Sobre Política e Justiça – Os Rumores da Antidemocracia
DOI: 10.19135/revista.consinter.00015.11
Recebido/Received 15/09/2022 – Aprovado/Approved 06/12/2022
Leonardo Grecco[1] – https://orcid.org/0000-0002-5290-5122
Ignacio Garcia Vitoria[2] – https://orcid.org/0000-0002-0622-5919
Resumo:
Há, no cenário democrático moderno, grande polarização entre Política e Justiça, como se estas fossem rivais absolutas, simplesmente pela interação natural dos Poderes. No entanto, é característico do sistema Democrático que um Poder tenha os outros sempre em vista para frear e contrapesar condutas exageradas de seus representantes. Assim é que o presente estudo, contornando os ensinamentos maquiavélicos, não propõe uma liturgia ou catecismo para políticos, mas sim que deles se exija uma conduta de mínimo valor caracterizada por um compromisso com a legalidade, a honestidade e a busca irrestrita dos interesses do povo, a fim de desmascarar a ideia antagônica que atualmente se tem da Política e da Justiça. Assim, em uma pesquisa exploratória de caráter reflexivo, tem este artigo o objetivo de demonstrar que a Justiça e Política convivem muito bem num sistema democrático, desde que seus representantes ajam de forma minimamente ética.
Palavras-chave: Política; Justiça; Mínimo Ético; Democracia.
Abstract:
In the modern democratic scenario, there is a great polarization between Politics and Justice, as if they were absolute rivals, simply due to the natural interaction of the Powers. However, it is characteristic of the Democratic system that a Power has the others always in view to stop and counterbalance the exaggerated conduct of its representatives. This is why the present study, bypassing Machiavellian teachings, does not propose a liturgy or catechism for politicians, but rather that they require a behavior of minimum value characterized by a commitment to legality, honesty and the unrestricted pursuit of the interests of the people, in order to unmask the current antagonistic idea of Politics and Justice. Thus, in an exploratory research of a reflective nature, this article aims to demonstrate that Justice and Politics coexist very well in a democratic system, provided that their representatives act in a minimally ethical way.
Keywords: Policy; Justice; Ethical Minimum; Democracy;
Sumário: Introdução; Velocidade moderada e equilíbrio: o que se espera dos freios e contrapesos; Ainda há juízes; e não só em berlim; Onde há grande disposição, não pode haver grande dificuldade; Considerações finais; Referências.
1 . INTRODUÇÃO
É dos dias de hoje uma enorme quantidade de artigos e estudos que polarizam a Política e a Justiça, como se elas fossem rivais absolutas no cenário democrático moderno, a ponto de ser impossível a coexistência entre elas. Muito se diz que os detentores de poderes políticos têm buscado cada vez mais diminuir o poder dos julgadores e estes, por suas vezes, têm atuado quase que como instrumentos de guerra contra os representantes do povo ou aqueles que se pretendem candidatar a tal posto, quer no Poder Executivo, quer no Legislativo.
Citando dois exemplos, se diz que a criação de leis que criminalizam a atuação abusiva dos Juízes seria um recado dos congressistas aos julgadores, por conta de seus desmandos em processos envolvendo políticos e – seguindo na ilustração – a condenação e inabilitação de Legisladores e Administradores Públicos que são réus em processos judiciais seria o ataque (ou o contra-ataque) dos Magistrados nesta mesma arena. Tal postura é bastante enviesada e a semeadura do equívoco pode até ser massa de manobra nas mãos de pessoas mal-intencionadas, que travestem seus sofismas com disfarces de ciência para dar ares de seriedade às nefastas estocadas no regime democrático.
Ora, é próprio do sistema Democrático que um Poder tenha os outros sempre em vista para frear e contrapesar as condutas exageradas de seus representantes. Evitando cansar o leitor com revelhas teorias como a de separação de poderes, pacto social e outras, parece claro que não há numa sociedade justa a liberdade de malversar, malograr e mal conduzir o poder confiado pelo povo. Ainda no intuito de dar leveza a um tema denso pela própria natureza, não faz falta que se remonte à Grécia de Clístenes[3] para esclarecer que a Democracia é um regime que prevê um governo do povo, para o povo, fulcrado nas mais amplas liberdades de opinião, mas com todos os limites que uma sociedade livre espera de seus representantes de poder. Tudo isso sem olvidar que a Democracia tem sempre que ser moderna, atualizada; ela leva sempre o plus que os tempos atuais nos apresenta.
Atualmente, pois, sente-se o povo reclamar um rígido combate à corrupção e aos despotismos de alguns governos, além de respeito a uma plêiade quase infinita de diversidades culturais e convívio pacífico entre elas. Hoje a sociedade espera também o uso do poder para interesses coletivos e da autoridade conquistada e não imposta, além de confiança no fato de que todo e qualquer desvio será apurado e em tempo condizente com aquele que a sociedade de tempo real exige.
Assim, o objetivo deste artigo é demonstrar que a Justiça e Política convivem muito bem num sistema democrático, desde que seus representantes ajam de forma minimamente ética e, em caso contrário, suas atuações antidemocráticas sejam apenadas conforme se espera do controle entre poderes. A ideia aqui não é elencar um rol de condutas minimamente éticas que deveria ser obedecido pelos detentores de poder – mesmo porque o dinamismo de tal exercício tornaria o elenco demasiadamente tacanha e obsoleto frente aos multifacetados cenários político e judicial – mas sim mostrar a óbvia obrigação da engrenagem em combater arbitrariedades e corrupções de indivíduos, sem que isso possa ser taxado como interferências entre poderes.
O termo interferência pressupõe um ferir recíproco, lesões mútuas, dando a ideia de algo nefasto num cenário de paz social. Nesta senda é que este artigo propõe desmascarar essa ideia e propor que os pontos de relação entre os poderes nada mais são que peças de roço de uma grande e funcional engrenagem que devem mesmo se roçar para que o mecanismo funcione em máxima performance.
Se na conduta dos detentores de poderes se vê injustiça, corrupção, parcialidade e outros vícios, tais atos jamais poderiam ser chamados de exercício de Política ou Justiça, já que politiqueiros e justiceiros não representam verdadeiramente um Poder. Aliás, se considerado o mínimo ético como caminho pelo qual tanto Justiça quanto Política devem caminhar, poder-se-ia mesmo dizer que estes institutos se imbricam de tal forma que muitas vezes se confundem em sua própria natureza; como se Política e Justiça fossem dois lados da mesma moeda chamada Democracia.
É da essência da Política a lida com sistemas de governo, atuar dentro de um mínimo ético, ser facilitador de funcionamento de instituições públicas, reconhecer os reclamos sociais para integrá-los na lei de maneira condizente com um Estado Democrático de Direito e proceder uma inter-relação respeitosa entre as diversas esferas de Poder. É sabido que o cenário político sempre apresentou nuances de certa condescendência com alguns conchavos, aceitação de algumas posturas pouco ortodoxas, o que até se pode observar nas ideias de Maquiavel[4]. Daí porque este estudo, repita-se, não propõe uma liturgia ou catecismo para políticos, mas sim que deles se exija uma conduta de mínimo valor caracterizada por um compromisso com a legalidade, a honestidade e a busca irrestrita dos interesses do povo.
Da Justiça se espera imparcialidade, não suspeição, urbanidade, coragem e análise da norma de acordo com o fato e com os valores sociais[5]. Como proposto acima, os dias de hoje não compactuam com a autoridade dos ditadores, dos coronéis e dos reacionários, que podem, esporadicamente, enviesar a conduta do magistrado. A Justiça de hoje vem pelas mãos daqueles que conquistam a autoridade com sua postura lídima, tanto imparcial como parcimoniosa e voltada para interesses do povo, ainda que não tenham – os magistrados – sido eleitos pelo povo. Quiçá os dias de hoje até mesmo exijam que os ambientes de julgamento parem de ser chamamos de Varas, já que a ideia de coerção física não se coaduna com o esperado da Justiça dos dias de hoje, ainda que tal ferramenta ainda esteja à disposição do referido Poder. Já há algum tempo que justiceiros travestidos de julgadores são afrontados nas ruas, em redes sociais ou até mesmo em salas de julgamento porquanto o termômetro social já os tenha detectado como sujeitos desprovidos de um mínimo ético em sua conduta.
Logo, o que se verá doravante é o desmascaramento (1) das alegações de que o exercício legítimo de um poder seja uma interferência na liberdade dos demais e (2) dos sujeitos que malversam o poder e depois tentam se esquivar de suas responsabilidades indigitando falsos excessos àqueles que exercem o Poder de forma legítima.
2. VELOCIDADE MODERADA E EQUILÍBRIO: O QUE SE ESPERA DOS FREIOS E CONTRAPESOS
Tanto os magistrados quanto os representantes políticos dos cidadãos, guindados legitimamente ao poder através de concursos, indicações constitucionalmente previstas e do voto, devem exercer seus misteres baseados em valores democráticos para que o resultado de seus respectivos trabalhos se justifique. Fora dessa premissa, por mais que os atos sejam praticados por tais personagens, não se pode dizer que o que se faz é propriamente Justiça ou Política. Magistrados, legisladores e administradores públicos, quando atuando em dissonância com o mínimo ético que se espera do detentor de um poder, estão absolutamente sujeitos à lei para que se possa dizer que a Justiça e a Política se fazem presente no caso concreto.
O que pode parecer óbvio, vem sendo colocado em xeque por propostas de exclusão de responsabilidades previstas em tal sistema. Vê-se, por exemplo, sugestões de tirar do magistrado o poder de sancionar o político corrupto com a perda do direito de ser votado, como consequência direta de seus atos ímprobos. Propõe-se ainda responsabilizar juízes por decisões de sua lavra, como se fossem elas instrumentos de abuso de poder. Nesta senda de ilegitimidades, observam-se também decisões judiciais que mais visam legislar e governar do que propriamente subsumir o fato à norma, entre tantos outros exemplos. Se os valores de cada forma de poder fossem estritamente observados, seguramente a própria órbita do sistema democrático cuidaria para políticos e julgadores não irem além das sandálias[6].
Mas como não se pode esperar mestria no manejo de valores morais a todo momento, o sistema de freios e contrapesos passa sim pela ideia de inter-relação de um poder com o outro, aos menos nos estritos termos do necessário para os fins de punição dos detratores. O processo de cobrança de valores dos indivíduos que exercem poder é uma necessidade absoluta para o justo caminhar de um povo e – cuidando para que a criança não seja jogada fora com a água do banho – o processo de limpeza não pode deixar de existir[7].
O excesso de zelo (ou de más intenções) pela independência dos poderes pode gerar propostas, por exemplo, como a de se tirar do Poder Judiciário a aptidão para suspender a capacidade eleitoral passiva daqueles que foram condenados por corrupção enquanto no exercício do poder político. De fato, há propostas de que o reconhecimento do ato de corrupção pelo Poder Judiciário não deveria ser causa para se excluir a capacidade eleitoral passiva do condenado, já que apenas o povo, diretamente, e não pela figura do Magistrado, poderia avaliar se a corrupção é o quanto basta para alijar o direito de ser eleito.
Em recente artigo publicado por Vitoria (2022), um dos autores deste trabalho, ficou claro haver discussão institucional importante sobre a possibilidade ou não dos tribunais excluírem dos parlamentos – e do rol de pessoas aptas a serem votadas – aqueles que foram condenados por ato de corrupção. O deputado espanhol Vicens i Giralt propôs abertamente a supressão de artigo da Lei Eleitoral daquele país que prevê a ingerência do Poder Judiciário sobre o direito de ser votado aos condenados por corrupção, sob argumento de que haveria uma tradição democrática de que apenas o povo, diretamente, poderia decidir quem merece sua confiança ou não, ainda que aval seja dado a um corrupto condenado pelo Poder Judiciário.
Como se vê, com o eufemismo tradição democrática se pretende desvaler o sistema de fiscalização que o Poder Judiciário deve fazer sobre a atuação individual de um sujeito político.
Ocorre que se é verdade que compete ao povo exercer seu poder diretamente para eleger seus representantes, também é verdade que foi o próprio povo que outorgou ao Poder Judiciário a missão de avaliar se o exercício de tal poder atende a um mínimo ético. Ora, verdade que em uma democracia o poder emana do povo, mas isso não quer dizer que determinadas missões, como valorar e julgar os atos de pessoas públicas, devem ser deixados ao exercício direto do poder popular, sob pena de se chegar às fronteiras da violência institucional praticada pelo próprio povo, como ocorreu com a autotutela pela força de tempos passados e como se o Poder de Substituição do Poder Judiciário à força não fosse imposição da própria vontade popular.
Não se pratica Justiça por exercício procedido diretamente pelo povo porque a análise de valores não se faz pela maioria, que não expressa suas razões, não obedece a critérios preestabelecidos, não pondera justificativas e defesas e tampouco opera com a proporcionalidade de punições. O povo não justifica porque votou dessa ou daquela maneira, não tem limites para punir, não é proporcional quando age sob o efeito manada; enfim, o cidadão não pode ser instado a fundamentar seu voto exatamente porque neste silêncio é que reside a ampla liberdade de sufragar. Votar sem qualquer fundamento, critério lógico ou justificativa é direito do povo, mas isso não estende tal direito à aptidão de legitimar a manutenção no poder de um criminoso ou corrupto.
Amartya Sen (2011) explica ser um tanto quanto ultrapassada a ideia de Democracia apenas como reflexo das eleições e votação secreta, propondo uma ampliação enorme de sua compreensão “(…) de modo que já não seja vista apenas como relação às demandas por exercício universal do voto secreto, mas, de maneira muito mais aberta, com relação aquilo que John Rawls chama de ‘exercício da razão pública’” (SEN, 2011, p. 358).
Não se pode olvidar que o poder do voto – instantâneo fotográfico do momento eleitoral – não se pode sobrepor à maioria qualificada que cria e impõe a Constituição de um país e escolhe pela submissão de todos à lei, indistintamente. A maioria que gesta e pare a Constituição de um país impõe instrumentos para frear até mesmo as maiorias impressas na cédula eleitoral. Enfim, é dizer que nem mesmo a fiança das eleições é garantia absoluta de que a conduta do sujeito eleito é legal ou legítima.
É dos estudos do renomado Professor García Roca (2021) que se tira não haver lugar para a ideia de que a democracia e a legalidade poderiam se contrapor em um Estado de Direito. Para além disso, o mestre da Complutense de Madrid explica que a representação da maioria não legitima a contraposição com lei, já que haveria
un puente entre los conceptos de ‘Estado de Derecho’ y ‘democracia’, impidiendo ciertos excesos en su disociación y contribuyendo a superar una desfasada polémica. Lleva a rechazar un entendimiento formalista del Estado de Derecho, desprovisto de contenidos materiales, un salseado Estado de Derecho sin democracia (véase Lucas Verdi), tanto como obliga a desechar una comprensión de la democracia constitucional fundada exclusivamente en la consagración de la regla de mayoría sin ulteriores limitaciones. (ROCA, 2021, p. 3-28)
Logo, se reitera a ideia inicial deste artigo, isto é, que andam sofismando preceitos democráticos com os fins paralelos de imputar ao Poder Judiciário a responsabilidade por cumprir estritamente seu papel, que é tirar direitos daqueles que não obedeceram a seus deveres. Não há ativismo ou guerra judicial nisso e tampouco se está fazendo pouco caso do poder da maioria.
O Ministro da Suprema Corte do Brasil, Luiz Roberto Barroso, explica que
a política majoritária, conduzida por representantes eleitos, é um componente vital para a democracia. Mas a democracia é muito mais que uma mera expressão numérica de uma maior quantidade de votos. Para além desse aspecto puramente formal, ela possui uma dimensão subjetiva, que abrange a preservação de valores e direitos fundamentais. A essas duas dimensões – formal e subjetiva – soma-se ainda, uma dimensão deliberativa, feita de debate público, argumentos e persuasão. A democracia, portanto, exige votos, direitos e razões. (BARROSO, 2015, p. 23/50)
Não parece que a deturpação dos princípios democráticos por artigos e discursos seja apenas um descuido de desavisados. Note-se que se imputa aos Magistrados uma conduta deveras grave que é não respeitar o poder da maioria e pretender legislar ou administrar. A urdidura é tão bem tramada e os alicerces suspostamente descumpridos são tão sensíveis que a desconstrução da confiança popular no Poder Judiciário vem se tornando crescente em questões políticas. Tudo isso porque o discernimento da maioria é ofuscado pela nuvem de fumaça que se faz para que os movimentos dos imorais não sejam vistos.
Daí porque, nos dias de hoje não se pode pensar em atividade de julgar sem uma dose cavalar de coragem e alguma pitada de ativismo judicial, tempero que se não usado na medida exata, torna intragável o ato de julgar. Se o voto é parâmetro inconteste para que a democracia vigore, também não se pode negar que a atuação do Poder Judiciário antes, durante e depois do voto posto é conditio sine qua non para a fluidez da boa atuação dos poderes. Não por outro motivo que a Justiça Eleitoral atua em todas as fases das eleições em países livres; isso para não dizer de instituições internacionais observadoras da liberdade de voto.
O Professor Garcia Roca (2021) também esclarece que, para além do voto, as atuações judiciais independentes e o livre exercício do poder político devem consagrar uma ideia atual de Estado de Direito, como proposto pelo Direito Internacional. Citando Geranne Lautenbach, o mestre madrilenho cita o Sistema do Convênio Europeu de Direitos Humanos e a defesa de princípios como a legalidade, qualidade da lei, proteção do indivíduo frente ao poder arbitrário, controle da ação do governo, respeito a posição dos cidadãos, independência judicial e controles judiciais, divisão de poderes, procedimentos razoáveis, entre outros.
Da mesma forma que se limita o poder dos homens eleitos pelo voto, juízes, magistrados e ministros do Poder Judiciário não podem se arvorar em abusar do império de suas decisões para desvirtuar o exercício de Poder. Para eles também há limites. Claro!
O Professor Frederico Bonaldo (2019) – perpassando o tema das virtudes judiciais – diz que muito se fala sobre a ética do juiz, principalmente em artigos talhados a partir do ano 2000 e segundo o referido estudo, não se pode falar em Justiça aplicada com virtude se o julgador não atua, entre outros fatores, com destreza no manejo das fontes legislativas e com acurada cautela para não distorcer o Direito por meio de sua subjetividade – já que o Direito tem que cumprir a função de pacificar a sociedade e não para dessedentar interesses pessoais do Magistrado ou de algum grupo que se privilegia de suas graças.
Como já salientado em recente artigo escrito por um dos autores deste estudo, o nível mais básico do imperativo ético ao qual devem estar sujeitos os responsáveis públicos pelo exercício de um Poder é o equilíbrio entre a liberdade e o cumprimento da lei. E por evidente, isso se aplica não só aos representantes políticos do povo, mas também àqueles responsáveis por dizer o Direito no caso concreto e garantir a imagem escorreita da Justiça em um determinado território. Sem esse mínimo ético na atuação, não se pode dizer que se está alcançando autênticas Justiça e Política.
Ainda que não fosse a consagração da importância de uma aberta e profícua inter-relação entre representantes da Política e da Justiça, da possível convivência pacífica entre eles e até mesmo seu encorajamento, não se poderia olvidar que tais funções públicas são exercidas sob limites externos e internos contra o abuso do poder.
Como limites externos a desmandos pode-se citar (i) o controle do alcance das leis exercido pelo Poder Judiciário através do controle de constitucionalidade, (ii) a possibilidade de julgamento de Magistrados pelo Parlamento, como é o caso de impeachment de Ministros de Cortes Superiores e Supremas, (iii) a proibição constitucional do magistrado se imiscuir no mérito administrativo próprio do administrador público, (iv) a proibição de leis criarem gastos extraordinários sem previsão orçamentária e (v) a precisão constitucional do sistema de recursos processuais que autolimita a atuação de um Magistrado através da revisão de suas decisões por seus pares.
Forte em todo este sistema moderador externo, a regra é que o poder seja bem exercido, sendo excepcionais aquelas condutas que transbordam o exercício do poder legítimo e desaguem no desmando. É dizer que muito pouco se vê parlamentares respondendo por arbitrariedades no próprio exercício de legislar, magistrados respondendo por excessos no mister de julgar e administradores públicos condenados por atuação no âmbito de execução de seu mister político. Isso porque os limites externos quase sempre cumprem seu papel. Sem guerra, sem ativismo, sem arbitrariedades; tudo por simples construção democrática.
Mas o filtro não para por aí, já que limites internos à atuação de mandatários também são encontrados nas Casas de Leis, Casas Civis e Tribunais, como se pode citar os conselhos de classe e corregedorias. Convém lembrar que muitas vezes até mesmo os órgãos sensores (limites internos) dos sujeitos representantes de um determinado poder são compostos por membros que representam os outros poderes, como é o caso do Conselho Nacional de Justiça do Brasil e do Conselho Geral do Poder Judicial da Espanha, ambos compostos por conselheiros indicados também pelos Parlamentos de cada país.
Fincando pé nestas premissas, mais adiante este pequeno estudo perpassará por uma pequena análise das atividades de magistrados e políticos para que se veja como pode ser salutar a inter-relação entre Poderes e como existem propostas pouco sérias que visam antagonizar magistrados e políticos, além de buscarem bodes-expiatórios para condutas antidemocráticas todas suas. Aliás, Shakespeare já notava que, para o homem mesmo, a culpa das suas vilanias nunca estava no seu caráter desviado, mas nos astros e nas estrelas, como se fossemos “[…] velhacos, ladrões e traidores pelo predomínio das esferas; bêbados, mentirosos e adúlteros, pela obediência forçosa a influências planetárias, sendo toda nossa ruindade atribuída à influência divina”[8].
2.1. AINDA HÁ JUÍZES; E NÃO SÓ EM BERLIM
O exercício de poderes em consonância com a plena ideia de Democracia passa pelo Estado de Direito onde ninguém está acima ou fora da atuação da lei. Não só os juízes e magistrados, mas todos aqueles que são responsabilizados pelo exercício da jurisdição devem cumprir seu mister sem que a tarefa resulte em atendimento a anseios pessoais escusos, lesão aos direitos individuais dos jurisdicionados e desequilíbrio político. O julgador sempre deve ter em mente que sua atividade nunca será legislar ou governar e que até mesmo influir a ponto de decidir o processo democrático de escolha dos representantes políticos não é bem-vinda.
Todavia, não se pode perder de vista que a cassação de direitos políticos de um legislador ou administrador corrupto sempre acabará repercutindo de alguma maneira na disputa eleitoral, o que nada tem de pernicioso para a Democracia. Essas interferências são consequências naturais do sistema de freios e contrapesos; da mesma forma que, verbi gratia, a atuação do legislador tem reflexo direto na atividade do julgador, quando alguma alteração legislativa é aprovada nas casas de leis. Propor que toda e qualquer influência política advinda de uma decisão judicial possa ser algo pernicioso é deturpar a ideia natural da limitação entre poderes, e subjugar o Estado Democrático de Direito para fazer pesar sobre os ombros do Poder Judiciário uma responsabilidade que não é sua. Aliás, responsabilidade do Poder Judiciário é julgar, condenar e tirar mesmo da corrida por cargos públicos, os corruptos e malversadores do exercício do poder e isso nada tem de guerra judicial ou interesse pessoal de magistrados em ser o fiel da balança no processo eleitoral. Propor que o julgador exerça seu múnus público de maneira a não influenciar em nada a vida política de uma sociedade é fantasiar a prerrogativa da liberdade institucional e propor uma licença de agir contra a lei, sugerindo que os julgadores não cumpram seu papel.
Impossível, pois, pensar honestamente em jurisdição sem alguma influência no cenário político. Tal interferência será tanto menor quanto os julgadores exercerem suas funções dentro do mínimo ético propostos neste estudo. Este escopo é garantido pelo sistema de correção previsto pelas Constituições Democráticas, principalmente a obrigatoriedade de fundamentação das decisões judiciais, sistema recursal e garantia da independência judicial. A defesa desses filtros, se não garante, quase que assegura que o Poder Judiciário não vá além de seu papel de coibir abusos, corrupções e malversações de poder, já que um ponto fora da curva da atuação do magistrado será revisto por apelações, cassações, reconhecimento de suspeições, afastamento de magistrados, entre outros decotes que a lei propõe. Aliás, lei que foi imposta ao trabalho do magistrado pelo trabalho dos legisladores, diga-se de passagem, mais uma vez demonstrando a interferência regular de um múnus em outro.
O Ministro Luis Roberto Barroso (2015) chama a atenção para o fato de que a Democracia atual pressupõe uma participação subjetiva do Magistrado de forma mais acentuada, a qual foi chamada de discricionaridade judicial pelo ex – Presidente da Suprema Corte de Israel, Aharon Barak, em seu Judicial discretion de 1989. O Ministro brasileiro explica que de fato se observa em dias atuais um papel muito mais proativo dos Magistrados, menos presos à soluções mecânicas de subsunção da lei ao fato, como propunha o pensamento jurídico clássico, e salienta que isso pode gerar desconforto e desalento a alguns, mas acalma os ânimos mais exacerbados concluindo que não se deve confundir tal subjetividade com a “[…] subjetividade da vontade política própria – que fique bem claro -, mas que inequivocamente decorre da compreensão de institutos jurídicos, da captação do sentimento social e do espírito de sua época” (BARROSO, 2015, p. 23/50).
Tais roços entre a Política e a Justiça são mais acentuados conforme as instâncias vão ascendendo, já que as primeiras instâncias são sempre menos politizadas que as instâncias superiores. Desta forma, se vê justificado o motivo de advogados e políticos buscarem lançar reclamos a todas as instâncias superiores contra as decisões judiciais de instâncias inferiores, o que, de certa forma, garante a máxima filtragem desses julgados, resultando numa espécie de selo de garantia de conteúdo democrático dos veredictos judiciais dos Juízes de Direito. Ora, se até mesmo o crivo mais politizado das instâncias superiores judiciais avaliza a discricionaridade judicial das instâncias menos politizadas, galgadas por juízes avaliados por concursos públicos – ou, no máximo, Desembargadores nomeados pelos sistema de percentuais constitucionais reservados a advogados, professores e membros do Ministério Público – pode-se concluir com considerável chance de acerto que a interferência judicial na política que pode advir das instâncias inferiores, depois de lançada mão de toda a constelação de recursos que há em um ordenamento jurídico, é de chance quase nula.
É dizer que o sistema de recursos e a filtragem pelas instâncias superiores garantem o mínimo ético no mérito das decisões judiciais.
Em palavras mais simples e resumidas é dizer que decisão judicial de primeira instância, levada à segunda instância e por ela chancelada é presunção de acerto na análise fática e jurídica. Decisão de segunda instância avaliada e chancelada por Cortes Superiores, Supremas e Constitucionais, é presunção de acerto na aplicação da lei e da Constituição. Enfim, decisões que são guindadas à análise de Tribunais Comunitários, Internacionais e de Direitos Humanos é chancela de presunção de concordância com Tratados, Convenções e Acordos Internacionais. Atribuir à tais decisões a pecha de instrumentos antidemocráticos é mesmo tentar quebrar o espelho por não gostar da imagem. E como o espelho do sistema democrático é bastante difícil de quebrar, o que se tem visto é a busca desesperada por quebrar a imagem dos magistrados enquanto pessoa, com o fim indireto de desacreditar seus veredictos. Daí porque mais que decisões fortemente fundamentadas, o sistema exige julgador virtuoso para que a Justiça possa ser feita.
Não são poucas as construções doutrinárias que discutem as virtudes do julgador. Solum (apud BONALDO, 2019) defende, neste sentido, que cinco vícios judiciais devem ser considerados inaceitáveis para um Magistrado, sendo dois deles intelectuais e três, morais. Segundo o mestre da Universidade de Virgínia, nos Estados Unidos, a democracia estaria em sérios riscos se seus políticos estivessem à mercê de julgamentos praticados por Magistrados desconhecedores das leis vigentes e incapazes de aplicá-las (judicial stupidity), além daqueles insensatos (judicial foolishness). Além desses vícios intelectuais, inaptos seriam os Magistrados viciados por corrupção (corruption), por covardia cívica (civic cowardice) e por destempero de conduta (hot temper).
Neste sentido, desatende aos interesses da Democracia, e quiçá seja bastante conveniente para os políticos corruptos, desacreditar o preparo moral e intelectual dos julgadores apontando casos esporádicos de ignorância, estupidez, pouco esclarecimento e erudição ou até mesmo boçalidade da conduta deles. Para além disso, não são poucas as tentativas de criar um cenário próprio de descrédito judicial no intuito de impor medo e destemperança aos julgadores, pregar uma visão cada vez mais tacanha da independência judicial e até mesmo atuando para o esfacelamento da confiança no Poder Judiciário. Estes caminhos são os mais fáceis para o intento de transformar o julgador em títere dos escusos anseios politiqueiros.
Ainda sob a ótica do Ministro Barroso (2015), a inter-relação entre as virtudes acima referidas faz com a independência judicial seja escudo bastante importante para a defesa da Democracia, já que o julgador tem o dever de cumprir o difícil papel contramajoritário para evitar que atos de corrupção sejam justificados pelo número de votos recebidos por este ou aquele representante político. Saliente-se que, para além disso, compete ao magistrado até mesmo impedir que o processo democrático seja capaz de oprimir as minorias. Com isso pode-se perceber o grau de vulnerabilidade do julgador ao exercer este papel contramajoritário e a importância de que lhe seja garantida a autonomia para julgar e a proteção para julgar de forma independente. Apenas assim se pode esperar do julgador uma conduta corajosa e fulcrada na ideia de que nada mais está fazendo do que cumprir o papel que a sociedade lhe atribui no cenário desenhado pelo Estado de Direito. Sem tais garantias, não se pode exigir do julgador um super heroísmo e um atuar minimamente ético em favor dos menos favorecidos contra os interesses dos mais fortes e poderosos.
Por outro lado, o Magistrado deve ser isento e imparcial, sem animosidades contra políticos e desinformação sobre o processo democrático na sociedade moderna. O juiz deve estar atualizado e ver a Política que se exerce hoje em dia com olhos também vanguardistas. Para fins de alcançar a erudição jurídica que se exige do Magistrado, há a constante necessidade de atualização cientifica, para evitar que a armadilha do lugar comum ou de ideias vetustas acabem atacanhando a coragem ou sintonia fina do julgador. Nunca se pode perder de vista que a ideia de Democracia é algo em permanente mutação. Acreditar que a corrupção e contrariedade à lei é algo atávico à atividade política, com a qual um país se deve acostumar, é também um desserviço às mais comezinhas premissas da Ciência Política. Aliás, tal ideia apequena até mesmo as condutas probas dos políticos de valor e parcializa a visão do magistrado ao julgar um fato. Considerar que os políticos devem governar para o povo é uma proposta que remonta a genealogia da Democracia e se deve presumir que os políticos atuem assim.
Se é verdade que a corrupção de hoje advém da criação de dificuldades para vender facilidades, como lobbys políticos, congraçamento de partidos para objetar a autonomia de governo, imposição de decretos para assuntos que só a lei deveria prever e imbróglios orçamentários, o magistrado deve ter isso em mente, honrando a sagacidade que seu trabalho exige, mas sem destemperos quanto à presunção de honorabilidade do sujeito investigado. Isso festeja a perspicácia e inteligência que o mínimo ético exige do julgador.
Quando se fala de necessidade de atualização de conhecimentos, propõe-se o conceito de democracia moderna, que propõe maior descentralização de poder e, por consequência, maior necessidade de fiscalização. Ricardo Luiz Lorenzeti (2010) enfatiza que o modo pelo qual as diversas instituições atribuem bens aos cidadãos “sempre foi uma decisão concentrada numa autoridade central e baseada num critério único. Mas nas sociedades atuais, mais complexas, diversificadas, multiculturais, as instituições são submetidas a escrutínio mais estrito” (LORENZETI, 2010) indicando que é dessa forma que surge a proposta de Michael Walzer de “esferas jurídicas” com critério distributivos diferentes e mais descentralizado, dando mais força às decisões judiciais contra desmandos políticos, ainda que praticados por aqueles eleitos pela mais ampla maioria de votos.
O magistrado tem dever, pois, da manutenção do alto nível de cultura, erudição, atualização e coragem no exercício da garantia social de que as decisões judiciais incrementarão o exercício da Política, pensada e exercida verdadeiramente em prol do cidadão e promovedora de um governo verdadeiramente democrático. Propor que os Magistrados dobrem os joelhos contra os desmandos políticos sob argumentos de legitimidade da maioria, valor do voto, impedimento de governo de juízes e exacerbado ativismo judicial é também desvirtuar a moderna proposta do papel do Poder Judiciário e fazer acreditar, por conveniência escusa, que a Justiça e a Política não trilham o mesmo caminho em prol da Democracia.
Nunca se deve perder de vista que a Justiça é o horizonte do Julgador, ainda que seu trabalho do dia a dia seja a aplicação da lei ao caso concreto, mediante os valores que a sociedade lhe impõe. Ora, a Justiça não aparece no processo por passe de mágica, mas sim como consequência de um processo dialético que pressupõe discussões, ponderações e frustrações de interesses, culminando pela decisão judicial. Evidente que isso pode gerar um sabor amargo para alguns e uma propensão a responsabilizar o julgador por perdas ou adversidades, mas é assim que o processo é. Culpar o julgador por desestimar um pedido judicial ou pela imposição de uma condenação é quase como descumprir o provérbio ‘ne nuntium necare’[9].
Logo, não se deve esperar docilidade e navegação em mares calmos quando o assunto é processo judicial e o strepitus iudicii[10] é algo natural de sua existência. Todavia, daí a entender o processo judicial e a atuação do julgador como uma necessidade de guerra entre oponentes é um grande equívoco. A ideia de Justiça do Professor Amartya Sen (2011) é bem ampla e não propõe protótipos da Justiça perfeita. Ainda assim, o vencedor do Prêmio Nobel de Economia em 1998 esclarece que:
Devemos argumentar de modo fundamentado, conosco e com os outros, em vez de se apelar ao que se pode chamar de ‘tolerância descomprometida’, acompanhado pelo conforto de uma solução preguiçosa como ‘você tem razão na sua comunidade e eu, na minha’. A racionalidade argumentativa e a análise imparcial são essenciais. Todavia, mesmo o mais vigoroso dos exames críticos pode deixar de fora argumentos conflitantes e concorrentes que não são eliminados pela análise imparcial. Adiante, retomarei esse ponto, mas enfatizo aqui que a necessidade de raciocinar e analisar não está de forma alguma comprometida pela possibilidade de que prioridades conflitantes sobrevivam a despeito do enfrentamento da razão. A pluralidade com a qual terminaremos será o resultado do uso do raciocínio argumentativo, não se nossa abstenção dele. (SEN, 2011, p. 12)
Logo, há que se ponderar o processo com olhos descomprometidos e reconhecer que os personagens que nele atua, como é o caso do julgador, exercem um mister democrático e tem um dever de atuação valorosa para garantia da paz social.
Garantir o eixo do mínimo ético aos julgadores, ao redor do qual gravitam instrumentos democráticos de exercício do poder de dizer o Direito é proceder conforme as ideias de um Direito para todos, com atribuição de responsabilidades isonômicas tantos aos magistrados quanto aos políticos, resguardando algum sossego aos cidadãos de que o Poder que emana do povo não será usurpado sem que o filtro da do Estado de Direito exerça o sistema tão caro a todos que é o de frear e contrapesar o exercício do poder.
3. ONDE HÁ GRANDE DISPOSIÇÃO, NÃO PODE HAVER GRANDE DIFICULDADE [11]
O principal motivo de considerar Nicolau Maquiavel como fundador da Ciência Política moderna muito tem a ver com a ruptura que ele providencia entre a Política e a Religião, já que o vínculo entre elas era uma premissa no período medieval. Com essa postura, Maquiavel prefere escancarar a forma nua, crua e até cruel com a qual a política é exercida, com fins justificando os meios e denotando que não se pode partir de valores éticos preconcebidos para analisar o múnus do detentor de tal poder. Nesta conjuntura, muitos entendem que relacionar a Política ao maquiavelismo seria pressupor o distanciamento desta ciência a um mínimo ético como proposto por nossa cultura. Todavia, mesmo que de uma forma muito própria e totalmente destacada da ética religiosa, existe sim valores ‘éticos’ permeando até mesmo os ensinamentos de Maquiavel, como explica a Professora Márcia do Amaral (2012).
Este estudo não está propondo a utilização da ‘etica’ d´O Príncipe ou dos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio – ambos do Old Nick[12] – como o mínimo ético a se procurar no exercício do Poder Político, mas supondo que a Ciência Política moderna é calcada numa ideia de mínimo ético a dar substrato de validez para o trabalho dos políticos. O reclamo de liberdade no exercício da função e por independência também é constantemente visto nos discursos políticos, e não é de hoje que defendem a posição de não permitir que os Magistrados legislem ou administrem por meio de decisões judiciais. Com razão os políticos que dizem que qualquer interferência judicial ao exercício minimamente ético da Política é uma desbragada afronta à Democracia. Mas esta questão é tão vetusta que mais parece requentada para tentar justificar o exercício inidôneo de atos políticos. Veja-se.
Investidas de políticos contra o exercício da judicatura já surtiram efeitos na história, como esclarece o Professor Edouard Lambert (2010), quem lembra que pelo menos desde 1812 há um discurso – em teoria muito válido, diga-se de passagem – que a intervenção dos juízes nos atos legislativos, se for frequente e por causa duvidosa, “seria a fonte de uma grande inveja contra este poder e de prejuízos tão enormes contra ele que provocariam medidas que levariam a destruição total da independência dos juízes e, portanto, do melhor garante da Constituição”. Forte nesta premissa, referido autor (2010) esclarece que esta situação provocou um certo recalque nos Magistrados em julgar contra os representantes políticos e serem tachados de detratores da divisão de poderes.
Como dito acima, as práticas Democráticas estão em constante mutação e os dias atuais desenham outro cenário, não só de necessidade, mas também de obrigatoriedade do Poder Judiciário se lançar a avaliar a postura dos políticos, buscando ao menos uma justificativa ética em suas condutas. Como já dito por um dos autores deste estudo, é tarefa bastante difícil a construção de um parâmetro de controle da atividade política, já que os ordenamentos jurídicos de cada Estado e as diversidades culturais propõem distintas condições de elegibilidade e têm em conta as diversidades culturais de cada povo. Chega-se a falar na existência da consciência europeia, que traz em conta uma profunda diversidade institucional, que não é momentânea e, além disso, ligada a uma autêntica diversidade constitucional.
Mesmo neste caleidoscópio cultural, foi possível instituir estândares concretos de boas práticas em matéria eleitoral para a Europa, comprovando que a ideia de existência de um mínimo ético era possível de se exigir, a ponto de possibilitar até mesmo a codificação dessas propostas, através do Código de Boas Práticas Eleitorais[13]. Sem olvidar da dificuldade de essas boas práticas serem alicerce para a formação de uma jurisprudência firme em nível interno de cada país europeu, a ideia de patrimônio constitucional comum do velho continente é citada pelo Tribunal Europeu de Direito Humanos na Sentença Russian Conservative Party of Entrepeneurs, de 11 de janeiro de 2007, § 70 dando indicativos de que aquela Corte Internacional europeia considera possível exigir um mínimo de valor nas práticas eleitorais.
Ora, se a prática eleitoral é o primeiro passo da carreira do legislador ou administrador público, quando ele busca a única chancela que justifica seu futuro poder – o voto – nada mais lógico que entender que tal prática deve ser valorosa em si mesma e nortear a conduta do candidato eleito para depois das eleições. Em verdade, como também já defendido em recente trabalho de um dos autores deste estudo, Vitoria (2022), os cargos representativos exigem condutas exemplares, alicerce sobre o qual se pode reunir várias sentenças da Suprema Corte de Espanha. Quando aquela Corte fala de dever de exemplaridade faz referência direta ao cumprimento de regras de probidade e respeito da lei durante a gestão do político atuante, evidenciando que quando tais regras são quebradas por um representante do Poder Executivo, fatalmente este indivíduo não será merecedor da confiança do povo se passar a exercer um cargo no Poder Legislativo.
A confiança que o povo atribui ao indivíduo através do voto vem gravada com a obrigação de uma conduta digna, proba e não vexatória ao mínimo ético que se espera de um exercente de um poder. O que não se pode perder de vista é que o risco de condutas ímprobas espreita a atividade política, até mesmo por sedução dos próprios cidadãos. Dever-se-ia esperar o mínimo ético também destes, mas não é incomum o indivíduo também entender seu voto como objeto de negociata a tentar seduzir o candidato ou político eleito. Como já referido no início deste capítulo, a pecha odiosa carregada por Maquiavel advém exatamente do reconhecimento que dentro das paredes do parlamento e dos palácios de governo existem posturas que fariam corar de vergonha os menos pudicos dos leitores. E tais condutas não advêm apenas dos desvios de caráter de alguns políticos, mas também dos cidadãos que se arvoram em exercer uma espécie de poder indireto, por gozar da confiança e da proximidade dos representantes eleitos do povo ou por exercer alguma influência em grupos de cidadãos que representam uma parcela considerável de votos.
Bastante verdade há no dito do Lord Acton[14] de que o poder tende a corromper. Aliás, o poder tende a corromper efetivamente e tende a seduzir para que se corrompa, daí porque este estudo defende o exercício do poder mediante um mínimo ético como forma mais comezinha de exercício legítimo dele.
Tal legitimidades bases do poder segundo o conhecido estudo de French e Bertram (1959), no qual propõem as bases do poder social. Junto com as quatro outras bases de sustentação do poder exercido sobre outras pessoas ou grupos sociais (recompensa, coerção, expertise e referência) a legitimidade é imprescindível e provavelmente a mais complexa base do poder social. Essa complexidade é reconhecida no texto original do trabalho escrito no fim da década de cinquenta porque abrange noções de sociologia, grupos de normas e psicologia social. Os autores explicam que a legitimidade não é só uma base de poder, mas também pode caracterizar um aparato de comportamento pessoal das pessoas. Dizem ainda que a influência exercida entre indivíduos pode indicar uma possível identidade entre a legitimidade e a recompensa, mas se esta última sugerir alguma forma de corrupção fica concluída pela ilegitimidade de tal recebimento e desconstruída a ideia de base legítima de poder.
Este são enfim, alguns argumentos de autoridade que explicam porque o mínimo ético que se exige do julgador também se exige do legislador ou do administrador público, sendo este critério o mínimo protetor para o exercício livre e desimpedido do poder. Atuar fora deste preceito de valor é abrir flanco para o exercício da reprimenda judicial de maneira democrática e dentro dos parâmetros de Justiça. Mais que isso! Defender que a Justiça e a Política não devam se imbricar por causar amputação obrigatória em ambas é tergiversar com a verdade de maneira a escamotear interesses mais que escusos.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
É próprio da natureza do Direito atuar sempre a reboque dos fatos. Não se pode conceber um Direito preditivo, pitoniso, que tente se antecipar aos acontecimentos sociais. Com base nesta verdade, os atos políticos, projetos de leis, acordos políticos, início de obras públicas e outros atos de governo, sempre antecedem os julgamentos, dando uma proximidade especial aos políticos em relação a seu povo. Aliás, na linha de raciocínio deste estudo, sobre a presunção de validade de tais atos, a maioria dos atos políticos sequer passam pelo crivo do Poder Judiciário, porque procedidos de forma legítima.
Imaginem-se quantas leis são criadas e não são invalidadas – sequer submetidas a julgamento – por inconstitucionalidade; quantas obras públicas que chegam a seu fim sem qualquer contestação pelo Ministério Público e quantos acordos políticos procedidos sem a consideração posterior de corrupção. Enfim, pode-se perceber que os cidadãos sentem primeiro os efeitos dos atos políticos e, na maioria das vezes, sentem apenas os afeitos destes atos.
Se já não fosse pela excepcionalidade acima referida, que já chama a atenção pelo desvio da regra, é próprio desta dinâmica que algumas decisões judiciais – não todas – sejam trazidas à tona por adversários políticos dos condenados e propaladas aos quatro ventos, principalmente em período de eleições, quando os nervos estão mais ainda à flor da pele.
Na junção do cenário já conhecido da virulenta polarização entre a esquerda e a direita com o novo cenário do conhecimento em tempo real e cientificação de tudo quanto é opinião rasa, a desinformação encontra terreno fertilíssimo para que sejam propostas as pseudo-rixas entre Justiça e Política e os supostos atos antidemocráticos.
Este estado de ânimo é que este artigo pretendeu arrefecer, deixando claro que o sistema de freios e contrapesos e a inter-relação entre os Poderes não pressupõe qualquer hostilidade entre eles. Não se propôs negar que desmandos e corrupções possam existir, mas até tais desvios encontram o preparo do sistema para que a ordem seja restabelecida.
Como dito, o mundo vive um frenesi de (des)informação, sem qualquer cunho científico e as redes sociais impulsionam a disseminação dessas opiniões. Este potencial tem gerado uma nova onda de pesados ataques entre a direita e esquerda política, situação vista quase no mundo todo. Logo, os estudos desinteressados, dotados de algum cunho científico, devem fazer o papel de informar para, minimamente, restaurar a paz com a verdade.
5. REFERÊNCIAS
AMARAL, Márcia, Maquiavel e as relações entre ética e política, Ensaios filosóficos, v.5, 2012, p. 25-37, Disponível em: < http://ensaiosfilosoficos.com.br/Artigos/Artigo6/AMA RAL_ Marcia.pdf>, Acesso em: 15/08/2022.
BARROSO, Roberto Luiz, A razão sem voto: O Supremo Tribunal Federal e o governo da maioria, Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília. v. 5, n. especial, 2015 Pag. 23-50, Disponível em: <https://www.publicacoes.uniceub.br/RBPP/article/view/3180/0>, Acesso em: 10/08/2022.
BONALDO, Frederico, Prestação Jurisdicional e Caráter: A interdependência das virtudes do juiz, Porto Alegre, Editora Fi, 2019.
FRENCH, John R. P. e BERTRAM, Raven, The bases of social power, University of Michigan, Institute for Social Research, 1959, Disponível em: <http://www.comm unicationcache.com/uploads/1/0/8/8/10887248/the_bases_of_social_power_-_chapter_20_-_1959.pdf> Acesso em: 10/09/2022.
GARCIA ROCA, Francisco Javier, Principio democratico, elecciones y Estado de Derecho: la cultura del constitucionalismo, el Convenio Europeo de Derechos Humanos y la Unión Europea, Academia Interamericana de Derechos Humanos, Editorial Tirant lo blanch, México, 2021, p. 03-28,, México. 2021, p. 03-28.
LAMBERT, Edouard, El Gobierno de los Jueces, 1ª Ed., Editora Tecnos Milenio, 2010.
LORENZETI, Ricardo Luiz, Teoria da Decisão Judicial, Fundamentos de Direito, 2ª Ed., Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2010.
SEN, AMARTYA, A Ideia de Justiça, 1ª Ed., São Paulo, Editora Companhia das Letras, 2011.
SHAKESPEARE, William.,O rei Lear, Tradução de Millôr Fernandes, Porto Alegre, L&PM, 2016.
VITORIA, Ignacio Garcia, La exclusión de los delincuentes del parlamento: entre la libertad política y el imperio de la ley, 2022.
Notas de Rodapé
[1] Juiz de Direito, graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC), especialista em Direito Notarial e Registral (EPM), Mestre em Processo Civil pela PUC, Mestre em ciências interdisciplinares da saúde pela UNIFESP, Doutorando da Universidade Complutense de Madrid (ES). E-mail: lgrecco@tjsp. jus.br.
[2] Doutor em Direito pela Universidade de Valladolid (2007), Especialização em Direito Constitucional e Ciência Política pelo Centro de Estudos Políticos e Constitucionais (2001). Professor de Direito Constitucional na Universidade Complutense de Madrid (desde 2008) e anteriormente na Universidade de Valladolid (2004-2008).
[3] Clístenes – Político da Grécia antiga, considerado o Pai da Democracia.
[4] Nicolau Maquiavel é considerado o fundador do pensamento e da ciência política moderna.
[5] Referência à Teoria Tridimensional do Direito do Professor Miguel Reale.
[6] Referência à censura feita pintor Apeles, de Kos, ao sapateiro que gerou a máxima “Sutor, ne ultra crepidam”, frase encontrada originalmente
[7] Referência à máxima “Não jogue fora a criança com a água do banho” vista pela primeira vez em 1512 na obra Narrenbeschwörung de Thomas Murner.
[8] Referência à obra Rei Lear, de W. Shakespeare.
[9] Tradução livre: Não mate o mensageiro.
[10] Tradução livre: Espinhos do processo.
[11] Referência à citação feita por Nicolau Maquiavel em O Princípie.
[12] Apelido pelo qual é conhecido Nicolau Maquiavel.
[13] Código Adotado pela Comissão de Veneza – Comissão Europeia para a Democracia Através do Direito, Veneza, 12 e 13 de dezembro de 2008
[14] Referência à John Dalberg-Acton, historiador britânico do século XIX