o único objetivo de erradicar o indivíduo perigoso da sociedade. Lembre-se dos acontecimentos do 11 de setembro de 2001, da batalha contra o terrorismo que assola o globo em tempos modernos, acontecendo à margem de um direito penal e processual penal ordenado, para dar lugar a um procedimento, porquê não dizer, bélico: “La ambigua posición de los prisioneros –¿delincuentes? ¿prisioneros de guerra?– muestra que se trata de la persecución de delitos mediante la guerra”. (JAKOBS, 2003, p. 45-46).
Assim, as medidas adotadas por certos países, a exemplo dos Estados Unidos da América naquele acontecimento, corroboradas por outros países aliados que até então não tinham sofrido qualquer atentado terrorista comparável, aplacaram as fontes de terrorismo com violência, inclusive assumindo a morte de inocentes. Ora, conforme Gracia Martín (2005, p. 18) preleciona: mientras que un exceso de pena puede ser considerado como hostilidad cuando se aplica a un ciudadano, en el caso de los enemigos está justificado el daño desproporcionado, ya que el mismo no es infligido por vía de castigo, sino por derecho de guerra.
A correção do dano infligido pelo inimigo resulta em sua eliminação da sociedade, e ocorre mediante um direito de guerra, com principiologia e processualística diferenciada do direito, por assim dizer, normal. Porém, o modelo liberal sobre o qual se constrói uma estrutura jurídico-penal é o direito penal do fato, que privilegia a ideia da liberdade como direito fundamental, pois, evita interferir em atos anteriores à ação propriamente dita. Contrariamente, a proposta do direito penal do inimigo considera precipuamente a esfera interna do indivíduo para classificá-lo como inimigo, promovendo punições antecipadas e desproporcionais.
Destarte, o direito penal pune antecipadamente aqueles considerados inimigos, em atos preparatórios ou por pura manifestação de pensamento, o que denota um legítimo direito penal do autor. Sem dano efetivo, apenas pela sua personalidade, tendência de caráter ou adesão a determinada ideia, o inimigo já é identificado e punido. Meliá (2003, p. 102) descreve esse fenômeno, concluindo que “mediante sucesivas ampliaciones se ha alcanzado un punto en el que ‘estar ahí’ de algún modo, ‘formar parte’, de alguna manera, ‘ser uno de ellos’, aunque sólo sea en espíritu, es suficiente”.
Isso tudo resulta em um direito mais formalista, porque distante do seu sentido material, de tutela de bens jurídicos relevantes para a sociedade; relativiza-se, portanto, o princípio de proteção do bem jurídico que teve o mérito de racionalizar e restringir o poder punitivo e a criminalização de condutas.
Como se não bastasse, a presença do significado do inimigo ocasiona uma maximização das punições. As sanções são inflacionadas, extremas, e, enquanto elemento racionalizante do direito penal, é solapada em claro afronte ao princípio da proporcionalidade com relação à ofensividade/lesividade. Assiste-se a isolamentos por períodos longos (caso de prisioneiros tidos como terroristas, criação do regime disciplinar diferenciado), às vezes indeterminados (medidas de segurança), nos quais o único objetivo é inocuizar o indivíduo hostil.
Infere-se que para o funcionalismo normativo-sistêmico o princípio de proteção dos bens jurídicos não é pressuposto suficiente para a definição do momento a partir do qual se legitimaria a incriminação de uma conduta. Além do que o sentido de sanções desproprocionais é restringido: não são representativas de uma função comunicativa, porque não tem significado teleológico definido. Constitui, de fato, pura coação, uma manifestação desmesurada do poder punitivo. Logo, nos dizeres do próprio Jakobs “a coação não pretende significar nada, mas quer ser efetiva, isto é, que não se dirige contra a pessoa em Direito, mas contra o indivíduo perigoso” (2005 p. 22). Portanto, a reprimenda dirigida ao inimigo não tem significado para os demais, nem mesmo função de reintegração.
Outro sintoma problemático desse paradigma da inimizade para a dogmática penal concerne ao tratamento do inimigo como res, porque não oferecem mínima garantia cognitiva. Reifica-se o indivíduo com a justificativa de sua própria exclusão, provocada pelo fato de o delinquente se colocar em guerra contra o Estado. Assim, dissemina-se a existência de não pessoas, criando um tratamento do sistema penal meramente como alvos de coação, o que confronta a tradição liberal que garante direitos subjetivos, como limite ao ius puniendi.
Jakobs, com base na teoria dos sistemas sociais (Niklas Luhmann), utiliza a distinção pessoa (homem em interação comunicacional) e indivíduo (homem com suas peculiaridade, ensimesmado). Dessa maneira, há caraterísticas individuais, não pertencentes propriamente ao conceito de pessoa, mas ao indivíduo ou sistemas psíquicos.
A competência e a igualdade são requisitos da concepção de pessoa. Aquele que não é igual aos demais, no âmbito de uma sociedade, não é pessoa, ao menos em um sentido jurídico. Portanto, não é competente. Ser pessoa “(…) é ter a aptidão de provocar nas demais pessoas a espera confiada no próprio desempenho social, sem o quê se faria impossível a interação social” (ALBUQUERQUE, 2006, p. 144). Do sobredito insurge a seguinte crítica: no funcionalismo sistêmico, ser pessoa equivale a ser criminalmente culpável. A pena, por sua vez, funciona como uma reação à quebra da expectativa decorrente da conduta criminosa. Dirige-se talqualmente a toda a coletividade, para reafirmar o sentido da norma lesionada.
Nota-se um excessivo destaque ao argumento de que a sociedade é a comunicação, de que “un sistema social no está constituído por personas, sino por acciones” (LUHMANN, 1998, p. 140), o que despreza aspectos particulares, ínsitos à pessoa, inerente a sua esfera individual. Desse modo, a “sociedade e seus subsistemas (…) não se compõem de indivíduos, mas de comunicações: a ideia de sujeito individual como centro de todo sistema se esfuma por completo” (JAKOBS, 2005B, p. 48), valorando-se tão só as comunicações advindas das condutas. Portanto, dá-se um esvaziamento do conteúdo individual de pessoa, o que a despersonaliza para sistema penal.
Jakobs segue a visão luhmanniana de diferenciação e a independência entre os sistemas sociais, no sentido de conceber o sistema jurídico diferenciado, a exemplo das normas morais e éticas etc. E por ser o sistema autopoiético (autorreferencial/recursivo), vislumbram-se desde já os papéis sociais, ou seja, quais as condutas esperadas das pessoas dentro de um contexto social. Todavia, nas sociedades ditas periféricas, o sistema jurídico funciona de modo anômalo, utilizando-se de elementos de outros sistemas, como o político, o econômico etc. Por isso, No pensamento de Marcelo Neves, há o antitético da autopoiese, a alopoiese, a influência externa na decisão dos problemas. Logo, torna-se inviável considerar a comunicação como único elemento do sistema e, por conseguinte, do conceito de pessoa.
Infere-se, que pelo funcionalismo normativo-sistêmico a pessoa é tida como dado objetivo, por meio de papéis sociais/competências funcionais, a partir do resultado comunicacional decorrente de sua conduta. Paradoxalmente, dados de realidade compõem o conceito de inimigo. Afinal, se ocorre a punição de atos anteriores à lesão do bem jurídico, o sistema punitivo nitidamente só pode estabelecer quem são inimigos com base em critérios pessoais e não a partir de um dado normativo que não ocorreu.
Partindo para uma crítica de tal funcionalismo do ponto de vista de política criminal, visualiza-se, com a adoção do inimigo, políticas autoritárias que tomam o sistema punitivo como prima ratio, fundando-se na fé inquebrantável de que o modelo penalógico combater eficazmente o inimigo. A consequência, como já se via, é a flexibilização de garantias estatuídas.
O que se vê é uma demasiada confusão na integração das ditas ciências criminais. Isso porque a política criminal tem a função de empreender uma correção valorativa na dogmática jurídico-penal, de modo a adaptar essa última ciência aos problemas de natureza política, os quais também devem ser seu objeto. Outrossim, esse preceito supõe que a sociedade é homogênea, ou seja, que nela não existem sérias divergências axiológicas (FREITAS, p. 814). O que não ocorre na realidade social permeada de conflito de valores, de constantes divergências ideológicas, de poder, e políticas do Estado que formula a política criminal.
Apesar disso, a teoria do bem jurídico e o modelo de crime como ofensa a um bem jurídico se impõem, como exigência constitucional, independentemente de eventuais interesses político-criminais contrários (D’AVILA, 2008, p. 483). Logo, os institutos dogmáticos que se relacionam com direitos e garantias fundamentais (o direito penal de conteúdo liberal, grande parte da estrutura da teoria do crime e da pena) não podem se submeter a políticas criminais que as descaracterizem.
A partir disso, reforça-se a manipulação do simbolismo penal, fundado no que Bauman denominou de medo secundário, o difuso, motivado pela incerteza, pois “o que mais amedronta é a ubiqüidade dos medos” (2008, p. 9). Esse medo subjetivo norteia o sistema punitivo uma resposta meramente simbólica aos anseios generalizados da sociedade por mais segurança, sem resolver concretamente os perigos que geram os sentimentos de temor.
Dessa maneira, as políticas criminais simbólicas abandonam seus próprios fins, atinentes às garantias humanas do direito penal liberal. E “esta función simbólica de las normas penales se caracteriza por dar lugar, más que a la resolución directa del problema jurídico-penal (a la protección de bienes jurídicos), a la producción en la opinión pública de la impresión tranquilizadora de un legislador atento y decidido” (SILVA SÁNCHEZ, 2001 p. 305).
A reação penalógica passa a ser único instrumento à criminalidade. Ocorre nítido desvirtuamento das finalidades do sistema punitivo: não se busca mais objetivos fundados no Estado de Direito, prevalece a lógica simplista de que os fins justificam os meios, significando que os direitos individuais e garantias poderiam ser sacrificados, em prol de uma busca incessante por condenações criminais meramente simbólicas. Vence a equívoca razão eficientista, resultante do ceticismo com relação à capacidade do Estado de prevenir eficazmente a delinquência e do desmonte do Estado de bem-estar, incapaz de “implementar políticas econômicas, o que contribuíram para o quadro de exclusão social” (MOCCIA, 1997, p. 305).
Ademais, esse simbolismo vincula-se a uma espécie de demonização de certos grupos sociais, uma vez que não apenas “identifica um determinado fato, sobretudo com um específico tipo de autor, que é definido não como igual, mas como outro. Isto é, a existência da norma penal persegue a construção de uma determinada imagem da identidade social” (MELIÁ, 2003, p. 65). Passa-se, assim, a utilização irrazoável de medidas emergenciais, o que promove uma aculturação do sistema punitivo, uma não integração das chamadas ciências criminais.
Em suma, as políticas criminais na linha do direito penal do inimigo promovem uma relativização de direitos individuais e garantias, sendo, portanto, ilegítimas e devendo ser refutadas, juntamente com a materialização da diferenciação sectária entre os cidadãos, merecedores dos direitos estatuídos, e inimigos, cujas condutas não lhe seriam imputados por meio de um processo legal devido.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A reconstrução das ciências penais modernas passa por diversas problemáticas. O seu expansionismo acrítico, ou propositalmente, inventor de novas modalidades criminosas carece de fundamentos sólidos e compatíveis com o pensamento da ilustração.
Reafirma-se a virada metodológica na epistemologia penal, uma vez que se retira o ser humano do epicentro da ciência penal, constituindo, por assim dizer, uma tendência de teoria pós-proteção de bem jurídico. Essa, despreocupada com a proteção efetiva do bem jurídico e da consideração do homem enquanto livre e sujeito de direitos. Perde-se de vista o marco político-criminal de humanização das ciências criminais integradas ou a sua consideração, relembrando Lizst, como Carta Magna do delinquente.
Facilmente se chega a comprovação de que não há racionalidade na utilização do poder-dever de punir, sobretudo com o paradigma da inimizade. O Estado não se limita no rechaço dos indesejáveis, cria, a todo tempo, punições com feições cada vez mais drásticas.
Dessa forma, percebeu-se que a teoria de Jakobs demonstra de maneira incômoda o quanto a concepção tradicional de direito penal é insuficiente para abarcar os novos moldes de criminalidade. Porém, sua proposta ante a vulnerabilidade de um direito penal liberal rompe com um grande histórico de lutas e conquistas, negando estas últimas para dar espaço ao chamado direito penal do inimigo. Perde-se de vista o marco político-criminal da humanização, pulverizado, ao sabor da demagogia política e espetáculo midiático, pelo recrudescimento do sistema punitivo.
Assim, observou-se que a consideração do direito penal do inimigo possui relação direta com a fragmentação de princípios e garantias amplamente reconhecidas em sistemas constitucionais, a partir desse viés garantias com efeitos meramente estético. Seu discurso central, negação da condição de indivíduo, fere frontalmente o grande corolário do Estado Democrático de Direito: a dignidade da pessoa humana.
As garantias do direito penal são premissas protetoras, sobretudo, dos interesses do imputado. Se ao Estado desprezar essas regulações, fatalmente legitima-se a discricionariedade na aplicação deste ou daquele princípio, desvirtuando o fim de tais instrumentos. Aliás, basta relembrar os obscuros anos de ditadura no Brasil para concluir as arbitrariedades que podem ser cometidas quando o Estado se permite ignorar tais formalidades em prol de um bem-estar social, coletivo ou em norma da (incógnita) segurança pública. Logo, a negação ao garantismo torna o direito penal puro discurso, produto mercadológico, eleitoreiro, publicitário ou repetitivo em meio acadêmico.
O Direito Penal, atualmente, vem assumindo uma postura intolerável de gestor de riscos. Porque não se deve atribuir a ele a responsabilidade pelos problemas sociais, nem tampouco o papel de educador. O direito penal não pode perder seu caráter de ultima ratio, a ameaça de que, do contrário, o Estado permaneça em postura de guerra.
Notou-se com Jakobs surge o inimigo, como um perigo a ser combatido mediante o direito penal próprio, não o retrospectivo que conhece penas proporcionais e que respeita as garantias processuais do indivíduo. Contra esse inimigo, deve ser utilizado um aparato que venha a impedir riscos futuros, e que, para tanto, pode ignorar as garantias típicas de um Estado Democrático de Direito.
Sendo assim, o direito penal do inimigo repousa sobre a subjetividade do que se queira dizer com “inimigo/perigo”. Ora, as emoções da sociedade seriam, certamente, um bom indicativo de tal qualidade, se não fosse o fato de que, através da mídia, os conceitos que a população pode formar sobre determinada situação, indivíduo etc., são altamente manipuláveis. Então, não é incoerente afirmar que, se o direito penal se presta a reprimir inimigos de maneira diferenciada daquela com a qual se pune cidadãos, baseado precipuamente no perigo que determinado indivíduo oferece, tencionando estabilizar as expectativas sociais, então, também o direito penal estará sendo manipulado.
Verificou-se uma armadilha no pensamento de Jakobs: que, em nome da paz social, o próprio Estado pode valer-se do direito penal do inimigo para cometer arbitrariedades inconcebíveis dentro do direito penal do cidadão, manipulando determinada situação para tornar conveniente as ações típicas do direito penal do inimigo. Como reflexo dessa teoria, a dogmática penal edificou criminalizações antecipadas, extremadas e desproporcionais. Os pressupostos materiais mínimos para a sua legitimidade perdem força, sendo minados pela caça aos inimigos.
Negou-se, pois, o próprio homem e todas as suas circunstâncias, peculiaridades e idiossincrasias resume-se a uma concepção objetivada de pessoa, determinada por standards (papéis e competências funcionais), por comunicações normativas. Houve clara despersonificação da pessoa humana dentro desse desvairado paradigma do inimigo. Tudo isso, para legitimar a criação dos outros, inimigos, distintos dos cidadãos (de bem ou de mal), que serão destinatários de um “direito” diferenciado, o de guerra.
Construiu-se, pois, um “antidireito” penal paralelo ao direito do Estado de Direito. Aquele emergencial, simbólico, eficientista, em resgate ao direito penal do autor, autoritário e excludente. Fere-se a perspectiva garantista e liberal das ciências criminais moderna.
Percebeu-se que ser favorável ou não à modernização do direito penal é questão de pequena importância. Cumpre pensar no quão moderno será o direito penal na obediência às garantias do estado constitucional, para evitar esterilização seletiva de áreas de violação de direitos.
Pelo exposto, acredita-se que não se pode perder de vista o horizonte garantista humanista, como pretende ofuscar a teoria do inimigo, para não se retroceder no caminho de um direito penal arbitrário e com papel de dissimulador das deficiências crônicas do Estado, no que tange às políticas sociais e econômicas.
Ao final, observa-se que o direito penal do inimigo, objeto elaborado ideologicamente, contribui com a manutenção de certo regime de verdade excessivamente punitivista, reproduz mecanismos que fazem circular discursos antigarantistas, em nome de um exasperado pragmatismo da eficiência, que são incompatíveis com os fundamentos do direito penal pátrio e com os fundamentos de um Estado de Direito
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Notas de Rodapé
[1] Doutoranda em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba. Professora Assistente II e Pesquisadora da Universidade Federal da Paraíba. Membro do Grupo NUPOD – Núcleo para Pesquisa dos Observadores do Direito (DGP/CCJ/UEPB).
[2] Mestre em Direito Econômico pela Universidade Federal da Paraíba. Especialista em Direito Tributário pela Universidade Anhanguera. Professora e Pesquisadora da Fesp Faculdades. Membro do Grupo NUPOD – Núcleo para Pesquisa dos Observadores do Direito (DGP/CCJ/UEPB). Membro da Comissão de Estudos Tributários da OAB-PB.
[3] Pós-doutor em Teoria e Sociologia do Direito pelo Centro di Studi sul Rischio della Facoltà di Giurisprudenza dell’Universitá del Salento, Lecce, Italia. Professor Adjunto de Direito da Universidade Estadual da Paraíba. Professor Colaborador no PPGCJ/UFPB. Líder do Grupo NUPOD – Núcleo para Pesquisa dos Observadores do Direito (DGP/CCJ/UEPB). Pesquisador do CNPq e do PROCAD/CAPES.
[4] Em apertada síntese, a teoria dos sistemas visualiza o direito como subsistema existente para reduzir as complexidades sociais, pela generalização das expectativas normativas. Sendo autopoiético, o direito opera com base em seu código referencial interno de lícito-ilícito. E, para favorecer a orientação social, criam-se expectativas normativas, no sentido de que haja confiança entre os indivíduos, o que é contingente, porque “esperar algo de alguém”, pode acontecer ou não. Em caso de defraudação da expectativa normativa, os demais podem continuar a confiar nessa expectativa, porque o sistema social conta com a sanção como forma de orientação social (ou redução de complexidade), ela reafirma a validade de determinada norma. Com sua aplicação, demonstra-se que o conceito válido ainda é o mesmo, logo, a sanção serve para estabilizar expectativas sociais normativas.