O Prometeu Revelado em Epimeteu ou Quando o Caminhar da Tecnociência Desconhece Direitos Humanos

DOI: 10.19135/revista.consinter.00015.10

Recebido/Received 31/03/2022 – Aprovado/Approved 12/08/2022

Edna Raquel Hogemann[1] – https://orcid.org/0000-0003-3276-4526

Resumo

Analisa a relação entre o processo acelerado do desenvolvimento tecnológico e as consequências dele decorrentes que findam por interferir na estrutura dos direitos da liberdade e da igualdade, conquistas históricas da humanidade. Enfoca os efeitos perversos do progresso da tecnologia quando voltados exclusivamente para o aprimoramento das técnicas em si e do mero lucro, em detrimento da reverência e do respeito à pessoa humana, e dos ideais de igualdade, fraternidade e solidariedade, proclamados pela Declaração Universal do Direitos Humanos de 1948. Sublinha a relevância desses ideais consagrados igualmente no atual texto constitucional brasileiro e a necessidade de sua implementação na perspectiva da construção de uma sociedade mais solidária e mais justa, combinado com os perigos do seu afastamento em nome de um pretenso desenvolvimento. Trata-se de uma pesquisa descritiva, com metodologia dialética aplicada à revisão bibliográfica, a fim de promover o diálogo entre os doutrinadores selecionados para concluir que qualquer empreitada do desenvolvimento tecnológico deve considerar prima facie o respeito integral à dignidade humana.

Palavras-chave: Desenvolvimento tecnológico; Liberdade; Igualdade; transformação social.

Abstract

It analyzes the relationship between the accelerated process of technological development and the resulting consequences that end up interfering in the structure of the rights of freedom and equality, historical achievements of humanity. It focuses on the perverse effects of the progress of technology when focused exclusively on the improvement of techniques themselves and mere profit, to the detriment of reverence and respect for the human person, and the ideals of equality, fraternity and solidarity, proclaimed by the Universal Declaration of Rights. Human Rights of 1948. It underlines the relevance of these ideals also enshrined in the current Brazilian constitutional text and the need for their implementation in the perspective of building a more solidary and fairer society, combined with the dangers of their removal in the name of an alleged development. This is a descriptive research, with a dialectical methodology applied to the bibliographic review, in order to promote dialogue between the selected scholars to conclude that any undertaking of technological development must consider prima facie the integral respect for human dignity.

Keywords: Technological development; Freedom; equality; social transformation.

1 Introdução

Ao considerar o evolver histórico e a ética comum a cada tempo, percebe-se objetivamente que o ser humano se constrói numa progressão e que sua realização, bem como a transformação dos valores da sociedade a que pertence, perfazem-se dialeticamente, pela superação de essenciais contradições, quais sejam, o bom e o mau, o justo e o injusto, o certo e o errado. Essa discussão leva à revisitação de velhos conceitos e de verdades consideradas absolutas; é que a trama da vida é feita de contradições e oposições, de rupturas e resistências, e o cometimento de ações que não têm respaldo em uma ética que esteja de acordo com o nosso tempo, por si só, não paralisa o curso da história.

O direito não se confunde com a justiça, mas concretiza sempre, historicamente, os valores éticos em instituições de poder. Razão pela qual preciso se faz lançar um olhar sobre o passado para que se possa reavaliar os padrões do presente. Ao assim proceder, uma pergunta exsurge: será que se pode dizer que os Direitos à Igualdade e Liberdade dos indivíduos hoje são respeitados, uma vez que o desenvolvimento tecnológico assume o papel de senhor soberano nas sociedades complexas? Ao longo do presente ensaio as autoras buscarão, a partir do contributo de diversos especialistas nacionais e estrangeiros, verificar em que medida essa resposta será positiva ou negativa.

Com o avanço assinalado no domínio de novas tecnologias, momento em que setores da humanidade começaram a se ver como capazes de alçar caminhos outros e novos espaços, com o surgimento de um vertiginoso progresso técnico que conferiu a uns maior autonomia e poder sobre outros, a humanidade passou por transformações sociais em que, muitas vezes o desrespeito ao outro passou a ser condição habitual.

Não é difícil constatar ao longo da história da formação das sociedades, uma espécie de globalização que, ao mesmo tempo que rompe barreiras e implementa novos paradigmas, também aumenta a exploração e a subordinação dos mais fracos. Isso, cumpre lembrar, se dá em nome de uma “evolução” e de um “progresso” sem que, objetivamente, se possa observar qualquer compromisso ou pretensão em moldar indivíduos mais preocupados com a máxima proteção dos direitos humanos.

[…] se por um lado o enaltecimento da ideia de poder do ser humano enquanto sujeito configura-se como a base da igualdade de direitos entre os cidadãos, mesmo não pertencentes à nobreza ou ao clero, por outro, e paradoxalmente, este promove o aniquilamento da subjetividade. De fato, foi estabelecido um pretenso saber jurídico universal partindo da concepção segundo a qual seria possível a existência de sujeitos de conhecimento neutros e apartados do tempo e do espaço.

Esse processo desaguou nas ondas de um racionalismo exacerbado e de uma excessiva perspectiva cartesiana de mundo, na qual a realidade se fragmenta para ser objeto de análises que não necessariamente refletem o todo (HOGEMANN, 2016, p. 1.788).

Diante disso, propõe-se uma reflexão sobre a necessidade de pessoas mais críticas e reflexivas quanto ao papel assumido na sociedade, para que se possa formar indivíduos comprometidos com um agir ético a fim de que os direitos do homem, considerados fundamentais, que foram construídos ao longo da história, possam continuar rompendo com as estruturas de opressão e lutando em defesa de novas liberdades, mormente diante dos tremendos avanços propiciados pelo desenvolvimento tecnológico que, se por um lado instrumentaliza a humanidade com facilidades nunca dantes experimentadas, de outro, traz consequências que podem se revelar mais que nefastas e podem comprometer a própria sobrevivência do ser humano no planeta.

O estudo aqui desenvolvido se volta para um enfoque relativo aos efeitos possíveis efeitos danosos oriundos do progresso da tecnologia quando estes se voltam tão somente para o aprimoramento das técnicas em si e para o lucro em si, em detrimento do respeito à pessoa humana, e dos ideais duramente conquistados e consagrados no texto da Declaração Universal do Direitos Humanos de 1948 que encontram eco no texto constitucional brasileiro de 1988 e apontam na direção compromissória da construção de uma sociedade mais solidária e mais justa, onde desenvolvimento tecnológico combina com respeito aos seres vivos e ao meio circundante e, para tal, utiliza-se a figura metafórica relacionada à figura mitológica grega de Prometeu e a criação do homem na perspectiva da hýbris.

Para atingir o objetivo proposto, utiliza-se fonte de pesquisa imediata formal, tipo de pesquisa, quanto à abordagem do problema, qualitativa, e, quanto à coleta de dados, bibliográfica, na medida em que se trata de uma pesquisa descritiva, que utiliza a metodologia dialética aplicada à revisão bibliográfica, a fim de promover o diálogo entre os doutrinadores selecionados para finalizar por entender que toda e qualquer empreitada envolvendo o desenvolvimento tecnológico deve ter em conta o integral respeito à dignidade humana, na medida em que, qualquer finalidade que se distancie dessa premissa pode se configurar como forma de opressão aos menos favorecidos.

2 O MITO DE PROMETEU E OS DIREITOS DE LIBERDADE

No mito da criação do homem, contado por Protágoras, no diálogo de Platão, na obra de mesmo nome, os inconvenientes do desenvolvimento da técnica sem um correspondente progresso ético que alcance o respeito aos direitos, individualmente considerados, podem trazer um prejuízo imenso à pessoa humana. É que não há que se falar em evolução quando não uma transformação social ética que acompanhe tal mudança.

Conforme o relato mitológico, chegado o tempo da criação dos animais Zeus encarrega o titã Prometeu ( pro = antes e metheus = vidência, aquele que sabe antes) de distribuir os dons e mecanismos de defesa entre todos os animais, inclusive aos homens – que teriam sido criados do barro, feitos de terra e de suas próprias lágrimas[2]. Atarefado, Prometeu atende ao apelo de seu irmão Epimeteu, que insiste em se incumbir da missão. Epimeteu (o que age sem pensar) se precipita: garras, presas afiadas, força, agilidade, grande percepção visual, auditiva, faro acima do normal, capacidade de metamorfose, de penetrar no solo, de vôo, couro e escamas, plumas coloridas, carapaças, guelras e diversas qualidades foram distribuídas indistintamente.

Ocorre que quando concluiu Epimeteu sua tarefa percebeu que se havia esquecido dos seres humanos e que estes nasceriam como um mero bípede implume, nus, frágil e indefeso. Prometeu, prevendo o aniquilamento de sua criação, contrariando os conselhos de Zeus, que já havia lhe negado um apelo seu dessa natureza, então, no afã de resolver a situação em que ambos se encontravam decidiu subir ao Olimpo e subtrair de Hefaísto e Atenas o conjunto das técnicas, a saber, a capacidade inventiva dos meios próprios de sobrevivência, qualidade pertencente aos Deuses. Prometeu subtrai o fogo divino (conhecimento) e fornece aos homens, garantindo assim a sua superioridade sobre os demais animais: diante desse quadro Zeus não tardou a enviar Pandora como castigo.

Disso decorre que o progresso dos homens se deve à sua capacidade de juntos, em torno do calor do fogo, socializarem-se. Assim é que surgiu e foi compartilhada a linguagem, os numerais, a astronomia, a memória social, os agires morais: aprende-se a cozinhar, tecer, a produzir potes e tijolos de barro, a construir casas, a fundir os metais. A terra começa a ser arada e cultivada para o sustento de todos. No entanto, ainda que dotados de inteligência, autonomia da vontade, agudeza, coragem e outras qualidades, esses homens se sentiam miseráveis, pois inexistia a harmonia da convivência de todos entre si.

Sentindo-se penalizado da situação em que se encontrava a espécie humana, por sua total incapacidade de conviver harmonicamente uns com os outros, e com o descomedimento (hýbris) humano que poderia antecipar-lhes o aniquilamento ou algo pior (a profecia de Prometeu se cumprirá?), Zeus delegou a seu mensageiro Hermes a tarefa de distribuir igualmente entre todos os homens e mulheres pudor (aidós=vergonha, respeito) e justiça. Disse ainda que aqueles que não os tivessem, por se posicionarem contra o princípio unificador da sociedade, deveriam morrer. O que o arauto dos Direitos do Homem queria era assegurar aos homens a dignidade da liberdade.

Esse célebre mito ilustra, maravilhosamente, a realidade sistêmica da estrutura social: a ligação da técnica com o ideário e as instituições políticas e, em particular, o papel eminente da ética como fator da preservação na vida da terra (COMPARATO, 2016, p. 37). Fica clara a importância das ações éticas para que se possa perseguir ideais de crescimento econômico, o ser humano, nesse caso, deve ser preservado em toda a sua complexidade de pessoa humana.

Ao se traçar uma linha histórica visando compreender melhor a relação dos direitos humanos com o desenvolvimento ético-social, pode-se identificar ao final da Idade Média Europeia, o nascimento de um novo momento histórico, demarcado por características peculiares como a negação do velho mundo, que tinha por fundamento os dogmas da religião e a sabedoria da tradição, tomados como princípios da vida ética.

O indivíduo adquire, pela primeira vez, uma autonomia de vida que sempre lhe fora negada. Com a aceleração do ritmo de acumulação de conhecimento cientifico e do saber tecnológico, a humanidade se afirma, orgulhosamente, como “senhora e possuidora da natureza” (COMPARATO, 2016, p. 157).

O ser humano passa então a estruturar sua conduta a partir de valores e conceitos, o que suscita conflitos de ideias no plano da vida ética. Sobretudo passa-se a discutir acerca da liberdade do indivíduo humano e de seus direitos perante os outros e o Estado. Maquiavel (1469 – 1527) produz a primeira grande separação no sistema ético tradicional, que tinha, em suas premissas elementares, religião, moral e direito.

Em verdade, a modernidade inaugura uma nova concepção, produto de uma longa elaboração, iniciada já no final da Idade Média em bases culturais, filosóficas, sociais e históricas desde a Antiguidade. Essa nova concepção situa a comunidade como sociedade construída a partir de um alicerce contratual, como resultado da experiência e do empenho cultural de pessoas titulares de uma racionalidade que exercitam por meio de um acordo voluntário.

A causa e consequência dessa mudança estão configuradas na emergência do indivíduo, posição de pessoa dotada de subjetividade superando as concepções da Antiguidade Clássica e da Idade Média cristã, localizadas, respectivamente, na polis e na “igreja universal”. A figura da pessoa como valor essencial de todo um complexo ético-jurídico tornou-se sólida tão somente com a união das filosofias antigas, em particular a tradição estoica com uma ainda principiante teologia cristã.

Os direitos do homem nasceram no discurso político moderno como um pressuposto necessário para a autonomia dos particulares em face do Estado, bem delimitado por governos absolutistas numa Europa afetada pela expansão capitalista. A ideologia liberal moderna incorporada nas Declarações tem como ponto de partida os direitos naturais do homem tal como estabelecidos na teoria do contrato social, justificados pela natureza racional do homem, a serviço de um projeto liberal e burguês.

Essa racionalidade o faz senhor e titular de si mesmo (jus in se ipsum), como também de suas escolhas. Eis o motivo pelo qual seria uma violência impedir o homem de livremente fazer uso de sua razão e, na medida em que os direitos naturais procedem da hipótese (real ou imaginária) de um estado pré-social ou de natureza, a sua concepção antropológica fundante é a do indivíduo que existe e subsiste sozinho; nesse constructo a sociedade não é o momento de realização do humano, tornando a alteridade uma noção meramente formal, quando não inconveniente.

Decorre daí o surgimento de inúmeros pensadores que trazem a lume suas ideias sobre o que será o direito do homem e como este pode ser alcançado; será esse direito pertinente a todos ou só a uma parte seleta da sociedade? Em muitos sistemas e formas de governo percebe-se que tais ideias passam pelas considerações do direito à liberdade e do direito à igualdade.

A liberdade é o primeiro valor que a Revolução Francesa defendeu, contrariando a ideia de liberdade dos antigos, que correspondia à liberdade política de que desfrutavam os cidadãos de Atenas, que eram homens livres, diferentemente dos escravos, das mulheres, dos metecos e das crianças[3]. Isso significava que podiam participar, deliberar e tomar decisões sobre a organização da vida da cidade, ou, melhor dizendo, possuíam direito de participação nos assuntos públicos – a ideia de liberdade, portanto, estava ligada à noção de bem-estar geral da comunidade.

Na Idade Moderna começa o entendimento de que o bem-estar do indivíduo não está ligado ao bem-estar da comunidade como um todo; nasce a ideia de liberdade como independência, estreitamente ligada ao individualismo. Naturalmente desponta entre os modernos as liberdades de consciência, de expressão, de associação, de reunião etc.

Acerca deste conceito de liberdade na era moderna a filósofa Adela Cortina (2005, p. 184) assim se posiciona: “Mas entender por “liberdade” exclusivamente esse tipo de independência dá lugar a um individualismo egoísta, à defesa encastelada de indivíduos fechados sobre seus próprios interesses”. E prossegue com esta afirmação: “Por isso, embora a liberdade como independência seja um valor muito apreciado, irrenunciável, urge na educação transmitir cognitiva e sensivelmente algo tão óbvio como o fato de ela não se manter sem solidariedade” (2005, p. 184-185).

No século XVIII, com o iluminismo, nasce uma terceira noção de liberdade conforme esclarece Comparato (2015, p. 77): “O núcleo do princípio axiológico de liberdade é a ideia de autonomia, isto é, de submissão de cada qual às normas por ele editadas. Uma sociedade livre é aquela que estabelece leis que ela própria estabelece”.

No entanto, é importante entender bem a ideia de autonomia porque, à primeira vista, pode parecer que “atribuir-me minhas próprias leis” significa “fazer o que me venha à cabeça”, e nada mais distante da realidade (CORTINA, 2005, p. 185). A autora entende que conquistar a liberdade como autonomia exige cultivo e aprendizagem, porque esse é um de nossos melhores valores. Assim, a autonomia deve respeitar as limitações impostas por uma moralidade de escolha:

O termo autonomia tem sido utilizado com uma diversidade infinita de significados por diferentes escolas éticas. Apesar de permitir diferentes interpretações sobre o conceito de autonomia, na filosofia moral contemporânea todas essas teorias concordam que duas condições sejam necessárias para seu exercício. Em primeiro lugar, a condição de liberdade, entendida como uma relação de independência a qualquer tipo de controle, vista não como um conceito fechado, como uma autodeterminação absoluta, mas como um problema sempre aberto à determinação da medida, da condição ou da moralidade da escolha que a possa garantir. Em segundo lugar, a capacidade pessoal do agir intencionalmente, o agir responsável. (HOGEMANN, 2013, p. 64).

A expressão autonomia, sem mais, não significa uma escolha livre descolada de responsabilidade pelo respeito à pessoa. Deve ser compreendida de acordo com as disposições que conferem sentido à dignidade humana.

3 O VALOR DA IGUALDADE EM DIGNIDADE

A Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 aprovou o dispositivo da declaração de princípios, sendo estes consignados nos artigos, I “Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espirito de fraternidade” e VI: “todo homem tem direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei”. Constituem princípios soberanos no que diz respeito aos direitos do homem.

É em função desse princípio fundamental que versa sobre a preeminência do ser humano no mundo, como fonte de todos os valores, que se podem julgar as novas questões ético-jurídicas, suscitadas pelo incessante progresso técnico (COMPARATO, 2016, p. 243).

Foi durante o período axial da História[4] que despontou a ideia de uma igualdade essencial entre todos os seres humanos; inobstante, foram necessários vinte e cinco séculos para que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, assim a proclamasse. (COMPARATO, 2015, p. 24).

Em uma reflexão de fundamental importância, nos dizeres de Celso Lafer, sobre o princípio da isonomia como critério do Estado-nação e sobre a condição dos apátridas, Hannah Arendt condensa uma conclusão básica sobre os direitos humanos. Entende a autora que não é verdade que “todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos”, como afirma o art. 1º da Declaração Universal dos Direitos do homem da ONU, datada de 1948. Cumpre também considerar o disposto na Declaração da Virgínia de 1776 (art. 1º), ou na declaração francesa de 1789 (art. 1º). Nós não nascemos iguais: nós nos tornamos iguais como membros de uma coletividade em virtude de uma decisão conjunta que garante a todos direitos iguais.

Para ela igualdade não é um dado – ela não é physis, nem resulta de um absoluto transcendente externo à comunidade política. Ela é um construído, elaborado convencionalmente pela ação conjunta dos homens através da organização da sociedade política. (LAFER, 2009, p. 150).

No que toca ao princípio da igualdade, as revoluções do final do século XVIII foram determinantes para estabelecer, o fim dos privilégios estamentais e a igualdade individual perante a lei. Surge dessa forma uma nova sociedade, não mais dividida por estamentos, mas sim separada por classes.

Os grandes pensadores do iluminismo, que valorizaram a ciência positiva como uma via de libertação dos seres humanos do peso das tradições, religiões e costumes, impulsionaram os homens a uma forma maior de dominação, em que pese a seus tão nobres ideais. Os dogmas positivistas do cientificismo e da neutralidade científica absoluta professavam: o conhecimento científico expressa verdades absolutas e inabaláveis e, por isso, constitui a forma válida por excelência de conhecer; ademais, o cientista é completamente neutro, do ponto de vista ideológico, na apreensão do objeto. Dessa forma, os ideais de igualdade foram seriamente comprometidos.

O que os homens querem aprender da natureza é como usá-la a fim de dominá-la mais completamente e aos outros seres humanos. Essa é a única finalidade. O iluminismo, ele próprio, extinguiu, sem piedade, todo traço de sua própria consciência”. Na medida em que a busca de conhecimento científico se acoplou com a expansão da produção burguesa de mercadorias, os seres humanos se transformaram sempre mais em apêndices da máquina que gira e esmaga sem cessar. (THOMPSON, 1990, p. 141).

Embora a esfera pública burguesa fosse, em princípio, aberta a todos os indivíduos particulares, ela estava restrita a um setor limitado da população. Os critérios efetivos de admissão no debate público eram a propriedade e a educação. Mais uma vez se estava diante do privilégio de determinado grupo. “A civilização burguesa separou nitidamente, como disse o jovem Marx, os direitos do homem dos direitos dos cidadãos, e concebeu aqueles a modo de divisas demarcatórias entre dois terrenos, pertencentes a proprietários distintos.” (COMPARATO, 2015, p. 78).

Para corrigir e superar o individualismo próprio da civilização burguesa, fundada nas liberdades privadas e na isonomia, a partir do século XIX, o movimento socialista faz atuar o princípio da solidariedade como dever jurídico.

Com base no princípio da solidariedade, passaram a ser reconhecidos como direitos humanos os chamados direitos sociais, que se realizam pela execução de políticas públicas, destinadas a garantir amparo e proteção social aos mais fracos e mais pobres; ou seja, aqueles que não dispõem de recursos próprios para viver dignamente. Os direitos sociais englobam, de um lado, o direito ao trabalho e os diferentes direitos do trabalhador assalariado; de outro lado, o direito à seguridade social (saúde, previdência e assistência social), o direito à educação; e de modo geral, como se diz no Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 (art. 11), “o direito de toda pessoa a um nível de vida adequado para si próprio e sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como uma melhoria contínua de suas condições de vida”. (COMPARATO, 2015, p. 79).

O valor da igualdade, proclamado pela Revolução Francesa, tem, por sua vez, diferentes acepções, entre elas a igualdade de oportunidades, em virtude da qual as sociedades se comprometem a compensar as desigualdades naturais e sociais de nascimento, para que todos possam ter acesso a postos interessantes.

No entanto, todas essas noções de igualdade são políticas e econômicas, e fundamentam-se em uma ideia mais profunda: todas as pessoas são iguais em dignidade, fato pelo qual merecem consideração e respeito iguais. A igual dignidade das pessoas, que tem raízes religiosas e filosóficas, apresenta exigências de grande envergadura, tanto para as sociedades como para os educadores. Exige que as sociedades, além de garantir a igualdade perante a lei e a igualdade de oportunidades, também protejam os “direitos humanos de segunda geração” inerentes à ideia de cidadania social, porque são exigências morais, cuja satisfação é indispensável para o desenvolvimento de uma pessoa (CORTINA, 2005, p. 187).

O princípio da dignidade humana pressupõe uma qualidade que todos os indivíduos possuem em função de sua condição de humanidade, a saber, a dignidade. O princípio da dignidade abarca, por conseguinte, o princípio da igual dignidade. Todos são igualmente dignos. “O princípio fundamental que agora se mobiliza para estruturar um sistema de valores – die Basis fure in ganzes Wertsystem – é a dignidade da pessoa humana (Menschenwurde). Só esta ideia pode garantir e assegurar as condições políticas da paz, liberdade e igualdade” (CANOTILHO, 2012, p. 176).

Eis um problema que hoje suscita perplexidade: como pode o homem ser senhor de seu próprio destino quando não tem condições de fazer suas próprias escolhas? É possível falar em liberdade quando não se reconhece condição de igualdade em dignidade? É que liberdade pressupõe igualdade. O desenvolvimento da técnica deve portanto, sempre estar de acordo com a Dignidade da Pessoa Humana e com o respeito a complexidade da vida humana. A principal tarefa dos Poderes Públicos é zelar por essa proteção.

A propósito, vale transcrever o seguinte ponto de vista:

Hoje, em lugar de bons resultados para toda a comunidade, o sistema de propriedade industrial engendra concentração de poder econômico, com nula ou quase nula difusão de tecnologia. De um lado, grande parte dos avanços tecnológicos é mantida em segredo, sob o regime de Know-how. De outro lado, a pesquisa tecnológica demanda investimentos cada vez mais elevados, os quais somente os Poderes Públicos e os grandes grupos empresariais podem realizar. Mas como a lógica da lucratividade e não do serviço coletivo, eles se fazem, cada vez mais, por iniciativa e no exclusivo interesse empresarial, com vistas à dominação do mercado. Mesmo quando efetuados pelo Estado, tais investimentos acabam por beneficiar, quase que exclusivamente, as grandes empresas. (COMPARATO, 2016, p. 574).

Para formar um indivíduo apto a analisar criticamente a realidade social na qual está inserido, é necessário estimular o pensamento crítico, instigar o questionamento, o debate e a análise interdisciplinar dos fenômenos sociais. Uma sociedade democrática deve estar atenta à organização dos meios de comunicação; o debate público sobre as questões de interesse coletivo deve ser visto como um grande aliado na luta da coletividade contra os interesses da classe empresarial.

O que significa, como é óbvio, que a verdadeira educação é de cunho moral e não técnico. A educação preocupa-se com a única finalidade que importa: o desenvolvimento harmônico de todas as qualidades humanas. A mera instrução, diferentemente, cuida dos meios ou instrumentos. Desviada de sua finalidade maior, ela pode criar autômatos, nunca cidadãos e homens livres (COMPARATO, 2016, p. 245).

A democratização dos meios de comunicação de massa representa, pois a condição sine qua non do efetivo exercício da soberania popular nos dias que correm. (COMPARATO, 2016, p. 575). Bobbio (2004, p. 70) afirma que “a esfera dos direitos de liberdade foi se modificando e se ampliando, em função de inovações técnicas no campo da transmissão e difusão das ideias e das imagens e do possível abuso que se pode fazer dessas inovações”.

O poder de libertação reside em uma comunicação incorporada de valores, e estes supõem a liberdade de escolha e criam deveres de condutas criando a sensação de responsabilidade; de outro modo, estar-se-á aumentando a desigualdade social e o conflito de todos contra todos, além, é claro de corroborar para a desordem econômica provocada pelas diferenças entre os iguais. Faz-se necessário aumentar a responsabilidade ética de cada indivíduo para que as mudanças não signifiquem a opressão daqueles menos favorecidos.

4 O DESENVOLVIMENTO TECNOLÓGICO E AS RELAÇÕES DE PODER

Conforme esclarece Bobbio (2004, p. 209), a relação política por excelência é uma relação entre poder e liberdade; entende o autor que há uma estreita correlação entre um e, outro e quanto mais estendido o poder de um dos sujeitos da relação, mais diminui a liberdade do outro sujeito, e assim, vice-versa.

É legítimo afirmar que, de acordo com a época, a demanda por novos direitos é uma forma de resistência do povo com relação àqueles que detêm o poder. Através do evolver da história pode-se constatar que a luta pelos direitos humanos teve como adversários: os poderes religiosos, políticos e econômicos, cada um a seu tempo e de acordo com determinado período da história.

Acontece que o saber tecnológico não é apenas condição de desenvolvimento dos sistemas de organização social, mas também um dos grandes instrumentos de exercício do poder (COMPARATO, 2016, p. 31). Afirma-se que a utilização do avanço da tecnologia como recurso de poder, surge na Europa e é considerada um dos principais elementos de diferenciação entre a antiguidade e a era moderna. Desde o dia em que Bacon disse que a ciência é poder, o homem percorreu um longo caminho (BOBBIO, 2004, p. 210).

Se entendidos nos termos propostos por Bobbio, os direitos de nova dimensão são conceitualmente definidos como aqueles advindos do perigo proveniente do aumento do progresso tecnológico; em outras palavras, esse desenvolvimento sem um correspondente avanço ético representa uma ameaça aos direitos à vida, à liberdade e à segurança. O autor prossegue exemplificando:

Bastam três exemplos centrais no debate atual: o direito de viver em um ambiente não poluído, do qual surgiram os movimentos ecológicos que abalaram a vida política tanto dentro dos próprios Estados quanto no sistema internacional; o direito à privacidade, que é colocado em sério risco pela possibilidade que os poderes públicos têm de memorizar todos os dados relativos à vida de uma pessoa e, com isso, controlar os seus comportamentos sem que ela perceba; o direito, o último da série, que está levantando debates nas organizações internacionais, e a respeito do qual provavelmente acontecerão os conflitos mais ferrenhos entre duas visões opostas da natureza do homem: o direito à integridade do próprio patrimônio genético, que vai bem mais além do que o direito `a integridade física, já afirmado nos arts. 2 e 3 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. (BOBBIO, 2004, p. 210).

No final do ano de 2013 os Estados Unidos se viram envolvidos em um imenso escândalo sobre coleta de dados de seus cidadãos a partir de registros telefônicos e servidores de empresas de internet. O Tribunal de Vigilância da Inteligência Estrangeira dos Estados Unidos, órgão responsável por supervisionar atividades de vigilância, justificou como legal a prática da Agência de Segurança Nacional de espionar registros de telefonemas nos Estados Unidos[5], entendendo não haver violação a direitos básicos, isso porque, os juízes declararam que cada registro de chamada única era relevante para a luta daquele país contra o terrorismo, e, portanto, legal para que agências de espionagem os coletassem em massa.

O Conseil PontificialJustice et paix” em mensagem pela Jornada Mundial da paz em 1999, afirmou que o desenvolvimento da tecnologia, a despeito, sem dúvida de ser um aliado humano, uma vez que torna mais fácil o trabalho, além de perfeiçoar, acelerar e multiplicá-lo, também promove um aumento na quantidade de produtos do trabalho, e também melhora a qualidade de muitos deles. Inobstante, entendem ser um fato, em alguns casos, de que este aliado e a técnica podem também transformar-se em um oponente humano; por exemplo, quando a mecanização remove qualquer satisfação pessoal e qualquer incentivo à criatividade e responsabilidade ou quando remove muitos trabalhadores, ou, pela exaltação da máquina, reduz o homem para ser o escravo[6].

Importa sublinhar o contraponto entre a técnica e a ética construído por um importante jurista:

A técnica guia-se, pois, exclusivamente, pelo valor da utilidade ou eficiência dos meios de produção de um resultado, ao passo que a ética acentua o fim último visado pelo agente e o seu valor, relativamente a outras pessoas que com ele tratam, ou em relação à coletividade.” (COMPARATO, 2016, p. 504).

E prossegue afirmando que: “Aí está a diferença específica entre a norma ética e a regra técnica. Esta última diz respeito aos meios aptos a se conseguir determinado resultado. Mas este resultado, obviamente desejado pelo agente, pode ser objetivamente bom ou mau, para outros indivíduos ou para a coletividade em geral.”

O avanço da tecnologia abala o sistema de valores éticos da sociedade, uma vez que “ a utilidade pura e simples, a capacidade de produzir tecnicamente qualquer resultado, tende a ser a nova deusa, venerada em todos os quadrantes do globo” (COMPARATO, 2016, p. 34). Além, é claro, de revolucionar a forma de exercício de poder sobre a natureza e sobre a sociedade:

O coro não se deixa, porém, ofuscar pela contemplação desse dom excepcional que, segundo o ensinamento do mito de Prometeu, é de natureza divina. Ele conclui sua declamação sobre esse assunto, para lembrar que, se o homem é dotado de um engenho técnico que ultrapassa todas as expectativas, ele é sempre livre de utilizá-lo para o bem ou para o mal (COMPARATO, 2016, p. 581).

Como se percebe, é possível inferir que esse “desenvolvimento”, quando não acompanhado de um respeito ao indivíduo humano, pode tornar-se uma nova forma de opressão, uma vez que aqueles que detêm o poder de criação também mantêm o poder sob toda uma classe de pessoas. Conforme define Young, o termo “grupo de oprimidos” é aquele “grupo que compartilha características físicas, culturais ou econômicas e que é sujeito, aos ganhos econômicos, políticos e sociais de um grupo privilegiado, por meio de um sistema que institucionaliza a exploração, a marginalização, o empobrecimento, a privação ou a vulnerabilidade à violência”. (YOUNG, 2006, apud LOURENÇO, 2008, p. 288).

Os dois últimos séculos foram a melhor ilustração histórica dessa grande verdade. O homem tornou-se, definitivamente, “senhor e possuidor da natureza”, inclusive de sua própria, ao adquirir o poder de manipular o patrimônio genético. Mas, ao mesmo tempo, pela espantosa acumulação de poder tecnológico, jamais o engenho humano foi capaz de provocar uma tal concentração de hecatombes, e aviltamentos; nunca como hoje a humanidade dividiu-se, tão profundamente, entre a minoria opulenta e a minoria indigente. (COMPARATO, 2016, p. 580).

Os direitos do homem constituem no dia de hoje um novo ethos mundial. Naturalmente, é necessário não esquecer que um ethos representa o mundo do dever ser (BOBBIO, 2004, p. 210). O ponto de partida para a reflexão é um fato de razão: o fato de que todos os seres humanos têm consciência de certos comandos que experimentam como incondicionados, isto é, os imperativos categóricos; todos temos consciência do dever de cumprir algum conjunto de regras (CORTINA, 2005, p. 69). Disso decorre que se deve cumprir tudo aquilo que a razão apresenta como dever.

O preâmbulo da Constituição Federal de 1988, em sintonia com as Declarações de Direitos Humanos, tem delineados objetivos para a assembleia constituinte, que abrangem uma amplíssima gama de possibilidades: “assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”.

A Carta Magna estabelece, em seu art. 3º, incs. I, II e IV, e em seus arts. 7º e 37, princípios materiais e formas de liberdade e de igualdade, assim como princípios redistributivos. No art. 3º aponta como objetivo fundamental da República a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; além do que, compromete-se com a erradicação da pobreza e da marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais, ainda, promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade ou quaisquer outras formas de discriminação.

A história dos Direitos Humanos vem se construindo ao longo do tempo através de lutas e resistências É preciso considerar que os documentos que se prestam a preservar os direitos humanos estão recheados dessa ética de proteção. Inobstante, torna-se necessário um maior cuidado para que tais mandamentos não se tornem letra morta.

Não será demais lembrar que a Declaração Universal dos Direitos do Homem começa afirmando que o “reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui os fundamentos da liberdade, da justiça e da paz no mundo”.

A propósito, cabe transcrever o seguinte comentário:

O sistema ético em vigor na sociedade exerce sempre a função de organizar ou ordenar a sociedade, em vista de uma regra geral. Não existe ordem social desvinculada de um objetivo último, pois é justamente em função dele que se pode dizer se o grupo humano é ordenado ou desordenado; se se está diante de uma reunião ocasional de pessoas, ou de uma coletividade organizada (COMPARATO, 2016, p. 23).

As transformações do mundo precisam estar de acordo com o desenvolvimento desejado, ou seja, sempre primando pelo respeito à dignidade humana e voltado para a sustentabilidade, apostando e confiando na vitória de um desenvolvimento sólido para o planeta e seus habitantes.

Nas palavras de Bobbio (2004, p. 211), não basta confiança para vencer. “Mas se não se tem a menor confiança, a partida está perdida antes de começar. Depois, se me perguntassem o que é necessário para se ter confiança, eu voltaria às palavras de Kant: conceitos justos, uma grande experiência e, sobretudo, muito boa vontade”.

Por esses motivos expostos, devem os cientistas dedicados à busca de conhecimento procurar, com primazia, pautar-se por uma ética que esteja resguardada pela responsabilidade e pela precaução.

A questão é que, em geral, as pesquisas científicas não costumar estar reguladas ou atreladas a códigos de ética específicos que, fundamentalmente, acautelem e evitem experimentos ou os usos impróprios de descobertas laboratoriais que se revelem prejudiciais ou, por vezes, mesmo flagelantes ao meio ambiente ou à vida humana.

Na medida em que a globalização é uma realidade que está dada por todos os quadrantes da Terra, conectando intrinsecamente os destinos dos seres humanos e não-humanos do planeta, a necessária discussão tanto pública quanto privada, no nível das entidades acadêmico-científicas, sobre a ética nas pesquisas científicas e suas aplicações técnicas deve envolver todos os países, desde os mais até os menos desenvolvidos.

A ciência necessariamente precisa estar a serviço da melhoria da qualidade de vida do ser humano e não da degradação de sua condição ou do ambiente que o cerca; razão pela qual ela deve cumprir a tarefa da redução, quiçá da supressão, e não do aprofundamento das desigualdades sociais. O acesso democrático aos avanços tecnológicos configura-se como um direito fundamental a ser garantido e consagrado a todos, sem qualquer distinção.

A Declaração de Budapeste, de 28 de junho de 2002, evidenciou uma considerável sensibilidade no que diz respeito à dimensão ética da ciência e da tecnologia, ao dispor que a ciência tem que ser percebida como um bem comum de toda a humanidade e suas aplicações precisam estar a serviço de propósitos humanitários. No entanto, a obviedade da menção expressa de tal propósito somente reforça o sentimento de que, infelizmente, esse fato ainda se situa tão somente no âmbito do senso comum; porém, conferir efetividade à letra da norma já é outro assunto. A Declaração ressalta, por exemplo, o acesso à educação, desde a infância, como um dos direitos humanos, apontando a educação científica como essencial ao desenvolvimento humano. Desse modo, a ênfase atual da ciência aplicada deve ser a da redução da pobreza em todos os níveis na sociedade mundial e elevar os padrões de vida a patamares que sejam considerados minimamente decentes.

Cumpre frisar que o texto da Constituição da UNESCO para a ciência, a educação e a cultura ressalta a importância da solidariedade moral e intelectual entre os povos do mundo. Essa noção funda o embasamento do que se considera a “cultura de paz”. Mas a exata tradução dessa ideia de cultura da paz em termos verdadeiros, nos dias de hoje, urgente e necessária à cooperação mundial entre cientistas e pesquisadores de todos os cantos do planeta, unidos por um denominador comum pode ser assim condensada: uma ética do respeito à vida e às pessoas.

5 Conclusões

O presente artigo foi iniciado reportando-se ao mito da hýbris que dá conta da criação do ser humano na mitologia grega, contada pelo titã Prometeu, que vê sua criação superar seu criador e desvirtuar-se após receber o fogo do conhecimento.

Prometeu em sua punição, acorrentado à rocha no Cáucaso, em sua grande dor constata que os seres humanos, vaidosos, bélicos e também como ele, extremamente presos à matéria, os seres humanos, mesmo animados pelo fogo/conhecimento divino, possuem um espírito ressentido, guiado por um intelecto revoltado. Com a imaginação assim exaltada, não mais os surpreende sucumbir à perversão. Seja como opressores ou como oprimidos, se degradam em sua própria efemeridade. Somente graças a intervenção de Zeus, por intermédio de Hermes, é que os seres humanos receberão um corpus de direitos que lhes garantirão justiça e liberdade, ou seja dignidade humana, para contrabalançar toda a hýbris existente e que poderia levar-lhes ao aniquilamento.

Infere-se que, ao longo da história, os direitos de liberdade assumiram, de acordo com o evolver da história, distintas características. Por exemplo, ao final da Idade Média europeia, o nascimento de uma nova era, tem como características o rompimento com o Velho Mundo, e seus fundamentos, quais sejam, a religião e a sabedoria da tradição como princípios da vida ética. O homem passa então a estruturar sua conduta a partir de valores e conceitos, o que suscita ideias no plano da vida ética.

A liberdade como um dos valores mais elementares da Revolução Francesa, implicou a ideia de autonomia, ou seja, a capacidade do ser humano de estabelecer suas próprias normas e de se autodeterminar a partir delas. Contudo, essa autonomia, não significava uma escolha livre descomprometida com a responsabilidade congruente com o respeito à pessoa. Deve ser compreendida de acordo com os mandamentos que reconhecem ou enfatizam a dignidade da pessoa humana.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, em seu art. 1º assinala a toda a humanidade o direito fundamental de igualdade em dignidade e direitos e em seu art. 6º preceitua que o indivíduo humano tem direito de ser reconhecido como pessoa perante a lei. Entende-se que sendo esse um princípio fundamental da preeminência do ser humano no mundo, atua como fonte de todos os valores, a partir do qual é possível determinar as novas questões éticos-jurídicas, suscitadas pelo desenfreado desenvolvimento técnico.

Eis um problema que hoje suscita perplexidade: como pode o homem ser senhor de seu próprio destino quando não tem condições de fazer suas próprias escolhas? É possível falar em liberdade quando não se reconhece condição de igualdade em dignidade? É que liberdade pressupõe igualdade, respeito e solidariedade. Portanto, um desenvolvimento de qualquer monta que venha a ser que não tenha em conta o pressuposto essencial do aidós e da justiça determinados milenarmente pelo Zeus mitológico, não habilita a humanidade a alcançar seu Olimpo, seja ele qualquer que seja. Ou, em outras palavras, a saída nunca será individual. Ou será coletiva, ou não haverá saída. Razão pela qual os desígnios dos Direitos Humanos se revelam obrigatoriamente necessários para a sobrevivência humana.

A missão dos Poderes Públicos é preparar a de cidadãos para a vida e empreender a tarefa de instruir para que estes sejam capazes de tomar suas próprias decisões e mudar, se for necessário, fortalecendo, através do debate público, bons resultados para a toda a coletividade.

A demanda por novos direitos é uma forma de resistência do povo com relação àqueles que detêm o poder. Através do evolver da história pode-se afirmar que a luta pelos direitos humanos enfrentou diversos poderes, a saber, poderes religiosos, políticos e econômicos, cada um de acordo com determinado momento da história.

Os direitos humanos, construídos ao longo dos tempos, hoje constituem a espinha dorsal de todo ordenamento jurídico. Os direitos fundamentais, a liberdade, a igualdade, bem como a fraternidade enunciam o comando de que qualquer empreitada do desenvolvimento tecnológico deve considerar prima facie o respeito integral à dignidade humana, uma vez que, qualquer finalidade que se distancie dessa premissa pode tornar-se uma nova forma de opressão àqueles menos favorecidos.

O princípio da realização do interesse próprio e imediato de cada indivíduo, em detrimento do bem da coletividade, encontra-se em desacordo com a nova ordem mundial, qual seja, com a progressiva formação do conjunto dos direitos da humanidade e da dignidade da pessoa humana, o grande lema a nortear a luta no combate ao individualismo exacerbado e do confronto sistemático do interesse material como fim último da vida humana, desaguando na luta incessante contra a desigualdade social.

O progressivo domínio das técnicas que nos leva a repensar o mito de Prometeu deve, obrigatoriamente, caminhar de acordo com a ética dos direitos do homem, que se encontra disposta em todas as declarações solenes de direitos humanos, inviabilizando, dessa forma, que tais documentos se tornem letra morta.

6 Referências

ARISTÓTELES, Ética a nicômaco, SP, Martin Claret, 2016.

APPLE, Michael W., BALL, Stephen J.; GANDIN, Luís Armando. Sociologia da Educação: Análise Internacional. Organizadores Cristina Monteiro, tradução revisão técnica, Luís Armando Gandin, Porto Alegre, Penso, 2013.

BOBBIO, Norberto, A era dos direitos, SP, Campus, 2014.

CANOTILHO, J.J.Gomes, “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historiciedade constitucional, 2º Edição, Coimbra, Edições Almedina, AS, 2012.

COMPARATO, Fábio Konder, A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo, Editora Saraiva, 2015.

COMPARATO, Fábio Konder, Ética: direito, moral e religião no mundo moderno, 3º edição. São Paulo, Companhia das Letras, 2016.

CORTINA, Adela, NAVARRO, Emílio Martinez, Ética, 5º Edição, São Paulo, Edições Loyola, 2013.

CORTINA, Adela, Cidadãos do mundo: para uma teoria da cidadania, São Paulo, Edições Loyola, 2003.

LAFER, Celso, A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt, 7ª. reimpressão, São Paulo, Companhia das Letras, 2009.

HOGEMANN, Edna Raquel Rodrigues Santos, Conflitos bioéticos: clonagem humana, 2ª. Edição, São Paulo, Editora Saraiva, 2013.

HOGEMANN, Edna Raquel Rodrigues Santos, “A fragilidade da noção de direitos humanos no marco da crise dos fundamentos da razão moderna”, in Quaestio Iuris, v. 09, n. . 04, Rio de Janeiro, 2016, pp. 1787-1805.

THOMPSON, John B, Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa, 5ª. Edição, Rio de Janeiro, Editora Vozes, 1995.

Notas de Rodapé

[1] Doutora em Direito (UGF), professora associada permanente do Programa de Mestrado em Direito e Decana, da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO. Coordenadora do Grupo de Pesquisa Direitos Humanos e Transformação Social0 GPDHTS(CNPq). E-mail: ershogemann@gmail.com.

[2] A analogia entre os vocábulos correspondentes a terra (do latim, humus) e homem é recorrente. Os helenos acreditavam que uma centelha divina, pois imortal, percorria e se aprofundava por toda a terra geratriz. E, diversas são as “explicações” simbólicas da história evolutiva do gênero humano: no mito judaico-cristão, Deus é único e supremo criador dos homens, já no no paganismo grego é Prometeu o criador e benfeitor da humanidade.

[3]Há na espécie humana indivíduos tão inferiores a outros como o corpo é em relação à alma, ou a fera ao homem; são os homens nos quais o emprego da força física é o melhor que deles se obtém. Partindo dos nossos princípios, tais indivíduos são destinados, por natureza, à escravidão; porque, para eles, nada é mais fácil que obedecer. Tal é o escravo por instinto: pode pertencer a outrem (também lhe pertence ele de fato), e não possui razão além do necessário para dela experimentar um sentimento vago; não possui a plenitude da razão”. (ARISTÓTELES, 2016, p. 18).

[4]Numa interpretação que Toynbee considerou iluminant, Karl Jaspers sustentou que o curso inteiro da História poderia ser dividido em duas etapas, em função de uma determinada época, entre os séculos vii e ii a.C., a qual formaria, por assim dizer, o eixo histórico da humanidade. Daí sua designação, para essa época, de período axial (achsenzeit). Entre 600 e 480 a.C., coexistiram, sem se comunicarem entre si, alguns dos maiores doutrinadores de todos os tempos: Zaratrusta na Pérsia, Buda na Indía, Lao-Tsé e Confúcio na China, Pitágoras na Grécia e o Dëutero-Isaías em Israel. Todos eles, cada um a seu modo, foram autores de visões do mundo, a partir das quais estabeleceu-se a grande linha divisória histórica: as explicações mitólogicas anteriores são abandonadas e o curso posterior da História passa a constituir um longo desdobramento das ideias e princípios expostos durante esse período.” (COMPARATO, 2006, p. 38).

[5] http://www.conjur.com.br/2013-set-20/tribunal-eua-espionagem-nsa-nao-viola-direitos-basicos

[6]Le développement de l’industrie et des divers secteurs connexes, jusqu’aux technologies les plus modernes de l’électronique, spécialement dans le domaine de la miniaturisation, de l’informatique, de la télématique, etc., montre le rôle immense qu’assume justement, dans l’interaction du sujet et de l’objet du travail (au sens le plus large du mot), […] la technique […] [Elle] est indubitablement une alliée de l’homme. Elle lui facilite le travail, le perfectionne, l’accélère et le multiplie. Elle favorise l’augmentation de la quantité des produits du travail, et elle perfectionne également la qualité de beaucoup d’entre eux. C’est un fait, par ailleurs, qu’en certains cas, cette alliée qu’est la technique peut aussi se transformer en quasi adversaire de l’homme, par exemple lorsque la mécanisation du travail “ supplante ” l’homme en lui ôtant toute satisfaction personnelle, et toute incitation à la créativité et à la responsabilité, lorsqu’elle supprime l’emploi de nombreux travailleurs ou lorsque, par l’exaltation de la machine, elle réduit l’homme à en être l’esclave“. Disponível em: http://www.vatican.va/roman_curia/pontifical_councils/justpeace/index_fr.htmttps://www.google.com.br/#q=Les+doits+de+le+homme+et+le+eglise+,+conseil+pontifical+justice+et+paix+&spf=68. Acesso em: 21.04.2017.