Pena de multa para pessoas em situação de rua: necessidade de ressignificar o princípio da proporcionalidade em atenção ao princípio da individualização da pena
Penalty of fine for people in homeless situations: need to re-signify the principle of proportionality in account of the principle of individualization of the penalty
DOI: 10.19135/revista.consinter.00020.22
Recebido/Received 28/09/2024 – Aprovado/Approved 10/02/2025
José Marcos Lunardelli[1] – https://orcid.org/0000-0001-8077-7394
Andréa da Silva Brito[2] – https://orcid.org/0009-0007-1296-6602
Resumo
O presente estudo empreende uma análise dos obstáculos enfrentados pelo sistema de justiça quando este é chamado a decidir casos que envolvam a condenação na pena de multa de pessoas em situação de rua e as vulnerabilidades e desigualdades que as acometem, enfatizando a necessidade de adaptar a aplicação das sanções penais às circunstâncias socioeconômicas dos condenados. A pesquisa propõe uma avaliação crítica tanto da legislação vigente, quanto das práticas judiciais contemporâneas, sustentando a tese de inaplicabilidade da pena de multa a esta população vulnerável. A problematização deste estudo parte do seguinte questionamento: em que medida a pena de multa, tal como prevista e aplicada atualmente, perpetua desigualdades e impede a reintegração social de pessoas em situação de rua? Com base nessa questão, a hipótese de pesquisa sugere que a não aplicação da pena de multa a essa população vulnerável representa uma medida mais equânime e alinhada aos princípios constitucionais de dignidade humana, individualização e proporcionalidade da pena. Para isso, foi utilizada uma abordagem metodológica baseada em revisão bibliográfica narrativa e análise qualitativa de acórdãos, contemplando tanto os principais trabalhos doutrinários quanto as normativas e resoluções pertinentes, com destaque para decisões relevantes das cortes superiores. Tal posição encontra abrigo nos princípios da individualização e da proporcionalidade da pena, bem como nas disposições da Resolução n.º 425/2021 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), nos Direitos e Garantias individuais estampados no Artigo 5º da Constituição da Federal de 1988, na legislação penal e civil brasileira, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, da Organização das Nações Unidas (1949), bem como na análise conjugada de precedentes das nossas Cortes Superiores, como será destacado ao longo do presente estudo.
Palavras-chave: População em Situação de Rua, Pena de Multa, Proporcionalidade, Individualização da Pena.
Abstract
This study undertakes an analysis of the obstacles faced by the justice system when called upon to decide cases involving the imposition of fines on homeless people and the vulnerabilities and inequalities that affect them, emphasizing the need to adapt the application of criminal sanctions to the socioeconomic circumstances of the convicted individuals. The research proposes a critical evaluation of both the current legislation and contemporary judicial practices, supporting the thesis of the inapplicability of fines to this vulnerable population. The problematization of this study arises from the following question: to what extent does the fine penalty, as currently provided for and applied, perpetuate inequalities and hinder the social reintegration of homeless individuals? Based on this question, the research hypothesis suggests that the non-application of fines to this vulnerable population represents a more equitable measure aligned with the constitutional principles of human dignity, individualization, and proportionality of the penalty. To this end, a methodological approach based on a narrative literature review and qualitative analysis of court decisions was adopted, considering both the main doctrinal works and the pertinent regulations and resolutions, with an emphasis on relevant decisions from the higher courts. This position is supported by the principles of individualization and proportionality of the penalty, as well as by the provisions of Resolution 425/2021 of the National Council of Justice (CNJ), by the individual Rights and Guarantees enshrined in Article 5 of the 1988 Federal Constitution, by Brazilian criminal and civil legislation, by the Universal Declaration of Human Rights of the United Nations (1949), as well as by the combined analysis of precedents from our Superior Courts, as will be highlighted throughout this study.
Keywords: Homeless Population, Fine Penalty, Proportionality, Individualization of Penalty.
Sumário: 1. Introdução; 2. A pena de multa; 3. Panorama jurisprudencial e formas de imposição de pagamento da pena de multa; 3.1. Legitimidade para execução da pena de multa; 3.2. O (não) pagamento da pena de multa e a (im)possibilidade da extinção da punibilidade; 4. Consequências da não extinção da punibilidade pelo inadimplemento da pena de multa; 5. Perfil da pessoa em situação de rua e a seletividade penal; 6. A individualização da pena: necessidade de resignificar o princípio da proporcionalidade da pena de multa considerando a pessoa em situação de rua; 6.1. O princípio da proporcionalidade e a pena de multa; 7. Conclusão; 8. Referências.
1 Introdução
Propõe-se uma análise crítica, questionadora e abrangente acerca da legislação e das práticas judiciárias vigentes quanto à imposição da pena de multa para indivíduos em situação de rua, suscitando-se profundas reflexões sobre os princípios de justiça, proporcionalidade e a eficácia das sanções penais impostas a integrantes de um grupo populacional heterogêneo, que possui em comum a marginalização, a extrema pobreza, vínculos familiares fragilizados, a inexistência de moradia convencional regular e a impossibilidade de usufruir direitos básicos estampados na Constituição Federal de 1988.
A problemática abordada neste estudo centra-se na análise crítica da aplicação da pena de multa às pessoas em situação de rua, investigando em que medida essa prática perpetua desigualdades e inviabiliza a reintegração social desses indivíduos. A questão fundamental que norteia a pesquisa é se a pena de multa, conforme prevista na legislação brasileira e aplicada pelo sistema de justiça, se revela um obstáculo à efetivação da cidadania e ao pleno exercício dos direitos fundamentais dessa população em situação de vulnerabilidade extrema. A hipótese levantada sugere que a não aplicação da pena de multa a essa população vulnerável constitui uma medida mais justa e compatível com os princípios constitucionais da dignidade humana, individualização e proporcionalidade da pena. Para embasar essa análise, adotou-se uma abordagem metodológica qualitativa, fundamentada em revisão bibliográfica e análise de acórdãos, considerando a doutrina jurídica relevante, as normas vigentes – com destaque para a Resolução nº 425/2021 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) – e os precedentes das Cortes Superiores. A metodologia qualitativa escolhida permite uma compreensão ampla e crítica do tema, considerando tanto o ordenamento jurídico pátrio quanto os princípios e diretrizes internacionais de direitos humanos, proporcionando, assim, um exame mais aprofundado da adequação das sanções penais às realidades socioeconômicas das pessoas em situação de rua.
Analisa-se o impacto que a impossibilidade do adimplemento da pena de multa gera nesses brasileiros que, uma vez cumprida a pena corporal ou restritiva de direitos, experimentam a negação da cidadania, uma espécie de purgatório social que lhes impossibilita o exercício de direitos básicos, tais como tirar alguns documentos, o direito ao voto, a inscrição em programas sociais, a baixa em anotações criminais na folha de antecedentes, a obtenção de emprego formal, em especial para atividades em que a quitação criminal é exigida. Tudo isso gera maior dificuldade na ressocialização e impede o exercício pleno da cidadania.
Frente a essa problemática, busca-se discutir as incongruências e potencialidades da pena de multa, explorando caminhos para uma justiça que, de fato, contemple os princípios de individualização e proporcionalidade das penas.
A presente discussão teórica encontra lastro em uma conjunção de princípios jurídicos, normas legais e aportes doutrinários.
Um dos pilares normativos basilares é o princípio da individualização da pena, insculpido no artigo 5º, inciso XLVI, da Constituição Federal de 1988, o qual exige que a aplicação da pena considere as peculiaridades de cada caso concreto, incluindo as características pessoais do réu e as circunstâncias do fato delituoso. Ademais, o princípio da proporcionalidade, estabelecido no artigo 60 do Código Penal Brasileiro, impõe que a sanção penal seja adequada tanto à gravidade do crime quanto às condições econômicas do condenado.
Coloca-se, como problemática central, a necessidade de ressignificar o princípio da proporcionalidade na aplicação da pena de multa, à luz do princípio da individualização da pena, especialmente no que concerne às pessoas em situação de rua. Investiga-se, portanto, em que medida a legislação vigente e a prática judiciária mostram-se inadequadas para essa população em condição de hipervulnerabilidade.
Postula-se que a não aplicação da pena de multa a essa população é uma medida mais equânime e proporcional, em consonância com os princípios estabelecidos na Constituição Federal e conforme as diretrizes da Resolução nº 425/2021 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), tendo em vista a vulnerabilidade socioeconômica dessas pessoas e a necessidade de políticas públicas na esfera penal que promovam a inclusão social e a justiça restaurativa.
A abordagem metodológica utiliza revisão bibliográfica narrativa com relação à doutrina que estuda o tema, contemplando os principais trabalhos a seu respeito. O mesmo se dá quanto à apresentação e exame da legislação e resoluções pertinentes. A análise de acórdãos segue abordagem essencialmente qualitativa, percorrendo as decisões relevantes adotadas pelos Tribunais Superiores acerca da matéria.
A revisão das práticas judiciais e a adequação das penas às condições econômicas dos condenados são imperativas para assegurar que o sistema penal não perpetue desigualdades e injustiças sociais, especialmente no tocante às pessoas em situação de rua, que constituem um dos grupos mais vulneráveis da sociedade.
2 A pena de multa
Embora a multa tenha caráter penal, possui um regime jurídico próprio que a distingue de outras modalidades de sanção. A legislação brasileira veda a conversão da multa em pena privativa de liberdade. A pena pecuniária deve ser imposta e cobrada em conformidade com a capacidade econômica do condenado, garantindo que a sanção seja justa e proporcional às condições financeiras do infrator.
O arcabouço legal sobre a pena de multa no Brasil passou por significativas modificações nas últimas décadas. A Lei nº 9.268/1996 e, mais recentemente, a Lei nº 13.964/2019, conhecida como "pacote anticrime", alteraram substancialmente o Artigo 51 do Código Penal, afetando a execução e cobrança desta penalidade. Essas mudanças suscitaram novos desafios e debates jurídicos.
A aplicação da pena de multa, particularmente em relação a indivíduos em situação de vulnerabilidade, como as pessoas em situação de rua, levanta questões cruciais sobre a proporcionalidade e individualização da pena. A dificuldade em saldar dívidas decorrentes de multas, a estigmatização social, e os obstáculos à reintegração social dos egressos do sistema prisional são problemas que demandam uma abordagem mais humanizada e equitativa.
A jurisprudência tem evoluído no sentido de considerar a condição econômica dos condenados no momento da execução da multa, reconhecendo, em certos casos, a impossibilidade de pagamento como justificativa para a extinção da punibilidade. Todavia, a necessidade de revisão e aperfeiçoamento das práticas legais persiste, com o objetivo de assegurar que as penas pecuniárias cumpram seu propósito sem perpetuar desigualdades sociais.
3 Panorama jurisprudencial e formas de imposição de pagamento da pena de multa
Fazendo breve apanhado histórico recente, verifica-se que, após o Brasil se tornar signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), pelo Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992, que prevê expressamente a proibição de prisão por dívida, veio à lume, em 1996, a Lei n° 9.268, que alterou, entre outros, o artigo 51 do Código Penal, estabelecendo que a multa como dívida de valor, com execução conforme as regras da Fazenda Pública e impedindo a sua conversão em detenção no caso de inadimplemento.
3.1 Legitimidade para Execução da Pena de Multa
Provocado a analisar o tema, o Superior Tribunal de Justiça(STJ) editou a Súmula n° 521, que previa: “A legitimidade para execução fiscal de multa pendente de pagamento imposta em sentença condenatória é exclusiva da Procuradoria da Fazenda Pública”.
Todavia, esse entendimento sofreu grandes alterações quando, em 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 3.150, ajuizada pela Procuradoria Geral da República, na qual decidiu que, por ser de natureza penal, a execução da multa deveria ser de atribuição do Ministério Público e a competência para julgar a ação seria das varas de execução penal. A Fazenda Pública, portanto, sustentaria somente legitimidade subsidiária para a execução.
O acórdão proferido na ADI 3150 pelo STF estabeleceu que (i) o Ministério Público é o órgão legitimado para promover a execução da pena de multa, perante a Vara de Execução Criminal, observado o procedimento descrito pelos arts. 164 e seguintes da Lei de Execução Penal; (ii) caso o titular da ação penal, devidamente intimado, não proponha a execução da multa no prazo de 90 (noventa) dias, o Juiz da execução criminal dará ciência do feito ao órgão competente da Fazenda Pública (Federal ou Estadual, conforme o caso) para a respectiva cobrança na própria Vara de Execução Fiscal, com a observância do rito da Lei nº 6.830/1980.
A razão adotada pela Corte, a partir do voto do Ministro Roberto Barroso, foi a de que a pena de multa seria uma sanção penal autônoma, cabendo a ela “papel retributivo e preventivo geral” de “desestimular no próprio infrator ou em infratores potenciais, a conduta estigmatizada pela legislação penal”.
Em 2019, veio a Lei nº 13.964/2019, a qual acabou por estampar no Código Penal a tese do STF, de que a competência para a execução da multa é do Juízo da Execução Penal. A partir de então, também ganhou força o entendimento de que o Ministério Público Federal seria o único legitimado para a execução da pena de multa, questão que ainda está em aberto no STF.
A esse respeito, o julgamento de mérito do RECURSO EXTRAORDINÁRIO 1.377.843/PR (Tema 1219 da repercussão geral reconhecida) foi iniciado no Plenário Virtual, em sessão aberta em 16/12/2022, tendo o Ministro Relator votado pelo desprovimento do recurso extraordinário, mantendo o acórdão recorrido com a finalidade de reafirmar a legitimidade exclusiva do Ministério Público para execução da multa criminal na vara de execuções criminais. Na ocasião, propôs ao Colegiado o seguinte regime de observância do precedente que venha a se formar, explicitando que: (i) seja observado o disposto no art. 51 do Código Penal, na redação dada pela Lei nº 13.964/2019, a partir da sua entrada em vigor; (ii) sejam devolvidos ao juízo de execução penal todos os processos em que o Ministério Público, após a vigência da Lei nº 13.964/2019, manteve-se inerte e foi determinada a remessa à Fazenda Pública para fins de inscrição em dívida ativa da pena de multa; (iii) deve ser observada a modulação de efeitos formulada na ADI 3.150, que estabeleceu a competência concorrente da Procuradoria da Fazenda Pública quanto às execuções findas ou iniciadas até a data do trânsito em julgado daquele processo.
Além disso, sugeriu a fixação da seguinte tese pela sistemática da Repercussão Geral: “À luz do artigo 51 do Código Penal, na redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019, o Ministério Público é o legitimado exclusivo para a cobrança da multa criminal, a ser realizada na vara de execuções criminais, não cabendo indicar legitimidade subsidiária da Fazenda Pública na espécie”. Ato contínuo, o processo foi destacado pelo próprio relator.
Todavia, ainda não ocorreu a apreciação em Plenário físico e, inclusive, pende de apreciação o pedido de tutela provisória de urgência, formulada em 13/12/2023, pela Procuradoria-Geral da República, para que seja mantida a atribuição subsidiária da Fazenda Pública para a cobrança das multas criminais executadas a partir de 3/6/2020, até a conclusão do julgamento do RE 1.377.843/PR.
3.2 O (Não) Pagamento da Pena de Multa e a (Im)Possibilidade da Extinção da Punibilidade
Em 2015, o STJ fixou o entendimento consolidado no Tema 931, de que “Nos casos em que haja condenação a pena privativa de liberdade e multa, cumprida a primeira (ou a restritiva de direitos que eventualmente a tenha substituído), o inadimplemento da sanção pecuniária não obsta o reconhecimento da extinção da punibilidade”.
À época, após o trânsito em julgado de uma condenação à pena privativa de liberdade e multa, o Juízo da Execução Penal apenas informava à Fazenda Pública sobre a existência da pena de multa e passava a cuidar somente da pena corporal, a qual, uma vez cumprida, acarretava o encerramento do processo de execução penal.
A Fazenda Pública, de outro lado, não executava a maioria das penas de multa informadas pelos Juízos criminais, em razão da inexistência de interesse econômico-financeiro no ajuizamento das ações, que frequentemente possuíam valores abaixo do mínimo previsto para a sua execução.
Após casos de impacto nacional, como “Mensalão” e “Lava Jato”, começou a se formar uma compreensão doutrinária de que era necessário recrudescer a interpretação penal nas nossas Cortes.
Vieram, como já destacado, o julgamento da ADI 3150, em 2018 e, em 2019, a Lei nº 13.964/2019.
Passou a prevalecer o entendimento de que o inadimplemento da pena de multa é um óbice à extinção da punibilidade.
Como consequência, o STJ, em 2020, alterou pela primeira vez o Tema 931, estabelecendo que a ausência de pagamento da multa pela pessoa condenada, ainda que cumprida a pena privativa de liberdade, impediria a extinção da punibilidade.
De outro lado, diante da decisão do STF, que reconheceu ter a pena de multa natureza penal, e de que a extinção da punibilidade está condicionada ao seu pagamento ou pela ocorrência de outra causa extintiva de punibilidade, como a prescrição, os órgãos estaduais ministeriais “passaram a editar atos normativos para regulamentar a forma de atuação dos órgãos de execução na cobrança da pena de multa” (Silva; Wanis, 2021, p. 355).
Assim, por exemplo, consoante o art. 12 da Resolução Conjunta PGJ-CGJ nº 05/2021, incumbe ao membro do Ministério Público com atribuição na área da execução penal a adoção das providências para executar a pena de multa fixada, devendo ser aguardado o trânsito em julgado. Se o valor atualizado for inferior a R$ 5.000,00 (cinco mil reais), poderá ser cobrado mediante protesto cartorário, sendo dispensada a execução judicial. Para as multas de valor atualizado superior a R$ 5.000,00 (cinco mil reais), a cobrança judicial será obrigatória, sem prejuízo de ser cumulada com o protesto cartorário (CNMP, 2023). Trata-se de uma política institucional que aspira à efetiva cobrança da pena de multa pelo Ministério Público em âmbito nacional.
Seguindo na mesma linha, o STF firmou orientação no sentido de que o inadimplemento deliberado da pena de multa cumulativamente aplicada ao sentenciado impede a progressão no regime prisional. Precedente: EP 12-AgR, Rel. Min. Luís Roberto Barroso.
Em outro sentido, o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução nº 425/2021, recomendando a não aplicação da pena de multa para pessoas em situação de rua e, se no curso da execução criminal, cumprida a pena privativa de liberdade e verificada a situação de rua da pessoa egressa, a verificação da possibilidade de extinção da punibilidade da pena de multa.
Também em 2021, o STJ alterou novamente o Tema 931, passando a considerar que no caso de comprovação pelo condenado da impossibilidade de pagar a multa penal, o Judiciário poderia reconhecer a extinção da punibilidade (desde que ele já tivesse cumprido a pena privativa de liberdade ou restritiva de direitos), dispensando-o de pagamento da multa aplicada.
A alteração no âmbito do STJ foi, evidentemente, um avanço para o sistema penitenciário, mas manteve um grave obstáculo, que foi a de facultar a extinção da punibilidade somente àqueles que comprovassem não ter condições financeiras de pagar multa penal.
Assim, reconhecendo a necessidade de uma nova revisão da tese, para examinar a forma de comprovação da impossibilidade econômica e a quem compete a produção dessa prova, em 28 de fevereiro de 2024, a Terceira Seção do STJ revisitou o Tema 931 pela terceira vez, por ocasião do julgamento dos recursos especiais 2.090.454/SP e 2.024.901/SP, realizando um “distinguishing” e estabelecendo que "[o] inadimplemento da pena de multa, após cumprida a pena privativa de liberdade ou restritiva de direitos, não obsta a extinção da punibilidade ante a alegada hipossuficiência do condenado, salvo se diversamente entender o juiz competente, em decisão suficientemente motivada, que indique concretamente a possibilidade de pagamento da sanção pecuniária".
O julgado apontou que não é compatívelcom os objetivos e fundamentos do Estado Democrático de Direito que se perpetue uma situação que tem representado uma sobrepunição dos condenados notoriamente incapacitados de, já expiada a pena privativa de liberdade ou restritiva de direitos, solver uma dívida que, a despeito de legalmente imposta, não se apresenta, no momento de sua execução, em conformidade com os objetivos da lei penal e da própria ideia de punição estatal.
Ressaltou-se a realidade socioeconômica da maioria dos presos no Brasil, que, após cumprirem penas privativas de liberdade, retornam à sociedade sem recursos e com dificuldades de reinserção social, concluindo-se que, salvo comprovação de que o condenado possui condições de quitar a multa, presume-se sua hipossuficiência. O acórdão reafirma, portanto, que a impossibilidade de pagar a multa não deve ser um obstáculo à plena reintegração do ex-apenado à sociedade.
Ou seja, a partir dessa terceira alteração do Tema 931, O STJ passou a adotar o entendimento de que, diversamente do que prevalecia antes do julgamento do Resp 2.024.901/SP, é ônus do Ministério Público comprovar que o apenado tem condições financeiras de pagar a multa. Tal conclusão é confirmada em recentes decisões lá proferidas, como no Resp 2.131.797/SP, de 11 de abril de 2024.
Quase ao mesmo tempo, em março deste ano, ao julgar a ADI 7.032, no Plenário Virtual, o STF decidiu dar interpretação conforme à Constituição ao artigo 51 do Código Penal, no sentido de que, cominada conjuntamente com a pena privativa de liberdade, o inadimplemento da pena de multa obsta o reconhecimento da extinção da punibilidade, salvo comprovada impossibilidade de seu pagamento, ainda que de forma parcelada; e acrescentar, ainda, a possibilidade de o juiz de execução extinguir a punibilidade do apenado, no momento oportuno, concluindo essa impossibilidade de pagamento através de elementos comprobatórios constantes dos autos.
Como as Cortes Superiores começam a reconhecer, a transferência do ônus da prova ao condenado, especialmente aqueles em situação de rua, mostrou-se ineficaz, perpetuando a pena para os mais pobres.
4 Consequências da não extinção da punibilidade pelo inadimplemento da pena de multa
A não extinção da punibilidade resulta na suspensão de direitos políticos, impede a reabilitação criminal, acarretando restrições ao CPF, entre outros problemas (IDDD, 2022).
A fixação da pena de multa e sua cobrança àqueles que não possuem capacidade econômica de pagá-la funciona como um verdadeiro mecanismo de perpetuação da pena, impossibilitando a almejada ressocialização do condenado em situação de pobreza, assim como serve como fato gerador de desperdício de recursos públicos (Callegari, 2023).
A Secretaria Nacional de Políticas Penais (SENAPPEN), por meio da Diretoria de Cidadania e Alternativas Penais (DICAP), elaborou um Estudo Sobre a Pena de Multa no Brasil – Inadimplemento e Seus Efeitos Para a Reintegração Social de Pessoas Egressas do Sistema Prisional, pretendendo apresentar a pena de multa no ordenamento jurídico brasileiro, bem como os efeitos de sua cobrança na vida de pessoas egressas sem condições de adimplemento dos valores devidos.
De acordo com as análises realizadas sobre as condições socioeconômicas das pessoas egressas do sistema prisional, verifica-se que há uma dificuldade predominante em saldar as dívidas provenientes de penas de multa. Esta situação é exacerbada pelo fato de que a maioria das pessoas afetadas por penas privativas de liberdade pertence a estratos de baixa renda. Dados do Sistema de Informações do Departamento Penitenciário Nacional (Sisdepen, 2023) indicam que 65,44% dos indivíduos encarcerados no Brasil possuem, no máximo, o ensino fundamental completo. Tal indicativo, somado a outras condições de vulnerabilidade, denota uma concentração dessa demografia em faixas de menor poder aquisitivo.
Adicionalmente, a estigmatização enfrentada por egressos do sistema prisional restringe significativamente suas possibilidades de reinserção no mercado de trabalho, na convivência civil e na participação em programas sociais. A problemática do inadimplemento das multas implica diretamente na suspensão de direitos civis fundamentais, como ilustra Ferrarini (2019), que aponta a inaptidão de mais de um milhão de pessoas para votar em eleições devido à pendência de multas, impedindo assim a extinção da punibilidade e consequentemente a regularização de documentos essenciais como o título de eleitor e o Cadastro de Pessoas Físicas (CPF). Essa condição limita ainda o acesso aos benefícios e programas sociais, intensificando o ciclo de marginalização desses indivíduos.
5 Perfil da pessoa em situação de rua e a seletividade penal
A justiça, como princípio constitucional, assegura que todas as pessoas, brasileiras ou estrangeiras, tenham acesso ao Poder Judiciário, conforme estabelecido no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal de 1988. No entanto, a efetivação desse acesso não se limita à possibilidade de acionar o Judiciário, mas envolve também a análise crítica de como este opera em um contexto de seletividade penal, que frequentemente criminaliza a pobreza e marginaliza grupos vulneráveis.
O Brasil é o terceiro país que mais encarcera no mundo, e esse cenário revela um sistema prisional ineficaz, caracterizado por altos índices de violência, reincidência criminal e superlotação (Brito; Colombo Júnior, 2022).
A seletividade do sistema de justiça criminal, que afeta desproporcionalmente indivíduos de baixa renda e minorias raciais, exige a construção de políticas penais alternativas que não agravem ainda mais as condições de vulnerabilidade desses grupos.
A população em situação de rua (PSR) exemplifica a problemática da seletividade penal. De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), essa população cresceu 38% entre 2019 e 2022, impulsionada pela pandemia de Covid-19, atingindo 281.472 pessoas.
A Política Nacional para a População em Situação de Rua (PNPSR) e seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento instituídos pelo Decreto nº 7.053/2009 são importantes marcos para a garantia de direitos desta população ao viabilizar o acesso às políticas sociais de forma intersetorial, transversal e intergovernamental com participação de todos entes federados e, sobretudo, dos três Poderes.
A população em situação de rua, segundo o referido decreto, é definida como o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória.
Para Beserra e Freitas (2023, p. 5-6), a População em Situação de Rua (PSR) representa um fenômeno de múltiplas determinações, que envolve questões de natureza econômica, social, cultural, de saúde mental, entre outras. Esse fenômeno pode ser compreendido também como uma das expressões da questão social, direcionando assim um desafio imperativo para o Estado, no sentido de implementar políticas públicas que sejam capazes de contribuir para o acesso a direitos sociais.
Nessa perspectiva, a PNPSR inaugura um marco de reconhecimento das situações de vulnerabilidade sociais vividas por este grupo, observando as fragilidades de seus vínculos familiares, a extrema pobreza, somada as violações de direitos diante a falta de moradia e sustento (Nogueira; Duarte; Silva, 2019).
Relatório com diagnóstico situacional da População em Situação de Rua produzido pelo Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, no ano de 2023, a partir de análise de dados de PSR inscritas no Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico) indicou haver 236.400 pessoas em situação de rua, uma proporção de 1 PSR para cada 1.000 pessoas. O perfil da PSR é majoritariamente masculino (87%), adulto e negro (68%), com maioria alfabetizada (90%), a qual identificou sua situação de rua em virtude de problemas familiares (44%), de desemprego (39%) e uso de álcool e outras drogas (29%); mulheres em situação de rua somam 13%, mas representam 40% dos casos notificados de violência nesta situação (Brasil, 2023).Cabe destacar que estes são estudos estimados e a diferença entre pesquisas – a exemplo da realizada pelo IPEA – expõe a lacuna de acesso a direitos, dado que nem toda PSR consegue acessar benefícios sociais, como aqueles vinculados ao CadÚnico e que exigem, por exemplo, documentação civil regularizada.
Corroborando a este propósito foi instituída no âmbito do Poder Judiciário, por meio da já mencionada Resolução n° 425/2021 do CNJ, a Política Nacional Judicial de Atenção a Pessoas em Situação de Rua (PopRuaJud) e suas interseccionalidades, com o objetivo de assistir a esta população, inclusive quando esta foi parte implicada no sistema de justiça criminal. A Resolução nº 425 expõe a urgência do Poder Judiciário em construir uma agenda que contribua a melhoria da qualidade de vida das pessoas que vive em situação de rua, sobretudo garantindo-lhes direitos provoca uma reflexão essencial para garantir que o sistema de justiça não petrifique desigualdades sociais e atue de forma mais justa e humanizada.
Para tanto, é crucial superar a cultura punitivista e garantir que a intervenção penal seja aplicada apenas quando absolutamente necessária, respeitando a legalidade e a proporcionalidade das sanções. A individualização das penas e a adoção de políticas que reconheçam a vulnerabilidade da população em situação de rua são fundamentais para mitigar desigualdades sociais. As medidas alternativas ao encarceramento, como previstas na Resolução nº 425/2021, devem ser consideradas para promover a reintegração social e a dignidade humana, assegurando que o sistema de justiça cumpra seu papel de maneira inclusiva e eficaz.
6 A individualização da pena: necessidade de ressignificar o princípio da proporcionalidade da pena de multa considerando a pessoa em situação de rua
A individualização da pena é um princípio fundamental que busca adaptar a aplicação da lei penal às especificidades de cada caso concreto, considerando as características únicas da situação, a extensão do dano ao bem jurídico protegido e os aspectos particulares da personalidade do agente envolvido.
Conforme o artigo 5º, XLVI, da Constituição Federal do Brasil, a legislação deve regular a individualização da pena e pode incluir, entre outras medidas, a privação ou restrição da liberdade, perda de bens, multa, prestação social alternativa e suspensão ou interdição de direitos. Este princípio é crucial para garantir que a justiça seja aplicada de maneira justa e proporcional, respeitando as particularidades de cada indivíduo e situação.
No entanto, a aplicação da pena de multa, especialmente para pessoas em situação de rua, levanta importantes questões sobre a proporcionalidade e a individualização da pena e nesse sentido caminha bem a nova versão do Tema 931 do STJ e a Resolução nº 425/2021 do Conselho Nacional de Justiça. É preciso reconhecer a impossibilidade do pagamento da pena de multa já na sentença ou tão logo cumprida a pena corporal, extinguindo a pena imediatamente, promovendo uma justiça mais equitativa e proporcional.
Aliás, especificamente em relação à pena de multa, o legislador infraconstitucional de 1984 já havia prescrito a necessidade de proporcionalidade. O Código Penal estabelece que a imposição da pena de multa deve ser proporcional ao fato e à situação econômica do réu (art. 60) e que ela poderá ser majorada até o triplo se, em função da situação financeira do condenado, a pena puder ser ineficaz, mesmo que aplicada no máximo (§1º).
Adicionalmente, ao prever a possibilidade de desconto do salário ou vencimento do condenado, o Código Penal dispõe que a penalidade pecuniária não pode incidir sobre recursos indispensáveis ao sustento do condenado e de sua família (art. 50, § 2º), demonstrando a obrigação de se considerar a situação econômico-financeira do condenado como critério para a fixação da multa.
Essa disciplina normativa visa a assegurar que as penas, incluindo as pecuniárias, sejam justas e proporcionais, evitando a manutenção de injustiças e desigualdades econômicas no sistema de justiça criminal.
É certo, portanto, que o legislador, atendendo aos preceitos constitucionais, previu forma específica de individualização da pena de multa, levando em consideração a situação econômica do réu na fixação do dia-multa. No entanto, claramente, não considerou a pessoa em situação de rua, quando, no art. 49, do CP, apontou o limite mínimo de 10 dias multa, sabendo-se que a multa não pode ser inferior a um trigésimo do maior salário mínimo mensal (BRASIL, 1940). O valor mínimo de R$ 470,00 (quatrocentos e setenta reais) é desproporcional para quem não aufere nenhuma renda e conduz à perpetuação da pena.
E a situação é mais agravada pela escolha da fixação de penas de multa muito mais elevadas em alguns crimes específicos, tornando impossível o pagamento até para aqueles que têm algum tipo, ainda que diminuto, de rendimento. Por exemplo, no caso do tráfico de drogas do art. 33 da Lei n.º 11.343/2006, o valor mínimo é de 500 dias-multa, o que resulta em R$ 23.000,00 (vinte e três mil reais).
Ao se permitir a extinção da punibilidade independentemente do pagamento de multa para determinados réus, ao fundamento de hipossuficiência, não se extrapola o limite constitucional da individualização da pena, eis que a baliza proposta pelo legislador infraconstitucional não observa a condição econômica da pessoa em situação de rua.
6.1 O Princípio da Proporcionalidade e a Pena de Multa
O princípio da proporcionalidade afasta a exigência do cumprimento de penas excessivas, o que inclui o pagamento de valores de multa penal manifestamente superiores à capacidade econômico-financeira do egresso e da egressa e constitui um pilar fundamental que impede a imposição de penas excessivas, incluindo o pagamento de multas penais manifestamente superiores à capacidade econômico-financeira do condenado.
A Constituição Federal de 1988 incorpora diversas disposições que refletem a preocupação do legislador constituinte originário com a proporcionalidade na aplicação das penas. O catálogo de direitos previstos no artigo 5º inclui a proibição de penas de morte, de caráter perpétuo, de trabalhos forçados, de banimento e cruéis (alíneas a a e do inciso XLVI); o respeito à integridade física e moral do preso (inciso XLIX); o dever de o Estado indenizar a prisão que extrapole o disposto na sentença (inciso LXXV); e o dever de observar a individualização da pena (inciso XLVI).
No âmbito internacional, o princípio da proporcionalidade das penas pode ser deduzido de vários instrumentos de direitos humanos. A Declaração Universal dos Direitos Humanos (1949) estabelece que "ninguém será submetido a tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes" (artigo 5º). A Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (1950) proíbe a tortura e penas degradantes ou desumanas (artigo 3º). O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (1966) contém disposição idêntica (artigo 7º). A Convenção Americana de Direitos Humanos (1969) também veda a tortura e as penas cruéis ou degradantes, além de prever a necessidade de tratamento respeitoso a toda pessoa presa, devido à dignidade inerente a todos os seres humanos (artigo 5.2). A Convenção Africana de Direitos Humanos (1981) igualmente proscreve as penas cruéis ou degradantes (artigo 5º).
A aplicação da pena de multa, especialmente para pessoas em situação de rua, suscita importantes questões sobre a proporcionalidade e a individualização da pena. A Resolução nº 425/2021 do Conselho Nacional de Justiça propõe o exame da não aplicação da pena de multa para essa população vulnerável, promovendo uma justiça mais equitativa e proporcional e apontando a necessidade de repensar a proporcionalidade expressa no limite mínimo prevista para aplicação da pena de multa de que trata o art. 49 do Código Penal para alcançar a individualização da pena considerando a situação econômica da pessoa em situação de rua. A Resolução nº 425/2021 do Conselho Nacional de Justiça prevê expressamente tal possibilidade ao prescrever em seu artigo 29 que: “deverá ser observada a vulnerabilidade decorrente da situação de rua no momento de aplicação da pena, evitando-se a aplicação da pena secundária de multa”.
Se houvesse a imposição de pena de multa na sentença, haveria a necessidade de dispensa desta multa pelo Juízo da execução Penal, por restar comprovada a vulnerabilidade social descrita na Resolução acima mencionada.
De acordo com a supervisora do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema Socioeducativo (DMF/CNJ), Melina Machado Miranda, a Justiça está em processo de mudança de papel em relação aos demais órgãos do poder público na abordagem da população em situação de rua. De acordo com a especialista em assistência social, a Resolução CNJ n. 425 assume uma posição ativa para o Poder Judiciário de não criminalização da população de rua e de articulação com outras políticas judiciárias para a justiça criminal.(CNJ, 2021).
Diante da complexa realidade da população em situação de rua e do compromisso crescente do Poder Judiciário com o tema, é essencial construir um novo paradigma de jurisdição. A aplicação da pena de multa deve considerar a vulnerabilidade dessa população, garantindo que as decisões judiciais não contribuam para o aprofundamento das desigualdades sociais.
7 Conclusão
A aplicação da pena de multa no contexto brasileiro, especialmente para pessoas em situação de rua, levanta questões significativas sobre justiça, proporcionalidade e individualização da pena. A análise apresentada neste artigo demonstra que, embora existam parâmetros legais para a fixação da pena de multa, estes são amplos e permitem ao juiz considerar uma variedade de circunstâncias, incluindo o fato, suas consequências, o passado, os motivos, o comportamento posterior e a perspectiva futura do condenado. Esta flexibilidade reduz a rigidez das penas mínimas obrigatórias observadas em outros países, mas também apresenta desafios na harmonização das sentenças.
O entendimento de que, na ausência de previsão legal específica, a pobreza do condenado, por si só, não é suficiente para excluir a multa não se harmoniza com os documentos internacionais dos quais o Brasil é signatário. O parcelamento da multa, conforme os artigos 50 do Código Penal e 169 da Lei de Execução Penal, levando em conta as condições pessoais da pessoa em situação de rua não são suficientes a responder aos princípios da indiviudalizaçao da pena e a proporcionalidade. A exclusão da multa no momento da sentença, diante da pobreza, evidencia uma tentativa de manter a coerência e a integridade do sistema penal.
No entanto, a manutenção da cobrança de multa para pessoas em situação de rua perpetua uma dupla punição: uma pelo sistema judiciário e outra pela própria condição de vulnerabilidade extrema em que se encontram. A continuidade dessa prática não apenas ignora as diretrizes humanitárias da Resolução nº 425/2021 do Conselho Nacional de Justiça, mas também compromete a justiça social, exacerbando as desigualdades e dificultando ainda mais a reabilitação e reintegração dessas pessoas na sociedade.
Portanto, para garantir uma justiça verdadeira e inclusiva, é imperativo reconsiderar a aplicação da pena de multa para pessoas em situação de rua. A não aplicação da multa no momento da sentença condenatória não afrontaria o princípio da legalidade, mas sim reforçaria o compromisso do sistema penal com a dignidade humana e a equidade social. Se a pena continuar a ser cobrada dessas pessoas, elas serão injustamente punidas duas vezes: uma pelo Judiciário e outra por sua condição de extrema vulnerabilidade.
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[1] Doutor em Direito Econômico pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP (2008). Desembargador Federal no Tribunal Regional Federal da 3ª Região em São Paulo. Professor do programa do mestrado em Direito, área de concentração em Direito e Processo Judiciário, da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados – ENFAM, Brasília-DF, Brasil, CEP: 70.200-003, e-mail jmlunard@gmail.com, https://orcid.org/0000-0001-8077-7394.
[2] Juíza de Direito titular da Vara de Execução de Penas e Alternativas Penais da comarca de Rio Branco/AC. Mestranda em Direito e Poder Judiciário pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM), Brasília-DF, Brasil, CEP: 70.200-003, e-mail Andrea.brito@tjac.jus.br, https://orcid.org/0009-0007-1296-6602