O Encarceramento em Massa na Agenda do Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas: Consequências para a Ação Penal no Brasil

OVERCROWDING PRISON IN UNITED NATION’S SUSTAINABLE DEVELOPMENT AGENDA: CONSEQUENCES TOWARDS THE CRIMINAL PROSECUTION IN BRAZIL

Antonio Henrique Graciano Suxberger[1]

Resumo: O artigo versa sobre o fenômeno do superencarceramento e sua abordagem na agenda do desenvolvimento sustentável das Nações Unidas para o período de 2015 a 2030. Serão indicados os documentos internacionais adotados pelas Nações Unidas com destaque ao uso abusivo das prisões e às demandas pelo aprimoramento do sistema de justiça criminal dos países em geral. Entre as estratégias para enfrentar o superencarceramento, o aprimoramento do sistema de justiça criminal aparece com destaque, especialmente por meio de estratégias e alternativas que se referem ao exercício da ação penal. O princípio da oportunidade aparece, pois, para além dos acordos e negócios processuais, como providência que antecede a discussão sobre as instituições e agências incumbidas da persecução penal. No Brasil, a legislação timidamente incorporou a oportunidade em 2013 apenas para casos de colaboração premiada contra organizações criminosas. Até mesmo como estratégia contra a superlotação carcerária, indicar-se-á a necessidade de ampliação desse princípio. Valendo-se de análise documental e revisão bibliográfica, o artigo enfatiza a agenda assumida pelas Nações Unidas sobre o uso abusivo das prisões e sua incorporação na discussão brasileira.

Palavras-chave: Superlotação carcerária. Ação penal. Princípio da oportunidade. Direitos Humanos. Sistema de justiça criminal.

Abstract: The article assays on overcrowding prison and its presence in the United Nation’s sustainable development to the 2015-2030 period. There will be indicated the international documents and resolutions adopted by the United Nations, focusing on the abusive detention and the demands to the improvement of criminal justice system. Amongst the instruments and alternatives to face up the overcrowding prison, the criminal justice system’s improvement features prominently, especially the use of discretion or opportunity in the criminal prosecution. Therefore, the opportunity or discretion in the criminal prosecution, besides the plea bargaining and the deals in general, is a feature that precedes the discussion on the improvement of agencies and institutions involved with the criminal prosecution. In Brazil, the legislation maidenly formalized the opportunity strictly to legal colaborations on prosecutions referring to organized crime. As a strategy to face overcrowding prisons, it seems necessary to increase this regulation. Through documental analysis and bibliographic review, the essay highlights the agenda proposed by the United Nations on abusive use of detention and prisons, including how this discussion should be inserted in the Brazilian context.

1 INTRODUÇÃO

A temática do superencarceramento ou do encarceramento em massa já ocupa a literatura jurídico-penal há tempo considerável. No entanto, a falta de precisão conceitual na sua apresentação tem dificuldade a incorporação desse problema na agenda política dos países que sofrem desse mal – entre eles, o Brasil. A temática da superlotação carcerária tem ocupado a as instâncias internacionais comprometidas com os direitos humanos e, nesse particular, as Nações Unidas tem atraído para si posição de nítido protagonismo.

O plano de ações intitulado “Transformando Nosso Mundo: a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável”, aprovado pelas Nações Unidas, indica 17 objetivos para materialização de um desenvolvimento sustentável para o mundo (UNITED NATIONS, 2015). A temática do superencarceramento não poderia ser alijada desse debate. Ao contrário, merece destaque na construção dessa agenda e assume crucial importância para o Brasil, especialmente pela legítima e necessária demanda de aprimoramento de seu sistema de justiça criminal.

O presente artigo, portanto, elege como problema a compreensão do que seja o fenômeno do superencarceramento e sua delimitação nos documentos produzidos pelas Nações Unidas com ênfase para a agenda dos direitos humanos. O recorte assumido refere-se às estratégias para enfrentamento da superlotação carcerária a partir do necessário aprimoramento do sistema de justiça criminal. A hipótese aventada, para tanto, reside na afirmação de que a adoção da oportunidade da ação penal, em lugar da tradicional obrigatoriedade de seu exercício, pode representar estratégia de enfrentamento do superencarceramento.

Na primeira parte do trabalho, portanto, buscaremos a compreensão do que seja o fenômeno do superencarceramento e como ele pode ser compreendido pelos países a partir de seus dados sobre suas respectivas prisões. Na sequência, buscaremos avaliar como o superencarcermento é tratado nos documentos formalizados pelas Nações Unidas e seus respectivos órgãos ocupados do tema das prisões. Na terceira parte, indicaremos a funcionalização do Direito Internacional como tendência a justificar a incorporação de standards e respostas fornecidas pelos órgãos internacionais de direitos humanos. Na quarta parte, pretende-se atrelar o necessário aprimoramento do sistema de justiça criminal às estratégias de enfrentamento da superlotação carcerária. Por fim, a oportunidade da ação penal, que timidamente surge no Direito brasileiro no ano de 2013, será discutida como estratégia para racionalização do sistema de justiça brasileiro e, por conseguinte, para abordagem do superencarceramento.

A revisão bibliográfica e a análise documental, máxime dos documentos normativos discutidos e aprovados nas Nações Unidas, servirão de lastro metodológico para o presente estudo. A abordagem aqui deduzida guarda pertinência com a semântica dogmático-compreensiva do Direito e com a análise institucional das Políticas Públicas.

Longe de indicar o esgotamento do tema, o presente artigo insere-se no esforço de vincular as demandas por aprimoramento do sistema de justiça criminal brasileiro aos standards internacionais de promoção e proteção dos direitos humanos, com ênfase à agenda de desenvolvimento sustentável a que o Brasil se comprometeu junto às Nações Unidas.

2 O ENCARCERAMENTO EM MASSA

Utilizaremos a locução “encarceramento em massa”, igualmente denominado “superencarceramento” ou “superlotação carcerária” para designar o que a literatura internacional denomina prison overcrowding ou over-incarceration. A expressão ora se refere ao problema da superlotação em estabelecimentos penais, ora guarda pertinência com a questão do aumento das taxas de encarceramento nos países em geral.

Em verdade, trata-se de tema, como bem acentuado por Hans-Joerg Albrecht (2012, p. 1), fugidio, impreciso, vago; embora muitos atores – nacionais e internacionais – venham lidando com ele há algumas décadas. André Khun (1994) destaca os inúmeros efeitos do fenômeno, com destaque ao aumento dos custos com estabelecimentos correicionais, aos atrasos na execução de penas e, especialmente, à deterioração da qualidade de vida e das condições de trabalho dos internos e dos agentes públicos, respectivamente. Khun indica que o problema pode ser enfrentado tanto pela construção de mais estabelecimentos prisionais quanto pelo esforço na construção de alternativas para reduzir o número de internos e, com isso, as taxas de encarceramento (1994, p. 102).

Já em 1985, ou seja, há mais de trinta anos, em alentado registro de trabalhos sobre o tema, o Instituto Nacional para Estabelecimentos Correicionais dos Estados Unidos da América alertava para as elevadíssimas taxas de encarceramento e as respectivas implicações do superencarceramento (NATIONAL INSTITUTE OF CORRECTIONS, 1985). Ainda nos Estados Unidos, igualmente, também por seu Instituto Nacional para Estabelecimentos Correicionais, merece destaque um projeto específico dirigido à construção de uma etiologia das populações prisionais (PRISON OVERCROWDING PROJECT, 1984). As Nações Unidas, no início da década de 1990, trouxe importante documento sobre regras mínimas para medidas diversas da custódia prisional — as chamadas Regras de Tóquio (UNITED NATIONS, 1990). O Conselho da Europa, colegiado que abarca a Corte Europeia dos Direitos Humanos, em 1999, chegou a expedir recomendação aos seus países-membros sobre o fenômeno do superencarceramento e, de modo particular, a inflação dos números da população carcerária (COUNCIL OF EUROPE, 1999).

Mullen (1985, p. 31) sustenta, com acerto, que o superencarceramento é uma característica da prisão moderna desde seu surgimento ainda no século XIX. Em verdade, a percepção do problema do superencarceramento não é acompanhada, necessariamente, da visibilidade política para o tema. É dizer: a questão existe há muito tempo, mas ela não significa exatamente um problema na agenda pública dos direitos humanos. Em geral, não seria demasiado afirmar que é mais fácil produzir prisões superlotadas que desenvolver e implementar meios efetivos de redução da população prisional.

Num dos estudos seminais do superencarceramento, Gerald Gaes (1985), após abordar distintas perspectivas para o tema (saúde pública, situação física dos estabelecimentos prisionais, incremento da violência, subsídio à reincidência criminal etc.), sugere uma agenda para pesquisas sobre o tema (1985, p. 135). Menciona a necessidade de estudo dos efeitos da superlotação carcerária, com atenção ao incremento dos problemas de saúde dos internos e também da propensão a episódios violentos dentro dos estabelecimentos prisionais (p. 136). Indica, como conclusão preliminar que, no encarceramento, a densidade populacional dos estabelecimentos prisionais mostra-se mais relevante que a determinação de número de presos por cela ou conjunto de celas; por isso, sugere a urgência de levantamento de dados a respeito do espaço físico a ser considerado para indicar superlotação carcerária. Afinal, não há como indicar, com clareza, o que é fisicamente um espaço superlotado, para que se possa construir, então, um conceito de densidade social do espaço prisional. Gaes delineia também a importância de se construir, metodologicamente, com observância das limitações estatísticas, a natureza das populações carcerárias do ponto de vista subjetivo e o impacto da resposta mais gravosa à compreensão do superencarceramento (p. 137).

A indicação dessa agenda para pesquisa guarda percepção tanto do ponto de vista subjetivo, isto é, dirigido à situação das pessoas que experimentam o fenômeno do superencarceramento, quanto do ponto de vista organizacional, mais próprio do arranjo institucional que culmina na elevação das taxas de encarceramento e, por conseguinte, na constatação de superpopulações carcerárias.

Interessa ao presente estudo, especificamente, a abordagem de viés objetivo. A compreensão do funcionamento do sistema de justiça criminal – desde suas promessas normativas até as disfunções presentes na atuação de seus atores – permite a abordagem do fenômeno que toca, por um lado, a preocupação de realização da justiça penal do Estado e, por outro lado, que a efetivação dessa resposta considere a razão de seu próprio fundamento de validade, qual seja, uma resposta compatível e fiel aos ditames mínimos que assegurem a integridade das pessoas submetidas ao sistema prisional.

O encarceramento em massa é tema que se situa na interseção de diversas pesquisas dirigidas às políticas públicas de enfrentamento do crime e ao próprio fenômeno criminoso em si. Os tópicos convergem na constatação de que os procedimentos das sentenças condenatórias (modo de realização das investigações, desenvolvimento da persecução penal em juízo, processos de construção de sentenças condenatórias), as rotinas dos juízos e agências em geral incumbidos da execução penal e a situação efetiva dos estabelecimentos prisionais mostram-se determinantes para a compreensão do curso do próprio Direito Penal e da punição no seio social.

A temática da superlotação carcerária, paradoxalmente, não surge associada às discussões de aprimoramento do aparato estatal investigatório ou da confiabilidade e efetividade da realização da persecução penal em juízo. É como se tais temas não interagissem na construção do resultado inegável de aumento das taxas de encarceramento nos diversos países e do Brasil de modo mais particular. A complexidade do tema, portanto, não admite soluções ou respostas fáceis tampouco alcançáveis de modo linear ou direto.

Em destacado esforço, as Nações Unidas, em sessão plenária realizada no ano de 1998, formalizou resolução com vistas à cooperação internacional dirigida à redução do superencarceramento e à promoção de alternativas penais (UNITED NATIONS, 1998). No entanto, nos dias atuais, o destaque encontra-se na agenda das Nações Unidas delineada para os anos subsequentes a 2015 até 2030. Qual o destaque que o problema do superencarceramento tem recebido na agenda de direitos humanos das Nações Unidas, especialmente dirigida para aos temas de paz, justiça e instituições? Quando se tem em conta a falibilidade ínsita ao sistema de justiça criminal e o modo como ele seleciona as pessoas que a ele se submetem, o tema evidencia os contornos de sustentabilidade social e, igualmente, de luta contra a desigualdade e injustiça.

3 O ENCARCERAMENTO EM MASSA NA AGENDA DA ONU

O superencarceramento foi um dos temas indicados expressamente, no ano de 2014, pelo grupo de trabalho da ONU para prisões arbitrárias (arbitrary detention). O Ato Comissariado das Nações Unidas, ao articular a temática dos direitos humanos, propõe abordagem que observa temas (issues) cuja indicação varia e observa determinação do Plenário da entidade. As prisões substanciam tema específico, ali apresentado sob expressão mais ampla, que abrange não apenas as prisões decorrentes da imposição de resposta penal do Estado, mas igualmente toda e qualquer detenção abrangida pelas Convenções Internacionais formalizadas no seio das Nações Unidas. Por isso, a preferência pelo uso da expressão detention, dada sua capacidade de abrangência em amplo espectro e, com isso, com aptidão de permitir nessa temática os mais variados temas vinculados à restrição da liberdade pessoal.

Há, pois, um grupo de trabalho formalizado justamente para cuidar das chamadas detenções arbitrárias (working group on arbitrary detention), estabelecido pela Resolução 42, de 1991, da então Comissão de Direitos Humanos (hoje, conformada na figura do Alto Comissariado) (UNITED NATIONS, 1991). Na Assembleia-Geral das Nações Unidas, esse grupo de trabalho apresentou, em 30.06.2014, um relatório com ponto específico sobre o problema do superencarceramento (UNITED NATIONS, 2014, p. 21).

No relatório, apresentado e aprovado primeiro no Conselho de Direitos Humanos e, na sequência, no Plenário (Assembleia-Geral) das Nações Unidas, o grupo de trabalho reconhece a margem de discricionariedade e soberania, de cada Estado-parte, na definição do que sejam suas políticas penais. Porém, na sequência, destaca que qualquer pessoa tem direito de que sua privação de liberdade se justifique na medida e até que se atenda ao interesse social e de modo proporcional à necessidade que justifica essa privação. O grupo de trabalho rememorou a advertência elaborada no ano de 2006 sobre o uso maciço da custódia processual (pretrial detention) como razão que conduz ao superencarceramento. Destacou que o recorte étnico e de origem social das pessoas atingidas por essas prisões demonstra ou indica um processo de punição da pobreza e de marginalização social (p. 21).

O grupo de trabalho alertou para o uso abusivo dessas prisões processuais, muito fomentadas por aqueles que fazem da prática criminosa um meio de vida (habitualidade) e pelo anacronismo das legislações processuais em geral (p. 21, parágrafo 73). Na sequência, indicou expressamente os abusos no uso da prisão cautelar, com possíveis tratamentos desiguais prestados a nacionais e a estrangeiros que se encontrem em solo brasileiro.

Em setembro de 2015, as Nações Unidas realizaram sua Cúpula e aprovaram um plano de ações intitulado “Transformando Nosso Mundo: a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável”. Trata-se de uma Declaração que formaliza 17 objetivos para o desenvolvimento sustentável, a serem alcançados por meio de 169 metas. A Declaração, igualmente, prevê mecanismos de avaliação e acompanhamento da implementação dessas metas e efetivação dos objetivos (UNITED NATIONS, 2015).

Embora a locução “desenvolvimento sustentável” guarde percepção plurívoca, a fixação da agenda buscou bem delimitar a compreensão do tema. Esclareceu, pois, que desenvolvimento sustentável é aquele que permite a convergência das necessidades do presente sem comprometer ou prejudicar a capacidade das gerações futuras de encontrarem suas indicarem suas próprias necessidades. Por isso, a ideia de desenvolvimento sustentável reclama esforços concentrados para a construção inclusiva, sustentável e resiliente de um futuro para o planeta.

Ao estabelecer três eixos centrais – crescimento econômico, inclusão social e proteção ambiental –, as metas pretendem materializar a erradicação de todas as formas de pobreza e desigualdades.

O superencarceramento guarda vinculação com o Objetivo 16, qual seja, “Promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis” (UNITED NATIONS, 2015, p. 14). Dentro desse objetivo, encontram-se as preocupações com a redução significativa de todas as formas de violência e das respectivas taxas de mortalidade. Há, ainda, a preocupação expressa de assegurar a igualdade de acesso à justiça para todos, bem assim de desenvolver instituições eficazes, responsáveis e transparentes em todos os níveis (p. 25-26).

O esforço normativo das Nações Unidas para dar visibilidade, apresentar parâmetros normativos e delinear estratégias para enfrentamento do superencarceramento inserem-se na Agenda 2030, como medida indissociável dos temas de promoção da paz e de maior confiabilidade institucional do sistema de justiça criminal, como medida de erradicação de desigualdades.

Na sequência da resolução aprovada em 1998 (UNITED NATIONS, 1998), as Nações Unidas passaram a fomentar foros de discussão, grupos de trabalho, elaboração de estudos e toda sorte de debates para melhor compreensão do fenômeno do superencarceramento e, o mais importante, o desenho de estratégias e alternativas para sua abordagem.

Daí a importância, justamente para a abordagem do problema no Brasil, do “Caderno de estratégias para reduzir a superpopulação carcerária” (Handbook on strategies to reduce overcrowding in prisons). Editado em 2013 por meio do Escritório das Nações Unidas para os temas de Drogas e Crime em Viena, o “Caderno” se insere na série de “Cadernos para a Justiça Criminal” (Criminal Justice Handbook Series) e é resultado do esforço conjunto do Escritório das Nações Unidas com o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (UNITED NATIONS OFFICE, 2013). Embora publicado no ano de 2013, o “Caderno” é fruto do trabalho realizado em Viena, no Escritório das Nações Unidas, no mês de novembro de 2011.

Após identificar o fenômeno e delinear suas possíveis causas, o “Caderno” se ocupa de estratégias para enfrentar o superencarceramento (UNITED NATIONS OFFICE, 2013, p. 39 et seq.). As possíveis medidas incluem a preocupação com a prevenção de crimes e os meios de angariar apoio público para a questão da superpopulação carcerária. Abrangem, igualmente, a redução dos objetivos do encarceramento e o desenvolvimento de políticas mais justas para a imposição da privação de liberdade. Mencionam a importância da assistência jurídica e dos serviços de assistência judiciária, bem assim a preocupação com a urgente redução do uso maciço (e abusivo) das prisões processuais (pre-trial detention). Enumeram alternativas ao encarceramento e instrumentos para assegurar a reintegração social de egressos e para implementar uma redução nas taxas de reincidência (expressão considerada em seu sentido mais amplo). Merece particular destaque, para os escopos do presente trabalho, a menção ao aprimoramento da eficiência do sistema de justiça criminal, especialmente por meio da simplificação e da redução dos tempos de realização do processo criminal (UNITED NATIONS OFFICE, 2013, p. 64-76).

Em que medida essas alternativas e estratégias se apresentariam, já que incluídas na Agenda para o desenvolvimento sustentável das Nações Unidas, de modo vinculante às possibilidades normativas em discussão no Brasil? Antes de adentrar no desenho dessas alternativas, cumpre realizar breve destaque sobre a coercibilidade que tais alternativas e alvitres possuem para a formação e a modelagem institucional do sistema de justiça criminal no Brasil.

4 A MODELAGEM INSTITUCIONAL E AS SOLUÇÕES NORMATIVAS NO BRASIL: A INFLUÊNCIA DA FUNCIONALIZAÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL

Jorge Miranda afirma com precisão que o Direito Internacional apresenta, entre diversas tendências evolutivas, as capacidades de institucionalização e de funcionalização de suas soluções e padrões normativos. A institucionalização guarda referência com a consolidação de organismos internacionais e, por conseguinte, a maior presença do Direito Internacional por intermédio desses organismos. A funcionalização refere-se ao fato de que o Direito Internacional cada vez mais extrapola o plano estritamente internacional para se prestar igualmente a tratar das relações jurídicas internas, isto é, “assume tarefas de regulamentação e de solução de problemas, como a saúde, o trabalho, o ambiente etc.” (MIRANDA, 2000).

A crescente contribuição do Direito Internacional para a construção das alternativas e soluções de problemas internos é fenômeno bem destacado por Varella (2013, passim), no que convencionou chamar de “internacionalização do direito”. Os limites entre direito nacional e direito internacional encontram-se mais tênues, por força do adensamento das tradicionais fontes do direito internacional. A internacionalização do direito, entendida como processo de operacionalização comum do fenômeno jurídico por diferentes atores, em diferentes territórios, substancia o modo pelo qual o direito internacional é atualmente construído a partir de macro e microprocessos de expansão de suas fontes e sujeitos tradicionais (VARELLA, 2013, p. 14-23).

Essa tendência de funcionalização e institucionalização, bem explicada pela compreensão do que seja a internacionalização do direito, explica o caráter vinculativo que a adoção de uma agenda de desenvolvimento sustentável para 2030 para os países integrantes das Nações Unidas, com destaque ao Brasil, assume para a construção de soluções institucionais e normativas no plano interno. É dizer: mais que um compromisso assumido pelo país no plano internacional, a se somar com tantos outros, o desenho de estratégias e alternativas para o enfrentamento de um problema reconhecido e afirmado pelas Nações Unidas assume força mandatória e vinculante. É certo que não há instrumentos de coerção suficientemente robustos que imponham o caráter estritamente obrigatório de observância dessa agenda internacional. É importante que os Estados integrantes no plano internacional assim construam alternativas comuns pela adesão a um propósito maior, construído politicamente, e não por obrigatoriedade imposta de forma externa ou superior. A vinculação do Estado brasileiro na observância dessas alternativas deriva de algo mais que a ameaça dos meios coercitivos. Deriva, justamente, das tendências de considerar a funcionalização e a institucionalização no momento da discussão normativa da agenda interna nos temas que tocam o desenvolvimento sustentável, especialmente para a temática da luta contra a desigualdade e injustiça.

Nessa linha de ideias, portanto, as estratégias e alternativas delineadas no plano internacional, quando vinculadas à agenda de desenvolvimento sustentável, hão de ser consideradas na discussão da modelagem institucional e das soluções normativas de realização da persecução penal no Brasil. Especificamente para a temática do superencarceramento, parece igualmente inegável a necessária consideração dessas estratégias e alternativas para o desenho do sistema de justiça criminal no Brasil e, de modo mais particular, o modo de exercício da ação penal.

5 O NECESSÁRIO APRIMORAMENTO DO SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL PARA ENFRENTAMENTO DO SUPERENCARCERAMENTO

O “Caderno” das Nações Unidas possui capítulo específico para o aprimoramento da eficiência do sistema de justiça criminal (UNITED NATIONS, 2013, p. 64 et seq.). De saída, há advertência que se mostra fundamental para países como o Brasil. Embora as alterações legislativas se mostrem de suma importância para o enfrentamento dos problemas do sistema de justiça criminal, bons parâmetros legislativos só resultam úteis quando manejados por instituições que funcionem e atuem de modo apropriado. A compreensão dos problemas do sistema de justiça criminal reclama respeito à complexidade de seu funcionamento. Por isso, o problema está longe de ser resumido à necessidade de alteração legislativa. Ao revés, passa pelo aprimoramento dos arranjos institucionais que materializam o funcionamento do sistema de justiça.

A demora no funcionamento do sistema de justiça, que pode resultar na detenção indevida de alguém que seja declarado inocente posteriormente, é característica marcante de um sistema que se mostre ineficiente. Além da demora na solução dos processos criminais, há outras razões de ineficiência do sistema de justiça, tal como identificadas no documento das Nações Unidas (2013, p. 64): número inadequado de atores responsáveis pelo funcionamento do sistema de justiça (policiais, promotores, juízes, agentes prisionais); falta de recursos e aparato técnico das instituições incumbidas da persecução penal; falta de cooperação entre as instituições do sistema de justiça (polícia, promotores, tribunais e administrações prisionais); processos excessivamente complexos e numerosos, a ensejar excesso de burocracia e formalidades procedimentais, com atrasos que assumem conformação sistêmica; falta de confiabilidade nos dados prisionais, controle de datas e benefícios a serem concedidos aos internos; falta de transparência e confiabilidade institucional. Quando tais fatores não são considerados ou compreendidos corretamente, a consequência é uma inflação no número de feitos judicializados, que frequentemente resultam em superlotação carcerária.

Amparado nessas razões de ineficiência, o “Caderno” das Nações Unidas apresenta linhas gerais para aprimoramento da capacidade dos atores do sistema de justiça criminal. Esse aprimoramento, considerado o processo decisório presente na atuação de cada uma das instituições responsáveis pela realização do sistema de justiça criminal, deve conduzir a uma utilização mais racional – e justificada – do cárcere. “Conduzindo as suas responsabilidades de modo justo e eficiente, esses atores podem reduzir atrasos desnecessários, sentenças injustas e aprimorar as perspectivas de reintegração social dos presos” (UNITED NATIONS, 2013, p. 65)[2]. Qualificação ética, atuação livre de corrupção, parâmetros normativos confiáveis para o processo de responsabilização de seus agentes são alguns dos pontos que a experiência comparada registra como estratégias bem-sucedidas de aprimoramento dos atores do sistema de justiça criminal. Exemplificativamente, atos como “United Nations Basic Principles on the Independence of the Judiciary”, “Basic Principles on the Role of Lawyers”, “Guidelines on the Role of Prosecutors”, “Code of Conduct for Law Enforcement Official”, “Bangalore Principles on Judicial Conduct”, todos eles reconhecidos e fomentados pelas Nações Unidas trazem essa preocupação de aprimoramento institucional para reforma e aprimoramento do próprio sistema de justiça. A lição é uma só: o aprimoramento do sistema passa necessariamente pela exigência de maior qualidade de seus atores.

A melhor qualificação dos atores igualmente reclama discussão sobre a forma de recrutamento e treinamento (continuado) desses profissionais. A capacitação continuada deve incluir noções de direitos humanos dos detidos e presos em geral, incluído o direito à assistência jurídica e acompanhamento no momento da custódia. Ainda, deve ocupar-se na construção de bons critérios para o processo decisório de prisão e de promoção da própria persecução penal. A formação desses profissionais deve enxergar a persecução penal como uma das formas de resposta ao fenômeno do desvio, e não a única forma de intervenção estatal para esse problema. A utilização de técnicas investigativas que observem padrões mínimos, já fixados internacionalmente, para dispêndio racional de recursos e eficiência na atuação estatal, e a avaliação de processos justos e sentenças confiáveis devem ser preocupações contínuas na formação profissional permanente desses atores. Por fim, a preocupação com a reintegração social dos detidos e presos deve orientar as decisões de soltura ou abrandamento de custódia.

A constante avaliação da performance desses atores deve igualmente integrar a política judiciária de condução do sistema de justiça criminal. A avaliação, pois, deve ser concomitante e posterior à atuação do sistema de justiça, de modo inclusive a permitir melhores subsídios no momento de discutir eventuais mudanças nesse mesmo sistema (avaliação prévia, portanto). A preocupação com gastos e indicativos orçamentários que sejam compatíveis com esses papéis igualmente é razão fundante para o aprimoramento do sistema de justiça e de seus atores.

Além da preocupação com a capacitação dos atores do sistema de justiça criminal, quatro outros fatores são indicados como essenciais ao aprimoramento do sistema de justiça pelas Nações Unidas. São eles: aprimoramento dos mecanismos de cooperação entre agências da justiça criminal; simplificação e incremento da celeridade dos processos criminais; aprimoramento do gerenciamento dos sistemas de dados prisionais; aumento da transparência e da confiança do sistema de justiça como um todo, mas especialmente do sistema prisional.

Interessa ao presente trabalho, de modo mais específico, as indicações das Nações Unidas para simplificação e incremento da celeridade dos processos criminais. É nesse capítulo que o “Caderno” menciona as possibilidades de conformação legislativa do uso da ação penal e sua relação com o fenômeno do superencarceramento.

O “Caderno”, como já destacado, é fruto de estudo das Nações Unidas e se dirige, de modo geral, aos países que hoje enfrentam as consequências do superencarceramento. O Brasil é um desses países e, apesar de seus elevados números, nem de longe se encontra entre os países onde o problema guarda quadro de extrema gravidade. Ainda assim, impressiona como alguns pontos destacados do estudo parecem descrever a situação vivida pelo Brasil e seu contexto de falibilidade do sistema de justiça criminal.

O “Caderno” indica, por exemplo, a necessidade de simplificação dos procedimentos para realização da persecução penal (2013, p. 68). A simplificação no processamento de casos mais simples, de modo a reservar a utilização dos recursos disponíveis para casos mais graves, é preocupação corrente a respeito dos problemas do sistema de justiça. Destaca o “Caderno”, como exemplo, que

o número de instituições e agentes públicos que precisam estar envolvidos na tomada de decisões simples e o número de formulários e documentos utilizados precisam ser reavaliados e revisados, especialmente se não se mostram mais justificáveis (por exemplo, procedimentos muitas vezes são herança de uma tradição colonial com níveis de hierarquia não mais relevantes no atual contexto)[3]. (p. 68)

O uso de aparato tecnológico para economia de recursos humanos e otimização do tempo é preocupação igualmente presente. Ainda, o escrutínio dos casos levados a juízo deve ser mais rigoroso, de modo a antecipar o juízo sobre a viabilidade e a própria utilidade na instauração de processos criminais. Essa consideração antecipada visa afastar a abordagem possivelmente divergente na eleição dos casos a serem apresentados ao Judiciário. Em situações assim, os casos que contem com pessoas detidas devem ser priorizados nessa análise antecipada. Reuniões conjuntas devem ser estimuladas entre as diversas instituições e agências do aparato persecutório estatal, de modo a aprimorar o compartilhamento das informações sobre o real contexto de atuação dessas agências e instituições, especialmente quanto às consequências de suas respectivas atuações.

O “Caderno” traz observação muitíssimo relevante sobre o uso dos acordos penais (plea bargaining). Menciona que tal instrumento é frequentemente indicado como solução para reduzir o número de casos deduzidos nos tribunais. No entanto, o “Caderno”, cioso das críticas construídas ao longo dos anos de prática do instituto, indica a preocupação do uso dos acordos como práticas verdadeiramente coercitivas, muitas vezes conduzidas ao largo de uma assistência jurídica efetiva ou da necessária publicidade ao procedimento. Há o destaque para o uso de detenções processuais (ou, em verdade, pré-processuais) como medida indireta de fomento a esses acordos[4].

Há uma série de sugestões para garantia das pessoas submetidas ao uso do plea bargaining, isto é, para reduzir as possibilidades de abuso do sistema e de oportunidades para corrupção de suas práticas. Exemplificativamente: assegurar, antes das negociações, que todos os fatos considerados para fins de acordo guardem lastro probatório robusto e acima de dúvida razoável; audiências públicas em todo caso para evitar que deficiências institucionais contaminem as negociações (sem a necessidade, claro, de que se reproduzam todas as formalidades e garantias de um processo tradicional); assegurar a obrigatória participação de profissionais que forneçam a devida assistência jurídica ao imputado (gratuitamente, inclusive, se necessário); considerar o uso dos acordos penais apenas nos casos de penas relativamente baixas previstas.

6 A OPORTUNIDADE DA AÇÃO PENAL COMO ESTRATÉGIA DE ENFRENTAMENTO DO ENCARCERAMENTO EM MASSA

Há um ponto relevante no “Caderno” que sequer aparece expressamente em seu texto. As Nações Unidas, nesse estudo, consideram como pressuposto a assunção da oportunidade da ação penal pelos países a que se dirigem suas sugestões.

Os países europeu-continentais, há muito, incorporaram a oportunidade no exercício da ação penal como medida de racionalização da persecução penal. É válido lembrar que, em setembro de 1987, o Comitê de Ministros do Conselho da Europa aprovou a Recomendação R (87) 18, que versa sobre a “simplificação da Justiça Criminal” (COUNCIL OF EUROPE, 1987).

O Conselho da Europa, instituído em 1949, é instituição europeia cuja existência guarda preocupação com a defesa dos direitos humanos, o desenvolvimento democrático e a estabilidade político-social da Europa. Reconhecida pelo Direito Internacional, o Conselho é integrado por 47 Estados (dentre eles, os 28 países que integram a União Europeia). Dentro do Conselho encontra-se a Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDDHH).

Após mencionar a pouca eficácia dos procedimentos penais em geral, o Conselho salientou a necessidade de estabelecer a definição de prioridades na gestão da política criminal. A principal aposta do Conselho da Europa para isso foi a adoção do princípio da oportunidade da ação penal. Os países integrantes do Conselho, nos anos que se seguiram e cada qual a sua maneira, adotaram a sugestão.

Também os países da América Latina se mostraram sensíveis a essa temática. O Brasil, contudo, evidencia resistência a essas mudanças. A resposta afirmativa a esses standards do Direito Internacional surgem como exceções na influxo legislativo brasileiro pós-1988.

Com efeito, a Lei 9.099, editada em 1995, minudenciou a figura da transação penal (BRASIL, 1995). Com previsão inicialmente lançada na Constituição (art. 98, inc. I), a transação penal, cabível nos chamados crimes de menor potencial ofensivo, autoriza que o Ministério Público, em vez de ofertar a (tradicional) ação penal em juízo, celebre acordo com o imputado para a imediata imposição de pena restritiva da direitos ou multa. O acordo é homologado em juízo e, se descumprido, autoriza a retomada da persecução penal, com o oferecimento da ação penal que, então, se buscou evitar[5].

A mesma Lei de 1995 trouxe o instituto da suspensão condicional do processo, que consiste na possibilidade de que o processo criminal já instaurado seja suspenso por um período de prova, que, se cumprido, resulta na extinção do processo e da punibilidade do fato criminoso ali deduzido. Esse segundo instituto, contudo, substancia alternativa processual à continuidade do processo, ou seja, incide nos casos em que já houve a formalização de uma acusação em juízo em desfavor da pessoa.

O Brasil não dispunha, até 2013, de instituto que autorizasse o Ministério Público a simplesmente deixar de exercitar a ação penal em desfavor do suspeito ou investigado. A edição da Lei 12.850/2013, diploma legal que versa sobre o enfrentamento das organizações criminosas, muito em atenção ao que determina a Convenção de Palermo, da qual o Brasil é signatário, trouxe, de modo tímido, o exercício da oportunidade da ação penal para o ordenamento nacional.

Nos casos em que celebrado acordo de colaboração premiada, que no Brasil é restrito aos processos que versam sobre organizações criminosas nos termos da conceituação legal, poderá o Ministério Público deixar de ofertar ação penal contra o colaborador, desde que ele não seja o líder da organização e que tenha sido o primeiro a prestar efetiva colaboração (BRASIL, 2013, art. 4º, § 4º). O exercício dessa oportunidade, pois, submete-se em regra ao crivo judicial. É que a negativa de ajuizamento de ação penal contra pessoa sobre a qual pesam a demonstração da materialidade de crimes e a autoria demonstrada tem por pressuposto a promoção de arquivamento de procedimento de investigação preliminar. Essa inafastável formalização de controle dá ao exercício da oportunidade da ação penal nessa excepcional hipótese a necessária garantia de transparência e controle ínsito a um procedimento comprometido com as regras mínimas do devido processo legal.

Ainda assim, justamente porque excepcional na modelagem normativa brasileira, o princípio da oportunidade – tal como formalizado hoje – em nada contribui para o enfrentamento do problema do superencarceramento. Ao contrário, a compreensão de que, como decorrência da oficialidade da persecução penal, que impõe a titularidade exclusiva da ação penal ao Ministério Público, impor-se-ia sempre a obrigatoriedade do exercício da ação penal nos casos em que possível o seu manejo[6] tem contribuído decisivamente para o quadro de superpopulação carcerária no Brasil, justamente por escancarar a falta de racionalidade e priorização do funcionamento do sistema de justiça criminal.

É preciso destacar, de saída, que a adoção da oportunidade não implica a assunção dos acordos penais referidos na plea bargaining. Isso porque a possibilidade de acordos com assunção de culpa é providência que não se confunde com a oportunidade na formalização da ação penal em juízo. Esta, em rigor, pode observar vetores e parâmetros outros diversos da celebração de acordo processual com o imputado. Por exemplo, é possível aventar hipóteses em que o exercício da ação penal não se mostre relevante ou útil se, por exemplo, em crimes patrimoniais sem a utilização de violência e de baixo valor, o imputado de pronto restitui a vítima de seu prejuízo e ou reparou o dano experimentado por força da prática delituosa. Mesmo nos casos em que havida composição dos danos entre o imputado e a vítima, nos crimes de ação penal de iniciativa pública, o exercício da ação penal mostra-se medida de rigor inafastável. Não faz muito sentido, num sistema marcado pelo superencarceramento e pela falta de priorização de seus recursos que demandas assim alcancem os tribunais, porque as razões próprias do Direito Penal já foram de algum modo tocadas ainda que por maneira alternativa.

A adoção da oportunidade da ação penal não deve resultar numa postulação injusta, dado que se espera dela uma referência à igualdade perante a lei de todos os cidadãos, própria do Estado de Direito. Em verdade, a oportunidade deve concretizar a intenção de conduzir a uma seleção segundo fins concretos (uma delas, justamente, corrigir a aplicação prática desigual da lei), sem deixá-la abandonada ao arbítrio ou ao azar (MAIER, 2004, p. 835-836). Se a oportunidade se presta como instrumento de materialização da igual incidência da lei penal numa sociedade repleta de desigualdades, parece claro que tal solução igualmente pode materializar uma estratégia de enfrentamento do superencarceramento.

A oportunidade deve significar, nesse contexto, a possibilidade de que os órgãos públicos, a quem se lhes encomenda a persecução penal, prescindam dela, na presença da notícia de um fato punível ou, inclusive, frente à prova mais ou menos completa de sua prática, formal ou informalmente, temporal ou definitivamente, condicional ou incondicionalmente, por motivos de utilidade social ou razões político-criminais (MAIER, 2004, p. 836).

Tal assertiva mostra-se relevante quando o Brasil discute no Congresso Nacional um projeto de Código de Processo Penal para substituir o Código vigente que ainda delineia traços de período marcado pelo autoritarismo penal. Com efeito, apesar das mais de cinquenta alterações legislativas, o Código de Processo Penal brasileiro – alicerce da obrigatoriedade da ação penal – não só deu azo mas verdadeiramente fomentou o fenômeno da superlotação carcerária e o uso abusivo da custódia cautelar, num contexto de uso pouco racional do sistema penal. Em 2009, o Congresso recebeu da comissão de juristas um anteprojeto de Código que redundou no Projeto de Lei do Senado 156 (BRASIL, 2009). Aprovado no Senado Federal em 2010, o Projeto hoje tramita na Câmara dos Deputados sob o n. 8.045 e, no ano de 2016, recebeu Comissão específica para sua apreciação (BRASIL, 2010).

Causa espanto que, até hoje, o Brasil não tenha amadurecido a discussão sobre a adoção da oportunidade no exercício da ação penal. O Projeto de Código de Processo Penal mantém a vetusta fórmula de obrigatoriedade da ação penal, ignorando os reclamos internacionais e as demandas de aprimoramento do sistema de justiça criminal.

Se não pelas razões em si suficientes que reclamam o aprimoramento do Direito processual penal brasileiro, os padrões vinculantes e demandas oriundas do Direito Internacional impõe a adoção (já tardia) da oportunidade da ação penal no Brasil. Como medida de uso racional do sistema de justiça criminal, essa providência antecede aquela que efetivamente interessa ao aprimoramento do sistema de justiça criminal: em que medida as instituições devem articular-se para assegurarem, em suas respectivas atuações, maior transparência, confiabilidade e uso racional de seus recursos tomando como razão última de sua atuação o respeito inafastável às garantias mínimas das pessoas submetidas à justiça criminal?

Sem responder afirmativamente à oportunidade da ação penal, a resposta a essa questão fica prejudicada e, com isso, mantém-se o brutal quadro de desrespeito e vulneração de garantias mínimas daqueles submetidos às prisões brasileiras.

7 CONCLUSÃO

O encarceramento em massa é fenômeno que reclama contextualização e observância das situações práticas vividas em cada país. Mais que os números absolutos, sua compreensão demanda a consideração da chamada taxa de encarceramento. Os números brasileiros colocam o país, desafortunadamente, entre aqueles com elevada taxa de encarceramento, a permitir a afirmação de que o Brasil experimenta quadro de superencarceramento ou superlotação carcerária.

O tema do superencarceramento tem assumido destaque na agenda das Nações Unidas, com destaque especial no plano de metas a serem observadas até o ano de 2030. Os dados de prisões provisórias no Brasil, isto é, aquelas que não decorrem de um comando judicial definitivo, atestam a baixa funcionalidade do sistema de justiça criminal brasileiro.

As Nações Unidas têm robusta produção indicativa de parâmetros para aprimoramento do sistema de justiça criminal, que passa não só por mudanças no plano legislativo, mas sobretudo por alterações nos arranjos institucionais que materializam a prática do sistema de justiça criminal.

Nessa linha, merece destaque a necessária adoção no Brasil do princípio da oportunidade da ação penal como estratégia de enfrentamento do superencarceramento. A falácia da obrigatoriedade da ação penal tem fomentado o quadro de superlotação carcerária e de injusta incidência da intervenção penal do Estado. Em tempos de discussão de um novo Código de Processo Penal, o tema assume relevância e urgência. E o Direito Internacional, justamente por meio da agenda das Nações Unidas, pode (e deve) prestar decisiva contribuição para o aprimoramento do sistema de justiça criminal brasileiro.

8 REFERÊNCIAS

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______. Lei 12.850, de 2 de agosto de 2013. Define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal; altera o Decreto-Lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); revoga a Lei n. 9.034, de 3 de maio de 1995; e dá outras providências. Dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências. Diário Oficial da União de 05.08.2013 – edição extra. Texto atualizado disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 20 jun. 2016.

______. Senado Federal. Projeto de Lei do Senado (PLS) n. 156, de 2009. Reforma do Código de Processo Penal. Disponível em: <http://www.senado.leg.br/>. Acesso em: 02 jun. 2016.

______. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei (PL) n. 8.045, de 2010. Código de Processo Penal. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/>. Acesso em: 02 jun. 2016.

______. Supremo Tribunal Federal. Súmula Vinculante 35. A homologação da transação penal prevista no artigo 76 da Lei 9.099/1995 não faz coisa julgada material e, descumpridas suas cláusulas, retoma-se a situação anterior, possibilitando-se ao Ministério Público a continuidade da persecução penal mediante oferecimento de denúncia ou requisição de inquérito policial. Pleno. Julgamento em 16.10.2014. Diário de Justiça (eletrônico) n. 210, de 24.10.2014, p. 1. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/>. Acesso em: 20 jun. 2016.

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VARELLA, Marcelo Dias. Internacionalização do direito: direito internacional, globalização e complexidade. Brasília: UniCEUB, 2013.

Notas de Rodapé

[1] Mestre e Doutor em Direito. Professor do Programa de Mestrado e Doutorado do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). Professor do Máster en Derechos Humanos, Interculturalidad y Desarrollo, promovido pela Universidade Pablo de Olavide (UPO) e pela Universidade Internacional da Andaluzia (UNIA) em Sevilha, Espanha, desde 2010. Promotor de Justiça no Distrito Federal.

[2] No original: “Areas of capacity building and training should include: the human rights of detainees and prisoners, including their right to legal counsel on arrest; criteria for decision-making on arrest and prosecution; guidance on diversion from the criminal justice system; investigation techniques that comply with the requirements of international standards; fair trials and sentencing; social reintegration of prisoners and early release decisions” (2013, p. 65).

[3] No original: “Procedural laws may be simplified to allow courts to spend less time on processing minor cases and freeing up time to process serious and complicated cases. For example, the number of agencies or officials who need to be involved in taking simple decisions and the number of forms and documents that must be used may be reviewed and reduced, if no longer justified (e.g. procedures which are a legacy of colonial rule with its levels of hierarchy no longer relevant in the current context)” (2013, p. 68).

[4] A crítica certeira refere-se mais ao modo de concretização do instituto que ao instituto em si. É dizer: os autores que se debruçam sobre o tema não sustentam como solução o fim dos acordos penais, mas o aprimoramento de seu funcionamento e igual aperfeiçoamento do desenho institucional das agências estatais responsáveis pela sua utilização. Por todos, confira-se: MCCOY, 2005; LANGBEIN, 1978.

[5] A solução para o descumprimento da transação penal é tema que observou dissenso doutrinário e jurisprudencial. Hoje, o debate restou superado, máxime pela edição do Enunciado 35 da súmula vinculante do Supremo Tribunal Federal, cuja redação é explicativa: “A homologação da transação penal prevista no art. 76 da Lei 9.099/1995 não faz coisa julgada material e, descumpridas suas cláusulas, retoma-se a situação anterior, possibilitando-se ao Ministério Público a continuidade da persecução penal mediante oferecimento de denúncia ou requisição de inquérito policial” (BRASIL, Supremo Tribunal Federal, 2014).

[6] Por todos, Afrânio Silva Jardim (1999) apresenta a obrigatoriedade do exercício da ação penal como um consectário lógico da oficialidade da persecução penal. Após salientar que a obrigatoriedade não se confunde com o juízo sobre a presença dos pressupostos legais e das condições para o exercício do direito de ação, menciona que “o princípio da obrigatoriedade é daqueles que não admite aplicação parcial, sob pena de se desfigurar” (1999, p. 104).