AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA: DESAFIOS E EXPECTATIVAS

DOI: 10.19135/revista.consinter.00008.13

Mário Luiz Ramidoff[1] – ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0777-4944

Henrique Munhoz Bürgel Ramidoff[2] – ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5470-5725

Resumo: Este trabalho foi desenvolvido por estudos e pesquisas direcionados à compreensão da organização estrutural e funcional da audiência de custódia. A audiência de custódia é uma garantia de cunho fundamental, pois encontra seu fundamento legal na parte final do § 2º do art. 5º da Constituição da República de 1988 que, por sua vez, reconhece como fonte de lei, no e para o Ordenamento Jurídico brasileiro, os tratados e convenções internacionais em que o Brasil é parte. Por isso, entende-se que, dentre os tratados e convenções internacionais em que o Brasil é signatário, destaca-se o Pacto de São José da Costa Rica como fundamento do direito à audiência de custódia. A própria Resolução 213/2015 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) fez menção direta ao Pacto de São José da Costa Rica, não só como fundamento político-ideológico pertinente à efetivação dos direitos humanos das pessoas que se encontram privadas de liberdade, mas, também, como fundamento legal (fonte de lei) de observância obrigatória no Brasil. A audiência de custódia, assim, constitui-se como uma das estratégias humanitárias a serem adotadas pela atual processualística penal para a redução do número de pessoas privadas de liberdade, ainda, que, provisoriamente, em razão da superpopulação carcerária. A audiência de custódia, desta maneira, contribui decisivamente para o controle dos desvios que comumente acontecem nas situações de privação da liberdade provisória – em especial, nos casos de prisão em flagrante.

Palavras-chave: Audiência de custódia. Direitos humanos. Privação de liberdade. Processo penal. Tratados internacionais.

Abstract: This course conclusion paper was developed with studies and research directed to understanding the structural and functional organization of the custody hearing. The custody hearing is a fundamental guarantee, because it is legally based in the final part of § 2 of article 5, of the Brazilian Constitution, which recognized as a source of law, in and to the Brazilian legal system, international treaties and conventions which Brazil is a part of. Therefore, it is understood that among the international treaties and conventions to which Brazil is signatory, the Pact of San José of Costa Rica stands out as the basis of the right of custody hearing. The resolution n. 213/2015 of the National Council of Justice (CNJ) mentioned the Pact of San José of Costa Rica not only as a political and ideological relevant to the enforcement of human rights of the people who are deprived of freedom, but also as a legal foundation (source of law) mandatory observance in Brazil. The custody hearing is a humanitarian strategy to be adopted by the current criminal process, to reduce the number of people deprived of liberty, even if provisionally, because of overcrowding. The custody hearing, contributes to the control of deviations that commonly occur in the deprivation of liberty – especially in cases of arrest in flagrante delicto.

Keywords: Custody hearing. human rights. Deprivation of liberty. Criminal proceedings. International treaties.

INTRODUÇÃO

A implementação da Audiência de Custódia tem gerado muita discussão e conflitos na esfera jurídica, seja por conta da doutrina, que pouco tem abordado teoricamente a “recente” temática, seja por conta da variedade procedimental que, na prática processual penal, pode ser constatada em razão da falta de regulamentação legal sobre a matéria.

As audiências de custódia, embora encontrem fundamento nas diretrizes humanitárias estabelecidas no Pacto de São José da Costa Rica – Tratado Internacional, do qual o Brasil é signatário, e, portanto, constituindo-se fonte de lei, nos termos do § 2º, in fine, do art. 5º da Constituição da República de 1988 –, somente foram trazidas, de fato, à prática no Sistema Jurídico brasileiro, através da regulamentação do Conselho Nacional de Justiça – Resolução 213/2015.

Contudo, observa-se que o Regulamento supramencionado apenas estabeleceu regras procedimentais para a realização dessas audiências, motivo pelo qual é possível constatar que os atos procedimentais são adotados de maneira diferenciada em cada Estado da federação.

A inexistência de uma legislação federal que regulamente, de forma pontual, cada um dos atos procedimentais – senão, o próprio rito processual/procedimental especial – e, assim, delimite a atuação de cada um dos envolvidos nas audiências de custódia, faz com que sejam adotadas interpretações personificadas ou em razão de critérios regionais que, inevitavelmente, resultam em controversas formas de procedimentos, relativizando-se, por assim dizer, o princípio do devido processo legal (penal).

É necessária, portanto, uma abordagem teórica, através do estudo e da pesquisa, a respeito das problemáticas supramencionadas, tendo-se em conta a recente regulamentação das audiência de custódia – Resolução 213/2015 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) –, com o objetivo de verificar a possibilidade de compreensão e entendimento dos pontos que deveriam ser melhor estruturados e ordenados, para que, de fato, seja um relevante progresso em relação a todo ordenamento jurídico, com o enfoque principal no Direito Processual Penal e nos Direito Humanos.

De outro lado, é preciso destacar que a audiência de custódia, constitui-se em uma das estratégias humanitárias a serem adotadas pela atual processualística penal para a redução do número de pessoas privadas de liberdade, ainda, que, provisoriamente, em razão da superpopulação carcerária; e, como controle de desvios de poder que comumente ocorrem tanto na privação da liberdade, quanto na sua indevida e infundada manutenção.

A audiência de custódia, desta maneira, contribui decisivamente para o controle dos desvios que comumente acontecem nas situações de privação provisória de liberdade – em especial, nos casos de prisão em flagrante.

Essas questões, por si sós, demonstram a relevância da temática estudada e pesquisada para a elaboração deste trabalho, em razão mesmo de suas características legais e sociais que são de fundamental importância para a democratização do processo penal, que, para o mais, constitui-se, sim, em uma das principais manifestações de poder do Estado.

Pois, como se sabe, o processo penal como manifestação de poder, constitui-se no caminho a ser percorrido para que validamente o Estado possa realizar a intervenção de cunho repressivo-punitivo, no âmbito social, a título de prestação de serviço público (atividade negativa) para controle legal – e que se pretende legítimo (autorizativo e justificador) – da restrição de liberdades públicas.

1 PACTO DE SÃO JOSÉ DA COSTA RICA

Os direitos humanos, atualmente, passaram a ser considerados como o mínimo ético existencial a ser universalmente difundido, e, adotado, não só nos sistemas internacionais, mas, principalmente, em cada um dos ordenamentos jurídicos internos dos Estados.

Neste sentido, Guilherme Assis de Almeida tem defendido a ideia de que a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 é a matriz do Direito Internacional dos Direitos Humanos, senão, que, “foi a forma jurídica encontrada pela comunidade internacional para eleger os direitos essenciais para a preservação da dignidade do ser humano[3].

Os pactos internacionais, portanto, constituem-se em consolidações jurídicas (legais) de tudo aquilo que é discutido e aceito pelas nações que participam da comunidade internacional como anseio comum de seus povos.

E isto é resultante da orientação principiológica denominada de autodeterminação dos povos, que, inclusive, encontra-se objetivamente consignada no inc. III do art. 4º da Constituição da República de 1988, in verbis:

Art. 4º. A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:

[…]

III – autodeterminação dos povos.

Na regência da ordem internacional, o princípio norteador das relações exteriores do Brasil é o da prevalência dos direitos humanos, conforme o inc. II do art. 4º da Constituição da República de 1988, ou seja, a constitucionalização das relações internacionais. É o que afirma Pedro Dallari, para quem, o “respeito aos direitos humanos como paradigma propugnado para a ordem mundial remete, necessariamente, para a questão da eficácia dos sistemas internacionais de regras voltadas para a proteção dos indivíduos em face da ordem jurídica interna[4].

A audiência de custódia, por isso mesmo, encontra-se em linha de proteção dos indivíduos que, no Brasil, e, portanto, em razão do ordenamento jurídico pátrio, encontram-se provisoriamente privados da liberdade, contudo, de maneira irregular e/ou inválida.

Isto é, busca-se, em relação aos tratados e convenções internacionais em que o Brasil é signatário, predominar a plena integração ao ordenamento jurídico brasileiro para a eficácia dos sistemas internacionais que assegurem direitos humanos, que, possuem como expressões os direitos individuais e as garantias fundamentais assegurados ao agente que se encontra privado de liberdade.

Nos termos do § 2º do art. 5º da Constituição da República de 1988, os tratados e convenções internacionais em que o Brasil for signatário, passam, assim, a constituir fonte de lei, e, portanto, vinculam a todos.

Por isso mesmo, é possível dizer que o Pacto de São José da Costa Rica constitui-se em fonte de lei, no ordenamento jurídico brasileiro, uma vez que o Brasil é um dos seus signatários, resolvendo-se, assim, uma das importantes questões levantadas acerca do fundamento de validade (legalidade) da obrigatoriedade da realização da audiência de custódia.

A responsabilização penal é uma das atribuições legais reconhecidas ao Estado como forma de reconhecimento de sua própria soberania, isto é, tanto de formulação legislativa de regras penais, quanto de sua aplicação judicial e execução administrativa.

A responsabilização penal do agente a quem se atribui a prática de conduta então considerada delituosa caracteriza-se, por assim dizer, em uma atividade negativa, a qual tem por fundamento o binômio repressivo-punitivo que se realiza através da restrição e supressão de direitos.

Em razão disto, a responsabilização penal é estritamente limitada, pois se constitui em uma intervenção estatal de cunho repressivo-punitivo, a qual utiliza-se de instrumentos coercitivos – como, por exemplo, a privação da liberdade do agente – não só como resposta estatal à prática da conduta delitiva, mas, também, como maneira de garantir a ordem pública, a instrução criminal, e a aplicação da lei penal – nos termos dos arts. 311 e 312 do Código de Processo Penal.

Neste sentido, a prisão processual, isto é, a privação da liberdade antes e ao longo da instrução criminal (persecução penal) deve também se orientar pelos limites estabelecidos pelas opções constitucionais e legais que têm origem no alinhamento internacional com os direitos humanos.

É precisamente, aqui, que ressalta a importância da realização da audiência de custódia não só como garantia fundamental à pessoa que se encontra privada da liberdade, mas, também, como confirmação do Estado de Direito e manutenção do regime democrático.

Daí, pois, a importância da compatibilização entre as orientações pertinentes aos direitos humanos e os limites constitucionais e legais estabelecidos à responsabilização penal do agente; e, neste sentido, a audiência de custódia tem servido tanto como limite à intervenção estatal (persecução penal), quanto como critério de verificação da constitucionalidade (democratização) através da análise da regularidade e validade da privação da liberdade.

A Convenção Americana de Direitos Humanos, ou Pacto de São José da Costa Rica, constitucionalmente acolhido ao ordenamento jurídico brasileiro nos termos do § 2º do art. 5º da Constituição da República de 1988, abordou conceitos normativos que ampliam direitos individuais e garantias fundamentais.

Os direitos individuais e as garantias fundamentais da pessoa que se encontra provisoriamente privada de liberdade ainda, assim, devem ser respeitados e, portanto, constituem-se em limites objetivos à intervenção estatal que se realiza não só através do desenvolvimento das atribuições legais pela Autoridade Policial, mas, também, por meio de atos processuais e procedimentais realizados quando do desenvolvimento de atribuições legais dos operadores do Direito que atuam perante o Sistema de Justiça Penal.

Dentre os direitos individuais e as garantias fundamentais que se encontram constitucional e legalmente assegurados, observa-se que ressurge a importância de destacar o direito individual a não ser submetido a qualquer tratamento cruel, desumano e/ou degradante, e, muito menos, à prática de tortura – que, por vezes, pode decorrer das circunstâncias, das condições, do modo e/ou dos motivos pelos quais se deu a privação provisória da liberdade do agente.

Daniela Ribeiro Ikawa[5], por sua vez, destaca a proteção oferecida às pessoas que se encontrem de qualquer forma privadas de liberdade, com base em documentos internacionais, que, tem por finalidade repelir a prática de toda forma de tortura, tratamento ou punição cruel, desumana ou degradante, in verbis:

No tangente ao sistema global de proteção de direitos humanos, cabe citar a Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948 (art. 5º), os Padrões Mínimos para o Tratamento de Prisioneiros, de 1955 (Standard Minimum Rules for Treatment of Prisioners), o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, de 1966 (art. 7º), a Declaração pela Proteção de Todas as Pessoas contra a Submissão à Tortura ou a Qualquer Forma de Tratamento ou Punição Cruel, Desumana ou Degradante, de 1975, o Corpo de Princípios para a Proteção de Todas as Pessoas sob Qualquer Forma de Detenção, de 1988, e os Princípios Básicos de Tratamento de Prisioneiros, de 1990. No tocante ao sistema regional de proteção de direitos humanos, insta destacar a Convenção Americana de Direitos Humanos, de 1969 (art. 5º), a Carta Africana de Direitos Humanos e de Direitos dos Povos, de 1981 (art. 5º), a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, de 1985, e a Convenção Europeia para a Prevenção da Tortura, de 1987.

É preciso reconhecer, respeitar, assegurar e difundir – através da mobilização da opinião pública – o direito individual, de cunho fundamental, a não ser submetido a qualquer espécie de tortura, tratamento cruel, desumano, degradante, aqui, destacadamente, sempre que se realizar a privação provisória da liberdade do agente a quem se atribui a prática de conduta considerada delituosa (crime).

Em razão disto, observa-se que a audiência de custódia para além da sua objetividade procedimental de servir como controle judicial da privação provisória da liberdade através da verificação das circunstâncias e das condições em que se deu a prisão, também, deverá levar em consideração a sua necessidade, adequabilidade e proporcionalidade.

A necessidade que pode autorizar a privação provisória da liberdade é somente aquela que se apresenta como evidente, isto é, “quando as situações de fato demonstrarem que a liberdade do indiciado/acusado é nociva ao desenvolvimento processual e à eventual execução de provimento condenatório”, como bem destaca Luiz Antonio Câmara[6], para quem:

[…] ainda que presente a prova da materialidade do delito e indícios suficientes da autoria – às vezes prova evidente desta –, não se verificando in concreto que a adoção da medida sirva para facilitar a produção de provas (que o acusado dificultaria ou mesmo impossibilitaria) ou para garantir que não se furtará ele à aplicação da lei, em suma, não estando presentes os pressupostos cautelares, não se pode admitir a imposição de medida restritiva da liberdade pessoal. Mais: a cautela pode se mostrar necessária num dado momento e deixar de sê-lo em outro. Por imposição do princípio da necessidade será revogada e, sobrevindo elementos que a imponham, pode ser novamente decretada. Isso foi objeto da reforma legislativa, no § 5º do art. 282 e já constava do art. 316 relativamente à custódia preventiva.

A adequabilidade, de igual maneira, constitui-se em uma outra importante referência para a análise da aptidão da privação provisória da liberdade como medida capaz e suficiente para obstar o risco do agente a quem se atribui a prática de uma conduta delituosa (crime) permanecer solto.

O inc. II do art. 282 do Código de Processo Penal expressamente dispõe que “adequação da medida à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado”, e, assim, descreve normativamente o conteúdo substantivo do que se tem denominado de princípio da adequabilidade.

E, assim, entende-se que o princípio da adequabilidade também deve servir como vetor orientativo para a verificação da regularidade e da validade da privação provisória da liberdade, através da realização da audiência de custódia, pois, como bem observa Luiz Antonio Câmara[7], in verbis:

Refira-se que o princípio não tem aplicação exclusiva em relação a diversidade de medidas cautelares de mesma natureza (pessoal ou real). Ele reclama eficácia, também, quando medida de uma natureza se mostra menos gravosa que outra de natureza diversa, devendo ser imposta aquela que restrinja com menor intensidade direitos do investigado ou acusado.

A proporcionalidade, de outro lado, importa mesmo em um prognóstico acerca da viabilidade e/ou imprescindibilidade ou não da manutenção da privação provisória da liberdade do agente, que, ao final, muito provavelmente poderá ser responsabilizado criminalmente, e, assim, cumprir pena privativa de liberdade.

De acordo com Luiz Antonio Câmara[8], a proporcionalidade também pode ser identificada como uma regra orientativa (principiológica), e, que, por isso mesmo, deve vincular não só a Autoridade Policial, mas, principalmente, o Juiz de Direito que presidir a audiência de custódia, uma vez que: “[…] por força da eficácia deste princípio a tutela cautelar deve expressar-se através de médio que equivalha ao regime de cumprimento de pena autorizado pela sanção projetada”.

Não fosse isto, observa-se que caso a privação provisória da liberdade, de qualquer maneira, constitua-se em um tratamento cruel, degradante ou desumano, seja em razão de sua desnecessidade, de sua inadequabilidade ou de sua desproporcionalidade, certamente, para fins de regularidade e validade legal, deverá em sede de audiência de custódia ser séria e sinceramente considerado para, assim, servir de fundamento para a concessão de liberdade provisória do agente.

A audiência de custódia, assim, passa ser um direito individual do agente que se encontra privado de liberdade de então entrevistar-se com a Autoridade Judiciária, através da garantia fundamental de que isto também seja desenvolvido através do devido processo legal e os seus consectários da ampla defesa e do contraditório substancial – daí, pois, a importância da regulamentação da audiência de custódia, através da Resolução 213/2015 do Conselho Nacional de Justiça, conforme será adiante analisado.

A audiência de custódia, assim, consolida o entendimento de que o processo e o procedimento penal não podem ser flexibilizados a título de responsabilização criminal do agente a quem se atribuiu a prática de conduta considerada delituosa, por mais hediondo que seja o crime e/ou por mais graves que tenham sido as suas consequências.

Por isso mesmo, a audiência de custódia deve seguir as orientações do que se entende por processo penal democrático, então, consagrado pelo princípio constitucional do devido processo legal, bem como por seus consectários da ampla defesa e do contraditório substancial.

A audiência de custódia deve, assim, ater-se ao que procedimentalmente se encontra regulamentado pela Resolução 213/2015, ainda que se possa argumentar com base na constatação sociológica de que ainda existe uma baixa expectativa social sobre a normatividade vinculante das leis.

A baixa expectativa social acerca da vinculação normativa também tem determinado uma alta desconfiança do Sistema de Justiça Penal – sentimento de impunidade – decorrente mesmo da intangibilidade da jurisdição, que, por certo, através da obrigatoriedade da apresentação e da entrevista direta e pessoal do agente que se encontra preso com a Autoridade Judicial, restará reduzida.

2 AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA

A denominada “audiência de custódia” é um projeto do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que se encontra, atualmente, regulamentado pela Resolução 213/2015, cuja objetividade é a imediata apresentação de pessoa detida em flagrante delito ao órgão julgador competente, em matéria penal.

Este novel ato processual, isto é, a realização da audiência de custódia, possui procedimento penal específico, no qual deve contar não só com a presença do órgão julgador, mas, também, com os demais atores processuais penais, ou seja, com o órgão de execução ministerial, Defensor Público, Constituído ou Nomeado – para além é certo da pessoa detida.

No entanto, observa-se que o supramencionado projeto regulamentado pela Resolução 213/2015 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) ainda depende de uma sensível reorganização estrutural e funcional – material e pessoal – para o efetivo cumprimento das novas atribuições legais a serem desenvolvidas pelos atores processuais penais antes, durante e depois da realização da audiência de custódia.

O projeto “audiência de custódia” está sendo aos poucos implementado nos Juízos de Direito com competência criminal, em todo o país; mas, ainda é preciso estabelecer parâmetros para o integral cumprimento dos atos procedimentais, com o intuito de que sejam asseguradas as liberdades públicas, isto é, os direitos individuais e as garantias fundamentais da pessoa que se encontra provisoriamente privada de liberdade – e, que, assim, deverão ser observados durante a realização desse novo ato procedimental.

Pois, desta maneira, será possível evitar a burocratização e os demais desvios de poder através desta nova estratégia processual penal, que, para o mais, tem o objetivo de evitar a médio prazo o encarceramento em massa – destacadamente, a título de prisão provisória[9].

Assim, a partir do advento da Resolução 213, de 15.12.2015, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) estabeleceu parâmetros mínimos para assim determinar que “toda pessoa presa em flagrante delito, independentemente da motivação ou natureza do ato, seja obrigatoriamente apresentada, em até 24 horas da comunicação do flagrante, à autoridade judicial competente, e ouvida sobre as circunstâncias em que se realizou sua prisão ou apreensão apresentação da pessoa”, conforme a disposição do caput de seu art. 1º.

No entanto, inúmeras questões relativas aos atos procedimentais, ao rito procedimental, e à competência jurisdicional ainda permanecem dependentes de solução adequada. Em razão disto, permanece a problemática acerca da organização estrutural e funcional para a realização das audiências de custódia, no Brasil.

A questão fundamental que impulsiona a presente pesquisa pode ser objetivamente consignada nas indagações de: a) como deveriam ser procedimentalmente realizadas as audiências de custódia, em todo o Brasil?; b) qual deveria ser o procedimento especial e os seus respectivos limites processuais penais?; e, c) qual o limite da atuação jurisdicional em relação à matéria a ser abordada, segundo o disposto no art. 8º da Resolução 213/2015 do Conselho Nacional de Justiça?

Atualmente, no Brasil, grande parcela da população carcerária é de pessoas presas provisoriamente. Isto pois, a prisão não tem caráter permanente, não há sentença e, além disso, não há certeza na acusação formalmente apresentada. A prisão em flagrante delito é uma demonstração exemplificativa da prisão provisória.

Diversas vezes, durante o procedimento de apreensão em flagrante delito, são constatados abusos por parte das autoridades responsáveis por deter o acusado. São verificados desde abusos na abordagem policial, até, em casos mais extremos, porém não incomuns, maus-tratos e tortura do apreendido.

Assim, espelhando-se nos tratados e acordos internacionais nos quais o Brasil é signatário, e visando adequar o processo penal brasileiro à tais tratados – em especial os Tratados Internacionais de Direitos Humanos –, a fim de sanar, ou pelo menos controlar, as supramencionadas dificuldades enfrentadas atualmente, faz-se necessária a implementação do procedimento da audiência de custódia no processo penal brasileiro.

Com a adoção da audiência de custódia ao ordenamento processual penal brasileiro, toda pessoa apreendida em flagrante delito teria o direito de ser apresentada, em um curto prazo, à uma autoridade judicial competente para que seja ouvida a respeito das circunstâncias em que se deram sua apreensão. Com base nesta audiência, a autoridade judicial competente poderia, desde logo, decretar a prisão preventiva da pessoa apreendida em flagrante delito, bem como decretar sua liberdade provisória, ou aplicar qualquer outra medida acautelatória prevista no Direito Penal brasileiro.

Deste modo, visa-se conter a superlotação do sistema carcerário brasileiro, e, principalmente, pretende garantir os direitos fundamentais da pessoa apreendida, previstos na Convenção Americana de Direitos Humanos, devidamente ratificado pelo Brasil.

Bem como já fora dito, antes do debate acerca das inúmeras problemáticas enfrentadas na recente temática sobre a audiência de custódia, é importante observar que ainda é necessária uma abordagem sobre os atos procedimentais, o rito procedimental e os demais requisitos e pressupostos para a regular e válida realização da audiência de custódia, neste trabalho de pesquisa.

Diante da discussão tomada a partir do Projeto de Lei do Senado 554/2011, entre o Senado Federal e a Câmara dos Deputados, inclusive, sobre a possibilidade legal de uma proposta de Emenda Constitucional, e de outros projetos de lei também almejando a implantação da audiência de custódia, o Conselho Nacional de Justiça, em fevereiro de 2015, iniciou um projeto com o objetivo de inserir a audiência de custódia, como projeto-teste, no Estado de São Paulo, tendo como parceiros para esta árdua missão, o Tribunal de Justiça e o Ministério Público do Estado de São Paulo.

O resultado desse piloto foi fundamentalmente importante para a consolidação de entendimentos teóricos e para a definição de diversos atos e procedimentos que seriam indispensáveis para realização da audiência de custódia, com o intuito de que fosse paulatinamente melhorado o procedimento.

Isto foi importante também para que se pudessem ser estabelecidos inúmeros parâmetros, haja vista que muitas vezes eram desrespeitados diversos direitos da pessoa presa em flagrante delito.

Desta forma, viu-se necessária a implementação dessa nova experiência em todo o Brasil, contudo, a ser adaptada não só à realidade carcerária nacional, mas, também, aos princípios gerais do processo penal, enquanto expressões dos limites a serem observados pelo Estado democrático (constitucional) de direito e, com isso, objetivando um melhor tratamento e especialização do procedimento destinado à pessoa que foi detida em flagrante delito.

Desta maneira, os Tribunais de Justiça Estaduais começaram a aderir, também, ao projeto realizado pelo Conselho Nacional de Justiça, inicialmente, no Estado de São Paulo.

Com a audiência de custódia regulamentada na Resolução 213/2015 do Conselho Nacional de Justiça, as prisões em flagrante delito geram a necessidade da apresentação do acusado, no prazo estipulado de até 24 horas, à autoridade judicial que obrigatoriamente deverá entrevistar a pessoa detida.

Em mesma ocasião, deverá a autoridade (conforme o art. 8º da Resolução 213/2015 do CNJ) esclarecer ao preso o que consiste a audiência de custódia, assegurando-lhe que não esteja algemado sem que haja concreta necessidade, dando-lhe ciência de seu direito de permanecer em silêncio; quando, então, deverá questionar a pessoa detida acerca das circunstâncias de sua apreensão, sem que adentre ao mérito, com o fim de verificar a ocorrência de eventuais torturas ou maus-tratos, e, finalmente, tratar das questões da prisão preventiva.

Neste sentido, Aury Lopes Júnior e Caio Paiva[10] entendem que a audiência de custódia deve observar os limites também contemplados pelos princípios gerais do processo penal, uma vez que importam na própria prevalência do Estado Democrático de Direito, senão, veja-se:

A denominada audiência de custódia consiste, basicamente, no direito de (todo) cidadão preso ser conduzido, sem demora, à presença de um juiz para que, nesta ocasião, (i) se faça cessar eventuais atos de maus-tratos ou de tortura e, também, (ii) para que se promova um espaço democrático de discussão acerca da legalidade e da necessidade da prisão.

Diante da implementação do procedimento destinado à regulamentação da audiência de custódia, objetiva-se controlar a superlotação dos presídios brasileiros, que, por sua vez, constitui-se num dos principais fatores de desrespeito aos direitos fundamentais dos encarcerados, e, assim, servindo, como uma das possíveis estratégias para a mudança da realidade prisional, no Brasil.

A implementação da audiência de custódia, de outro lado, também, visa assegurar o maior respeito ao princípio da humanidade, respeitando os Direitos Humanos, evitando ao máximo a prisão preventiva do apreendido em flagrante delito.

A privação da liberdade de uma pessoa é a medida legal mais extrema que pode ser adotada atualmente no Brasil, como resposta estatal à prática de um crime comum, e só deve ser adotada em casos que não seja possível a aplicação de nenhuma outra medida cautelar. E desta forma tem entendido o egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Paraná[11], in verbis: “[…] deste modo, a jurisdição constitucional funciona como instrumento potencializador da efetividade dos direitos humanos, na medida em que, a partir da compreensão crítica da realidade, sob o prisma direitos humanos, aplica este consenso no âmbito interno, operando, assim, como ferramenta de transformação social”.

Contudo, observa-se que a Resolução 213/2015 do Conselho Nacional de Justiça não está isenta de “falhas”, pois, como se pode observar em análise mais aprofundada, é possível verificar algumas questões procedimentais que não ficaram devidamente esclarecidas, ou que de algum modo restaram sem justificações jurídicas (processuais penais) pertinentes.

A privação da liberdade de qualquer pessoa, bem como o local onde se encontre presa deverão ser comunicados imediatamente ao Juiz de Direito competente, ao Ministério Público, à Defensoria Pública e à sua família do preso ou a quem for por ele indicada, conforme determina o inc. LXII do art. 5º da Constituição da República de 1988.

Contudo, agora, para além dessas providências legais, a Autoridade Policial deverá também apresentar a pessoa que se encontra privada provisoriamente de liberdade, ao Juiz de Direito competente, para fins de realização da audiência de custódia, a qual tem por finalidade tanto a verificação da regularidade e validade da prisão, quanto o exercício do direito individual do agente que se encontra preso entrevistar-se pessoalmente com a Autoridade Judiciária.

O relaxamento da prisão em flagrante, assim como a sua manutenção e/ou conversão em prisão preventiva, apenas poderá ser determinado judicialmente por decisão devidamente fundamentada nos elementos de convicção – indícios e meios de prova, em Direito, admitidos – que até então foram levados ao respectivo Auto de Prisão em Flagrante.

Nos termos do inc. XI do art. 93 da Constituição da República de 1988, é certo que toda decisão judicial deva ser fundamentada tanto em relação às questões e circunstâncias fáticas, quanto em relação às razões de direito que tenham levado a tal entendimento jurisdicional, sob pena de nulidade, in verbis:

IX – todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação.

Não fosse isto, observa-se que ao longo da realização da audiência de custódia, impõe-se a participação efetiva do Ministério Público e da Defesa – Advogado constituído, nomeado ou Defensor Público –, conforme estabelece o procedimento regulamentado pela Resolução 213/2015 do CNJ.

Por isso mesmo, o Ministério Público, a Advocacia e a Defensoria Pública deverão estabelecer condições estruturais e funcionais para que seus membros possam desenvolver regularmente as suas respectivas atribuições legais durante a realização da audiência de custódia.

Ao longo do procedimento específico regulamentado pela Resolução 213/2015 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), para a realização da audiência de custódia, quais seriam as atribuições legais a serem desenvolvidas pelo órgão de execução ministerial?

Por certo que, a supramencionada Resolução não tem o condão de restringir e/ou mesmo suprimir as atribuições legais que foram constitucional e estatutariamente destinadas ao Ministério Público.

No entanto, observa-se que as atribuições legais – assim como as prerrogativas institucionais – reconhecidas ao Ministério Público podem ser disciplinadas para os fins legais específicos a que se destina a realização da audiência de custódia, isto é, para a verificação das circunstâncias e das condições em que se deram a privação provisória da liberdade.

Até porque, a objetividade da audiência de custódia é a da verificação da regularidade, validade, eficácia e necessidade do ato administrativo que determinou a privação provisória da liberdade, bem como acerca da adequabilidade, necessidade e/ou proporcionalidade de sua manutenção judicial.

É certo que em um Estado Democrático (Constitucional) de Direito, a pessoa que se encontra privada de liberdade não só tem direito a entrevistar-se direta e pessoalmente com o seu Defensor, mas, também, tem a garantia legal de ser acusada pelo órgão legalmente constituído para tal desiderato (Ministério Público), assim como de ser apresentada e julgada perante o Juízo de Direito competente, em linha com as orientações principiológicas da inevitabilidade e da indeclinabilidade da jurisdição.

O princípio da inevitabilidade pode ser compreendido pela ideia de que a jurisdição penal é indispensável para a resolução de questões relativas à responsabilização criminal do agente a quem se tenha atribuído a prática de conduta considerada delituosa (crime).

O princípio da inevitabilidade também é denominado de princípio da irrecusabilidade ou do acesso à justiça, e, assim, encontra-se vinculado ao que dispõe o inc. XXXV do art. 5º da Constituição da República de 1988, ou seja, que “a lei não excluíra da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

Portanto, os deveres legais estabelecidos, em seu conjunto, como funções destinadas ao Juiz de Direito, constituem-se expressões da respectiva competência jurisdicional, então, destinada à resolução judicial de determinado caso concreto.

Pois, em um Estado Democrático (Constitucional) de Direito a função de julgar deve ser destacada das atribuições legais destinadas à persecução penal, assim como à acusação, conforme afirma Mário Luiz Ramidoff[12], para quem, somente assim será legal e legitimamente possível tornar inevitável a intervenção estatal repressivo-punitiva, de caráter vinculativo e obrigatório às partes.

A autoridade de uma decisão judicial, que, assim, transitou em julgado, torna-se de observância obrigatório e inafastável não só pelas partes, mas, em relação a terceiros, haja vista que a prestação jurisdicional, enquanto um dos deveres legais do Estado (Poderes Públicos), é uma das expressões da autodeterminação dos povos (soberania), que, então, exige reconhecimento e respeito de todos, consoante as regras do jogo democrático – observância da lei (per lege) e submissão à lei (sub lege).

O princípio da indeclinabilidade, de outro lado, é referente à atribuição legalmente destinada ao Estado para a resolução de conflitos, através exercício da jurisdição.

O Estado tem o monopólio, isto é, a exclusividade do exercício da jurisdição, a qual, enquanto atribuição legal, não pode ser declinada a outro ente. O princípio da indeclinabilidade também pode ser denominado de inderrogabilidade ou infungibilidade do juízo, segundo Aury Lopes, para quem a “inderrogabilidade é a garantia que decorre e assegura a eficácia da garantia da jurisdição, no sentido de infungibilidade e indeclinabilidade do juízo, assegurando a todos o livre acesso ao processo e ao poder jurisdicional[13].

Desta maneira, entende-se que, em razão do princípio da indeclinabilidade, o Estado – através do competente órgão jurisdicional (Poder Judiciário) – tem por atribuição legal (função) o dever de organizar-se estrutural e funcionalmente para oferecer prestação jurisdicional que se destine à resolução adequada de casos concretos (legais), aqui, relativamente à responsabilização penal.

O agente a quem se atribuiu a prática de uma conduta delituosa (crime), portanto, tem a garantia fundamental à jurisdição, a qual deve ser exclusivamente desenvolvida através de atividade estatal (atos, processos e procedimentos) que se destine à prestação de tutela jurisdicional resolutiva pertinente a sua absolvição ou a sua responsabilização criminal.

É importante observar, que, apesar do Código de Processo Penal brasileiro admitir a persecução penal mediante a propositura de ação penal de iniciativa privada (queixa-crime), permanece o exercício da jurisdição como monopólio do Estado, através das atribuições legalmente reconhecidas ao Poder Judiciário.

Neste sentido, observa Jacinto Nelson de Miranda Coutinho[14], que, “por sua face operacionalizada (competência), tem-se a jurisdição como exclusiva de quem a detém e excludente dos demais; daí por que não se admite, ademais, a prorrogação e a delegação da competência (outros dois princípios decorrentes da indeclinabilidade), sob pena de usurpação de função pública”.

O princípio da indeclinabilidade da jurisdição também é pertinente à execução penal, uma vez que orienta o acompanhamento jurisdicional do cumprimento da pena (sanção penal), então, judicialmente, determinada ao agente que cometeu um crime.

Assim, por exemplo, o Superior Tribunal de Justiça[15] tem entendido, que, apesar de o agente poder cumprir a sanção penal que lhe foi judicialmente imposta em prisão domiciliar, observa-se que o controle da execução da pena é uma atribuição legalmente reconhecida ao Estado, em razão da indeclinabilidade da jurisdição.

De igual maneira, indaga-se quais seriam as funções a serem desenvolvidas pela Defesa – Advogado constituído, nomeado ou Defensor Público – durante o procedimento específico regulamentado pela Resolução 213/2015 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), então, destinado à realização da audiência de custódia?

O princípio do devido processo legal é uma das diretrizes democráticas constitucionalmente insculpidas no Ordenamento Jurídico brasileiro, determinando que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”, nos termos do inc. LIV do art. 5º da Constituição da República de 1988, constituindo-se, pois, uma garantia fundamental reconhecida principalmente à pessoa que se encontra privada de liberdade.

Portanto, toda pessoa que provisoriamente se encontrar privada de liberdade tem a garantia fundamental de ser apresentada à Autoridade Judicial competente, que, através da observância de um procedimento especialmente regulamentado para a realização da audiência de custódia, não só verificará as circunstâncias em que se deu a sua prisão, mas, também, deverá pessoalmente entrevistá-la.

O princípio da ampla defesa é, por assim dizer, um consectário legal do primado constitucional do devido processo legal, e, que, por sua vez, determina que a toda pessoa investigada e/ou acusada será assegurada a ampla defesa.

Neste sentido, o inc. LV do art. 5º da Constituição da República de 1988 expressamente determina que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.

Por certo, que, em sede de audiência de custódia não é possível a realização de atos instrutórios acerca do mérito da imputação penal, contudo, o princípio da ampla defesa determina que, pelo menos, a pessoa privada provisoriamente de sua liberdade, deverá ser acompanhada, assistida e orientada por defesa técnica, isto é, por Advogado constituído, nomeado ou Defensor Público.

O princípio do contraditório também pode ser considerado como um dos consectários legais do princípio do devido processo legal, e, assim, determinar que durante a realização da audiência de custódia seja disponibilizado o acesso ao conjunto de indícios e demais meios de prova, em Direito, admitidos, que serviu como fundamento para a decretação da privação provisória da liberdade do agente.

3 LEGALIDADE E LEGITIMIDADE

Apesar de prevista há muito tempo em tratados e convenções internacionais nos quais o Brasil é signatário, a audiência de custódia foi regulamentada pelo Conselho Nacional de Justiça apenas em 2015. A partir de então os Estados começaram a adequar-se à Resolução 213/2015, e realizar as audiências de custódia.

Entretanto, conforme foi ocorrendo a implementação de todo o procedimento regulamentado pelo Conselho Nacional de Justiça, em sua Resolução 213/2015, foram constatadas questões controvertidas, complicações e conflitos procedimentais e estruturais que dificultam a perfeita aplicação do procedimento previsto para que sejam realizadas as audiências de custódia.

Por se tratar de regulamentação do Conselho Nacional de Justiça, é de se imaginar que estes pontos, não obstante, muitas vezes, não são tratados de forma uniforme e sem falhas, em virtude mesmo das diferenças regionais que político ideologicamente determinam diversificação da realização das audiências de custódia, em todo o território nacional.

E, em não se tratando de legislação federal que obrigue, por assim dizer, a plena vigência e um procedimento judicial “padronizado” em todo o país, tem-se que a Resolução 213/2015 do Conselho Nacional de Justiça acaba sendo aplicada de maneira diferenciada em cada um dos Estados.

Uma dessas problemáticas que pode ser verificada, a partir da regulamentação do Conselho Nacional de Justiça, é a que diz respeito à legalidade na realização da audiência de custódia, haja vista que não existe qualquer previsão legal específica regulamentando a matéria, conforme determina o princípio da legalidade estrita (reserva legal).

Neste ponto, esclarece Michelle Oliveira[16], membro da Comissão de Ciências Criminais e Segurança Pública da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Distrito Federal (OAB/DF), in verbis:

De acordo com o STF, independentemente da aprovação do projeto pelo Senado a Audiência de Custódia, pode e deve ser realizada pelos órgãos do poder Judiciário. Esse entendimento está baseado no julgamento da ADI 5240 (20/08/15) onde o Supremo entendeu ainda que não haja uma lei que regulamente a Audiência de Custódia ela pode ser implementada pelo poder Judiciário Brasil afora.

Na Ação Direta de Inconstitucionalidade – proposta pela Associação dos Delegados de Polícia –, que trata a referida autora, discute-se acerca da legalidade da implementação da Audiência de Custódia por meio da Resolução 213/2015, do Conselho Nacional de Justiça.

A Associação dos Delegados de Polícia (ADEPOL), nesta oportunidade, arguiu a incompetência do Conselho Nacional de Justiça para legislar sobre novo procedimento penal. Entende que a Audiência de Custódia somente poderá ser implementada ao ordenamento jurídico através de Lei Federal, de competência do Poder Legislativo.

Assim, apesar de aparente afronta ao princípio da legalidade estrita (reserva legal), verifica-se, com base no entendimento assentado do Supremo Tribunal Federal, bem como nos estudos e pesquisas realizadas, a legalidade da implementação da Audiência de Custódia por intermédio de regulamentação trazida pela Resolução 213/2015 do Conselho Nacional de Justiça.

Outrossim, a partir da regulamentação das Audiências de Custódia – pelo Conselho Nacional de Justiça – a decretação da privação de liberdade, ou, por outro lado, a concessão de liberdade provisória à pessoa apreendida em flagrante delito, é legal e legítima.

Durante a realização da audiência de custódia, além da presença da autoridade judicial competente – Juiz de Direito –, é indispensável a presença do membro do Ministério Público, bem como a de um defensor, seja o Defensor Particular, seja o Defensor Público.

Isto porque há, evidentemente, a necessidade de respeito a todos os princípios, direitos e garantias inerentes à pessoa apreendida em situação de flagrante delito, bem como o correto procedimento previsto na Resolução 213/2015 do Conselho Nacional de Justiça.

Diante disso, entende-se necessária uma abordagem a fim de compreender o limite da intervenção destas partes durante a condução da audiência de custódia, visto que sua participação na audiência é restrita, a fim de evitar que o depoimento da pessoa apreendida em flagrante delito adentre ao mérito e se limite às circunstâncias de sua apreensão.

Ocorre que a Resolução 213/2015 do Conselho Nacional de Justiça nada se refere em relação à possibilidade ou não de intervenção, por meio de perguntas, do Ministério Público e da defesa durante a oitiva do sujeito conduzido, descrevendo a participação destes restritamente aos requerimentos verbais, que serão conduzidos ao Juiz de Direito.

Desta forma, em relação à participação daqueles, bem como à forma em que magistrado conduzirá a audiência de custódia, deve-se sempre atentar-se à restrição ao depoimento de mérito, a fim de que seja abordada, nesta ocasião da audiência de custódia, somente questões atinentes às circunstâncias em que se deram a prisão em situação de flagrante delito.

Em sede procedimental legalmente destinada à realização da audiência de custódia não é permitida a prática de qualquer ato processual que seja pertinente à instrução criminal.

Isto pois, como se sabe, o objetivo primordial da audiência de custódia é o da verificação da regularidade e validade da privação da liberdade, e, não, diversamente, da persecução penal que se destina à apuração da responsabilidade penal do agente a quem se atribui a prática de conduta considerada delituosa, não havendo, portanto, possibilidade de instrução criminal na audiência de custódia – implementada pelo Conselho Nacional de Justiça, através de sua Resolução 213/2015.

A Resolução 213/2015 do Conselho Nacional de Justiça, em conformidade com as convenções e tratados internacionais, estabelece a discussão, em audiência, entre as partes – sejam elas a pessoa apreendida em flagrante delito, a Defensoria Pública, advogado constituído, ou advogado designado e o membro do Ministério Público – a respeito das circunstâncias em que se deram a prisão em flagrante delito.

O princípio do contraditório encontra-se previsto no inc. LV do art. 5º da Constituição da República de 1988, o qual dispõe que toda pessoa terá o direito de resposta. Juntamente a este princípio, o da ampla defesa, garante que seu direito de resposta se utilize, para tanto, de todos os meios de defesa em direito admitidos.

Nesta ocasião, à pessoa apreendida em flagrante delito deve ser proporcionado o direito ao contraditório, para que apresente resposta (apenas) ao que lhe for perguntado a respeito da detenção, evitando a discussão, durante a audiência de custódia, sobre o mérito.

Diante do esclarecimento de como se deu a apreensão em flagrante delito, obtido através das declarações e perguntas formalizadas, a autoridade competente para presidir a audiência de custódia, ao final do ato, decide a respeito da prisão preventiva, outras medidas cautelares, ou se pelo relaxamento da prisão manifestamente ilegal.

Eventualmente, mesmo a autoridade judicial competente para a realização e condução da audiência de custódia limitando-se ao questionamento a respeito das circunstâncias em que se deram a apreensão em situação de flagrante delito, bem como o mesmo cuidado tido em relação ao Ministério Público e à defesa, ainda há a possibilidade da pessoa apreendida em flagrante delito adentrar ao mérito da conduta pela qual foi apreendido, negando ou até confessando autoria, por exemplo.

Mauro Fonseca Andrade e Pablo Rodrigo Alflen[17] ensinam, neste sentido, que, ao longo do depoimento, então, prestado pela pessoa que se encontra presa em flagrante delito, é possível ingressar no mérito durante a realização da audiência de custódia, contudo, a Autoridade Judiciária deverá estar atenta a tal situação:

Por outro lado, ao se admitir que somente o juiz possa realizar perguntas ao sujeito que lhe foi apresentado – ainda que vinculadas aos requisitos para a homologação do auto de prisão em flagrante e para a adoção de medidas cautelares pessoais –, não se pode destacar a hipótese de o preso ingressar no mérito de sua conduta ou invocar alguma causa excludente da ilicitude.

A partir disso, deve-se analisar qual aproveitamento da possível questão probatória, de eventual abordagem em relação ao mérito da conduta pela qual motivou a apreensão, tendo em vista que esta audiência deve-se limitar às circunstâncias da apreensão em flagrante delito.

Ocorre que, a vedação probatória somente pode se dar quando expressamente prevista em lei, de modo que só seria possível sua criação por ato do Poder Legislativo, sob pena de infringência à Constituição da República de 1988, mais precisamente do inc. I de seu art. 22, o qual dispõe a respeito da competência da União.

Assim sendo, questiona-se o aproveitamento do depoimento que não se restrinja à descrição de como se deu a apreensão da pessoa, e que, indevidamente, aborde o mérito.

Ainda, através do aprofundamento do estudo sobre a supramencionada Resolução, observa-se que outra questão surge acerca da competência jurisdicional do Juiz de Direito a quem se atribuiu o dever legal de realizar (presidir) a audiência de custódia.

O Magistrado responsável pela condução da audiência de custódia, segundo a própria Resolução, não tem a competência jurisdicional legalmente estabelecida que lhe permita adentrar no mérito de determinado caso legal (concreto), devendo, pois, abster-se de admitir eventual instrução probatória, até porque não é o gestor da prova.

A respeito do problema enfrentado no momento em que a pessoa apreendida em flagrante delito eventualmente adentra ao mérito arguindo sua inocência, por exemplo, ensinam os doutrinadores Aury Lopes Junior e Alexandre Morais da Rosa[18], in verbis:

Contudo, em alguns casos, essa entrevista vai situar-se numa tênue distinção entre forma e conteúdo. O problema surge quando o preso alegar a falta de fumus commissi delicti, ou seja, negar autoria ou existência do fato (inclusive atipicidade). Neste caso, suma cautela deverá ter o juiz para não invadir a seara reservada para o julgamento. Também pensamos que eventual contradição entre a versão apresentada pelo preso neste momento e aquela que futuramente venha utilizar no interrogatório processual, não pode ser utilizada em seu prejuízo. Em outras palavras, o ideal é que essa entrevista sequer viesse a integrar os autos do processo, para evitar uma errônea (des)valoração.

Portanto, apesar de lhe ser admitido a formulação de questões acerca das circunstâncias em que se deram a prisão em flagrante de uma pessoa, observa-se que não é admitido o questionamento sobre qualquer informação acerca do mérito – isto é, da atribuição/imputação de culpa para fins de responsabilização criminal –, senão, apenas as informações sobre os motivos que levaram a pessoa a ser apreendida em flagrante delito, mas, não poderá fazer qualquer indagação sobre os fatos que podem ser utilizados como meios probatórios do mérito na ação penal que deverá ser posteriormente julgada.

Da mesma maneira, o Juiz de Direito competente para presidir a realização da audiência de custódia, deverá conceder a palavra ao Ministério Público e da mesma forma ao Defensor, contudo, deverá limitar as eventuais perguntas realizadas à pessoa detida, de modo que somente devam ser respondidas as indagações que versem sobre as circunstâncias em que se deram a prisão ou apreensão em flagrante delito.

Assim, torna-se necessário o aprofundamento do estudo e da pesquisa sobre a audiência de custódia, com a finalidade de identificar e destacar quais seriam os critérios objetivos para a fixação da competência jurisdicional a ser especificada para o Magistrado que for presidir aquela audiência, bem como definir qual seria o primordial objetivo a ser alcançado nesta ocasião procedimental.

Os doutrinadores Mauro Fonseca Andrade e Pablo Rodrigo Alflen[19] procuram estabelecer parâmetros objetivos, e, assim, identificam uma “tríplice finalidade” a ser alcançada através do procedimento especial destinado pela Resolução 213/2015 do Conselho Nacional de Justiça para a realização da audiência de custódia:

[…] a audiência de custódia obedece a uma tríplice finalidade, a lembrar: a) análise da (i) legalidade da privação de liberdade efetuada; b) freio a possíveis maus-tratos ou tortura durante o período em que o indivíduo esteve em poder da polícia judiciária; e c) apreciação sobre a (des)necessidade de manutenção da privação de liberdade, decretando-se sua prisão preventiva, o relaxamento da prisão ou concedendo liberdade provisória.

Deste modo, a fuga às finalidades previstas à audiência de custódia – implementada pela Resolução 213/2015, do Conselho Nacional de Justiça – seja pela abordagem de mérito, a instrução ou qualquer indagação senão a respeito das circunstâncias em que se deram a apreensão da pessoa em flagrante delito, extrapola a sua competência.

4 ORGANIZAÇÃO ESTRUTURAL E FUNCIONAL

Uma grande problemática a ser debatida a respeito da implementação das audiências de custódia no processo penal brasileiro é com relação à falta de estrutura que o Brasil enfrenta devido à sua grande extensão territorial, por ser o quinto país mais populoso do mundo, e, principalmente, por carecer de recursos públicos para a ideal implementação de um sistema jurídico caro, como a audiência de custódia.

Tendo em vista a atual realidade estrutural jurídica brasileira, vislumbra-se a necessidade de estrutura física e de servidores para realizar o procedimento comum, hoje implantado no país.

Além disso, considerando o prazo previsto para a apresentação física da pessoa apreendida em flagrante delito à autoridade judicial competente, seria impensável o encaminhamento da pessoa presa em flagrante delito nos casos em que a apreensão seja realizada em lugares muito distantes de local adequado à realização da audiência de custódia, sem o investimento de muito recurso público.

Porquanto se tratar de uma regulamentação que abrangerá todo território brasileiro, deve-se pensar não apenas a grande comarca, a pequena comarca, a cidade ideal, ou a cidade sem qualquer preparo, mas sim como um todo, de modo a sanar o problema de todos sem se esquecer das particularidades e diferenças de cada caso.

Como previsto na Resolução 213/2015 do Conselho Nacional de Justiça, a pessoa apreendida em flagrante delito deve ser encaminhada, no prazo de vinte e quatro horas, à autoridade judicial competente.

Nas grandes cidades, com uma estrutura física já adequada ao ordenamento atual, já há a necessidade de se adequar para que sejam oferecidos locais propícios à realização das audiências de custódia.

Maior problema se verifica em municípios menores ou mais afastados, nos quais já compreende uma dificuldade de locação do Poder Judiciário, e que muitas vezes os processos existentes nessas cidades são tramitados em comarcas próximas, devido à falta de estruturação física e de pessoal.

No que diz respeito à estrutura física, com a implementação das audiências de custódia, surgirá uma grande dificuldade ao Judiciário tanto nas grandes, como, principalmente, nas pequenas cidades, devido à necessidade de um local adequado destinado à realização das audiências e colocação das pessoas apreendidas em flagrante delito durante o tempo em que aguardam para serem ouvidas pela autoridade judicial competente.

A impossibilidade de se abordar questões probatórias nas audiências implementadas pela Resolução 213/2015 do Conselho Nacional de Justiça, traz em si a necessidade de duas autoridades competentes à julgamento, de modo que o membro do Órgão Julgador competente que atuar na audiência de custódia não pode ser o mesmo que conduzirá o restante do eventual procedimento a ser tramitado.

Mauro Fonseca Andrade e Pablo Rodrigo Alflen[20] frisam a respeito da limitação da atuação do Magistrado, seja para presidir a audiência de custódia seja para autuar no procedimento penal a ser posteriormente instaurado, que:

O segundo impacto será verificado com a impossibilidade de o juiz que atua na audiência de custódia ser o mesmo a atuar no futuro processo de conhecimento de natureza condenatória. Conforme exposto acima, a atividade cognitiva desenvolvida pelo juiz que presidirá a audiência de custódia permite que ele firme seu convencimento de forma antecipada […].

Ou seja, para cada fato que decorresse da apreensão da pessoa em flagrante delito, necessitaria de dois juízes diferentes. Porém, com a atual estrutura jurídica brasileira, na qual as menores comarcas contam com a atuação de apenas um magistrado, seria inviável a implementação das audiências de custódia pela insuficiência de pessoal.

Ocorre que, para tornar completamente adequada a estruturação jurídica, seria necessária a contratação de muitos novos magistrados, de modo que fosse possível a designação de pelo menos dois juízes para cada comarca, o que, novamente, levaria ao investimento financeiro muito acima do que o suportado atualmente no Brasil.

Apesar da orientação de prazo “sem demora” referente ao lapso temporal para a apresentação de toda pessoa apreendida em flagrante delito à autoridade judicial competente, previsto nos Tratados Internacionais, nos quais o Brasil é signatário, a Resolução 213/2015 do Conselho Nacional de Justiça estipulou prazo certo de vinte e quatro horas para a apresentação da pessoa e realização da audiência de custódia.

Desta forma, faz-se necessário o debate desta temática, pois, mais uma vez, deve-se ter em mente todas as peculiaridades possíveis de serem encontradas na aplicação nacional da referida resolução.

Isto porque, devido à grande extensão do território brasileiro e a má distribuição populacional demograficamente, certamente encontrar-se-á problemáticas relacionadas ao prazo para a realização das audiências de custódia, uma vez que esse tempo que perdura desde a abordagem da pessoa em flagrante delito até o encaminhamento à autoridade e a realização da referida audiência é extremamente relativo.

É notório que as vinte e quatro horas previstas são perfeitamente viáveis de serem respeitadas em caso da apreensão em flagrante delito que acontecer no centro da comarca de Curitiba, contudo, a mesma sorte não assiste aos casos que ocorrem, por exemplo, no meio de uma floresta longe de qualquer estrada no extremo oeste do Amazonas, em que o prazo disposto se torna nitidamente curto.

Ademais, percebe-se que esta estipulação – de vinte e quatro horas da Resolução 213/2015 do Conselho Nacional de Justiça, para realização de todo o procedimento previsto, ou seja, desde a apreensão do agente em situação de flagrante delito, até a apresentação da pessoa à autoridade competente à análise das circunstâncias em que se deram a detenção e a realização da audiência de custódia – é, em muitos casos (se não na maioria), extremamente restrito, pelo fato de que em cidades de menor porte a quantidade de policiais é mais restrita, bem como o número de viaturas e a estrutura são insuficientes para que se possa paralisar as atividades dos policiais envolvidos na apreensão em flagrante delito para que realizem todo o procedimento previsto, acompanhando a pessoa até o juízo competente a presidir a audiência de custódia.

Neste ponto, destacam-se as palavras de João Pedro Gomes Dadda[21], em relação à limitação temporal imposta ao procedimento da Resolução 213/2015 do Conselho Nacional de Justiça, face à falta de estrutura brasileira para a realização das audiências de custódia, in verbis:

Resta evidente que o exíguo prazo de vinte e quatro horas é incompatível com a (falta de) celeridade da prestação jurisdicional, exercida por Juízes que têm longas pautas de audiências em Comarcas abarrotadas de processos judiciais. Ademais, é notória a carência de efetivo e investimentos nas polícias e nos órgãos da segurança pública.

Deste modo, conclui-se que as estipulações de prazo dos Tratados Internacionais – os quais o Brasil é signatário – são, de certa forma, mais adequadas do que aquela contemplada na Resolução 213/2015 do Conselho Nacional de Justiça, tendo em vista a relatividade e proporcionalidade do tempo mínimo necessário em cada caso para que seja realizado todo procedimento regulamentado, da apreensão da pessoa em situação de flagrante delito até, finalmente, a correta condução de audiência de custódia pela autoridade competente, assegurando, assim, o maior respeito ao princípio da humanidade, respeitando os Direitos Humanos, evitando ao máximo a prisão preventiva da pessoa apreendida.

Neste sentido, a atual processualística consagrou o princípio da razoabilidade da duração da tramitação da relação jurídica, neste caso, penal (processo penal) que, no Ordenamento Jurídico brasileiro, encontra fundamento constitucional.

O denominado princípio da razoável duração do processo passa a ser uma das garantias fundamentais consagrada no inc. LXXVIII do art. 5º da Constituição da República de 1988, em razão da Emenda 45/2004, dispondo, assim, que, “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.

Por isso mesmo, entende-se que a audiência de custódia guarda vinculação, uma vez que todos os atos necessários para a sua realização devem ser praticados nos respectivos prazos legalmente estabelecidos como forma de assegurar a imediata apresentação do agente perante à Autoridade Judicial competente.

Gustavo Henrique Badaró[22] afirma que o princípio da razoável duração do processo tem por objetivo assegurar que a pessoa privada de liberdade tem o direito de ser julgado em prazo razoável ou ser posto em liberdade, uma vez que:

O direito ao processo em prazo razoável deve ser analisado em um dúplice aspecto: (1) o direito a um processo penal ou de qualquer natureza (civil, trabalhista…), em prazo razoável ou sem dilações indevidas; (2) o direito ao desencarceramento do acusado preso cautelarmente, caso não seja julgado em tempo razoável ou sem dilações indevidas.

Em sede de audiência de custódia, portanto, não só a pessoa privada provisoriamente de liberdade deve ser imediatamente apresentada ao Juiz de Direito competente, mas, também, devem ser observados os prazos legais tanto para a realização da audiência, quanto para o julgamento sobre a validade ou não da privação, bem como da possibilidade de colocação em liberdade do agente que fora apreendido em situação de flagrante delito.

A Lei 11.900, de 08.01.2009 que criou o sistema de videoconferência consignou no art. 185 do Código de Processo Penal os §§ 1º ao 9º como forma legal de regulamentação do procedimento penal destinado à realização de audiência através de videoconferência.

Assim, o interrogatório da pessoa que se encontrar privada de liberdade deverá ser realizado, em sala própria e adequada, no estabelecimento prisional em que estiver detido, atendendo-se, ainda, a segurança do Juiz de Direito, do órgão de execução ministerial e dos auxiliares da Justiça, bem como exigindo-se a presença do Defensor e estrita observância da publicidade desse ato procedimental (§ 1º do art. 185).

O Juiz de Direito competente, no entanto, poderá excepcionalmente realizar o interrogatório da pessoa que se encontrar privada de liberdade pelo sistema de videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real, mediante decisão fundamentada, de ofício ou a requerimento das partes (§ 2º do art. 185).

O interrogatório por videoconferência, contudo, apenas poderá ser judicialmente determinado quando for indispensável para atender a uma das finalidades legalmente estabelecidas nos incs. I a IV do § 2º do art. 185 do Código de Processo Penal.

Portanto, o interrogatório do agente que se encontra privado de liberdade apenas será realizado através do sistema de videoconferência com o objetivo de: 1. prevenir risco à segurança pública; 2. viabilizar a participação do interrogado no referido ato processual; 3. impedir a influência do interrogado no ânimo de testemunha ou da vítima; e 4. responder à gravíssima questão de ordem pública.

As partes que atuam na relação jurídica processual penal deverão ser intimadas da decisão judicial que determinar o interrogatório por videoconferência, com 10 (dez) dias de antecedência de sua realização (§ 3º do art. 185).

De igual maneira, é assegurado à pessoa privada de liberdade o acompanhamento, pelo mesmo sistema tecnológico, da realização de todos os atos da audiência única de instrução e julgamento, antes de seu interrogatório por videoconferência (§ 4º do art. 185).

O direito de entrevista prévia e reservada do agente que se encontra privado de liberdade com o seu Defensor, encontra-se, também, assegurado quando o seu interrogatório for realizado por videoconferência, inclusive, garantindo-lhe o acesso a canais telefônicos reservados para sua comunicação com o seu Defensor quando estiver o agente no estabelecimento prisional e o Defensor na sala de audiência do Fórum (§ 5º do art. 185).

Nesta situação, a sala reservada no estabelecimento prisional para a realização de atos processuais por sistema de videoconferência deverá ser previamente fiscalizada pelos Corregedores, pelo Juiz de Direito (de cada causa), como também pelo Ministério Público e pela Ordem dos Advogados do Brasil (§ 6º do art. 185).

Em não sendo realizado o interrogatório do agente pelo sistema de videoconferência, impõe-se a requisição judicial para a apresentação do agente privado de liberdade, uma vez que o mencionado ato processual deverá ser realizado na sala de audiência do Fórum (§ 7º do art. 185).

De igual maneira, é permitida a realização de audiência pelo sistema de videoconferência para fins de instrução criminal, isto é, não só para interrogatório, mas, também, para a “realização de outros atos processuais que dependam da participação de pessoa que esteja presa, como acareação, reconhecimento de pessoas e coisas, e inquirição de testemunha ou tomada de declarações do ofendido” (§ 8º do art. 185); garantindo-se, no entanto, o “acompanhamento do ato processual pelo acusado e seu defensor” (§ 9º do art. 185).

Desta maneira, entende-se que também é possível a utilização do sistema de videoconferência para a realização da audiência de custódia, mediante a observância estrita do que se encontra regulamentado pelas regras processuais penais pertinentes, com o intuito de assegurar principalmente os direitos individuais e as garantias fundamentais da pessoa que se encontra provisoriamente privada de liberdade.

Para Eugênio Pacelli de Oliveira[23], a videoconferência se constitui em um importante instrumento processual penal, mas, contudo, tece algumas considerações críticas acerca da sua operacionalidade, in verbis:

Seria inconstitucional o interrogatório por videoconferência? A nosso aviso, semelhante modalidade de inquirição do acusado – ou mesmo de testemunhas – não viola o direito individual constitucional (Pacto de San José da Costa Rica – tratado internacional) a ser ouvido pelo juiz da causa. Nem a produção legislativa do Direito e nem a sua interpretação podem ser feitas de modo linear, como se tudo coubesse em uma mesma forma normativa. Certamente que a inquirição feita por videoconferência não é a mesma que aquela feita pessoal e diretamente, não só em tempo real, mas também em espaço real. Certamente. Mas a distinção de tratamento poderá, eventual e excepcionalmente, encontrar justificativas.

Tendo em vista as problemáticas referentes à presente estruturação jurídica brasileira, e a necessidade de uma rápida adaptação desta, para que se torne possível a implementação das audiências de custódia previstas na Resolução 213/2015 do Conselho Nacional de Justiça, vê-se necessária a aplicação de medidas alternativas.

Assim, cogitou-se a utilização de videoconferências para a realização das referidas audiências, bem como já adotado em alguns estados americanos, de modo que tornaria mais viável a adaptação de locais para que se procedam tais audiências sem a necessidade da presença física da autoridade judicial competente, bem como do membro do Ministério Público e da Defensoria Pública ou defensor da pessoa apreendida em flagrante delito.

Desta forma, grandes problemas estruturais observados atualmente seriam sanados de maneira mais célere e barata, não necessitando realizar, assim, a contratação de tantos novos magistrados. Também não seria preciso a adaptação integral da estrutura física demandada à aplicação da Resolução 213/2015 do Conselho Nacional de Justiça. E, por fim, haveria uma maior facilidade em cumprir o prazo de vinte e quatro horas previsto na referida resolução.

Neste viés de facilitação do procedimento da audiência de custódia implementada pela Resolução 213/2015 do Conselho Nacional de Justiça, mas tendo em vista novas dificuldades a serem enfrentadas, ensinam os doutrinadores Aury Lopes Junior e Alexandre Morais da Rosa[24], in verbis:

Essa modalidade encontra ainda certa desconfiança dadas as condições de pressão que podem ocasionar no estabelecimento penal. Existe a possibilidade de um defensor permanecer no local de custódia e participar conjuntamente do ato ou mesmo de estar com o conduzido e outro na sala de audiências. Não podemos dizer que sempre será possível. Entretanto, com as devidas garantias, parece-nos viável não como regra, mas exceção. Assim, cai por terra a histeria de que muitos policiais serão obrigados a se deslocar no transporte do conduzido ao juízo.

Portanto, apesar dos eventuais obstáculos a serem encontrados com a utilização da videoconferência, verifica-se que esta pode ser uma importante ferramenta para a amenização de dificuldades estruturais enfrentados na implementação da audiência de custódia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em considerações finais, é preciso dizer que a audiência de custódia se constitui na adoção, pelo ordenamento jurídico brasileiro, das diretrizes internacionais dos direitos humanos.

Os direitos humanos são os fundamentos de validade dos sistemas internacionais que possuem regras voltadas à proteção das pessoas em face dos desvios da ordem jurídica interna.

A validade, vigência e eficácia da audiência de custódia desde o advento da Resolução 213/2015 do Conselho Nacional de Justiça, têm sido consagradas em entendimentos doutrinários e principalmente jurisprudenciais.

Portanto, em que pese as divergências de entendimentos doutrinários e, por vezes, a falta de organização estrutural e funcional para a realização da audiência de custódia, observa-se que, na prática, as orientações humanitárias contidas na Resolução 213/2015 do Conselho Nacional de Justiça têm servido como obstáculo e revisão das privações de liberdade irregulares.

O procedimento especial estabelecido pela Resolução 213/2015 do Conselho Nacional de Justiça, por certo, não é isento de imperfeições técnicas e pragmáticas – como, por exemplo, a espontaneidade e a isenção de ameaças físicas, psíquicas e sócias na condução da pessoa detida –, mas é certo, que, transformou-se em um importante instrumento de identificação das mazelas dos Sistema de Justiça Penal – e, consequentemente, do seu próprio funcionamento (estrutural e pessoal).

Os riscos aos direitos individuais e às garantias fundamentais ainda podem ser sensivelmente diminuídos, contudo, é importante enfrentar não só teórica, mas, também, ideologicamente, os desvios que ainda ocorrem durante desde a detenção do agente até a realização do procedimento especial destinado à realização da audiência de custódia.

Os argumentos, pressupostos e requisitos que ainda serão firmados na processualística penal para a conversão da privação provisória da liberdade do agente a quem se atribui a prática de crime, em prisão preventiva, por certo, não podem olvidar das orientações humanitárias que inspiraram a regulamentação da audiência de custódia através da Resolução 213/2015 do Conselho Nacional de Justiça.

De igual maneira, a decretação judicial da prisão preventiva, bem como a adoção de qualquer outra medida cautelar (substitutiva), e, em alguns casos, até mesmo a sua soltura do agente durante a tramitação do processo criminal, dependem, sim, de fundamentação adequada, nos termos do inc. IX do art. 93 da Constituição da República de 1988, em que pese não ser admitida a prática de qualquer ato característico ou pertinente à instrução criminal.

Neste sentido, entende-se que todas as decisões judiciais que forem adotadas em sede do procedimento especial destinado à realização da audiência de custódia deverão ser fundamentadas, sob pena de nulidade absoluta.

REFERÊNCIAS

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Notas de Rodapé

[1] Desembargador no Tribunal de Justiça do Estado do Paraná; Mestre (PPGD-UFSC) e Doutor em Direito (PPGD-UFPR); Professor Universitário (PPGD-Uninter e Unicuritiba).

E-mail: marioramidoff@gmail.com

[2] Advogado junto OAB/PR; Pós-graduando em Direito pela Escola da Magistratura do Paraná (EMAP); Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Direito, do Centro Universitário Curitiba (PPGD-Unicuritiba). E-mail: henriqueramidoff@gmail.com

[3] ALMEIDA, Guilherme Assis de; PERRONE-MOISÉS, Cláudia. Direito internacional dos direitos humanos: instrumentos básicos. São Paulo: Atlas, 2002. p. 13 e ss. Até porque, segundo o Autor, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 deve ser considerada como “um libelo contra toda e qualquer forma de totalitarismo”, e, assim, “incrustar o respeito à dignidade da pessoa humana na consciência da comunidade universal”.

[4] DALLARI, Pedro. Constituição e relações exteriores. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 160 e ss. Para o Autor, “impõe-se buscar a plena integração das regras de tais sistemas à ordem jurídica interna de cada Estado, o que ressalta a importância do já mencionado § 2º do art. 5º da Constituição brasileira de 1988, que dá plena vigência aos direitos e garantias decorrentes ‘dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte’”.

[5] IKAWA, Daniela Ribeiro. Convenção contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes (1984). Apud ALMEIDA, Guilherme Assis de; PERRONE-MOISÉS, Cláudia. Direito internacional dos direitos humanos: instrumentos básicos. São Paulo: Atlas, 2002. p. 62-74.

[6] CÂMARA, 2011, p. 105-106.

[7] CÂMARA, 2011, p. 108.

[8] Ibidem, p. 114.

[9] RAMIDOFF, Mário Luiz. Elementos de processo penal. Curitiba: Intersaberes, 2016. p. 198.

[10] LOPES JÚNIOR, Aury; PAIVA, Caio. Audiência de custódia e a imediata apresentação do preso ao juiz: rumo à evolução civilizatória do processo penal. Revista da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, v. 1, p. 161-182, 2014.

[11] PARANÁ, Tribunal de Justiça – 5ª Câmara Criminal – HC 1.358.323-2 – Comarca de Curitiba – Rel. Des. José Laurindo de Souza Netto – Unânime – j. em 23.04.2015. Disponível em: <https://www.tjpr.jus.br/documents/18319/5218101/Processo_N%C2%BA_1358323-2_-_HC_Crime.pdf>.

[12] RAMIDOFF, 2016, p. 28.

[13] LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 452.

[14] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos princípios gerais do direito processual penal brasileiro. Separata ITEC, a. 1, n. 4, p. 3, jan./fev./mar. 2000.

[15] BRASIL, STJ – REsp. 1.549.173/RS (2015/0200366-5) – Rel. Min. Néfi Cordeiro – pub. em 26.02.2016. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/decisoes/doc.jsp?processo=1.549.173&b=DTXT&p=true&t=JURIDICO&l=10&i=1>.

[16] OLIVEIRA, Michelle. Audiência de custódia. Disponível em: <http://dramichelleoliveira.jusbrasil.com.br/artigos/243008694/audiencia-de-custodia>. Acesso em: 11 mar. 2016.

[17] ANDRADE, Mauro Fonseca; ALFLEN, Pablo Rodrigo. Audiência de custódia no processo penal brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2016. p. 134.

[18] LOPES JUNIOR, Aury; ROSA, Alexandre Morais da. O difícil caminho da audiência de custodia. Empório do Direito, maio 2015. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/o-dificil-caminho-da-audiencia-de-custodia-por-aury-lopes-jr-e-alexandre-morais-da-rosa/>. Acesso em: 25 abr. 2016.

[19] ANDRADE; ALFLEN, 2016, p. 108.

[20] ANDRADE; ALFLEN, 2016, p. 108.

[21] DADDA, João Pedro Gomes. Audiência de custódia: a (des)necessidade da imediata apresentação do preso em flagrante ao Juiz de Direito. Disponível em: <http://www.tex.pro.br/index.php/artigos/328-artigos-mar-2016/7484-audiencia-de-custodia-a-des-necessidade-da-imediata-apresentacao-do preso-em-flagrante-ao-juiz-de-direito-1>. Acesso em: 26 maio 2016.

[22] BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 69.

[23] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de processo penal. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 407-408.

[24] LOPES JUNIOR, Aury; Rosa, Alexandre Morais da. Processo penal no limite. Florianópolis: Empório do Direito, 2015. p. 26.