A Inserção dos Direitos Humanos no Órgão de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio (OMC)
DOI: 10.19135/revista.consinter.00010.33
Recebido/Received 01.04.2019 – Aprovado/Approved 07.08.2019
Gregorio Menzel[1] – https://orcid.org/0000-0002-5160-9356
E-mail: gregoriomenzel@gmail.com
Clayton Reis[2] – https://orcid.org/0000-0002-9263-2392
E-mail: claytonreis43@gmail.com
Resumo: A OMC (e o GATT antes dela) foi criada com o intuito de regular as relações de comércio internacional e solucionar os conflitos gerados pelos acordos dentro dela firmados. A sua história e estrutura são imensamente relevantes para entender a atuação da Organização nos dias atuais, a qual, por meio do estudo de diversos autores como Marceau, Howse e Petersmann, demonstra a possibilidade de a integrar ao contexto de proteção dos direitos humanos, compreendendo as dificuldades que tal tarefa traz, mas também a necessidade de o fazer. O presente trabalho pretende, pois, estabelecer o histórico da OMC, desde a criação do GATT, o seu funcionamento e organização, bem como trabalhar a visão dos autores supracitados na integração dos direitos humanos às decisões do Órgão de Solução de Controvérsias da Organização.
Palavras-chave: comércio internacional; OMC; direitos humanos.
Abstract: The WTO (and the GATT before it) was created to regulate the international trade relations and solve the conflicts created by the treaties firmed in it. It’s history and structure are immensely relevant to understand the Organization’s actions recently, witch, by the study of different authors such as Marceau, Howse and Petersman, shows the possibility of integrating it to the context of human rights protection, comprehending the difficulties and also the necessity of doing so. The present essay intents to establish the WTO’s history, since the creation of the GATT, its functioning and organization, as well as to work the vision of the aforementioned authors in the integrations of the human rights into the WTO’s Dispute Settlement Body.
Keywords: international trade; WTO; human rights.
Sumário: 1. Introdução. 2. Os Direitos Humanos Na Omc. 2.1. Ernst-Ulrich Petersmann. 2.2. Robert Howse. 2.3. Gabrielle Marceau. 3. O Papel Dos Direitos Humanos No Órgão De Solução De Controvérisas Da Omc. 4. Conclusão. 5. Bibliografia.
1 INTRODUÇÃO
Desde o período da Segunda Guerra Mundial existem dois movimentos no âmbito do Direito Internacional que tem se tornado paulatinamente mais relevantes para o cenário global: o comércio internacional e os direitos humanos. Nesse contexto, foi criado o GATT (que evoluiu para a OMC) e assinada a Declaração Universal dos Direitos Humanos – que desembocou em um complexo sistema de proteção universal e regional (RAMOS, 2015, 379 e ss.)–, ambas tornando-se peças fundamentais para a compreensão do mundo globalizado e homogeneizado da segunda metade do século XX e no início do século XXI (BLIACHERIENE, 2006, p. 13).
Apesar desse nascimento comum, as suas caminhadas os levaram para rumos bastante distintos, com proteções, atuações, legislações e funções bastante diversas. A atuação da OMC se destina, basicamente, a regular e manter o comércio internacional e seus acordos entre seus Estados-Membros (THORSTENSEN, 2001, p. 43), enquanto a proteção dos direitos humanos se concentrou em áreas diversas, procurando sempre atingir o bem-estar das pessoas e povos do mundo (PIOVESAN, 2006, p. 83/87).
Entretanto, percebeu-se nas ultimas décadas um crescente movimento de questionamento da legitimidade das decisões do Órgão de Solução de Controvérsias e, em contrapartida um esforço acadêmico para possibilitar a conversa entre a OMC e dos direitos humanos, levando-se em conta a enorme influência que a Organização tem em alterar a vida dos seus membros, o poder que detém para resolver conflitos que em última análise, respondem a direitos humanos como, por exemplo, a liberdade de comércio e o direito ao meio ambiente.
É nesse passo que se inserem os trabalhos de Ernst-Ulrich Petersman, Robert Howse e Gabrielle Marceau, os quais o presente artigo pretende utilizar como base teórica para uma nova compreensão do papel da OMC e do seu Órgão se solução de Controvérsias, na qual há consideração dos direitos humanos em suas decisões, legitimando a Organização perante os cidadãos e grupos civis dos Estados-Membros.
A metodologia a ser utilizada é a hipotético-dedutiva, através da pesquisa bibliográfica.
2 OS DIREITOS HUMANOS NA OMC
Existem 3 pensamentos diferentes sobre a compreensão dos direitos humanos no contexto da OMC. Petersman acredita que as decisões do Órgão de solução de controvérsias e os termos dos acordos firmados pelos membros devem respeitar os direitos humanos. Howse critica a posição de Petersman e afirma que deve existir cautela pois o assunto é complexo e talvez não seja aplicável no mundo real. Marceau alerta para a pequena jurisdição que possui a OMC e que o subsistema legal do Órgão de Solução de Controvérsias é diverso do contexto geral do Direito Internacional e portanto impede a aplicação tradicional dos princípios e conceitos desse ramo do Direito.
2.1 ERNST-ULRICH PETERSMANN
O trabalho de Petersman se baseia na ideia que a OMC deve tomar uma posição mais ativa em relação à proteção dos direitos humanos, por meio de uma reforma constitucional de sua atuação. Dessa forma, advoga a necessidade de uma face mais humana para a Organização para que essa logre seus objetivos, bem como, possua maior legitimidade perante à população de seus países-membros. para tanto, observa que:
The non-economic values of WTO law are no less important for the human rights and welfare of citizens than the economic welfare effects of liberal trade. Like the EC, the WTO can and should become an advocate not only of economic freedom, but of human freedom more generally[3]. (PETERSMAN, 2000, p. 19).
Aqueles que se opõe a tal compreensão, como economistas e diplomatas, tendem a argumentar que o formato de negociações e acordos comerciais não seriam o meio ótimo para se proteger direitos humanos, sociais e ambientais, que se destinam tão somente a proteger a liberdade de comércio, corrigir falhas de mercado e possibilitar o acesso a produtos. No entanto, o autor observa que existem três argumentos que tal crítica não resolve.
Primeiramente, observa que as democracias constitucionais modernas preveem a proteção não só à liberdade da comércio, mas também a direitos humanos, soberania popular e justiça social e que, apesar de reconhecidos, os direitos humanos não são ainda suficientemente protegidos pelos sistemas tradicionais, como o Sistema Universal de Proteção dos Direitos Humanos e os sistemas regionais. Portanto seria vantajoso se valer de um meio – mesmo que não seja ótimo – secundário, ou subsidiário para ampliar a capacidade do Direito Internacional os proteger.
Também compreende-se que a OMC, e sua jurisprudência, já possui função constitucional ao proteger a liberdade e a não discriminação, além de promover o acesso a justiça através de um sistema de resolução de controvérsias mais eficaz e meios de negociação claros e constantes. Acredita que há clara margem para a Organização ampliar a sua legitimidade, aceitação e consistência legal ao salvaguardar direitos humanos.
Por fim, aponta que a evolução da Organização, desde o GATT até o cenário atual da OMC, se deu pois se acreditava que a liberalização do comércio e a promoção da legalidade internacional era benéfica a todos os cidadãos e que ao longo do tempo houve uma transição para uma mentalidade mais positiva de proteção aos direitos e fins da OMC. Portanto, nada a impede de perseguir uma agenda que promova o avanço da proteção aos direitos humanos, da participação da sociedade civil nas decisões da OMC e da interpretação das “cláusulas de interesse público” (contidas no art. XX do GATT), pois
The non-economic achievements of the WTO Agreement – such as rule of law and the peaceful settlement of disputes under the WTO dispute settlement system – are no less important than the economic welfare gains from liberal trade[4]. (PETERSMAN, 2000, p. 21)
Não obstante, prima facie, possa-se tentar colocar em oposição a proteção à direitos sociais e ambientais aos direitos e liberdades comerciais, não se pode olvidar que ambos são direitos humanos e fundamentais constituídos e plasmados em virtualmente todos os Estados-membros e Democracias constitucionais modernas. Não existe, pois, oposição de valores, mas tão somente a necessidade de a Organização reconhecer que o utilitarismo econômico é menos importante que a proteção às liberdades, à igualdade e a cooperação pacífica. Nesse caso, pode-se concluir que,
In contrast to the traditionally mercantilist approach of past trade negotiations focusing on the advantages of access to foreign markets, a human rights approach would focus on the advantages of individual freedom in domestic as well as in international trade, and on the need for protecting citizen rights by complementary competition, environmental and social rules, and democratic participation[5]. (PETERSMANN, 2000, p. 24)
Por fim, o autor examina a necessidade da proteção dos direitos humanos pela OMC por acreditar que não há liberdade sem legislação e que a proteção de tais direitos beneficia a economia mundial ao melhorar a dignidade e a qualidade de vida dos cidadãos (com o efeito reverso na sua disrrupção, como na crise de 1929); que a globalização é um fenômeno tão legal quanto econômico e tecnológico; e que a transparência nas decisões de políticas e a participação democrática na OMC são essenciais para a equação dos direitos humanos, e colocam em cheque a soberania dos agentes privados ante a soberania democrática.
2.2 ROBERT HOWSE
Rowse apoia sua análise a partir da obra de Pertersman, a qual reconhece que é pioneira ao tratar a integração dos Direitos Humanos na OMC, todavia, e a partir desse ponto, traça uma crítica baseada na crença de que as relações e os temas tratados dentro da Organização são demasiadamente complexos para se trabalhar de forma abstrata. Para tanto, devem ser compreendidos os direitos humanos na OMC de acordo com as seguintes ideias:
In order, therefore, to engage with Petersmann’s project for the ‘integration’ of human rights and international economic law into a constitutional order, we have to pass to the specifics, and to be ever mindful of the context, the times in which we live, and in the name of whom and what the discourses of human rights, free trade, and constitutionalism are being invoked[6]. (HOWSE, 2002, p. 652)
Primeiramente, alega que é preciso definir o que Petersman compreende por constitucionalismo, por se tratar de um conceito com várias interpretações e ser usado de muitas maneiras através de seu trabalho. Portanto, identifica o constitucionalismo de Petersman como “legal pre-commitment that ties the hands of governments, allowing them to resist pressures by rent-seeking groups for interference with property and other economic rights” (HOWSE, 2002, p. 653), dito de outra forma, uma ideia contratualista que impede os governos de agir com poder ilimitado.
Dessa forma, só haveria legitimidade da atuação da OMC, se ela estivesse inseria nesse contexto de refreamento ao ímpeto dos grupos econômicos de se apoderar dos Estados. Há, pois, a necessidade do reconhecimento das liberdades econômicas como direitos fundamentais, os colocando no mesmo nível dos outros direitos humanos, a fim de que eles tendam a se harmonizar, e não competir entre si, adquirindo os Tratados da OMC um caráter de regras sociais, tão mais que regras de comércio. O papel dos cidadãos aumenta dramaticamente com essa nova compreensão dos direitos em jogo dentro da Organização, fazendo com que:
The limits of markets will be facilitated by governments having to justify their social interventions at the international level as limits on the ‘fundamental rights’ of property and contract. According to Petersmann, ‘Human rights need to be legally concretized, mutually balanced and implemented by democratic legislation which tends to vary from country to country’[7]. (HOWSE, 2002, p. 655)
Segue a sua crítica detalhando como a OMC utiliza os valores sociais, como a proteção do meio ambiente, em casos célebres, como Shrimp/Turtle e Korea/Beef, nos quais se exemplifica o limite que a Organização tem para impor a observação de tais direitos e medidas. Em especial, cabe mencionar, a incapacidade de se repreender um Estado por suas políticas econômicas regulatórias internas, tão somente as externas.
His idea of democracy, however, seems to focus on the creation of WTO advisory committees, of parliamentarians and NGOs. But it is an open question whether such ideas will ultimately not simply cabin or constrain democratic deliberation, through formalizing an understanding of which stakeholders have a legitimate place at the table; if democracy is about real power and real influence in shaping outcomes, these proposals risk being placebos. Periodic meetings of such committees are no substitute for an ongoing and inclusive process of engagement of civil society and political actors with the activities of the WTO[8]. (HOWSE, 2002, p. 659)
Dessa monta, questiona-se a conveniência de se trazer à OMC esses grupos que podem, em última análise, serem detrimentais à capacidade da Organização atingir seus fins e proteger de forma efetiva os direitos dos Estados-membros e seus cidadãos.
2.3 GABRIELLE MARCEAU
Gabrielle Marceau, por sua vez, tenta desvendar a dificuldade que a OMC tem em tratar assuntos comuns no Direito Internacional Público, em especial os direitos humanos, analisando qual é a lei aplicável ao seu órgão de resolução de conflitos, que difere das demais Organizações Internacionais.
Para a autora, existem três fatores importantes ao se levar em conta o contexto da OMC. Primeiramente, que uma leitura coerente das provisões da OMC e das Leis sobre direitos humanos pode existir, como aconteceu na Declaração de Doha sobre TRIPS e Saúde Pública. Em seguida, argumenta que a OMC não pertence a um subsistema jurídico no qual a sua fonte primária são tão somente os acordos por ela celebrados, o que dificultaria a inserção dos direitos humanos no seu contexto. E, por fim, estabelece que a melhor solução seria interpretar a lei aplicável da OMC levando em conta as leis que versam sobre direitos humanos.
Talvez a mais importante compreensão da obra de Marceau é a distinção entre subsistema jurídico e um sistema de lex specialis, ou seja, entre um ordenamento hermeticamente fechado, e um sistema com leis específicas, mas contido dentro de um sistema maior, os quais interagem:
The WTO is not in clinical isolation from public international law. Rather, it may be more fruitful to refer to WTO law as a system of lex specialis. […] Specific rights and obligations, specific remedies and a specific dispute settlement mechanism are mandatory and countermeasures have been regulated, WTO Members can be seen as having set up a system that contains a specific applicable law, a lex specialis system[9]. (MARCEAU, 2002, p. 766 e 767)
Dessa forma, apesar de suas especificidades, ainda estariam as disputas e acordos da OMC sujeitos ao jus cogens, por fazerem parte do Direito Internacional Público, não obstante suas particularidades. O impeditivo, pois, à aplicação de outras normas de Direito Internacional no âmbito da OMC seria a própria OMC.
A Organização foi criada com o intento de regular e manter as relações de comércio internacional dentro de seu escopo de acordos, portanto, países-membros tanto de convenções sobre direitos humanos e da OMC estariam sujeitos a ambos, mas o Órgão de Solução de Controvérsias da OMC estaria (ou se colocaria) adstrito a julgar sobre tão somente os acordos firmados dentro da Organização. Como destaca Marceau (2002, p. 778),
In this sense, norms of human rights law of equal hierarchical value to WTO treaty provisions, which would add to or diminish the provisions of the covered agreements, cannot find direct application between WTO Members, as WTO Members. In all cases, states (that may also be WTO Members) remain fully bound by their human rights obligations, and their responsibility may be called for in case of violation. But not before WTO adjudicating bodies[10].
Argumenta a autora, entretanto, que apesar do domínio (ou jurisdição) da OMC ser limitado, os acordos dentro de seu sistema não o são, de forma que quando algum painel se propõe a julgar algum conflito, deve ele se ater aos princípios gerais de Direito, costumes e outros tratados, como aqueles relevantes aos direitos humanos (MARCEAU, 2002, p. 779).
Há, destarte, a possibilidade de se compreender as provisões acordadas por membros da OMC em contextos extra Organização que estão em conflito como relevantes para a solução da controvérsia, como obrigações por eles tomadas, podendo, e devendo, portanto, os painéis as considerarem quando da sua tomada de decisão – não obstante não inseridas diretamente no contexto da Organização.
3 O PAPEL DOS DIREITOS HUMANOS NO ÓRGÃO DE SOLUÇÃO DE CONTROVÉRISAS DA OMC
Um dos grandes movimentos observados desde o início do século XXI é o constante questionamento da legitimidade das instituições que, até então, gozavam de estrutura e estabilidade para promover suas agendas sem maiores dificuldades. Os protestos em reuniões do G-8, G20, OMC e ONU se tornaram comuns; movimentos como o Occupy Wall Street, as Jornadas.06.2013 e a primavera árabe demonstram a fragilidade e a liquidez das fontes de poder monolíticas marcantes desde o pós-guerra.
Nesse contexto se insere a OMC, que, junto do Banco Mundial e do FMI, faz parte do tripé de sustentação do comércio internacional e do sistema financeiro mundial, materializando-se como alvo da revolta das classes trabalhadoras contra os crescentes lucros das grandes empresas, da constante precarização do trabalho e da desigualdade entre países e entre as classes sociais.
O paradigma tradicional do isolamento da Organização e do foco único nas liberdades econômicas ainda é a visão dominante na OMC (BAPTISTA; CELLI JÚNIOR; YANOVICH, 2007, p. 116), tanto que não há nenhuma sequer decisão do Órgão de Solução de Controvérsias que faça uso dos direitos humanos em suas decisões. Entretanto, existem novos pensamentos e orientações que substanciam a necessidade da integração dos direitos humanos, ambientais e sociais para que a OMC atravesse os latentes problemas de legitimidade que enfrenta. Os escritos de Ernst-Ulrich Petersman, Robert Howse e Gabrielle Marceau apontam nesse sentido, apesar de possuírem diferenças patentes.
Não se é possível compreender a liberdade comercial como superior e destacada das demais liberdades e direitos que formam o Direito Internacional Público, como Petersman aponta, devendo, então as medidas tomadas pela OMC, e em especial o Órgão de Solução de Controvérsias, levarem em conta a complexidade que define as relações internacionais e comerciais contemporâneas. Dessa forma, uma visão mais alargada dos problemas de direito comercial internacional é imperativa para solucionar as questões que são submetidas ao Órgão, percebendo as imensas ramificações que afetam as populações das Nações e as levando em conta nas suas decisões.
Certamente, as dificuldades que se apresentam nesse novo contexto são enormes. Da mesma forma que a desconsideração dos demais direitos humanos trazem inúmeros impactos aos povos direta e indiretamente impactados pelas decisões do Órgão de Solução de Controvérsias, a sua inserção traz novos elementos que podem ser prejudiciais, como questões de política externa e a submissão às vontades de grandes empresas.
No entanto, tais discussões já permeiam a OMC, de forma que o tratamento dos direitos humanos na Organização seria uma ferramenta possível e que colocaria em pauta os interesses dos cidadãos, não mais somente dos Estados e das empresas.
Dessa maneira, em um momento de forte discussão sobre a sua legitimidade e a sua própria existência, a inclusão dos direitos humanos em seu processo decisório seria um forte argumento para a sua manutenção e o alcance de seus objetivos (MESQUITA, 2014, p. 08).
Como toda Organização Internacional, os moldes tradicionais de legitimidade fundados tão somente através do reconhecimento por parte dos Estados-Membros estão ruindo: existe a latente necessidade de responder aos grupos civis organizados e à população sobre as medidas e decisões que tomam e se há a consideração dos seus interesses nesses processos. Se não houver essa consciência, os baluartes da regulação do comércio internacional, como a OMC, podem estar em um processo de desmonte, e as relações bilaterais entre Estados podem tomar seu lugar, já que estão mais intimamente ligadas à representação dos interesses dos cidadãos, sem se utilizar de sistemas internacionais de negociação.
Assim sendo, a integração dos demais direitos plasmados no Direito Internacional Público e ao jus cogens, mesmo mantendo uma caraterística de lex speciallis da OMC, como argumenta Marceau, possibilitaria a harmonização dos interesses dos agentes econômicos com os direitos de seus stakeholders, utilizando os direitos humanos como substrato para as decisões que violarem os direitos humanos dentro do Órgão de Solução de Controvérsias e legitimando o importante papel que possui no Direito Comercial Internacional.
CONCLUSÃO
A OMC sempre teve como o foco tão somente a regulação do comércio internacional. No entanto, com o avanço gigantesco da globalização, o papel que a Organização tomou para si, tem cada vez mais relevância em outras áreas da vida humana, sendo decisiva para a tomada de decisões econômicas dentro de seus países membros, para políticas de Estado e de governo, para o bem-estar de suas populações e para a qualidade de vida e do meio ambiente como um todo.
Dessa maneira, não é mais possível compreender a atuação da OMC isoladamente, sem levar em conta as consequências que os acordos firmados nela, sua jurisprudência e suas decisões no Órgão de Solução de Controvérsias tem nos mais variados contextos da existência humana. Ou seja, a advertência que Petersman faz, se torna cada vez mais importante para compreender a atuação da Organização no século XXI, pois, conquanto a temática dos direitos humanos não for levada em conta por aqueles que tomam as decisões, elas serão paulatinamente criticadas, contestadas e combatidas.
Outrossim, há também de se agir com parcimônia nessa integração, pois o sistema implementado pela OMC pode ser facilmente deturpado e transviado, principalmente pois os efeitos das decisões tomadas na Organização têm grande poder sobre as economias e vidas de seus Estados-membros, como bem alerta Howse.
Por fim, Marceau traça um relevante panorama do sistema (ou subsistema) da OMC, promovendo um relevante debate sobre a possibilidade da integração da legislação internacional dos direitos humanos na OMC, demonstrando que o contexto da Organização é mais complexo que de outros organismos internacionais, mas que aqueles países que se submetem à acordos sobre direitos humanos (sem se olvidar do jus cogens) devem os cumprir até nas controvérsias da OMC e que, apesar do escopo de atuação do OSC ser limitado, a legislação que ela deve tomar em conta não pode se restringir aos acordos da Organização tão somente, mas ao Direito Internacional como um todo.
Nesse sentido, deve-se compreender a integração dos direitos humanos nas decisões do Órgão de Solução de Controvérsias como imperativo para a sua legitimação perante os grupos sociais afetados por elas, compreendendo as complexas relações que se dão entre a liberdade econômica e os demais direitos. A igual consideração dos interesses dos Estados e agentes econômicos e dos seus stakeholders é uma ferramenta que, apesar de trazer as suas dificuldades, se mostra necessária para a manutenção da própria existência da Organização.
BIBLIOGRAFIA
BAPTISTA, Luiz Olavo; CELLI JÚNIOR, Umberto; YANOVICH, Alan. 10 anos da OMC, São Paulo, Aduaneiras, 2007.
BLIACHERIENE, Ana Clara. Emprego Dos Subsídios E Medidas Compensatórias Na Defesa Comercial: Análise Do Regime Jurídico Brasileiro E Aplicação Dos Acordos Da OMC. Tese de Doutorado, São Paulo, PUC/SP, 2006.
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MESQUITA, Alebe Linhares. Uma Perspectiva dos Direitos Humanos do Papel da OMC em Fomentar o Desenvolvimento em Nível Internacional. <http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=847 43978fa058b37>. Acesso em 12.10.2018.
OMC. <www.wto.org>. Acesso em 10.09.2018.
PETERSMANN, Ernst-Ulrich. The WTO constitution and human rights. Journal of International Economic Law, Oxford, p. 19–25, 2000.
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e a Justiça Internacional: um estudo comparativo dos sistemas regionais europeu, interamericano e africano, São Paulo, Saraiva, 2006.
RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos 2ª Edição, São Paulo, Saraiva, 2015.
THORSTENSEN, Vera. OMC – Organização Mundial do Comércio: as regras do comércio internacional e a nova rodada de negociações internacionais. 2ª Edição, São Paulo, Aduaneiras, 2001.
Notas de Rodapé
[1] Mestrando em Direito Empresarial e Cidadania pelo Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA.
[2] Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (1999). Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná (1996). Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (1970). Magistrado em Segundo Grau, aposentado, do TJPR. Professor na Escola da Magistratura do Paraná e pertence ao Corpo Docente Permanente do Programa de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Unicuritiba. Realizou estágio Pós-doutoral na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa-Portugal (2012-2013).
[3] “Os valores não econômicos da legislação da OMC são tão importantes para os direitos humanos e bem-estar dos cidadãos quanto os efeitos de bem-estar econômico da liberalização do comércio. Como a Comunidade Europeia, a OMC pode e deve advogar não somente pela liberdade econômica, mas pela liberdade humana em geral.” (tradução nossa)
[4] “Os méritos não-econômicos do Acordo da OMC – como a legalidade e a resolução pacífica das disputas no sistema de solução de controvérsias da OMC – são tão importantes quanto o bem-estar econômico derivado da liberalização do comércio.” (tradução nossa)
[5] “Em contraste à abordagem tradicionalmente mercantilista das passadas negociações focadas nas vantagens do acesso a mercados exteriores, uma abordagem para os direitos humanos focar-se-ia nas vantagens da liberdade individual nas relações de comércio domésticas e internacionais e na necessidade de proteger os direitos dos cidadãos por meio da competição complementar, dos regramentos sociais e ambientais e da participação democrática.” (tradução nossa)
[6] “Para, então, aplicar-se o projeto de Petersmann para a ‘integração’ dos direitos humanos e da legislação comercial internacional em uma ordem constitucional, dever-se-ia adentrar aos pontos específicos, e levar em conta o contexto, os tempos em que vivemos, e em nome de quem e quais os discursos sobre os direitos humanos, liberdade econômica e constitucionalismo que estão sendo evocados.” (tradução nossa)
[7] “Os limites aos mercados serão facilitados pelos governos terem que justificar as suas intervenções sociais no nível internacional como limites aos ‘direitos fundamentais’ à propriedade e à liberdade contratual. De acordo com Petersmann, ‘direitos humanos precisam ser legalmente concretizados, mutuamente equilibrados e implementados por legislações democráticas que tendem a variar de país a país’.” (tradução nossa)
[8] “Sua ideia de democracia, no entanto, parece focar na criação de comitês consultivos da OMC, de parlamentares e ONGs. Mas é uma questão aberta se tais ideias vão acabar por simplesmente tolher ou restringir a deliberação democrática, através da formalização de uma compreensão e que os stakeholders tem um assento à mesa; se democracia é sobre poder real e verdadeira influência no processo decisório, essas propostas correm o risco de se tornarem placebos. Encontros periódicos de tais comitês não substituem um processo constante e inclusivo de participação da sociedade civil e de atores políticos nas atividades da OMC” (tradução nossa)
[9] “A OMC não está em isolamento clínico do Direito Internacional Público. Outrossim, é mais frutífero, talvez, se referir à legislação da OMC como lex specialis […] Direitos e obrigações específicas, remédios específicos e um mecanismo de solução de controvérsias específico são obrigatórios e contramedidas foram reguladas, membros da OMC podem ser vistos como tendo implementado um sistema que contem um Direito específico sendo aplicado, um sistema de lex specialis. “ (tradução nossa)
[10] “Nesse sentido, normas de direitos humanos de igual valor hierárquico às provisões do tratado da OMC, que aumentariam ou diminuiriam as provisões dos acordos trabalhados, não podem encontrar aplicação direta entre membros da OMC, sendo membros da OMC. Em todos os casos, Estados (que podem ser membros da OMC) se mantém atrelados às suas obrigações em relação aos direitos humanos, e sua responsabilidade pode ser evocada em caso de violações, mas não em órgãos da OMC.” (tradução nossa)