Violência Urbana: Direitos Humanos e Questões Sociais
DOI: 10.19135/revista.consinter.00011.08
Recebido/Received 22.06.2020– Aprovado/Approved 18.07.2020
Maria Luiza de Andrade Picanço Meleiro[1] – https://orcid.org/0000-0001-7835-7382
E-mail: luizapmeleiro@hotmail.com
Resumo: O artigo objetiva trazer à discussão a problemática da violência urbana com ênfase nos Direitos Humanos e Cidadania. Na primeira parte faz-se uma reflexão sobre a violência sob o prisma dos Direitos Humanos e Cidadania, enfocando a urbanização das cidades como variável associada à violência urbana, enfatizando a tensão que há entre violência e déficits sociais, pondo em perspectiva a cidade de Manaus, no Estado do Amazonas. Posteriormente faz-se breves considerações sobre prisões, pobreza e exclusão social, desde uma concepção histórica e as implicações da pobreza e sua relação com a exclusão social, que culminaram com as primeiras raízes do Direito Penitenciário e o nascimento das prisões. Em seguida se trata da realidade das prisões no Brasil cujas consequências têm sido os massacres e as rebeliões. Finaliza-se com uma discussão sobre Direitos Humanos e Garantias Legais na Execução da Pena Privativa de Liberdade, dando enfoque às constantes violações dos direitos e das garantias legais daqueles que estão sob tutela do Estado. Conclui-se que as prisões têm sido a resposta para a ausência de políticas públicas, não apenas na segurança pública, mas em outras áreas, e se tornado espaço para tortura, desigualdade social e repressão estatal. Além disso constata-se a inter-relação da falência do sistema prisional ao modelo econômico existente, apontando para a necessidade premente de revisão do modelo de política econômica e social atualmente implementados em nosso país.
Palavras-chave: Violência. Pobreza. Exclusão social. Direitos humanos.
Abstract: The article aims to bring to the discussion the issue of urban violence with an emphasis on Human Rights and Citizenship. In the first part there is a reflection on violence from the perspective of Human Rights and Citizenship, focusing on the urbanization of cities as a variable associated with urban violence, emphasizing the tension that exists between violence and social deficits, putting the city of Manaus in perspective , in the state of Amazonas. Subsequently, brief considerations are made about prisons, poverty and social exclusion, from a historical conception and the implications of poverty and its relation to social exclusion, which culminated in the first roots of Penitentiary Law and the birth of prisons. Next, it is about the reality of prisons in Brazil whose consequences have been massacres and rebellions. It ends with a discussion on Human Rights and Legal Guarantees in the Execution of the Private Prison of Liberty, focusing on the constant violations of the rights and legal guarantees of those under the tutelage of the State. It is concluded that prisons have been the answer to the absence of public policies, not only in public security, but in other areas, and have become a space for torture, social inequality and state repression. In addition, there is an interrelation between the failure of the prison system and the existing economic model, pointing to the pressing need to review the model of economic and social policy currently implemented in our country.
Keywords: Violence. Poverty. Social exclusion. Human rights.
Sumário: Introdução. 1. A violência urbana. 2. Prisões, pobreza e exclusão social. 3. A violência nos presídios: mais insegurança pública. 4. Direitos humanos e garantias legais na execução da pena privativa de liberdade. Considerações finais. Referências.
INTRODUÇÃO
É inexorável a relação existente entre urbanização das cidades e violência urbana. O modelo de cidade excludente, no qual os Estados atuam, distribui, desigual e seletivamente a violência em seu território. Omisso na proposição e na implantação de políticas públicas diferenciadas que priorizem a proteção da vida da população historicamente vulnerabilizada, especialmente a juventude pobre que habita as zonas excluídas da cidade, os Governos têm insistido na adoção de práticas heterogêneas e desrespeitosas na organização dos espaços urbanos. O mesmo Estado que não planeja o crescimento das cidades, também não disponibiliza a todos, indistintamente, o acesso aos meios institucionalizados para que o jovem tenha a oportunidade de crescimento e desenvolvimento que necessita. Como salienta Carlos María Cárcova, “grandes contingentes sociais padecem de uma situação de postergação, de pobreza ou de atraso que produz marginalidade e anomia na periferia da estrutura social”. (CÁRCOVA, 1998, p. 19).
As cidades estão distantes de oferecerem condições e oportunidades equitativas aos seus habitantes. A população urbana, em sua maioria, está privada ou limitada – em virtude de suas características econômicas, sociais, culturais, étnicas, de gênero e idade – de satisfazer suas necessidades básicas.
A cidade de Manaus, no Amazonas, padece dessas mazelas. Mas não apenas disso: sua localização geográfica próxima aos principais países produtores de cocaína do mundo, aliado à presença de uma bacia hidrográfica que favorece o transporte e distribuição de drogas ilícitas, faz da principal metrópole da Região Norte um campo fértil para a prática da ação criminosa. O crime organizado encontra aqui um contingente de não cidadãos, habitando a não cidade. Esse contingente de crianças e jovens pobres, desempregados, carentes de toda sorte de serviços públicos essenciais, habitantes das periferias é cooptado sem pena e sem dó para o mundo do crime.
Em pouco tempo esses jovens estarão engrossando o outro contingente, que também não para de crescer, o da população carcerária. Resolve-se o problema da falta de diversas políticas e da (in)segurança pública encarcerando indivíduos das classes subalternas, os mais pobres, os desprovidos dessas políticas públicas e injustiçados pelo sistema econômico e social (WACQUANT, 2001).
Segundo os dados divulgados pelo Sistema Integrado de Informações Penitenciárias do Ministério da Justiça (INFOPEN), no ano de 2019, o Brasil é terceiro país com maior número de pessoas presas, atrás apenas dos Estados Unidos e da China, sendo seguido na quarta colocação pela Rússia. A taxa de presos para cada 100 mil habitantes subiu para 352,6 indivíduos em junho de 2016, de acordo com o mesmo relatório. Em 2014, era de 306,22 pessoas presas para cada 100 mil habitantes (BRASIL, 2019).
O Ministério da Justiça e Segurança Pública, por meio do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, é responsável pela implementação, em todo o território nacional, da política criminal e penitenciária, a partir de avaliações periódicas do sistema criminal, criminológico e penitenciário, bem como a execução de planos nacionais de desenvolvimento quanto às metas e prioridades da política a ser executada. Este colegiado é o órgão superior de um sistema integrado pelo Departamento Penitenciário Nacional, apoiado pelo Fundo Penitenciário e, nos Estados, pelos respectivos conselhos e órgãos executivos.
Este Artigo está dividido em quatro partes. Na primeira fazemos uma reflexão sobre a violência sob o prisma dos Direitos Humanos e Cidadania. Enfocamos a questão da urbanização das cidades (ou a falta dela) como variável associada à violência urbana, enfatizando a persistente tensão que há entre violência e déficits sociais e trazendo o contexto da cidade de Manaus como elemento que tipifica tal situação.
Na segunda parte tecemos breves considerações sobre prisões, pobreza e exclusão social, desde uma concepção histórica e as implicações da pobreza e sua relação com a exclusão social que culminaram com as primeiras raízes do Direito Penitenciário e o nascimento das prisões. Estas, consideradas como instrumentos de exclusão e frutos de um modelo econômico de mercado, que objetiva a mais-valia do trabalho e estimula a ampliação das diferenças sociais.
Posteriormente nossa reflexão perpassa pela realidade das prisões no Brasil cujas consequências têm sido os massacres e as rebeliões. O quadro é assustador quando se constata que a relação é de aproximadamente 350 presos para cada 100 mil habitantes; o crescimento da população carcerária se dá, segundo o diagnóstico do Depen, a um ritmo de 8,3% ao ano e, se continuar neste ritmo, em 2022, o Brasil poderá alcançar a triste marca de 1 milhão de presos.
Na última parte faz-se com uma discussão sobre os Direitos Humanos e as Garantias Legais na Execução da Pena Privativa de Liberdade, dando enfoque às constantes violações dos direitos e das garantias legais daqueles que estão sob tutela do Estado. Também se traz à reflexão a morosidade da justiça e suas consequências assim como o trabalho hercúleo das Defensorias Públicas. Conclui-se que as prisões têm sido a resposta para a ausência de políticas públicas, não apenas na segurança pública, mas em outras áreas, e se tornado espaço para tortura, desigualdade social, supervalorização do capital e repressão estatal. Além disso constata-se a inter-relação da falência do sistema prisional ao modelo econômico existente, apontando para a necessidade premente de revisão do modelo de política econômica e social atualmente implementados no Brasil.
1 A VIOLÊNCIA URBANA
Há muito a violência no Brasil deixou de ser apenas um problema de segurança pública para se configurar, não apenas numa questão social, mas, sobretudo de Direitos Humanos e Cidadania. Poucas vezes a violência e suas consequências têm merecido abordagem multidimensional livre de associações impressionistas, possibilitando que se adentre em um universo de estudos mais complexo e por consequência, ter uma visão mais holística e sistêmica. O que se vê na maioria das vezes são abordagens neófitas, visões unilaterais marcadas por raso ou nenhum aprofundamento.
Difícil também é realizar uma abordagem sobre violência sem dissociar do contexto urbano. É inexorável a congruência existente entre essas duas variáveis, especialmente em nosso país. O crescimento urbano desordenado é apontado como uma das principais causas da violência (GIDDENS, 2001). Em razão do acelerado processo de êxodo rural, as grandes cidades brasileiras absorveram um número de pessoas elevado, que não foi acompanhado pela infraestrutura urbana (emprego, moradia, saúde, educação, qualificação, entre outros); fato que desencadeou uma série de problemas sociais graves.
Sabe-se, contudo, que a criminalidade não é um “privilégio” exclusivo dos grandes centros urbanos, entretanto o seu crescimento é largamente maior do que em cidades menores. É nas grandes cidades brasileiras que se concentram os principais problemas sociais, como desemprego, desprovimento de serviços públicos assistenciais, além da ineficiência da segurança pública. Tais problemas são determinantes para o estabelecimento e proliferação da marginalidade e, consequentemente, da criminalidade que vem acompanhada pela violência.
Essa é mais uma situação que retrata a ineficiência do Estado. Enquanto o poder do Estado não se impõe (e não apenas pela força, mas, sobretudo, pela falta de oportunidades que deixa de proporcionar), o crime organizado se institui como um poder paralelo, que estabelece regras de ética e conduta própria, além de implantar fronteiras para a atuação de determinada facção criminosa.
O Brasil possui 16.886 Km de fronteiras secas, dos quais, 7.765 Km com a Colômbia, o Peru e a Bolívia. Segundo Nascimento, et al., (2017), estes países são responsáveis pela quase totalidade (95%) da produção mundial de cocaína. O Estado do Amazonas, localizado no norte do Brasil, possui 1/5 das fronteiras terrestres do país fazendo limite com esses países. Como consequência é o maior portal de ingresso de cocaína no estado brasileiro.
Tal situação, por si só já ensejaria a necessidade que o Estado do Amazonas possui de cuidado e atenção do poder público para a contenção do tráfico de drogas na fronteira. Contudo, o que se vê muitas vezes é total descaso. Nascimento et al., (2017) enfatizam que dos 21 municípios na Faixa de Fronteira no Estado do Amazonas, 16 apresentam coeficiente com menos de 1 policial para cada 1.000 habitantes, e assevera que o ingresso de cocaína no Brasil é o fator determinante da violência em nosso território. Para ele (2017, p. 186):
É inegável a relação entre o tráfico e o abuso de drogas ilícitas e esse quadro de recrudescimento da violência letal, marcado também pelo empoderamento das organizações criminosas. Chama a atenção, a relação do tráfico de drogas ilícitas com o aumento do risco social […].
Ao adentrar em território brasileiro a droga encontra um terreno extremamente fértil: um contingente de desempregados e carentes de educação, saúde, esporte, lazer e demais serviços; menores, adolescentes e adultos pobres e moradores da periferia tornam-se, dessa forma, presas fáceis nas mãos de poderosos traficantes.
Ao analisar os efeitos dos níveis de renda, do desemprego e da educação e a relação com a criminalidade, o economista Luiz Tadeu Viapiana conclui:
[…] o nível de renda e o desemprego podem incentivar a opção pelo crime. Quando a renda média do indivíduo é baixa ou nula (desempregado), os benefícios do crime compensam. Para um desempregado, o custo da renda perdida, em termos de tempo de prisão, é zero. Da mesma forma, o nível de educação da população também afeta os custos de oportunidade dos crimes (VIAPIANA, 2006, p. 39).
Afora as análises da Teoria Econômica do Crime, pela qual nutrimos certa distância teórica, não nos resta nenhuma dúvida que as condições de pobreza, carência, exclusão e falta de oportunidades são fatores determinantes que aguçam a criminalidade, aumentam a violência e entopem as prisões com jovens pobres da periferia.
Também é inegável, sob o ponto de vista dos Direitos Humanos e da Cidadania, atributos inerentes a cada cidadão, que a uma parcela substancial estejam sendo usurpados: cada cidadão tem Direito à Cidade, no sentido amplo e generalizante que abrange a compreensão dos direitos fundamentais, nos planos social e individual, que se efetivam (ou são negados). Sobre a delimitação do conceito de Direito à Cidade, comentam Iennaco e Moura (2016, p. 19):
[…] é o conjunto dos direitos humanos compreendido na perspectiva da “pessoa na/da cidade”. […] é a abordagem jurídica do urbano e da urbanidade, com toda a gama de direitos e garantias que lhes permeiam o acesso aos bens, produtos, serviços, comodidades e benefícios que a cidade pode produzir – com o anseio de que a Cidade se realize para todos, sem discriminação.
Os pobres em nossa cidade são expulsos para as periferias. Essa não é uma realidade exclusiva local. Porém, ao analisar o espaço urbano e sua conformação do ponto de vista do Direito à Cidade nos questionamos da relação entre urbanismo e criminalidade. Qual seria o impacto nos índices de violência se tivéssemos uma cidade mais inclusiva, plural e democrática? A falta de planejamento urbano, a desorganização, o crescimento aleatório das grandes cidades, não seriam também responsáveis pela violência hoje instalada? Por que penalizar apenas os jovens pobres, encarcerando-os numa prisão, como se os tais fossem os únicos responsáveis pelo quadro de violência? Por que o Estado, em vez de tratar nossos jovens como culpados, não os vê, primeiramente como vítimas das desigualdades?
São questões que requerem estudos, aprofundamento e principalmente, respostas.
Para Borja (2013, p. 147), o território urbanizado das regiões metropolitanas é “ao mesmo tempo, uma expressão da desigualdade social e um fator de seu próprio agravamento”. Mas como recorda Silva (2007), a segregação não é apenas um processo de separação dos moradores de uma cidade, ela está baseada em desigualdades maiores, principalmente no que diz respeito a condições sociais. Para a autora, quanto mais a cidade cresce, mais se intensifica a segregação: ela cresce e não agrega todos os moradores de forma semelhante, sua expansão causa a expulsão dos pobres das regiões mais centrais e os segrega em regiões pouco desenvolvidas.
Mesmo havendo pessoas pobres em toda a cidade, é na periferia que elas se concentram em maior número. Os níveis de criminalidade estão cada vez maiores e a qualidade de vida, cada vez pior. É exatamente essa população que necessita de uma atenção especial por parte do Estado com programas emergenciais que busquem minimizar seus agravos. Sobre o processo de urbanização brasileiro recordam Iennaco e Moura (2016, p. 87):
Nosso processo de urbanização pode ser resumido por um marcante descompasso entre as matrizes ou ideais que alimentaram a atividade de planejamento urbano e o rumo tomado pela produção do espaço urbano real, fazendo com que cada grande cidade acolha, em seu interior, ou na sua periferia, uma outra cidade: a não cidade. (Grifos do autor).
Para os autores, o papel que cabe a uma Criminologia Urbanística, no contexto latino-americano, é o da substituição do “paradigma da cidade” pelo da “não cidade” – com vistas a uma revisão ecológica do território ocupado pelos excluídos da cidade, pelo resgate da urbanidade, da Cidadania e dos Direitos Humanos. A criminologia crítica ancorada nos direitos humanos, por seu turno, permite converter as relações entre “poder e violência” e “direitos sociais na cidade” em diálogos instruídos por várias perspectivas epistemológicas.
O que se percebe é que a população excluída dos direitos sociais básicos tem sido seletivamente reprimida, em fenômeno que coincide com a tendência não criminalizadora das ações antissociais das classes hegemônicas. Paradoxalmente, as regiões degradadas, do ponto de vista dos instrumentos urbanísticos, condensam as ocorrências de crimes violentos com resultado de mortes, cuja vitimização assim, atinge quase que com exclusividade a população jovem e pobre marginalizada.
Como nos adverte Ermínia Maricato, a característica marcante dos bairros de moradia pobre são os altos índices de violência. Estes se referem especialmente aos jovens e, entre estes aos pardos e negros. Diferentemente do conceito formado na opinião pública, não é nos bairros de mais alta renda que a violência mostra sua face mais cruel. Para a autora:
A frequente morte de jovens nas ruas pode ser constatada exatamente em bairros que apresentam os mais baixos níveis de renda e escolaridade. Não por coincidência, esses bairros constituem regiões marcadas pela ilegalidade (na ocupação do solo e na resolução de conflitos) e pela precariedade em relação aos serviços públicos e privados (MARICATO, 2000, p. 164).
Destacada como a principal metrópole da Região Norte do Brasil, a cidade de Manaus que, de acordo com o Censo Demográfico de 2010, é o sétimo município do país em população, está localizada em uma das regiões mais belas e vulneráveis do país. Além de fazer parte de região de fronteira com os maiores produtores mundiais de cocaína, o Estado do Amazonas possui uma bacia hidrográfica que facilita o escoamento das drogas ilícitas, fazendo de Manaus um grande centro de distribuição e, também de consumo das drogas. Tal quadro traz como uma de suas nefastas consequências o altíssimo índice de encarceramento experimentado da história. Antes de adentrarmos, porém, sobre esse tema, faremos breve reflexão sobre prisão, pobreza e exclusão social, no contexto da violência urbana.
2 PRISÕES, POBREZA E EXCLUSÃO SOCIAL
Provavelmente, o primeiro relato da separação do corpo social daqueles que, de alguma forma, cometessem algum delito[2], está no livro de Levítico da Bíblia Cristã:
Será imundo durante os dias em que a praga estiver nele; é imundo, habitará só; a sua habitação será fora do arraial (Levítico 13:46).
A ideia era manter os leprosos em um local segregado da comunidade, onde pudessem ser observados e, de alguma forma, controlados.
Na Antiguidade, desconhecia-se a privação de liberdade total. A prisão dos que cometiam delito não possuía a natureza de pena; sua finalidade era a preservação da integridade dos réus até seu julgamento ou execução. Não havia uma arquitetura penitenciária própria, por isso os acusados eram mantidos em diversos lugares até o julgamento, como conventos abandonados, calabouços, torres, entre outros.
Nesta época, predominava o Código de Hamurabi ou a Lei do Talião, que possuía como princípio basilar o conhecido “olho por olho, dente por dente”, de base religiosa e moral vingativa (SOUZA, 2008).
Na Idade Média o crime era considerado um grande “peccatum”. Para São Tomás de Aquino, a pobreza era geralmente uma incentivadora ao roubo. Para Santo Agostinho, a pena de talião significava a justiça dos injustos.
As sanções da Idade Média estavam submetidas ao arbítrio dos governantes, que as impunham em função do “status” social a que pertencia o réu. A amputação dos braços, a forca, a roda e a guilhotina constituem o espetáculo favorito das multidões deste período histórico. Penas em que se promovia o espetáculo e a dor, como por exemplo a que o condenado era arrastado, seu ventre aberto, as entranhas arrancadas às pressas para que tivesse tempo de vê-las sendo lançadas ao fogo. Passaram a uma execução capital, a um novo tipo de mecanismo punitivo (MAGNABOSCO, 1998, p. 1).
Na Idade Moderna, a pobreza se estendeu por toda Europa e contribuiu para o aumento da criminalidade, de modo que a pena de morte deixou de ser uma solução diante de tanta delinquência. Assim, em meados do século XVI, iniciou-se um movimento para a criação e construção de prisões organizadas para a correção dos apenados, com o consequente desenvolvimento das penas privativas de liberdade. Estas prisões tinham como finalidade reformar os delinquentes por meio do trabalho e da disciplina. E a prevenção geral era o seu objetivo, uma vez que se pretendia desestimular outros da vadiagem.
No século XVIII, Cesare Beccaria e John Howard destacaram-se por provocar mudanças nas concepções pedagógicas de pena e por combater os abusos e torturas que se realizavam em nome do direito penal, conforme assinala Almeida:
Cesare Beccaria e John Howard buscaram identificar a pena com uma utilidade, defendendo que o encarceramento só se sustentaria se produzisse algum benefício ao preso, e não somente a retribuição de mal com outro mal. Com eles tem início o período que, por alguns, se convencionou chamar de Humanitário das prisões […] (ALMEIDA, 2006, p. 53).
São lançadas, dessa forma, as raízes do Direito Penitenciário, onde o condenado deixa de ser o objeto da Execução Penal e passa a ter reconhecidos os direitos da pessoa humana, e surge uma relação de Direito Público entre o Estado e o apenado. Um objetivo, dentre outros, é a proteção do condenado, de se respeitar a dignidade do homem como pessoa moral.
Contemporaneamente, a partir do impacto de trabalhos como os de Michel Foucault, autor de fundamental importância para a construção de novas formas de pensar a punição no âmbito da teoria social contemporânea, a questão da punição ganha destaque nos debates da teoria social no século XX. Em Vigiar e Punir, Foucault estuda as transformações das práticas penais na França, da época Clássica ao século XIX.
Para Foucault, na Modernidade, o objeto do ato de punir desloca-se do corpo para a alma do detento. Tanto a violência como a disciplina visam conformar um ser humano dócil e que ocupe um lugar predeterminado na sociedade. É sobre o corpo que a microfísica do poder atua para conseguir seus intentos. Ele explica como, na sociedade capitalista, a prisão evolui de um aparelho marginal ao sistema punitivo, a uma posição de centralidade como aparelho do controle social promovido pela singularidade do panóptico, modelo arquitetônico idealizado por Jeremy Bentham, cujo principal efeito é “induzir no detento um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder” (FOUCAULT, 2007, p. 177). O panóptico é também o princípio de uma nova tecnologia do poder (panopticismo), “um sistema de vigilância geral que se instaura na sociedade, estendendo-se desde as prisões até as fábricas, as escolas, os hospitais, os asilos, etc.” (BENTHAM, 2009, p. 17).
Para Foucault (2007), a prisão:
Se constituiu fora do aparelho judiciário, quando se elaboraram, por todo o corpo social, os processos para repartir os indivíduos, fixá-los e distribuí-los espacialmente, classificá-los e tirar deles o máximo de tempo, e o máximo de forças, treinar seus corpos, codificar seu comportamento contínuo, mantê-los numa visibilidade sem lacuna, formar em torno deles um aparelho completo de observação […]. (FOUCAULT, 2007, p. 195).
Importantes teóricos da Sociologia, Filosofia, do Direito escreveram sobre os diversos aspectos relacionados à prisão e seus conceitos (DURHAM, 1988; ADORNO, 1993; SANTOS, 2018; GARLAND, 1999; CASTELLS, 1999; SALLA, 2001; SPOSITO, 2001; WACQUANT, 2001; DE GIORGI, 2006, FOUCAULT, 2007; SOUZA, 2008; BEATO FILHO, 2012; ZALUAR, 2002). E nos parece que há um fato de razoável concordância, pelo menos entre a maioria deles: a evidência da estreita relação entre a exclusão social e a prisão. Diversos grupos sociais e minorias, tais como pobres, negros, mulheres, ciganos, moradores de rua, homossexuais, ao longo da história sofrem as mais variadas formas de exclusão. Nosso modelo econômico de mercado, que objetiva a mais-valia do trabalho, estimula a ampliação das diferenças sociais (indispensável para criar necessidades e propiciar mão de obra barata para o modelo). Nesse sentido, conforme afirma Wacquant:
Uma política de criminalização da miséria que é complemento indispensável da imposição do trabalho assalariado precário e sub-remunerado como obrigação cívica, assim como o desdobramento dos programas sociais num sentido restritivo e punitivo que lhe é concomitante. (2001, p. 96).
Dessa forma, o surgimento da prisão como instrumento da exclusão é uma consequência lógica desse modelo. Segundo Costa, et al., (2013, p. 3).
Esta relação entre a prisão e a realidade social de exclusão, aparece muito clara no texto de Wacquant (2001), que mostra que quando o Estado perde ou diminui seu poder sobre a sociedade, ele se apodera da área penal para continuar exercendo controle sobre os pobres. Esse retrato se enquadra naquilo que chamamos da passagem de um Estado Social para um Estado Penal, dito de outro modo, o Estado torna-se mínimo para as questões sociais e máximo para a questão penal.
A prisão, então, se conforma como um retrato fiel da sociedade: excludente, egoísta, onde predomina a “ausência” do Estado, punitiva e onde os direitos humanos não são respeitados. Na esteira dessa filosofia, o sistema prisional brasileiro, e por consequência, e do Estado do Amazonas configura-se, portanto, como um espaço medieval, ilegal e de desigualdade, de violência contra os mais pobres e excluídos.
3 A VIOLÊNCIA NOS PRESÍDIOS: MAIS INSEGURANÇA PÚBLICA
O ano de 2017 iniciou com um episódio de grande violência no sistema prisional amazonense. As rebeliões, tão contumazes no cenário nacional, dessa vez trouxeram à lembrança a pior tragédia ocorrida no país: o massacre do Carandiru, em São Paulo, no ano de 1992.
No entanto, diferentemente do ocorrido em São Paulo, onde as mortes se deram predominantemente pela ação da polícia, naquele ano, mais de 100 detentos foram assassinados em chacinas comandadas por facções criminosas em guerra, dentro de presídios brasileiros. Em Manaus, o Complexo Penitenciário Anízio Jobim, (COMPAJ), foi palco em janeiro de 2017 do que se considera a maior rebelião ocorrida no Estado do Amazonas, que resultou em 56 mortes.
As ordens para realização dos crimes, teriam partido dos presídios federais, onde estão as principais lideranças do tráfico de drogas e armas no Brasil. O cenário de guerra urbana localizada evidenciou que o controle das instituições penais, não estava nas mãos do Estado, mas, nas mãos das facções; e que as cadeias superlotadas, na verdade, não recuperam detentos, mas transformaram-se em verdadeiros sistemas de agenciamento e escritórios do crime organizado. Em maio de 2019, mais 55 pessoas foram mortas, em outra rebelião, no mesmo presídio, em Manaus.
Conforme dados do Infopen, em 2016 o Brasil chegou a 726,3 mil presos (BRASIL, 2019). Hoje, esse número supera 812.564 pessoas, segundo o Banco de Monitoramento de Prisões do Conselho Nacional de Justiça (número atingido em 17.07.2019) – (CNJ, 2018).
Os dados mostram que, do total da população carcerária, 41,5% (337.126) são presos provisórios – pessoas ainda não condenadas, que convivem, muitas vezes, no mesmo ambiente. Ainda há, em todo o país, 366,5 mil mandados de prisão pendentes de cumprimento.
A linha do tempo do sistema prisional, obrigatoriamente nos leva ao ano de 2009, quando a 3ª Sessão Legislativa da Câmara dos Deputados apresentou o Relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) com a finalidade de investigar a realidade do Sistema Carcerário Brasileiro. O relatório de 615 páginas retrata uma dura realidade com destaque para a superlotação dos presídios, os custos sociais e econômicos dos estabelecimentos penais, a reincidência, a violência dentro das unidades, a corrupção, o crime organizado e suas ramificações nos presídios, como aponta o trecho abaixo:
[…] deparamos-nos, ainda, com a insegurança que vem dos estabelecimentos penais, de onde grupos organizados controlam e manipulam a massa de presos pobres e despolitizados, e de lá comandam uma rede de subordinados e aliados na prática dos mais variados ilícitos (Brasil, 2009, p. 15).
Numa retrospectiva, o relatório da dita CPI destaca o avanço da criminalidade a partir de 1980 gerado pelo tráfico de drogas e armas, descreve a variedade de crimes, como roubo de carga, assaltos a bancos e empresas de valores, roubo de veículos e lavagem de dinheiro, além da previsão da elevação da população carcerária, caso não fossem adotadas políticas públicas preventivas.
A partir de dados do Infopen, verificamos que a população carcerária desde 1992 apresenta-se crescente. A partir do ano 2000, (Quadro 1) a uma média estimada de 7,55%, mas houve ano em que o percentual de crescimento atingiu quase 29%.
Quadro 01 – Aumento da População Carcerária no Brasil
Sistema Penitenciário Brasileiro |
|||
Ano | N. de presos | Percentual | Cresc. absoluto |
2000 | 232.755 | – | – |
2001 | 233.859 | 0,5% | 1.104 |
2002 | 239.345 | 2,3% | 5.486 |
2003 | 308.304 | 28,8% | 68.959 |
2004 | 336.358 | 9,1% | 28.054 |
2005 | 361.402 | 7,4% | 25.044 |
2006 | 401.236 | 11,0% | 39.834 |
2007 | 422.590 | 5,3% | 21.354 |
2008 | 451.219 | 6,8% | 28.629 |
2009 | 473.626 | 5,0% | 22.407 |
2010 | 496.251 | 4,8% | 22.625 |
2011 | 514.582 | 3,7% | 18.331 |
2012 | 548.003 | 6,7% | 33.421 |
2013 | 581.507 | 6,11% | 33,504 |
2014 | 622.202 | 6,99% | 40.695 |
2015 | 698.600 | 12,28% | 76.398 |
2016 | 726.712 | 4,02 | 28.112 |
Fonte: Adaptado do Ministério da Justiça/INFOPEN. BRASIL, 2019
Segundo projeções do relatório Infopen, em 2022 o Brasil poderá alcançar a marca de 1 milhão de presos. Ainda, para o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a população carcerária do Brasil é bem maior, quando se consideram aqueles detentos que estão em prisão domiciliar.
O Plano Nacional de Política Criminal e Penitenciária – 2015, documento que fixa diretrizes em atendimento ao art. 64, incs. I e II da Lei 7.210, de 11.07.1994 (Lei de Execução Penal) – , aborda os problemas e o que tem levado ao atual quadro, em que ocorre o crescimento contínuo da população carcerária, sem todavia, haver percepção de melhoria dos indicadores de segurança pública.
4 DIREITOS HUMANOS E GARANTIAS LEGAIS NA EXECUÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE
Podemos afirmar que o controle penal, a forma como se mantém e como são tratados os prisioneiros, é um termômetro de como são observados os direitos humanos em determinada sociedade. As medidas imediatas de controle predominantes são respostas de um sistema que busca resolver tudo por meio da punição.
Importante evidenciar a questão dos direitos humanos do preso que estão previstos em diversos estatutos legais. Internacionalmente existem várias convenções, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, e a Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem, das quais o Brasil é signatário. Além disso, os apenados, mesmo sendo criminosos, não perdem garantias constitucionais e legais previstas durante a execução da pena.
Na legislação específica – a Lei de Execução Penal – os incs. de I a XV do art. 41, dispõem sobre os direitos infraconstitucionais garantidos ao sentenciado no decorrer da execução penal.
Sob o aspecto legislativo, nosso estatuto executivo penal é tido como um dos mais avançados e democráticos existentes. Parte do pressuposto de que a execução da pena privativa de liberdade tenha por base o princípio da humanidade, e qualquer modalidade de punição desnecessária, cruel ou degradante será considerada de natureza desumana e contrária ao princípio da legalidade. Além disso, estabelece como princípio a ressocialização do apenado, e prevê mecanismos para que o mesmo possa ser reintegrado à sociedade.
Contudo, o que ocorre na realidade é a constante violação de direitos do apenado e a total inobservância das garantias legais a ele previstas. Ao passar para a tutela do Estado, perde-se não apenas o direito à liberdade, mas diversos direitos fundamentais, não alcançados pela sentença condenatória. Sofre-se um tratamento absolutamente condenável e os mais variados tipos de castigos, que contribuem para a degradação de sua personalidade, perda da dignidade, opressão e estado de medo, numa trama que não oferece qualquer possibilidade para seu eventual retorno, de forma útil e equilibrada, ao convívio social. As prisões têm sido a resposta para a ausência de políticas públicas, não apenas na segurança pública, mas em outras áreas, e se tornado espaço para tortura, desigualdade social, supervalorização do capital e repressão estatal (CASTELLS, 1999; ZALUAR, 2002; TANGERINO, 2007; MOURA, 2014; SANTOS, 2018).
É comum vermos nos noticiários denúncias do apenado sofrer torturas, agressões físicas e psicológicas, não apenas por parte de outros presos, membros das chamadas facções criminosas, como também dos próprios agentes prisionais.
Tais práticas cometidas por agentes prisionais e policiais acentuam-se, principalmente após rebeliões e tentativas de fuga. Mesmo após serem dominados, os amotinados sofrem a chamada “correição”, que nada mais é do que o espancamento que se segue à contenção dessas insurreições, que tem a natureza de castigo. Isso ocorreu recentemente, quando da última rebelião no Compaj, em Manaus, em maio de 2019, onde algumas dessas atrocidades foram gravadas em vídeos, e estes, amplamente divulgados nas redes sociais.
Muitas vezes há excessos, e o espancamento termina em execução, como no caso, já citado, do “massacre” do Carandiru em São Paulo, no ano 1992, no qual oficialmente foram executados 111 presos.
Entre os próprios presos a prática de atos violentos e a impunidade ocorrem de forma ainda mais exacerbada. Homicídios, abusos sexuais, ameaças, espancamentos e extorsões são uma prática comum dentro do ambiente prisional. Num ambiente como este, é fácil compreender a proliferação das facções criminosas: para se ver “protegido” dentro do cárcere, o apenado se filia à facção que domina o presídio. Do contrário, sofrerá as agruras de não fazer parte da “família”. Uma vez dentro da facção é obrigado a praticar os mais diversos “serviços” à mesma, tais como, roubos e assassinatos, bem como contribuir para a manutenção de seus líderes. Interessante também evidenciar um outro aspecto do comportamento do preso: estão lá por não conseguirem amoldar seu comportamento às regras de boa convivência da sociedade; no entanto, a prisão, obrigatoriamente, molda esse comportamento. É impressionante como, dentro da prisão, as pessoas adotam comportamentos muito mais restritos e difíceis. Caso contrário, a punição é certa.
Sabidamente, o Poder Judiciário é lento em nosso país. Diariamente, vemos notícias relativas à demora dos processos, não apenas na esfera cível, mas sobretudo na esfera penal. Essa morosidade da justiça também contribui para o quadro do sistema penal, uma vez que a demora em se conceder os benefícios àqueles que já fazem jus à progressão de regime, ou em soltar os presos que já cumpriram sua pena, ou em defender os direitos dos apenados, contribui para que a população carcerária não tenha o decréscimo que deveria. Outro fato alarmante que fere os Direitos Humanos e Cidadania é o número cada vez mais crescente de presos provisórios nos presídios. Pessoas que ainda nem foram condenadas tratadas como se fossem; sofrendo todos os dissabores e inclemências do Sistema Penal decadente.
A ineficácia dos órgãos responsáveis pela execução penal pode configurar constrangimento ilegal o que ensejaria, eventualmente, a responsabilidade civil do Estado, ao manter encarcerados com evidente excesso de prazo.
Não podemos nos esquecer, ainda, da Defensoria Pública, sobrecarregada com as mais variadas causas cíveis e ainda encarregada da defesa dos acusados que não têm condições de pagar a um advogado. Quando verificamos que mais de 95% dos que estão presos hoje são definidos como pobres, podemos compreender o qual hercúleo é o trabalho desse importante órgão de justiça.
Além desses, podemos também citar a superlotação, a falta de atividade, a ausência de assistência à saúde, educação e assistência social como exemplos claros da violação de direitos e das garantias legais daqueles que estão sob a custódia do Estado.
Destaque-se também, que o presente Artigo, não tem como premissa a visão romântica e equivocada, de que todos os apenados “são bons”, ou que devemos nos preocupar apenas com os criminosos, enquanto as vítimas, na maioria das vezes, clamam por justiça. A realidade é que buscamos provocar uma reflexão ao descrever e analisar algumas das nuances do sistema penitenciário sob a ótica da legalidade, dos Direitos Humano e da Cidadania, princípio fulcral do Estado de Direito. Além disso, não se pode perder de vista a instrumentalidade da Lei de Execuções Penais cujo objetivo maior é a ressocialização e reinclusão no meio social, com o objetivo de obter-se a pacificação social.
Não defendemos que os criminosos não devam ser devidamente apenados; defendemos que o cumprimento da pena se dê dentro do que prevê a legislação, fruto da discussão com a sociedade e gestada por seus representantes. Não existe em nosso país, pena de morte, pena de tortura, penas degradantes, de violência, de humilhação e coisas do gênero. Quando o Estado não cumpre seu papel de fazer e de, sobretudo, ele mesmo cumprir a legislação, batemos às portas da barbárie social. Na verdade, muito próximo do que enfrentamos hoje.
Porém, mais importante que atuar na consequência urge a necessidade de pensar nas causas: Por que as prisões estão superlotadas de tantos jovens pobres da periferia? O que falar do Princípio da coculpabilidade que envolve o Estado?
O panorama apresentado evidencia que estamos numa trajetória trágica, onde as perspectivas não são as melhores: aumento da população carcerária sem diminuição da criminalidade, alto índice de reincidência prisional, multiplicação e fortalecimento das facções criminosas, aumento da demanda por gastos com prisões, desrespeito sistemático aos direitos humanos e violação do estado de direito.
De igual forma, também não podemos deixar de questionar: o que de fato não tem dado certo em nosso modelo de sociedade? No que temos errado em nosso processo civilizatório?
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Concordamos com Santos (2018), quando sustenta que no Brasil há uma distância abissal entre o que está pactuado nos documentos de proteção aos direitos humanos com a realidade apresentada na sociedade, no trato com os mais pobres e necessitados e, também em nossos presídios. As prisões têm sido a resposta para a ausência de políticas públicas e se tornado espaço para tortura, desigualdade social e repressão estatal (TANGERINO, 2007; SANTOS, 2018).
Também corroboram com tal pensamento Iennaco e Moura (2016, p. 90), quando afirmam: “[…] o Direito Penal em sociedades marcadas pela desigualdade, é um Direito Penal desigual, que cumpre inversa e paradoxalmente, o aperfeiçoamento de mecanismos excludentes”. O sistema penal brasileiro reflete os valores vigentes em nossa sociedade, torna-se uma ferramenta ideológica, reflete a ideologia política, sociológica e filosófica da classe dominante. Na mesma linha, Zaffaroni e Pierangeli sustentam: “[…] o direito é sempre expressão do poder da classe dominante, que impõe seus valores do bem e do mal às classes dominadas” (1997, p. 248). E ainda:
O criminoso é simplesmente aquele que se tem definido como tal, sendo esta definição produto de uma interação entre o que tem o poder de etiquetar (´teoria do etiquetamento ou labelling theory´) e o que sofre o etiquetamento, o que acontece através de um processo de interação, de etiquetamento ou de criminalização. (1997, p. 320).
O Direito torna-se, portanto, instrumento para manter e perpetuar a estratificação de classes sociais. O Direito Penal e o sistema penal, como instrumentos de controle social, muito embora apresentados como sendo de natureza igualitária, que visam alcançar igualmente as pessoas, em função de suas condutas, na verdade selecionam, marginalizam e excluem, cada vez mais, os menos favorecidos financeiramente, pois não se encaixam no modelo idealizado. Uma forma de se obter o poder, numa visão panóptica que se centra na vigilância como adestramento do corpo para alcançar a educação da alma, exatamente como preceitua Michel Foucault, aqui já citado.
Prevalece o velho ditado: segregar os que incomodam.
A não cidade (cidade esquecida ou informal) abriga os não cidadãos (os excluídos da cidade formal). O modelo de cidade excludente, como é o nosso, distribui, desigual e seletivamente, a morte violenta em seu território. O Estado tem sido omisso na implementação de políticas urbanas diferenciadas que priorizem a proteção da vida da população vulnerável – especialmente a juventude pobre que habita as zonas excluídas da cidade, os desprovidos do Direito à Cidade, ainda que habitem em seu espaço territorial. Aos excluídos pouco lhes resta. E o encarceramento é um destino possível.
Todavia, a pena privativa de liberdade não se revela como remédio eficaz para ressocializar o homem preso. Não no modelo hoje existente. Os dados da reincidência dos criminosos oriundos do sistema carcerário comprovam essa realidade. Embora não haja números oficiais, calcula-se que, no Brasil, em média, 90% dos ex-detentos que retornam à sociedade voltam a delinquir, e, consequentemente, acabam retornando à prisão (VIAPIANA, 2016; IENNACO & MOURA, 2016; HAN, 2018).
Essa realidade é um reflexo direto do tratamento e das condições a que o condenado foi submetido no ambiente prisional, durante o seu encarceramento, além do sentimento de rejeição, etiquetamento e de indiferença sob o qual ele é tratado pela sociedade e pelo próprio Estado ao readquirir sua liberdade. O estigma de ex-detento e total desamparo pelas autoridades fazem com que o egresso do sistema carcerário se torne marginalizado no meio social, o que acaba levando-o de volta ao mundo do crime, muitas vezes, por falta de melhores opções.
Por fim, também temos a compreensão que, pelo fato de estarem totalmente inter-relacionados, dentro de uma mesma conjuntura, a falência do sistema prisional e nosso modelo econômico, não há uma expectativa de melhoria do sistema penitenciário e nem uma redução dos índices de criminalidade se não forem revistos o modelo de política econômica e social atualmente implementados pelos governantes de nosso país. Questões como Segurança Pública, Cidadania e Direitos Humanos não comportam soluções mágicas ou fáceis, frutos de análises superficiais ou de conveniências externas que levem em consideração somente as consequências da violência.
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Notas de Rodapé
[1] Doutora em Educação pela Universidad Católica Santa Fe/Arg; Mestre em Segurança Pública, Cidadania e Direitos Humanos da Universidade do Estado do Amazonas/UEA; Professora e Coordenadora do curso de Pós-Graduação em Gerontologia e Saúde do Idoso, da Fundação Universidade Aberta da Terceira Idade/FUNATI . E-mail: luizapmeleiro@hotmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2939021325682334
[2] No caso, a lepra estava associada ao pecado do homem, segundo a crença cristã da época.