Falsificação e Direito à Saúde: Os Medicamentos e o Caso do Brasil

FAKE AND THE RIGHT TO HEALTH: THE MEDICINES AND THE CASE OF BRAZIL

Sandra Regina Martini[1]

Gabrielle Kölling[2]

Resumo: A falsificação de medicamentos afeta diretamente o direito à saúde e demanda respostas do tipo jurídicas. No Mercosul, em função das peculiaridades do bloco (livre circulação) temos algumas particularidades dentro do problema da falsificação de medicamentos. A própria falta de um direito a saúde comum ao bloco mostra-se como agravante da situação. Nesse contexto, o artigo pretende analisar o direito à saúde no viés da falsificação de medicamentos no âmbito do Mercado Comum do Sul, com ênfase no Brasil, a partir do método descritivo-analítico.

Palavras-chave: Direito à saúde. Mercosul. Falsificação.

Abstract: Counterfeiting of medicines directly affects the right to health and demand legal type responses. MERCOSUR, according to the bloc’s peculiarities (free movement) have some peculiarities in the problem of counterfeit drugs. The very lack of a right to joint health to the block is shown as aggravating the situation. In this context, the article analyzes the right to health in bias of counterfeit drugs in the Southern Common Market, with emphasis on Brazil, from the descriptive-analytic method.

Keywords: Right to health. Mercosur. Forgery.

1 NOTAS INTRODUTÓRIAS DA FALSIFICAÇÃO DE MEDICAMENTOS

Il gioco di giustizia e ingiustizia è dunque, all’origine, quello típico delle complicità rivali: ricomparirà in Platone sotto la formula nota del phàrmakon che sancisce l’identità di cura e malattia, veleno e antitodo. (RESTA, 2008, p. 25)

Resta observou e resgatou o conceito platônico de pharmakon como símbolo máximo da ideia de ambivalência. O pharmakon representava o jogo de oscilação que indicava, ao mesmo tempo, o veneno e seu antídoto, a cura e a doença. O veneno tomado em dose adequada transformava-se em antídoto, mas ao mesmo tempo, paradoxalmente, continuava a pertencer à natureza de veneno. Aquilo que era a doença se tornava a cura e, se invertido o momento, a cura que se transformava em doença; uma não era dissociada da outra. O uso de medicamentos falsificados apresenta a mesma ideia de ambivalência: o remédio que pode curar pode matar; o antídoto pode ser veneno quando se está diante de um medicamento falsificado (RESTA, 2006, p. 100).

Na sociedade atual, esse paradoxo é presente: ao mesmo tempo em que os remédios podem salvar e prolongar vidas, eles também se tornaram objeto do mercado informal e, assim, sem controle dos órgãos oficiais. Atualmente, portanto, os medicamentos falsificados apresentam-se como um problema global de saúde pública. Seguindo o contexto internacional de recomendações, e considerando a realidade nacional, algumas medidas foram tomadas para o enfrentamento do problema, principalmente após a crise dos medicamentos falsificados ocorrida no fim dos anos 1990 (PIOVESAN, 2002).

Historicamente, o tema da falsificação de medicamentos é tratado no âmbito da Organização Mundial da Saúde (OMS); da Organização Pan-americana de Saúde (OPS); do Mercado Comum do Sul (MERCOSUL); da União das Nações Sul-Americanas (UNASUL), e de outros organismos internacionais, sob o olhar atento das autoridades de saúde pública, envolvendo aspectos da política nacional de medicamentos, dos genéricos e o acesso a medicamentos para os países em desenvolvimento.

A falsificação de bens de consumo é uma prática que atinge indistintamente países desenvolvidos e em desenvolvimento. Contudo, o combate à falsificação de medicamentos exige especial cuidado quando comparado a outras formas de falsificação, uma vez que o bem a ser tutelado envolve diretamente o direito à vida que se concretiza no direito à saúde, inerente a todo cidadão. Conforme a Organização Pan-Americana de Saúde – OPAS, alguns fatores contribuem fortemente para a maior incidência de medicamentos falsificados, quais sejam, a falta de legislação coibindo a fabricação e a distribuição de medicamentos falsificados, uma autoridade nacional regulatória ausente ou deficiente, a falta de cumprimento da legislação existente, a deficiência de sanções penais, a cooperação ineficiente entre as partes envolvidas e a falta de regulamentação por parte de países exportadores e em zonas de livre comércio, entre outros (OPAS/OMS, 2005).

O incremento do comércio transfronteiriço, na área da saúde, na era globalizada, tomou proporção, como bem explica Dalmo Dallari sobre a obtenção das patentes:

[…] a sonegação e o jogo de mercado, os preços exorbitantes, as mentiras sobre as qualidades dos produtos, as falsificações, a propaganda enganosa ou inadequada, visando estimular o consumo mesmo que inadequado, o suborno direto ou indireto de autoridades públicas, de empresários e profissionais da saúde e tudo o mais que faz parte da competição econômica estão muito presentes na área da saúde. (DALLARI, 2009, p. 147)

Na citação acima, verifica-se que o consumo, para se adequar a uma sociedade exigente, globalizada, sem fronteiras com a internet, acaba por gerar nas pessoas a necessidade de um way of life diferenciado, levando os consumidores a, na maioria das vezes, buscar os medicamentos falsificados comercializados fora da estrutura regulada, o que os expõe a grandes riscos sanitários, uma vez que não há garantia da qualidade, da segurança e da eficácia do medicamento.

Destaca-se ainda que, no tema da falsificação, a ANVISA tem destacada participação nas discussões e iniciativas internacionais sobre o tema, desenvolvendo atividades nos âmbitos do MERCOSUL, da UNASUL, da OPAS e da OMS. Ademais, a coordenação do Grupo de Trabalho de Combate à Falsificação de Medicamentos da Rede Pan-Americana de Harmonização da Regulamentação Farmacêutica/OPAS é da ANVISA, desde 2001, cujos principais produtos são a elaboração de guias e referências técnicas, a rede de pontos focais de autoridades sanitárias para o combate à falsificação e o desenvolvimento de capacitações em países tais como Panamá, Jamaica, Costa Rica e Bolívia, com o objetivo de elaborar planos nacionais de ação.

Em sintonia com as diretrizes sobre o tema de combate à falsificação de medicamentos e produtos médicos da OMS, a ANVISA participou, em maio de 2006, da WHO INTERNATIONAL CONFERENCE ON COMBATING COUNTEFEIT MEDICINES, em Roma, que resultou na Declaração de Roma, em que a Organização Mundial da Saúde propôs a criação do International Medical Products Anti-Counterfeiting Taskforce – (IMPACT). Trata-se de um grupo de trabalho voluntário de governos, organizações, instituições, órgãos e associações de países desenvolvidos e em desenvolvimento no sentido de partilhar conhecimento, identificar problemas, buscar soluções, coordenar atividades e trabalhar para o objetivo comum de combater a falsificação de produtos médicos (OMS, 2006).

Os documentos desenvolvidos pelos grupos de trabalho do IMPACT trazem orientações e referências no combate à falsificação de medicamentos e produtos para saúde, reunindo informações e conceitos que visam auxiliar a aplicação de uma política de proteção à saúde pública, não tendo nenhum caráter mandatório, mas sim de definição das áreas fragilizadas que necessitam ser fortalecidas com medidas de nível nacional e internacional.

Nesse diapasão, em 2008, ocorreu a 61ª Assembleia Mundial de Saúde – WHA, oportunidade em que foi questionada a forma com a qual a OMS vinha trabalhando nos documentos e conceitos, bem como possíveis interfaces do tema, como a propriedade intelectual de medicamentos. Os documentos respectivamente elaborados foram, então, submetidos às Autoridades de Saúde dos Estados-Membros da OMS, juntamente com uma minuta de Resolução, tratando das questões relativas à falsificação.

É prudente observar que a forma de financiamento e a legitimidade para a propositura de documentos do IMPACT não é livre de questionamento por parte de alguns países. Ademais, não restou clara a intenção de trabalhar exclusivamente no âmbito da saúde pública, já que a força tarefa estava sob a égide da OMS, mas incluía outras organizações tais como a INTERPOL, a Organização Mundial de Aduanas, a Junta Internacional de Fiscalização de Produtos Controlados, a Federação Internacional da Indústria de Medicamentos, a Organização Internacional de Associações de Consumidores e a Federação Internacional Farmacêutica (OMS, 2006).

Um aclaramento do tema exige, portanto, a delimitação do objeto no tempo, o que, no âmbito da falsificação de medicamentos, implica a análise de sua definição, conforme proposta esposada pela definição da OMS, de 1992:

Medicamentos falsificados são aqueles deliberada e fraudulentamente rotulados de forma incorreta com relação à identificação e/ou fonte. A falsificação pode se aplicar tanto a produtos de marca quanto a genéricos, sendo que os mesmos podem incluir produtos com os princípios corretos ou incorretos, sem princípios ativos, com princípios ativos insuficientes ou com embalagem falsa. (OMS, 1999)

Esta definição foi questionada sob fundamento de que a ação de falsificação deveria compreender o elemento subjetivo em seu bojo, uma deliberação do agente acerca do resultado fraudulento. O argumento utilizado era de que, antes de confirmar a falsificação, haveria que se confirmar o dolo, ou seja, a intenção do agente em obter determinado resultado, ou pelo menos ser indiferente ao resultado previsível (dolo eventual) (BRASIL, 1999). O conceito, exigente de elemento subjetivo, foi criticado por parte dos estados membros em virtude da limitação de sua aplicação, pois que não comprovada a vontade do agente, não caberia a definição.

Em 2008 mesmo, na III Reunião do Grupo IMPACT, após discussões sobre um conceito a ser utilizado, restou a seguinte proposta:

A medical product is counterfeit when there is a false representation in relation to its identity, history or source. This applies to the product, its container or other packaging or labeling information. Counterfeiting can apply to both branded and generic products. Counterfeits may include products with correct ingredients/components, with wrong ingredients/components, without active ingredients, with incorrect amounts of active ingredients, or with fake packaging. (OMS, 2006)

Nas discussões técnicas sobre a definição de medicamentos falsificados, entendeu-se o significado da palavra “history” como sendo o dossiê de produção, o como foi feito o medicamento, por quem foi feito, ou seja, qual era o histórico daquele medicamento.

A inclusão da palavra “histórico” na definição do “medicamento contrafeito” não foi livre de questionamentos, de forma que, na 61ª Assembleia Mundial da Saúde, observou-se que poderia sugerir a inclusão de medicamentos genéricos no rol de medicamentos falsificados, por se tratar de onde ele veio e quem seria o detentor da patente.

Em caráter subsequente, em 2012, foi editada a Resolução WHA 65.19, estabelecendo um grupo de trabalho de Estados-membros sobre medicamentos de qualidade substandard, espúrios, falsificados, falsamente etiquetados ou copiados. Em sua primeira reunião, 65 Estados-membros discutiram a estrutura do mecanismo, a forma de governança, financiamento, além de um resumo da situação atual do tema (OMS, 2008).

Essa preliminar apresentação do conceito de falsificação de medicamentos, bem como sua lapidação histórica, tanto de sua delimitação objetiva quanto de seu âmbito de aplicação, permite situar o problema no âmago de análise do presente artigo: a análise do direito à saúde no MERCOSUL através da observação da celeuma relacionada à falsificação de documentos, com ênfase no caso Brasil. Nesse sentido, cumpre destacar preliminarmente que os medicamentos falsificados afetam diretamente o direito à saúde e que, no contexto de uma sociedade de mundo, os problemas e as possíveis soluções não apenas devem ser, mas são compartilhados. É dentro dessa perspectiva do compartilhamento dos problemas de saúde que se deve pensar nas políticas públicas de saúde no que tange ao enfrentamento do problema da falsificação de medicamentos. O problema dos medicamentos falsos está diretamente vinculado à política pública de saúde, tendo em vista que cabe ao Estado e ao sistema do direito o “gerenciamento” das ações para combater a prática da falsificação, bem como criar práticas para coibir ou elidir a falsificação. É um problema de saúde pública que deve ser enfrentado a partir do principal instrumento da saúde pública e coletiva: a política pública.

Para isso, o artigo está dividido em cinco partes. Na primeira, apresenta-se a introdução ao tema; na segunda, analisa-se o direito à saúde nos países do MERCOSUL; na terceira, observam-se os medicamentos falsos no MERCOCUL. Na quarta parte, estuda-se a situação sociojurídica dos medicamentos falsos no Brasil e por fim, na quinta parte, chega-se à conclusão.

2 DIREITO À SAÚDE NOS PAÍSES DO MERCOSUL

No âmbito internacional, a tutela do direito à saúde passa por sua consolidação através da Carta das Nações Unidas, da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, da OMS, dentre outros aspectos a serem levados em consideração pelos sistemas regionais[3].

Considerada essa forma de institucionalização de sua tutela, e enquanto demanda jurídica voltada à inclusão social[4], o Direito à Saúde exige, para que seja pauta de uma discussão de efetivação de direitos mínimos, não só a ampliação da tutela jurisdicional, mas também das políticas públicas de saúde, de sorte que a relação entre os sistemas do Direito e da Política possa resultar em políticas públicas de saúde realmente eficazes.

Restringindo-se a análise ao âmbito constitucional brasileiro de 1988, pode-se dizer que o texto constitucional faz alusão à saúde, também, no “rol” dos direitos fundamentais[5] da pessoa humana, sentido em que Araújo Oliveira (1985) observa que:

O direito à saúde está consagrado, portanto, em dispositivos explícitos de nosso ordenamento maior, que garante o direito humano à saúde, cumprindo ao Estado dar efetividade a esse direito em todos os seus planos, com medidas de cunho preventivo como medidas de recuperação da pessoa agravada em suas condições físicas ou psíquicas inerentes a uma existência digna.

No que concerne à saúde, observa-se que o sistema jurídico da Argentina não reconheceu a saúde como direito de modo explícito no texto constitucional; todavia, as políticas de saúde são previstas na Constituição Argentina. No art. 14, Capítulo II, que contempla os direitos e as garantias individuais, encontra-se a previsão implícita do direito à saúde. Vejamos:

Artículo 14 bis […] El Estado otorgará los beneficios de la seguridad social, que tendrá carácter de integral e irrenunciable. En especial, la ley establecerá: el seguro social obligatorio, que estará a cargo de entidades nacionales o provinciales con autonomía financiera y económica, administradas por los interesados con participación del Estado, sin que pueda existir superposición de aportes; jubilaciones y pensiones móviles; la protección integral de la familia; la defensa del bien de familia; la compensación económica familiar y el acceso a una vivienda digna. (ARGENTINA, 1992)

Ainda que a saúde não tenha sido reconhecida explicitamente como direito de todos na Argentina, nota-se que o texto constitucional faz alusão à seguridade social, à vida digna, etc. Todavia, a postura é paradoxal, na medida em que o Decreto 1.269/1992 apresenta uma marca extremamente clara acerca do caráter de exclusão, visto que ele rompe com a ideia de universalidade, pois indica que a promoção e a proteção da saúde são destinadas para as populações marginalizadas e pobres. Vejamos:

[…] promoción e protección de la salud, del mejor nivel de calidad posible y el menor costo económico y social, dirigidos a poblaciones marginadas y de pobreza estructural, y en aquellas situaciones biopsicosociales consideradas potencialmente riesgosas. (ARGENTINA, 1992)

Por sua vez, no Uruguai, a saúde é reconhecida como direito. No entanto, temos certas peculiaridades, tais como a saúde ser responsabilidade do indivíduo, de modo que o Estado tem uma responsabilidade “subsidiária”, no sentido de que o Estado presta serviços para as classes mais carentes. Contudo, há uma preocupação com a fiscalização da prestação de serviços de saúde da iniciativa privada. A leitura dos seguintes artigos do texto constitucional uruguaio demonstra essa ideia:

Artículo 44. El Estado legislará en todas las cuestiones relacionadas con la salud e higiene públicas, procurando el perfeccionamiento físico, moral y social de todos los habitantes del país.

Todos los habitantes tienen el deber de cuidar su salud, así como el de asistirse en caso de enfermedad. El Estado proporcionará gratuitamente los medios de prevención y de asistencia tan sólo a los indigentes o carentes de recursos suficientes.

Artículo 45. Todo habitante de la República tiene derecho a gozar de vivienda decorosa. La ley propenderá a asegurar la vivienda higiénica y económica, facilitando su adquisición y estimulando la inversión de capitales privados para ese fin.

Artículo 46. El Estado dará asilo a los indigentes o carentes de recursos suficientes que, por su inferioridad física o mental de carácter crónico, estén inhabilitados para el trabajo. El estado combatirá por medio de la Ley y de las Convenciones Internacionales, los vicios sociales. (URUGUAY, 1966)

Analisando as constituições do Brasil, da Argentina e do Uruguai, observa-se que, embora ocupem o mesmo espaço geográfico e contem com históricos democráticos semelhantes e peculiares, bem como processos de (re)democratização comuns, caracterizadores de uma identidade histórica (o que não é objeto da presente discussão), existe uma disparidade de tratamento jurídico-constitucional reservado ao direito à saúde, ou seja, não há uma unicidade de tratamento jurídico sobre o tema da saúde. No Brasil, a saúde é direito de todos e dever do Estado; no Paraguai, também é um direito constitucional; na Argentina e no Uruguai, não.

O Paraguai refere-se à saúde como direito e alude a isso no texto constitucional nos arts. 68 e 69. Vejamos:

CAPÍTULO VI

DE LA SALUD

Artículo 68. DEL DERECHO A LA SALUD

El Estado protegerá y promoverá la salud como derecho fundamental de la persona y en interés de la comunidad.

Nadie será privado de asistencia pública para prevenir o tratar enfermedades, pestes o plagas, y de socorro en los casos de catástrofes y de accidentes. Toda persona está obligada a someterse a las medidas sanitarias que establezca la ley, dentro del respeto a la dignidad humana.

Artículo 69. DEL SISTEMA NACIONAL DE SALUD

Se promoverá un sistema nacional de salud que ejecute acciones sanitarias integradas, con políticas que posibiliten la concertación, la coordinación y la complementación de programas y recursos del sector público y privado. (PARAGUAY, 1992)

Na situação do Paraguai, é possível destacar certa semelhança ao sistema brasileiro, visto que o Paraguai faz alusão a um sistema de saúde e faz referência às ações sanitárias e às políticas públicas de saúde.

A delimitação da tutela jurídica reservada ao direito à saúde estabelece o pano de fundo para se afirmar que a discussão acerca do direito à saúde e seu tratamento no MERCOSUL excedem as fronteiras geográficas, estabelecendo-se como um direito complexo que, no entanto, enfrenta um problema comum e carente de soluções tanto nacionais quanto internacionais. Todavia, é relevante observarmos se há de fato um direito à saúde no âmbito do bloco: existe direito à saúde efetivamente no MERCOSUL, ou são só previsões jurídicas nos ordenamentos jurídicos nacionais de modo isolado? Será que temos a possibilidade de discutir o direito à saúde como um direito comum no bloco?

De fato, a falsificação de medicamentos mostra-se como um problema que há muito já superou as fronteiras territoriais dos países-membros do bloco. Para se tratar a questão, é preciso (re)pensar o novo modelo de saúde pública internacional, há que se vislumbrar o reconhecimento dos espaços nacionais e internacionais nesse diálogo da saúde. Pode-se destacar a perspectiva de “saúde internacional” de Frenk (1992, p. 205-223) como sendo os “fenômenos, vínculos, ações e inter-relações do processo de saúde-enfermidade que se produzem entre os sujeitos e os espaços da sociedade internacional. A partir disso, pode-se pensar na saúde como algo cuja responsabilidade seja de todos os países, independentemente do seu nível de desenvolvimento.

Maestre (2003, p. 1-17) diz que a ânsia pelo poder, conjugada com as políticas exteriores (isso nos modelos sociopolíticos) se convertem para as relações internacionais e os modelos de saúde se convertem em “referências” para essas relações. É a partir dessa ideia que se deve pensar um bloco como o MERCOSUL no que tange à saúde. A integração é uma característica da sociedade globalizada e pensar numa saúde global é pensar na integração, que justamente envolve de modo ativo a participação desses blocos, inicialmente no seu âmbito de atuação. Nesse contexto, é necessário observar a “saúde global” como um novo paradigma. E, dentro desse paradigma, não se pode esquecer o cerne dele, como bem destaca Giraldo e Dardet (2009, p. 544) quando dizem que “a saúde pública é um bem global”, justamente por ter alicerce nos direitos humanos.

3 OS MEDICAMENTOS FALSOS NO MERCADO COMUM DO SUL

Consideram-se como medicamentos falsificados aqueles deliberada e fraudulentamente rotulados de forma incorreta com relação à identificação e/ou fonte. A falsificação pode se aplicar aos medicamentos de marca e aos genéricos. Os falsificados, geralmente, incluem princípios ativos corretos ou incorretos, sem princípios ativos, com princípios ativos insuficientes ou com embalagem falsa (OMS, 2005).

No tema, a Organização Mundial da Saúde (OMS) identificou a contrafação (falsificação) como um problema crescente, quase sempre subestimado, e cita, particularmente, as questões relativas à toxicidade, instabilidade e ineficácia desses produtos (esses pontos estão vinculados, também, à qualidade). As diretrizes e as normativas da OMS, em 1999, orientam os interessados quanto às medidas possíveis e cabíveis para o combate à falsificação de medicamentos (HURTADO, 2014).

A inobservância de padrões de qualidade na produção de medicamentos gera riscos que comprometem o direito à saúde. Os medicamentos falsificados produzidos fora de uma cadeia regular ocasionam alto risco à saúde coletiva justamente porque inexistem esses padrões no medicamento falsificado. A composição não fiel àquela apresentada em sua rotulagem, a possível contaminação por substâncias anormais, decorrentes de deterioração de substâncias presentes, inicialmente, no produto, o transporte inadequado, são só alguns exemplos de situações que podem ser danosas à saúde. Pode-se citar, ainda, a questão dos agentes biológicos geradores de enfermidades, a saber: fungos ou bactérias decorrentes de contaminação dos materiais empregados no produto ou do processamento incorreto do mesmo, bem como a possível toxicidade pela presença de substâncias em quantia acima da faixa terapêutica, por erro de elaboração, ou no sentido oposto, de ineficácia do produto, por quantia dos ativos farmacêuticos abaixo do limite adequado, entre outros (BRASIL, 2004). Isso é resultado da inobservância de padrões de qualidade e da baixa regulação em relação ao combate à falsificação.

Cumpre observar, ainda, que um medicamento que não tenha suas condições de fabricação adequadas pode ter sua capacidade de absorção pelo organismo prejudicada, comprometendo sua eficácia. Temos, ainda, a dúvida em relação ao prazo dentro do qual o produto poderá ser consumido sem riscos. Tudo isso decorre da falta de qualidade dos medicamentos falsificados. Ou seja, quando o medicamento é falsificado, ele não passou por nenhum processo de qualidade (boas práticas), não foi fiscalizado e acompanhado pelas agências de regulação.

A Organização Mundial da Saúde adverte que disseminação de medicamentos falsificados é geralmente mais frequente em países onde a fabricação, a importação, a distribuição, o fornecimento e a venda de medicamentos são menos regulamentados e a fiscalização é mais branda. As informações da OMS indicam que a falsificação de medicamentos está se tornando cada vez mais sofisticada; isso demanda, das autoridades sanitárias, incluindo aqui a figura dos Estados-membros, constante alerta e revisão acerca dessa discussão (OMS, 2005).

Ao se analisar o contexto dos medicamentos falsificados no MERCOSUL, que é peculiar justamente em função do baixo nível de fiscalização e das facilidades que o livre comércio e trânsito de pessoas propiciam à circulação de medicamentos falsificados, é oportuno considerarmos que o conceito de inclusão significa a incorporação da população global às prestações dos diferentes sistemas funcionalmente diferenciados (por exemplo: política, direito, saúde). Faz-se referência, de um lado, às prestações, e de outro, à dependência que estas terão nos diferentes modos de vida individuais (LUHMANN, 1993). O desafio é compatibilizar esses diferentes modos de vida com as prestações políticas, jurídicas e sanitárias, pensar nas peculiaridades do bloco econômico para subsidiar as ações de combate à falsificação.

O direito à saúde é um modo de inclusão, no entanto, no caso da falsificação de medicamentos no MERCOSUL, a inclusão é ainda mais complexa, tendo em vista que esse direito demanda prestações, do tipo que combatam os medicamentos falsos. Isso afeta diretamente a população da sociedade sem fronteiras, o problema ultrapassa as fronteiras geográficas do bloco. O problema dos fármacos falsificados demanda uma resposta do sistema da política e do direito.

Acerca do problema, é importante retomar que, dado que o direito à saúde é concretização do direito à vida, isto é, amostra dos direitos humanos, estes direitos são fortes declarações éticas sobre o que deve ser feito, estabelecedoras de imperativos e indicadores da necessidade de ações que proporcionem a concretização desses direitos reconhecidos e identificados (SEN, 2013, p. 392-393). Ora, “se os direitos humanos cabem a todo ser humano em virtude de sua condição humana, a responsabilidade pelo dever é universalizada” (BARZOTTO, 2010, p. 54); em suma, o reconhecimento do direito à saúde como concretização do direito à vida impõe a busca de soluções para a falsificação medicamentar, estas na forma de uma resposta política[6].

O problema da falsificação de medicamentos já ultrapassou as fronteiras, o que não é diferente no Bloco. Considerando essa problemática, é oportuno que se observe a Política de Medicamentos do MERCOSUL, que tem o propósito de, dentre outros, “garantir a qualidade, segurança e eficácia dos medicamentos que circulam na região”. Nesse viés, temos a falsificação de medicamentos inserida, pois garantir qualidade e segurança é, também, combater a falsificação.

Nesse sentido, faz-se necessária uma resposta político-institucional ao desafio imposto pela falsificação de medicamentos. Cumpre aí observar como é pertinente que, “no sistema da política, e particularmente nele, há um excesso de necessidades de orientação a respeito das possibilidades de atuação. O político deve saber dizer mais que ele pode fazer” (LUHMANN, 2002), de forma que o combate à falsificação, e a consequentemente tutela do direito à saúde, existe uma perene carência de resposta política.

Nesse sentido, e de forma detida, tem-se a Resolução 13/2008 (MERCOSUL/GMC/RES), do bloco, que versa sobre diretrizes sobre o combate à falsificação e fraude de medicamentos e produtos médicos no MERCOSUL. Nessa resolução, as Autoridades Sanitárias dos Estados-Partes assumem o compromisso de esforço comum para a implementação de políticas antifalsificação, incluindo mecanismos de rastreabilidade e de autenticidade de medicamentos e produtos médicos. Para isso, a resolução foi aprovada com a seguinte redação:

Art. 1º. As Autoridades Sanitárias dos Estados Partes devem buscar desenvolver e aprimorar suas ações de combate à falsificação e fraude de medicamentos e produtos médicos, baseando-se em referências internacionalmente reconhecidas, particularmente na Organização Mundial da Saúde e nas diretrizes regionais adaptadas pela Organização Pan-Americana da Saúde.

Art. 2º. As Autoridades Sanitárias dos Estados Partes […] devem desenvolver suas ações de forma coordenada com os trabalhos de outros órgãos de governo que atuam no tema, em especial as autoridades policiais, judiciárias e fiscais. A articulação entre órgãos e instituições nacionais deverá ser definida pelos próprios Estados Partes, que buscarão criar oportunidades formais para o diálogo interinstitucional.

Art. 3º. As Autoridades Sanitárias dos Estados Partes […] devem incentivar a capacitação de agentes e a promoção de campanhas de informação para a sociedade, como forma de inibir a circulação de medicamentos e produtos médicos fora da cadeia legal.

Art. 4º. As Autoridades Sanitárias buscarão definir estratégias, considerando as diretrizes internacionais e regionais, para adoção de mecanismos de rastreabilidade e de autenticidade dos medicamentos e produtos médicos, incluindo toda a sua cadeia de comercialização, como forma de garantir a segurança e proteger a saúde dos consumidores […].

Nesse contexto e, juntamente com a Resolução 13/2008, o Grupo Mercado Comum aprovou o documento sobre a “Rede de Pontos Focais de Autoridades de Saúde para a Prevenção e Combate a Falsificação de Medicamentos e Produtos Médicos do MERCOSUL”, por meio de Resolução (MERCOSUL/XXXVI SGT 11, 2011). O objetivo dessa Rede é implementar/fomentar a comunicação entre as autoridades de saúde de todos os Estados-Partes do MERCOSUL para efetivar e auxiliar com a implementação de atividades de prevenção e combater a falsificação de medicamentos e produtos médicos em nível nacional e regional.

Essa rede tem a pretensão de considerar a realidade de cada Estado Parte. Para isso, almeja-se que sejam implementados sistemas, mecanismos e tecnologias para a rastreabilidade de medicamentos e produtos médicos, bem como sistemas de informação e recursos utilizados para as investigações de falsificação de medicamentos e produtos médicos; programas para a identificação de medicamentos e produtos médicos falsificados no mercado. A rede no MERCOSUL foi pensada a partir de pontos focais, que deverão ser indicados pelas autoridades de saúde e dos Estados-Partes. A comunicação geral será por e-mail, e deverão ser realizadas reuniões virtuais por sistema de videoconferência para o tratamento dos temas em discussão, assim como para o intercâmbio de informações e experiências.

No Brasil, foi editada a Portaria 1.322, de junho de 2011, pelo Ministério da Saúde, para tornar pública a proposta de Projeto de Resolução “Rede de Pontos Focais das Autoridades de Saúde para a Prevenção e o Combate à Falsificação de Medicamentos e Produtos Médicos no MERCOSUL”. A portaria fez alusão à construção do texto referente à rede, e foi fixado prazo de 60 dias para serem apresentadas sugestões e críticas. Após esse prazo, a Coordenação Nacional da Saúde do MERCOSUL, por intermédio do Núcleo de Assessoramento em Assuntos Internacionais da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, articular-se-ia com os órgãos e entidades envolvidas para que indiquem representantes para consenso e consolidação do texto final. Esse texto ainda não foi encontrado on line.

No âmbito do MERCOSUL, a maior parte dos pirateados vem do Paraguai e da Bolívia. Nos falsificados, há substâncias tóxicas e inócuas, o que pode gerar sérios danos e riscos à saúde (JOÃO, 2010).

A grande circulação de turistas pelas ruas de Ciudad del Leste — município paraguaio fronteiriço com o Brasil — facilita o comércio e o transporte de medicamentos falsificados. São mil quilômetros de fronteiras secas e de portos clandestinos no Lago Itaipu e Rio Paraná, facilitadores para a falsificação.

O comércio ilegal de medicamentos e equipamentos médicos não tem uma estrutura formal ou uma organização como outros atos criminosos têm. Conforme o Delegado Federal José Alberto Iegas, os Medicamentos como o Pramil – o Viagra paraguaio – são produzidos em fabriquetas de fundo de quintal, nas proximidades de Ciudad del Leste, que podem desaparecer num piscar de olhos e reabrir em outro local. É oportuno registrar que a apenas 20 km de Ciudad del Leste (terceira maior zona franca do mundo, atrás apenas de Miami e Hong Kong), no município de Minga Guazú, está localizado o Parque Industrial de Taiwan (PTI). Esse complexo industrial é o centro de produção e controle da venda de medicamentos e equipamentos médicos; é uma espécie de centro de montagem de equipamentos importados (PRATES, 2009).

São relevantes as observações realizadas na Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília em relação aos medicamentos falsificados, especificamente sobre os laudos realizados pela perícia da Polícia Federal oriundos das apreensões de medicamentos falsos. Conforme esse estudo, o posto de Santa Terezinha de Itaipu – limite com Foz do Iguaçu, na BR-277, é o principal corredor do contrabando e tráfico da região. De janeiro a julho de 2012, foram 70.821 unidades apreendidas, contra 41.927 no mesmo período do ano de 2011. Entre os mais procurados, estão remédios para combater a impotência sexual, perder peso, além de abortivos e anabolizantes (MARCHETI, 2014).

Oficialmente, os remédios só podem ser trazidos do Paraguai mediante um procedimento de importação e com autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). No entanto, na práxis, as cartelas são levadas aos poucos para Foz do Iguaçu para depois serem distribuídas ao restante do país pelas mãos de sacoleiros e contrabandistas. Um facilitador para o transporte são os mototáxis paraguaios, que são rápidos, baratos e tem facilidade na passagem.

Conforme o estudo, no total, 117 cidades brasileiras foram responsáveis pelas solicitações de relatórios periciais criminais de medicamentos no período estudado. Foz do Iguaçu foi responsável por 28% de todas as solicitações (1.990), está localizada no Estado do Paraná e situada entre os rios Paraná e Iguaçu, ambos ligados pela Ponte Internacional da Amizade (entre Foz do Iguaçu e Ciudad del Este, no Paraguai), além da Ponte Tancredo Neves que, liga Foz a Puerto Iguazú, na Argentina (MARCHETI, 2014).

4 ANÁLISE DAS AÇÕES PARA COMBATE AOS MEDICAMENTOS FALSIFICADOS NO BRASIL

De 2007 a 2010, os registros da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) informam que foram inspecionados, aproximadamente, dois mil locais, em 135 operações, que resultaram em 526 prisões e 748 interdições de estabelecimentos. Até o ano de 2010, foram apreendidas mais de 108 mil unidades de medicamentos falsos e contrabandeados, 237 mil caixas de medicamentos controlados, 347 toneladas de medicamentos sem registro (esses dados referem-se ao aspecto quantitativo e não de espécies ou medicamentos específicos) e 408 toneladas de outros produtos sem registro ou impróprios para uso (BRASIL, 2010). Esses dados demonstram o real risco de dano à saúde humana.

Considerando o conceito de saúde da Organização Mundial da Saúde (saúde como completo estado de bem-estar social, físico e mental), nota-se que o consumo de medicamentos falsificados compromete não apenas o bem-estar físico e mental, mas o próprio direito à saúde, pois, no uso de um medicamento falsificado, não se estará de fato enfrentando a patologia que se pretende tratar ou elidir. O direito à saúde compreende, dentre outras coisas, o acesso aos medicamentos de qualidade, eficazes e seguros, ou seja, sem os riscos mencionados anteriormente. O direito precisa enfrentar o problema da falsificação de medicamentos no que diz respeito a estabelecer marcos regulatórios capazes de enfrentar a falsificação e instrumentalizar o trabalho da ANVISA no que diz respeito a fiscalizar e exigir a observância das práticas de qualidade.

No Brasil, criou-se a Agência Reguladora ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) em 1999. A referida lei definiu o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária e criou a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, cuja competência abrange a regulação sanitária e a regulação econômica do mercado. A Agência encontra-se vinculada ao Ministério da Saúde e integra o Sistema Único de Saúde (SUS).

O enfrentamento e o combate à falsificação consideram diferentes informações, que dizem respeito ao caminho percorrido pelo medicamento desde a transformação da matéria-prima até o seu consumo pelo usuário; isso envolve uma cadeia de produção complexa, processo de técnica e de laboratórios farmacêuticos (isso é traduzido a partir dos padrões de qualidade que precisam ser normatizados). Os medicamentos devem ser seguros[7], eficazes e de qualidade.

No que diz respeito às ações desenvolvidas pela ANVISA para enfrentar o problema da falsificação, destacam-se as principais medidas para evitar fraudes em medicamentos (observado que falsificar medicamentos compreende fraudar ou alterar qualquer procedimento na cadeia de produção, transporte, comércio e dispensação).

Algumas medidas adotadas visam tornar mais rígido o controle sobre o setor de medicamentos e têm como objetivo evitar fraudes, falsificação e sonegação. Essas medidas, atualmente, dizem respeito a dois eixos centrais: as embalagens e as boas práticas.

Quanto às embalagens dos medicamentos, a ANVISA determina que essas possuam um símbolo, revestido com material metalizado que, ao ser raspado, tal como as “raspadinhas” lotéricas, exponha a palavra “qualidade” e a logomarca do fabricante. Este desenho ou logomarca está impresso com tinta reativa e serve como mecanismo para o consumidor saber se o medicamento é falsificado ou não. Todos os medicamentos, para serem comercializados, necessitam ter esta marca (BRASIL, 2001).

No que tange às boas práticas, destaca-se a resolução que normatiza a adoção de boas práticas para a produção de medicamentos, a RDC 134, de 13.07.2001. A garantia de qualidade, eficácia e segurança dos produtos farmacêuticos tem um marco de referência nas diretrizes de Boas Práticas de Fabricação para a Indústria Farmacêutica. Assim, o controle sanitário é realmente eficaz, abrangendo toda cadeia do medicamento desde a sua fabricação e evitando a falsificação, pois é um modo de a agência fiscalizar e acompanhar a fabricação do medicamento (BRASIL, 2001).

Nesse sentido, a Resolução 329, de 22.07.1999, estabelece critérios para as condições ideais e adequadas ao transporte de medicamentos. No âmbito das falsificações, destacando-se que este segmento tem sido alvo de quadrilhas de roubo de cargas, a regulamentação dessa atividade tem por objetivo coibir o crime impedindo o comércio da carga roubada e a distribuição de falsificados (a alteração no transporte é alteração na cadeia do medicamento; logo, enquadra-se como falsificado) (BRASIL, 1999).

De 1999 a 2013 (BRASIL, 2013), foram declarados como falsificados pela ANVISA 134 tipos de medicamentos/insumos. Os mais comuns nessa lista são: Viagra, preservativo Olla, Jontex e outras marcas, fraldas descartáveis “Turma da Mônica”, vacina contra gripe Influenza H1N1, creme dental Sensodyne, Vaxigrip – vacina contra gripe, Protetor Solar Sundown FPS 30 e 50 e outros da linha, Vick Vaporub, inaladador Vick Vaporub, Ampicilina, dentre outros tantos. Esses medicamentos e insumos são declarados como falsos após todo um procedimento administrativo e sanitário, para então ser editada resolução específica para cada um deles. As autoridades sanitárias, nas resoluções, indicaram que eram falsos porque os números de lotes não eram da fabricação “original”, a impressão gráfica era visivelmente inferior, havia número excessivo de erros de português no rótulo, tais como ausência de letras ou até mesmo empresa clandestina e com endereço desconhecido.

Dentro desse contexto de medidas, a criação da ANVISA foi um importante passo para a regulação de medidas para o combate à falsificação no Brasil. À agência, foi delegado um papel determinante para as ações de prevenção e combate à falsificação de medicamentos: a fiscalização e a regulação, que proporcionaram a estruturação dos órgãos de fiscalização componentes do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária (SNVS) e o estabelecimento de padrões e fluxos de trabalho, em casos de investigação de suspeita de falsificação; a regulamentação e o controle da cadeia de produção e fornecimento de medicamentos no país, por meio da realização de cursos de capacitação para os agentes do SNVS, oficinas e fóruns para sensibilizar e envolver todos os atores de vários setores correlatos (setor regulado, sociedade, justiça, fazenda pública, dentre outros) (BRASIL, 2004).

É oportuno destacarmos a Lei 11.903/2009, que estipula que todo e qualquer medicamento produzido, dispensado ou vendido no território nacional será controlado por meio do Sistema Nacional de Controle de Medicamentos. É um controle para produção, comércio e dispensação de medicamentos; logo, em tese, isso permitiria o controle de todo e qualquer medicamento que circulasse no mercado. No entanto, a Lei não especifica a tecnologia que será empregada pelo Ministério da Saúde para concretizar o controle, embora seu texto esclareça que será feito “o rastreamento da produção e do consumo de medicamentos, por meio de tecnologia de captura, armazenamento e transmissão eletrônica de dados”. Nota-se, pois, que a organização do rastreamento não foi enfrentada pela lei.

5 CONCLUSÃO

O problema da falsificação não é só um problema meramente local, mas também global. A falsificação de medicamentos tem tomado proporções maiores nos últimos anos, conforme já relatado no texto. Logo, o direito à saúde fica comprometido. E, como suscitado, a falsificação de documentos merece atenção peculiar na medida em que tem impacto direto sobre o direito à vida, concretizado através do direito à saúde.

O direito à saúde é reconhecido como tal de modo diferenciado nos países integrantes do MERCOSUL. No entanto, apesar das cartas constitucionais fazerem alusão à saúde de modo bastante distinto, ainda não há efetividade quando o assunto é saúde como bem comum de todos os países integrantes do bloco pela falta de uniformidade de tratamento. Tampouco há efetividade para enfrentar o problema que atinge a todos os países: a falsificação. As medidas do tipo jurídicas, implementadas via resoluções e atos do Bloco não passam de meras “intenções”; não há nada de concreto em termos de legislação comum ou nacional para enfrentar o tema da falsificação de medicamentos no âmbito do MERCOSUL.

No Brasil, conforme informações disponibilizadas pelo Ministério da Justiça no seu sítio, foram apreendidos 18 milhões de medicamentos irregulares no ano de 2010, marca que foi o ápice de apreensões. Essas ações envolveram operações de apreensão da Polícia Federal, da Polícia Rodoviária Federal e da ANVISA. Isso demonstra a gravidade do problema (conforme dados já apresentados anteriormente).

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária vem trabalhando a prevenção e o combate à falsificação de medicamentos, cuja competência regimental é da Gerência de Monitoramento da Qualidade e Fiscalização de Insumos, Medicamentos, Produtos, Propaganda e Publicidade – GFIMP, que consoante diretrizes da Organização Mundial da Saúde – OMS, deve se concentrar no fortalecimento das capacidades regulatórias das Agências Reguladoras de Medicamentos, atacando os fatores que facilitam a falsificação. No entanto, o trabalho da agência ainda não é suficiente; é preciso que os sistemas do direito e da política apresentem uma resposta efetiva, pois a regulação jurídica é tarefa do direito. Sem isso, não teremos os acoplamentos estruturais necessários para a ANVISA combater a falsificação de medicamentos.

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Notas de Rodapé

[1] Doutora em Direito, Evoluzione dei Sistemi Giuridici e Nuovi Diritti (Università Degli Studi di Lecce) e pós-doutora em Direito (Università degli studi di Roma Tre). É professora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), do Programa de Pós-graduação em Direito (Mestrado e Doutorado), da Scuola Dottorale Internazionale Tullio Ascarelli e professora visitante da Università Degli Studi di Salerno.

[2] Doutoranda em Direito Público (Unisinos, Bolsista CAPES); Mestra em Direito Público (Unisinos); Especialista em Direito Sanitário (Unisinos e Universidade de Roma Tre); Bacharela em Direito (Unisinos). Coordenadora Adjunta do Curso de Direito da Universidade Luterana do Brasil de Torres (ULBRA); Professora Adjunta da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra). Contato: koll.gabrielle@gmail.com

[3] Parece-nos claramente que o MERCOSUL pode sim ser visto como um “Sistema Regional”, mas que transcende a mera perspectiva econômica.

[4] A base do argumento é a formulação luhmanniana do Estado de bem-estar social como a realização de inclusão política em decorrência do “princípio sociológico da inclusão”. O conceito luhmanniano “antigo” de inclusão, desenvolvido em 1981, era definido pela abrangência de toda a população nas performances de sistemas funcionais individuais: isso se relaciona, por um lado, com o acesso aos benefícios de um sistema e, por outro, com a dependência aos modos de vida que determinado sistema impõe (LUHMANN, 1990, p. 34).

[5] No tocante aos “direitos fundamentais” e aos “direitos do homem”, deve-se dizer que há quem os diferencie. Estes poderiam ser utilizados em sentido genérico da acepção universal. Já aqueles seriam os direitos do homem positivados, constitucionalizados. Entretanto, Bobbio tece algumas críticas a ambos, pois, segundo ele, “direitos do homem é uma expressão muito vaga, não existem direitos fundamentais por natureza. Aquilo que parece fundamental numa determinada época histórica e numa determinada civilização não é fundamental em outras. […] A expressão direitos do homem pode provocar equívocos, já que faz pensar na existência de direitos que pertencem a um homem abstrato e, como tal, subtraídos ao fluxo da história”. Nessa esteira, pode-se dizer que como justificativa ao enfrentamento do problema da saúde, consoante o autor, não se trata tão somente de justificar esses direitos, mas sim de protegê-los, ou seja, trata-se de um problema político e não filosófico, pois se tem a necessidade de realização desse direito. Sem esses direitos reconhecidos e protegidos, dentre os quais a saúde, e sem democracia, é inviável termos condições mínimas para a resolução dos conflitos (BOBBIO, 1992, p. 1-32).

[6] Barzotto (2010, p. 54) aponta que a existência de um direito humano (como o objeto da presente discussão), contraposto a um dever vinculado potencialmente a toda a humanidade, coloca como sujeito de dever a figura do co-humano.

[7] Medicamento seguro: aquele que apresenta níveis aceitáveis de toxidade; eficaz é aquele que atinge os efeitos a que se propõe; e de qualidade é aquele que possui propriedades como identidade, pureza, potência, concentração, uniformidade, estabilidade e biodisponibilidade (RUIZ, 2008). Esses elementos são oriundos do sistema da saúde, mas devem ser objeto de regulação pelo direito. Destarte, o direito regulatório deve contemplar que a qualidade de um medicamento está vinculada a alguns elementos, quais sejam: a comprovação de que ele possui efeitos terapêuticos adequados e que cumpre as práticas adequadas de fabricação (o guia de Boas Práticas de Fabricação da Organização Mundial da Saúde ainda não dá conta da complexidade envolvida na falsificação e, de qualquer sorte, não tem o condão do direito regulatório).