Situações que Levariam à Incidência da Cláusula de Barreira da Ordem Pública na Insolvência Transnacional no Brasil – Art. 167-A, § 4º da Lei N. 11.101/2005, Introduzido pela Lei N. 14.112/2020
DOI: 10.19135/revista.consinter.00014.17
Recebido/Received 18.08.2021– Aprovado/Approved 09.11.2021
Daniel Carnio Costa[1] – https://orcid.org/0000-0002-1678-0326
Cristiano de Castro Jarreta Coelho[2] – https://orcid.org/0000-0002-5367-6691
Resumo
O Brasil internalizou a Lei Modelo da UNCINTRAL através da Lei n. 14.112/2020, lei que tem por objetivo, dentre outros, a cooperação internacional entre jurisdições que tratem da insolvência de uma mesma empresa transnacional. Porém, também foi internalizada a partir da Lei Modelo a chamada cláusula de barreira da ordem pública, exceção que permite que o juiz negue eficácia ao processo de insolvência estrangeiro que represente manifesta ofensa à ordem pública do Brasil. O presente artigo se estrutura a partir da constatação que a aprovação da lei é um compromisso internacional assumido pelo país e que a cláusula de barreira da ordem pública é um compromisso do país com seu próprio padrão civilizatório. Tomada tal premissa, propõe-se, com metodologia empírica hipotética, construir exemplos de manifesta ofensa à ordem pública. O escopo pretendido, portanto, é definir modelos teóricos para aplicação adequada da cláusula de barreira.
Palavras-chave: Insolvência Transnacional. Lei Modelo. BRASIL. Barreira Ordem pública. Hipóteses construídas.
Abstract
Brazil internalized UNCINTRAL’s Model Law through bill 14.112/2020, act that aims, among others, cooperation between the courts that deal with the insolvence of a cross-board company. However, it was also internalized the exception of public policy, mechanism that allows a brazilian judge deny recognition of a foreign insolvence suit that is manifestly contrary to the public policy. This paper is framed from a finding that the approval of that bill is an international commitment adopted by the country and that the exception of public policy is a compromise of the country with its own civilization standards. From this premise, our propose is, with an empiral methodology, construct examples of manifestly contrary to the public policy. The aim desired, therefore, is establish theorical models of an appropriate application of the public policy exception.
Keywords: Business Law. Cross-boarder Insolvency. Model Law UNCITRAL. Public policy exception. Construction of concrete hypotheses. Recognition. Foreign Suit. Denying recognition. Article 167-A, § 4º. Bill 14.112/2020.
Sumário 1. Introdução. 2. Premissa. 3. Hipóteses. 4. Fundamentação teórica a partir das hipóteses. 5. Considerações Finais.
1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho é parte de um esforço investigativo maior desenvolvido no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito Empresarial da Universidade Nove de Julho, iniciado a partir da internalização da Lei Modelo da UNCITRAL[3] no ordenamento jurídico brasileiro por meio da Lei n. 14.112/2020, que promoveu a incorporação do Capítulo VI-A na Lei n. 11.101/2005.
Dentre as inúmeras facetas assumidas pela novel legislação, prendeu nossa atenção a dificuldade[4] que poderia surgir na aplicação de um diploma tão inovador e fundamental para inserção do país cada vez mais na economia mundial. Isso porque se, de um lado, a simples internalização da lei já representa um verdadeiro compromisso adotado pelo país com a harmonização internacional em matéria de insolvência transnacional, de outro, a previsão expressa de impedimento de reconhecimento de um processo de insolvência estrangeiro por quebra da cláusula de ordem pública, cláusula aberta que é, se não bem interpretada, em consonância com o supramencionado compromisso, poderia levar a lei, na prática, ao seu desuso.
Daí a necessidade da doutrina conduzir a adequada formatação do modelo abstrato de incidência da cláusula de barreira da ordem pública, modelo este que, conforme experiência estrangeira, deve refletir o padrão civilizatório do país.
Nessa linha, com apoio na metodologia empírica, buscamos no presente trabalho construir exemplos hipotéticos – já que a lei ainda não teve tempo de permitir casos práticos passíveis de análise – nos quais a cláusula de barreira devesse ser adequadamente invocada, negando eficácia no país a um processo estrangeiro de insolvência transnacional.
E partir da análise desses casos construídos de forma hipotética, a intenção é auxiliar a doutrina a construir um modelo abstrato apto a orientar a incidência da cláusula, afastando-a, n’outra ponta, quando não revelada a necessidade de defesa da ordem pública nacional.
Em suma, a ideia, em razão da recente vigência da norma, é construir a cláusula de barreira de forma abstrata como deve ser, harmonizando o compromisso internacional do país com a segurança jurídica no campo da insolvência transnacional com o padrão civilizatório mínimo refletido na cláusula da ordem pública.
2 PREMISSA
Como colocado na introdução do presente trabalho, a aprovação no Brasil da Lei Modelo da UNCITRAL pela Lei n. 14.112/2020, colocou o país no rol de quase 50 países que buscam a coordenação uniforme no tratamento da insolvência de empresas transnacionais. Sobre a importância dessa internalização no Brasil da Model law, Daniel Carnio Costa[5] bem explica:
“Nesse sentido, o Brasil tornou-se o 49º país a adotar as regras da UNCITRAL para o tratamento de falências e recuperações empresariais com implicações transnacionais. A adoção dessas regras é absolutamente relevante para o desenvolvimento da economia brasileira, dotando o direito brasileiro de ferramentas adicionais para o tratamento da crise empresarial e dando aos investidores estrangeiros a segurança jurídica necessária para a atração do investimento internacional na atividade empreendedora brasileira. O mundo vive uma crise econômica sem precedentes em razão da pandemia da Covid-19. Diversos setores produtivos sofrem os efeitos das medidas de distanciamento social e do justificado temor de contaminação da população em geral. Mas, ainda assim, o Brasil mantém-se entre as maiores economias mundiais, ocupando desde 2017 um lugar entre as 10 maiores economias, segundo o World Economic Outlook Database do Fundo Monetário Internacional. Em momentos de crise, em que as empresas nacionais e multinacionais necessitam reestruturar suas cadeias produtivas – regional ou globalmente –, o investimento estrangeiro adquire importância ainda maior”.
Resta claro da lição acima colacionada, portanto, que não se trata de mais um transplante legal ou doutrinário[6] desconexo de alguma realidade social que fundamente a iniciativa, mas sim de uma marcante medida com um propósito claro: incluir o Brasil em um rol de países que procuram sincronizar e coordenar suas atuações jurisdicionais no campo da insolvência transnacional, em um esforço concreto tendente a promover ambientes econômicos seguros[7].
Se a legislação de insolvência transnacional, portanto, possui todo esse escopo desenhado, é preciso encontrar de forma adequada o espaço da cláusula de barreira da ordem pública nesse objetivo primordial da lei. Como o art. 167-A, § 4°, da Lei n. 14.101/2005, com redação trazida pela Lei n. 11.412/2020, internalizado tal qual formulada pela MODEL LAW, estatui que o “juiz somente poderá deixar de aplicar as disposições deste Capítulo se, no caso concreto, a sua aplicação configurar manifesta ofensa à ordem pública”, ganha, então, importância enorme investigar de maneira ampla – tanto no aspecto principiológico, quanto no aspecto prático, o exato alcance da negativa de reconhecimento a processo de insolvência estrangeiro.
Como dito, há um esforço maior desenvolvido nas investigações promovidas no Programa de Pós Graduação Stricto Sensu em Direito na Universidade Nove de Julho, onde se ocupam em vários artigos e trabalhos com todos os aspectos do alcance exato dessa cláusula de barreira. O presente artigo surgiu como parte de um trabalho maior no qual nos ocupamos desse aspecto empírico. Aqui trabalharemos hipóteses concretas especialmente pensadas para uma aplicação excepcional, qual seja, a negativa de reconhecimento do processo estrangeiro justamente por lesão à ordem pública, relegando para um trabalho futuro uma segunda parte reservada para hipóteses fronteiriças, que poderiam despertar fortes defesas nos dois lados dessa moeda.
A formulação de hipóteses concretas para aplicação da legislação em tela tem a função de demonstrar de forma prática o adequado locus de aplicação da cláusula de barreira, evitando que as discussões fiquem apenas reduzidas aos arquétipos abstratos. Se é verdade que a abstração permite a formulação de imperativos categóricos que facilitam uma aplicação geral, não é menos verdade que os exemplos tornam concretas as ideias, reforçando a teoria e evidenciando o acerto da escolha categórica. Essa é a linha estruturante do presente trabalho.
Como já adiantado acima, a UNCITRAL ao elaborar a Lei Modelo tinha por objetivo claro provocar uma coordenação uniforme entre os Estados Membros em casos de processos de insolvência de empresas transnacionais.
Em lugar do princípio do territorialismo que vigia de forma majoritária até então, onde cada país aplicava as regras próprias nos processos tramitando em seus tribunais, com eficácia, portanto, apenas interna, mas também sem caminhar para um impraticável princípio do universalismo, onde haveria uma jurisdição única internacional, a Lei Modelo propôs o pós-universalismo. Nos dizeres de Daniel Carnio Costa e Alexandre Nasser[8]:
“O Brasil evoluiu de um modelo territorialista de tratamento da insolvência transnacional, segundo o qual a filia, sucursal ou agência de um empresário estrangeiro seria considerada um estabelecimento autônomo em relação à matriz estrangeira para um modelo pós-universalista, sugerido pela UNCITRAL, que admite o reconhecimento do processo insolvência estrangeiro, desde que tramite pelo centro principal de atividades (COMI), mas que autoriza a verificação pelo Brasil de eventuais violações de normas de ordem pública” (grifei).
Como se vê, repita-se, a ideia é a coordenação entre processos estrangeiros, admitindo-se a produção de eficácia conjunta entre eles, a fim de que sejam atingidos todos os objetivos previstos nos incisos do art. 167-A da Lei Brasileira de Recuperação e Falência: cooperação entre as cortes (inc. I), segurança jurídica para a atividade econômica e para o investimento (inc. II), administração justa e eficiente da insolvência transnacional, no interesse de todos os envolvidos (inc. III), proteção e maximização dos ativos do devedor (inc. IV), promoção da recuperação da empresa em dificuldade (inc. V) e otimização na liquidação dos ativos da empresa em crise.
Todavia, também como destacado na doutrina supramencionada, essa coordenação não pode abrir mão da soberania do país, promovendo a manutenção dos elementos essenciais da nação através da cláusula de barreira da ordem pública[9], que, nos dizeres da Juíza Shelley C. Chapman da Corte de Falência do Distrito Sul de Nova York, no emblemático caso In re Rede Energia S.A[10], é bem resumida na seguinte frase:
“Foreign judgments “are generally granted comity as long as the proceedings in the foreign court ‘are according to the course of a civilized jurisprudence … the key determination required under section 1506 is whether the procedures used in the foreign jurisdiction “meet our fundamental standards of fairness”[11].
Em outras palavras, se ao mesmo tempo não se pode perder de vista a ratio da Lei Modelo de garantir uma cooperação internacional entre jurisdições, com o intuito de proteger a empresa transnacional, seu patrimônio e o interesse de todos os credores, a ideia ainda mantida é da soberania dos países se manifestando pela justa pretensão de manter intactas as bases jurídicas civilizatórias atingidas naquele. E essa proteção, que torna o regime aplicado pós-universalista, revela-se por intermédio da cláusula de barreira, assim redigida em nossa legislação (art. 167-A, § 4º, da Lei 11.101/2005): “O juiz somente poderá deixar de aplicar as disposições deste Capítulo se, no caso concreto, a sua aplicação configurar manifesta ofensa à ordem pública”. Vê-se, portanto, que a não aplicação do procedimento de insolvência transnacional se trata de exceção, mas de verificação necessária quando houver manifesta violação da ordem pública.
Conforme bem ensina Daniel Carnio Costa[12]:
“na esteira da jurisprudência das Cortes europeias e norte-americanas de insolvência transnacional, a não aplicação dessas regras somente se justifica se houver manifesta e evidente violação da ordem pública nacional. Nesse sentido, a simples contrariedade da decisão estrangeira com a legislação brasileira, por si só, não configura motivo bastante para não aplicação das regras de insolvência transnacional. É preciso que a decisão estrangeira configure uma clara e grave violação às políticas públicas adotadas pelo Brasil”.
Bem demonstrando o acerto desse posicionamento doutrinário, vale mais uma vez invocar o mesmo brilhante julgado mencionado linhas acima, no qual a Juíza Shelley C. Chapman deixa claro que a Lei Modelo, ao prever a negativa de reconhecimento ao processo estrangeiro por força de lesão à ordem pública, em função do advérbio “manifestamente”, pretende afastar a aplicação de lei estrangeira repugnante ao Direito Americano:
“However, the public policy exception is clearly drafted in narrow terms and “the few reported cases that have analyzed (section) 1506 at length recognize that it is to be Applied sparingly.” Toft, 453 B.R. at 193; see In re Ephedra Prods. Liab. Litig., 349 B.R. 333, 336 (S.D.N.Y. 2006) (the public policy exception embodied in section 1506 should be “narrowly interpreted, as the word ‘manifestly’ in international usage restricts the public policy exception to the most fundamental policies of the United States”) (citing H. R. Rep. N. 109-31(I), at 109, reprinted in 2005 U.S.C.C.A.N. 88, 172) (grammatical changes omitted); see also Fairfield Sentry, 714 F.3d at 139-40; Bd. of Dirs. of Telecom Arg. S.A., N. 05-17811, 2006 WL 686867, at *25 (Bankr. S.D.N.Y. Feb. 24, 2006) (“the foreign law …. must not be repugnant to the American laws and policies”)”[13]
Enfim, traçadas essas premissas básicas para compreensão das hipóteses idealizadas abaixo, mas com a séria advertência de que não se tem a pretensão de esgotar[14] a investigação do alcance total desta cláusula[15], trataremos de situações em que nos parece clara a violação da ordem pública, em função da cristalina lesão a padrão civilizatório jurídico brasileiro, justificando-se, assim, o não reconhecimento de processo estrangeiro de insolvência em solo nacional.
3 HIPÓTESES
Partindo-se da premissa disposta no capítulo anterior deste artigo, propõem-se três situações concretas de cristalina violação à ordem pública brasileira.
Numa primeira, poderíamos imaginar um processo estrangeiro de insolvência onde, deferida a recuperação, seguiu-se a homologação judicial do plano de reestruturação sem que fosse autorizada a participação formal com voto e com impugnações dos credores brasileiros da empresa, que expressamente pleitearam participação no procedimento.
Não seria incomum uma interpretação – de maneira equivocada, frise-se – de que a cláusula de barreira é uma oportunidade para simplesmente comparar o procedimento judicial do país estrangeiro com aquele previsto na legislação nacional. Fosse esse o alcance da norma em comento, salvo casos de transplante legal absoluto – inspiração direta e idêntica de legislações processuais –, arrisca-se dizer que raramente se conseguiria conceder eficácia local a um processo estrangeiro. Nos Estados Unidos da América, aliás, essa questão foi expressamente tratada quando do reconhecimento lá de recuperação judicial da empresa OAS (1ª Vara de Falência e Recuperação Judicial da Comarca de São Paulo com pedido e Recuperação Judicial) – In re OAS S.A., 533 B.R. 83 [16].
O que é necessário avaliar, portanto, é se o procedimento adotado no processo estrangeiro viola de alguma maneira uma garantia processual fundamental no Brasil, qual seja, repita-se, o patamar civilizatório judicial atingido no país. Esse é o ponto e não a pura e simples comparação procedimental.
No caso abstrato proposto, houve no processo estrangeiro evidente violação da ordem pública brasileira, o que impediria o reconhecimento dele por um juiz nacional. Como proposto, os credores brasileiros da empresa tentaram participar formalmente do procedimento estrangeiro sem êxito. Não puderam votar e não puderam impugnar as deliberações. Tem-se, assim, que a despeito de terem buscado defesa da posição jurídica deles, houve negativa de acesso, o que caracteriza manifesta violação da ordem pública no Brasil.
Uma homologação judicial assim prolatada no Brasil seria nula de pleno direito por inobservância da garantia constitucional do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV da CF). Não se admite em qualquer processo brasileiro que uma decisão seja proferida sem a oportunidade de manifestação de todas as partes envolvidas.
Nesse sentido, a hipótese tratada de credores brasileiros que tiveram acesso não franqueado ao plano de recuperação é fato jurídico causador de incidência da cláusula de barreira, já que dar eficácia a tal processo em solo brasileiro representaria manifesta ofensa à ordem pública.
Numa segunda situação hipotética, poderíamos imaginar um processo de insolvência estrangeiro onde a autoridade judicial responsável pelas determinações também figure formalmente como um dos credores da empresa transnacional.
Ao se buscar eficácia daquele processo no Brasil, parece cristalina a necessidade de se negar reconhecimento por manifesta ofensa à ordem pública. Uma das garantias fundamentais vigente no país, pilar de nosso Estado Democrático de Direito, é o pleno acesso ao Poder Judiciário, garantia prevista no art. 5°, inc. XXXV, da CF[17]. Porém, esse Poder Judiciário que garante os direitos fundamentais de todos no país, um dos Poderes da República (art. 2º da CF), à evidência, tem em sua formatação básica a imparcialidade.
A função estatal de dizer o Direito tem de ser exercida por um juiz imparcial sob pena de nulidade absoluta. Consequentemente, fica fácil concluir que no caso proposto a função estatal jurisdicional foi exercida por alguém que, em verdade, é interessado na lide instalada. Logo, não houve imparcialidade no desenvolvimento do procedimento estrangeiro, o que impede que seja concedida eficácia jurisdicional daquele no país, por manifesta ofensa à ordem pública brasileira.
Numa terceira e última hipótese, poderíamos imaginar a negação no processo estrangeiro de outro pilar do Estado Democrático de Direito: a fundamentação das decisões judiciais. Nessa hipótese, ainda que os credores brasileiros tivessem conseguido participar de todas assembleias e reuniões, por exemplo, de uma recuperação judicial estrangeira, pudesse ter manejados peças de defesa impugnando as decisões, porém, a decisão de homologação não tem qualquer fundamentação, principalmente porque não aprecia as impugnações lançadas pelos interessados, inclusive os credores brasileiros.
É pilar do Estado Democrático de Direito Brasileiro um Poder Judiciário independentemente (art. 2º da Constituição Federal), função estatal fundamental para dar concreção aos direitos fundamentais (acesso irrestrito à jurisdição – art. 5º, inc. XXXV), mas que para desempenhar esse escopo republicano deve, conforme impõe o art. 98, inc. IX, da Constituição Federal, “ todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade”. A complementação do inc. IX do art. 93 prevê hipótese regulada por lei de limitação à publicidade dos julgamentos; contudo, em relação à fundamentação não há exceção. Logo, no Brasil, salvo a hipótese também constitucional do Tribunal do Júri, nenhuma decisão judicial pode ser desprovida de fundamentação, pois a sanção constitucional é peremptória: nulidade.
É de se ver que tal dispositivo constitucional, ainda que não integrante dos primeiros artigos da Carta Política, onde estão dispostos os elementos fundamentais de nosso Estado Democrático de Direito, claramente completa a significação axiológica de um elemento essencial lá disposto, o Poder Judiciário. Portanto, é impossível não concluir que faz parte de nosso pilar jurídico civilizatório o entendimento de que qualquer decisão de jurisdição estrangeira que não tenha fundamentação viola de maneira manifesta nossa ordem pública jurídica, já que aqui a mesma decisão seria nula de pleno direito.
Consequentemente, também nessa hipótese é imperiosa a incidência da cláusula de barreira da ordem pública, devendo ser negada eficácia ao processo de insolvência estrangeiro em questão.
4 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA A PARTIR DAS HIPÓTESES
Em todas as hipótese trazidas no capítulo anterior do presente, é possível identificar, de forma clara e estampada, um liame axiológico que as identifica como decisões estrangeiras que manifestamente afrontam um pilar básico de um Estado Democrático de Direito brasileiro: em todas as hipóteses elaboradas de forma empírica houve uma decisão prolatada em manifesta contrariedade ao formato fixado pelo legislador constituinte originário como um Poder Judiciário garantidor do contraditório e a ampla defesa, imparcial e que fundamente suas decisões.
Com a infringência deliberada de características fundamentais e essenciais de um Poder Judiciário independente, que cumpra sua missão constitucional, as hipóteses levantadas no presente trabalho geram uma imperiosa necessidade de incidência da cláusula de barreira, como forma de resguardar a ordem pública brasileira. A pretexto de defender a cooperação internacional, não se poderia conceder eficácia a processos estrangeiros que não observaram esse pilar básico do Estado Democrático de Direito garantido em solo brasileiro.
Nessa linha, preenche-se o conteúdo da cláusula de barreira da ordem pública (uma verdadeira cláusula aberta) com os valores essenciais de nosso Estado Democrático de Direito, garantidos na Constituição Federal, em verdadeiro exercício do que os alemães chamam de “Drittwirkung” (eficácia perante terceiros), como explica Bruno Miragem[18], impedindo-se, assim, que se dê eficácia no país a processos estrangeiros que não observaram valores fundamentais de nossa sociedade.
Mas, como a internalização da Lei Modelo é também uma sinalização brasileira à comunidade internacional que aqui se pretende cooperar de forma transnacional com a atividade econômica, a conclusão doutrinária de qual análise sobre o tema aqui proposto não pode olvidar essa premissa.
Assim, pensamos que dois são os pontos fundamentais para a análise de casos concretos que envolvam a discussão sobre a cláusula de barreira da ordem pública em insolvência transnacional: o primeiro no sentido de que a incidência efetiva da cláusula, dentro das premissas axiológicas insculpidas na Lei Modelo da UNCITRAL, configura situação excepcional, já que a ideia é justamente promover a cooperação entre jurisdições estrangeiras como instrumento para concreção de proteção da empresa, funcionários, credores e terceiros interessados, reconhecendo, assim, a atividade econômica internacional como fonte geradora de riqueza; o segundo no sentido de que, havendo situações limites onde o reconhecimento da jurisdição estrangeira caracteriza manifesta ofensa à ordem pública brasileira, a incidência da cláusula de exceção é necessária como forma de garantir a prevalência dos valores fundamentais assegurados em nossa sociedade, preservando-se, por conseguinte, a soberania do país.
É, portanto, no justo e perfeito equilíbrio entre essas duas conclusões que residirá o sucesso da aplicação da novel legislação que, nos ensinamentos de Daniel Carnio Costa e Alexandre Nasser de Melo[19], será ponto fundamental para a economia do país: “a forma de lidar com a insolvência é um dos aspectos levados em consideração para a classificação das economias no Doing Busines, um ranking do Banco Mundial que mede a regulamentação do ambiente de negócios, classificando as economias entre 1 e 190 em termos da facilidade de fazer negócios”.
Nesse sentido, aliás, vale a pena destacar, ainda, a essencial ponderação lançada por Daniel Carnio Costa em outra obra do mesmo autor, também já citada alhures, na qual ele explicita a importância da segurança jurídica trazida pelo Capítulo VI-A de insolvência transnacional: “Assim, mormente em períodos de turbulência econômica, os empreendedores e investidores internacionais tendem a orientar seus recursos para jurisdições que sejam mais estáveis, que apresentem segurança jurídica e que ofereçam soluções eficientes e justas no tratamento da insolvência empresarial, entre credores locais e estrangeiros”[20].
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Que não nos percamos no sentimento nacionalista fácil e simplista, nem na internalização a qualquer custo de uma nova e promissora legislação – a falácia da ideia de que o estrangeiro é sempre melhor!
Esse é o desafio que o novo modelo propõe, encontrar o citado justo e perfeito equilíbrio entre a (i) cooperação internacional – comity como constantemente tratado nas decisões judiciais dos EUA – com olhos para melhor tratamento da insolvência da empresa transacional, sem que (ii) com tal proceder seja possível renunciar ao padrão civilizatório atingido no Brasil em sua carta constitucional, ou seja, um Estado Democrático de Direito fundado na soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e pluralismo político.
Os valores fundamentais – principalmente aqueles vinculados aos Direitos Humanos em todas suas dimensões[21], estampados em nossa Carta Política, em especial aqueles normatizados nos dois primeiros Títulos, configuram esse padrão civilizatório mínimo atingido pelo país e que, por isso, formam a ordem pública apta a impedir a concessão de eficácia jurídica a um processo de insolvência estrangeiro que afronte tais valores. Nesse quadro, com as hipóteses tratadas, dá-se aqui um passo concreto para a busca desse equilíbrio, propondo-se balizas interpretativas.
A despeito de se lidar com hipóteses negativas de aplicação da lei, não se pretende transparecer falsa posição contrária à legislação. Em verdade, a aplicação da nova lei, como já trabalhado acima, é fundamental para o país em sua busca incessante de fronteiras para novos negócios, uma forma de se alinhar ao que há de mais moderno em termos de segurança jurídica no mundo. A adoção do critério negativo, pelo contrário, é uma forma de incentivar a aplicação da lei, demonstrando que a exceção é restrita e, de certa forma, perceptível.
Assim, acredita-se que foi colocado a disposição da comunidade jurídica brasileira um instrumento processual altamente refinado, contemporâneo e consentâneo com um mundo globalizado, e que permite repelir exceções que atentem justamente contra esse mesmo alto padrão valorativo. Enfim, tem-se um instrumento que merece ser totalmente utilizado e prestigiado.
REFERÊNCIAS
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Notas de Rodapé
[1] Juiz de Direito Titular da 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo. Graduado em Direito pela USP. Mestre pela FADISP. Doutor pela PUC/SP. Mestre em Direito Comparado pela Samford University/EUA. Estágio pós-doutoral na Universidade de Paris 1 – Panthéon/Sorbonne. Professor do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da Universidade Nove de Julho. danielcosta@tjsp.jus.br.
[2] Juiz de Direito Titular do Juizado Especial Cível de São José do Rio Preto/SP. Graduado em Direito pela USP. Pós-graduação lato sensu em Direito Privado pela Escola Paulista da Magistratura. Mestrando em Direito Empresarial pela Universidade Nove de Julho. ccoelho@tjsp.jus.br.
[3] <https://uncitral.un.org/> Na década de 1960, a Organização das Nações Unidas (ONU) criou a Comissão para Legislação em Comércio Internacional – cujo acrônimo, no inglês, gera a sigla UNCITRAL
[4] Muitas vezes de forma coloquial se vaticina no Brasil que determinada lei “não pegou”. Evidente que não se trata de uma questão de vigência, mas sim de aplicação da lei. Assim, pressupomos que a preocupação primeira de quem se debruça sobre uma nova legislação deve ser observar bem o alcance da norma, onde se pretendia chegar com a vigência e, a partir de então, situando-a dentro do contexto valorativo constitucional em vigor, procurar um alcance que satisfaça todos os fatores dessa equação. Se o intérprete trouxer para esse processo exegético o sentido que ele pretendia que a lei tivesse, corre um sério risco de se desviar da adequada aplicação ideal, promovendo atividade hermenêutica mais próxima de verdadeira atividade legislativa.
[5] Recuperação Empresarial e Falência: Diálogos entre a doutrina e a jurisprudência. Coordenação Daniel Carnio Costa, Flávio Tartuce, Luis Felipe Salomão – 1 ed – Barueri/SP: Atlas, 2021
[6] A respeito da crítica que se faz aos chamados transplantes legais ou doutrinários desconexos, VIRGÍLIO AFONSO DA SILVA, no artigo INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL E SINCRETISMO METODOLÓGICO, encontrado no endereço eletrônico <https://constituicao.direito.usp.br/wp-com tent/uploads/2005-Interpretacao_e_sincretismo.pdf>, consultado em 31.07.2021, sentenciou: “Não é difícil perceber que a doutrina jurídica recebe de forma muitas vezes pouco ponderada as teorias desenvolvidas no exterior. E, nesse cenário, a doutrina alemã parece gozar de uma posição privilegiada, já que, por razões desconhecidas, tudo que é produzido na literatura jurídica germânica parece ser encarado como revestido de uma aura de cientificidade e verdade indiscutíveis”. De fato, esse transplante doutrinário, sem qualquer rigor científico em relação à realidade social brasileira, olvidando que o Direito, essencialmente, é uma ciência social, pode causar enormes distorções. Contudo, também não se pode adotar a premissa contrária de que a internalização sempre traz embustes sociais, sob pena de condenar o país a um periférico papel nesse cenário internacional cada vez mais global. Há que se temperar o enfrentamento dessas questões com olhos do avanço civilizatório, sem nunca perder a segurança jurídica construída na Constituição Federal.
[7] Cada vez mais ganha muita força dentre nós o pensamento que alinha o Direito à Economia, traduzido pela AED – Análise Econômica do Direito. Fundamentalmente o Direito serviria como instrumento fornecedor de segurança para o ambiente econômico conseguir desenvolver sua atividade livre de troca. PAULA A. FORGIONI, no artigo “ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO: PARANÓIA OU MISTIFICAÇÃO?”, in Revista do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, v. 77, p. 35/71 – ANO 2006, bem sintetiza essa ideia: “Um dos pilares sobre os quais se funda a AED liga-se à verificação de que o incremento do grau de segurança e de previsibilidade proporcionado pelo sistema jurídico leva ao azeitamento do fluxo de relações econômicas. Em outras palavras, os mercados funcionam de forma mais eficiente se ligados a um ambiente institucional estável, no qual os agentes econômicos podem calcular, i. e., razoavelmente prever o resultado de seu comportamento e o daqueles com quem se relacionam.”
[8] “COMENTÁRIOS À LEI DE RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS E FALÊNCIA” MELO, 2ª ed., Curitiba; Ed. Juruá, 2021 – p. 415
[9] Art. 167-A, § 4º da Lei n. 11.101/2005.
[10] In re Rede Energia S.A., 515 B.R. 69 (Bankr. S.D.N.Y. 2014) – encontrado no endereço eletrônico: https://casetext.com/case/in-re-rede-energia-sa, consultado em 18 de junho de 2021.
[11] Em tradução livre: “Decisões estrangeiras são geralmente reconhecidas na medida em que os ´procedimentos adotados na corte estão de acordo com uma jurisprudência civilizada …. a chave exigida no Capítulo XV (capítulo de insolvência transnacional) se fundamenta no fato dos procedimentos da jurisdição estrangeira está de encontro com padrão fundamental de justiça (dos EUA)” – observações em parênteses de minha inclusão.
[12] COSTA, Daniel Carnio. O sistema de insolvência transnacional no direito brasileiro. In Recuperação Empresarial e Falência: Diálogos entre a doutrina e a jurisprudência. Coordenação Daniel Carnio Costa, Flávio Tartuce, Luis Felipe Salomão, 1 ed., Barueri/SP, Atlas, 2021. p. 794.
[13] Em tradução livre: Todavia, a exceção de ordem pública é claramente redigida em termos restritivos, e os poucos casos havidos nas cortes foram analisados com moderação…. A decisão cita outros precedentes que pontuaram que o uso internacional da palavra manifestamente restringe a incidência da cláusula de barreira da ordem pública aos valores mais fundamentais para os Estados Unidos… e mais adiante, mencionando outro precedente, conclui não pode ser repugnante às lei e às política Americana.
[14] Em nossa defesa, invocamos as belas palavras de Montesquieu, in Do Espírito das Leis, livro XI, capítulo XX, relembradas em epígrafe introdutória na obra “A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos”, por Fábio Konder Comparato, editora Saraiva, 15° ed., 2015: “Não se deve nunca esgotar de tal modo um assunto, que não se deixe ao leitor nada a fazer. Não se trata de fazer ler, mas de fazer pensar”.
[15] Em outro artigo que idealizamos em coautoria, em vias de publicação, tivemos oportunidade de analisar a característica dessa cláusula de barreira como verdadeira cláusula infraconstitucional aberta, preenchível por elementos constitucionais essenciais do Estado Democrático de Direito Brasileiro, encontrados entre os arts. 1º e 7° da CF.
[16] (Bankr. S.D.N.Y. 2015) – encontrado no endereço eletrônico: https://casetext.com/case/in-re-oas-sa, consultado em 18 de junho de 2021
[17] “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
[18] “Teoria Geral do Direito Civil”, 1ª ed., 2021, Editora Forense, Rio de Janeiro, p. 91: “Segundo a teoria da eficácia indireta, compete ao legislador e ao intérprete traduzir o conteúdo dos direitos fundamentais para sua aplicação e concretização nas relações de direito privado. Neste sentido, tanto a conformação legislativa – na produção das leis – quanto o intérprete, em especial na precisão do significado da norma, ou ainda na concreção de conceitos jurídicos indeterminados, mediante a atribuição de significado, estarão vinculados a realização dos direitos fundamentais. Isso traduzirá, de um lado, uma direção ao legislador e ao intérprete da norma (ao juiz cumpre interpretar a normas conforme a Constituição); de outro, uma limitação, considerando que do sentido da aplicação do direito infraconstitucional não apenas fica vedada a contradição com o conteúdo dos direitos fundamentais como, igualmente, deve promover sua realização concreta nas relações entre particulares”.
[19] Op. cit., p. 415.
[20] Op. cit., p. 786
[21] Sobre conceito e estrutura dos Direitos Humanos, consultar André de Carvalho Ramos, Curso de Direitos Humanos, São Paulo, Saraiva, 4ª ed., 2017, Parte I, Capítulo I.