A Convivência Familiar Como Direito Fundamental da Criança no Ordenamento Jurídico Brasileiro

DOI: 10.19135/revista.consinter.00010.03
Recebido/Received 29.04.2019 – Aprovado/Approved 17.07.2019

Lucineia Rosa dos Santos[1] – https://orcid.org/0000-0001-6882-9876
E-mail: rosadossantoslucineia@gmail.com

Rita de Cássia Curvo Leite[2] – https://orcid.org/0000-0003-3500-8670
E-mail: rccleite@pucsp.br

Resumo: Tem como objetivo esse pequeno ensaio aproximar os Direitos Humanos das normas de Direito de Família em vigor no Brasil para o fim de reconhecer que a convivência familiar corresponde a um direito universal, já agasalhado pelo Estado brasileiro, e que deve ser cumprido pela sociedade, pela comunidade e, ainda, em especial, pela família. Nesse contexto, cabe, ademais, assegurar que a convivência familiar é direito fundamental que se estende, também, aos novos modelos familiares, o que pode ser confirmado, mediante o emprego do método empírico indutivo, à luz do direito científico e da jurisprudência pátrios, e, ainda, especialmente, a partir da atuação profissional nas respectivas áreas. Eis a razão pela qual é preciso estar sensível para aplicar às situações concretas, mesmo as mais recentes, normas de conteúdo aberto como as que norteiam os Direitos Humanos. Nesse diapasão – e com olhar futurista – em todos os modelos de família deve-se garantir o livre exercício de uma convivência digna, em especial nas relações paterno-materno-filiais, sem olvidar a inegável responsabilidade do adulto diante da hipervulnerabilidade infantil.

Palavras-chave: Os novos arranjos familiares. Convivência familiar. Direito fundamental da criança. Políticas públicas voltadas às relações paterno-materno-filiais.

Abstract: The purpose of this small essay is to bring Human Rights into line with the rules of Family Law in force in Brazil in order to recognize that family life corresponds to a universal right, already embraced by the Brazilian State, and must be fulfilled by society, by community, and, especially, in the family. In this context, it is also important to affirm that family life is a fundamental right that also extends to new family models, which can be confirmed by the use of inductive empirical method in the light of scientific law and jurisprudence, and, especially from the professional performance in the respective areas. That is why it is necessary to be sensitive to apply to the concrete situations, even the most recente ones, open content standards such as those that guide Human Rights. In this context – and with a futuristic look – all family models must guarantee the free exercise of a dignified coexistence, especially in paternal-maternal-filial relations, without forgetting the undeniable responsability of the adult in the face of child hypervulnerability.

Keywords: The new family arrangements. Family living. Fundamental right of the child. Public policies focused on paternal-maternal-filial relations.

Sumário: 1. Introdução; 2. A convivência familiar (paterno-materno-filial) inserida no ambiente dos novos arranjos familiares; 3. Compartilhamento de responsabilidades como forma de garantia de direitos à criança; 4. A Convenção sobre os direitos da criança à luz dos novos modelos familiares; 5. Responsabilidade social e política; 6. Conclusões; 7. Referências.

1 Introdução

É inegável que a valorização do direito à convivência familiar nas relações paterno-materno-filiais sofreu mutações ao longo do tempo especialmente influenciadas pelas normas de Direitos Humanos consagradas nos arts. 226 e 227 da Constituição Federal brasileira que, por sua vez, amplificaram o conceito de família para nele incluir novos modelos, garantindo, por outro lado, proteção integral à criança e evitando toda e qualquer forma de discriminação.

Dentro dessa perspectiva, objetiva-se, propositadamente, neste estudo, aliar Direito de Família e Direitos Humanos, tendo em vista que o bem-estar da criança perpassa, obrigatoriamente, pelo núcleo familiar solidificado por políticas públicas que garantam a dignidade infantil a partir da família amparada pelo Estado.

Não raras vezes, ao profissional do direito eram relatados, pelo consulente, casos de aparente tranquilidade como o que se vê diante da seguinte narrativa:

Hora do jantar. O pai chega do trabalho e encontra a casa arrumada e a comida pronta sobre a mesa. Os filhos o aguardam. Acomodam-se todos à mesa, organizada pela mãe, que também preparou a refeição. Juntos desfrutam das respectivas companhias, conversam sobre o seu dia, trocam impressões sobre a comida e concluem a refeição em aproximadamente 40 (quarenta) minutos.

Tal descrição – que, aliás, foi muito utilizada, nas décadas de 1950, 1960 e 1970, como o típico estereótipo familiar – representaria, nos dias de hoje, a família pós-moderna? Estar juntos para a refeição, dialogar sobre o cotidiano e trocar experiências significa conviver em família? Por meio desse “modelo margarina[3] estaria a família viabilizando uma convivência digna em especial na relação paterno-materno-filial?

Ao se resgatar o significado de “convivência”, de “conviver + ência”, destacam os léxicos tratar-se do ato ou efeito de conviver; relações íntimas, familiaridade, convívio. Trato diário (FERREIRA, 2009, p. 544).

Trazida para o Direito, a palavra convivência, muito utilizada no direito civil, emprega-se no contexto familiar para espelhar a vida em companhia de alguém. Ação ou efeito de viver com outrem (DINIZ, 1998, p. 883-4), tendo sido associada à conjugalidade a partir da obrigatória coabitação.

Muito embora não se possa negar que as reuniões ao redor da mesa de refeição representam um cenário de convivência destinado a aproximar o núcleo da família-base, por outro lado não se pode deixar de reconhecer que a convivência familiar como direito fundamental se expande para além desse ambiente e se aprofunda nas relações mais densas conclamadas pelos novos arranjos familiares apoiados em quatro pontas: afeto, respeito, cuidado e solidariedade.

Isso porque se reconhece que não basta conviver, é preciso compreender, compartilhar, harmonizar interesses, tolerar as diferenças e reconhecer os limites do outro.

A convivência familiar saudável, em especial quando dela faz parte também a criança, deve ser construída dia a dia por pessoas (adultos) que assumam responsabilidade por suas ações e omissões.

De fato, nem sempre o “estar junto com” possibilitará uma convivência familiar digna; muito pelo contrário, poderá ser estopim para a discórdia, a desagregação, a fragilização e a violência intrafamiliar[4].

Não há, realmente, como afirmar, categoricamente, que apenas a convivência em núcleos familiares tradicionais (pai, mãe e filhos) inibam práticas (ações ou omissões) atentatórias à dignidade infantil se comparadas aos núcleos familiares pós-modernos (pai, pai e filhos ou mãe, mãe e filhos, ou, ainda, pai, mães e filhos e, também, pais, mãe e filhos), o que significa dizer, de início, que a convivência familiar digna pode estar presente nos ambientes pouco ou muito ortodoxos a depender, apenas, da conduta de seus interlocutores, sempre apoiadas em políticas públicas que permitam à família estabelecer uma relação saudável e prazerosa.

Por outro lado, é triste reconhecer que justamente do ambiente familiar, no qual deveriam ser prestigiados o bem querer e a proteção incondicional à criança, emanem práticas abusivas e violentas perpetradas pelo adulto (próximo em afeto) contra o infante (dependente em afeto).

Nesse contexto, chama a atenção o “diálogo necessário das fontes”, o exame conjunto dos macro e microssistemas normativos para, a partir da reavaliação e da repersonalização[5] da família, reconhecer que, em qualquer modelo de relação parental, a convivência digna entre seus membros deve ser assegurada como direito fundamental.

2 A convivência familiar (paterno-materno-filial) inserida no ambiente dos novos arranjos familiares

Talvez nenhum outro instituto jurídico reúna tantas e múltiplas análises quanto à família. Recebe especial atenção na Psicologia, na Sociologia, na Antropologia, no Serviço Social, na Medicina, na Biologia, na Engenharia Genética, na Economia, enfim, em diversos segmentos científicos.

No Direito não é diferente. A par do direito civil, que ao assunto dedicou um livro específico (do direito de família), regido, em especial pela Lei 10.406, de 2002, entre os arts. 1.511 a 1.783-A, a matéria também interessa a outros ramos do Direito, tais como o direito constitucional, o internacional privado, o tributário, o processual civil, o penal, o previdenciário e o empresarial.

Nesse estudo objetiva-se, porém, revelar a interconexão obrigatória, mas nem sempre prestigiada, entre o direito de família e os direitos humanos para, a partir do desenvolvimento de políticas públicas, não só garantir como viabilizar o exercício de uma convivência digna na relação paterno-materno-filial como direito fundamental[6].

É verdade que o substrato das relações humanas advém da ideia que se tem em torno da família, ou, para já traçar uma posição pós-moderna, das famílias.

Assim, pode-se dizer, com respaldo na lição de Maria Berenice Dias (2013, p. 29) que:

 

(…) A família é cantada e decantada como a base da sociedade e, por essa razão, recebe especial atenção do Estado (CF 226). A própria Declaração Universal dos Direitos do Homem estabelece (XVI 3): “A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado”. Sempre se considerou que a maior missão do Estado é preservar o organismo familiar sobre o qual repousam suas bases. A família é tanto uma estrutura pública como uma relação privada, pois identifica o indivíduo como integrante do vínculo familiar e também como partícipe do contexto social. O direito das famílias, por dizer respeito a todos os cidadãos, revela-se como o recorte da vida privada que mais se presta às expectativas e mais está sujeito a críticas de toda sorte.

 

Realmente, dir-se-á, mais, estar a(s) família(s) mais próxima(s) das múltiplas alterações sociais, refratária(s) que é (ou que são) à própria história e ao influxo das mudanças comportamentais, das ingerências de poder político e do desenvolvimento econômico, científico e tecnológico (ou biotecnológico).

A partir desta constatação, denota-se ser possível sustentar haver família quando a ela se associa o conjunto de pessoas provindas de um tronco ancestral comum, incluindo-se, portanto, pai, mãe, filhos, irmãos, tios, sobrinhos, primos, avós, netos, todos representantes de uma mesma linhagem ou estirpe (grande família ou família em sentido lato). O que vincula essas pessoas umas às outras é o laço de sangue ou consanguinidade, sugerindo-se identificar como laço biológico aquele que vincula pai, mãe e filhos num modelo no qual se reconhece a família biologizada (ou pequena família biologizada).

Todavia, a união entre duas pessoas, seja pelo casamento, seja pela união estável (hetero ou homoafetivas) cria entre estas e os parentes do outro o que se identifica como parentesco por afinidade e os afins passam também a integrar a família (grande família por afinidade). Desse modo, o sogro e a sogra, o genro e a nora, além dos cunhados passam a fazer parte de uma mesma família (art. 1.595 e parágrafos do CC).

Família haverá, ainda, naquelas situações em que há união sem filhos (formada entre os cônjuges e/ou companheiros, apenas), ou naquela outra em que a relação se estabelece única e exclusivamente entre pai e filho ou mãe e filho, sem cônjuge, ou companheiro (família monoparental).

Pode-se dizer que a família se instaura, igualmente, pelo desejo manifesto de pessoas que, impossibilitadas de procriar naturalmente, valem-se ou da adoção ou de uma das técnicas de reprodução humana assistida para suprir essa impossibilidade. A primeira é a família civil ou família substituta; a segunda, a família desbiologizada ou socioafetiva, ambas realçadas por traços de lealdade e boa-fé e estimuladas por um comportamento de fraternidade entre seus membros.

Isso sem falar, ainda, nos novos arranjos familiares que levam a uniões plúrimas, paralelas e poliafetivas (comunidades emocionais) ou mesmo naqueles outros em que parentes ou amigos vivem em comunhão de vida e de interesses como a mais genuína representação da solidariedade (família anaparental)[7].

De se notar, portanto, que as famílias se formam de maneiras diversas, não só pelas contingências da vida, mas também pela própria vontade de seus componentes (LOTUFO, 2002, p. 20).

Destaque-se que o vínculo essencial que faz nascer a família, nos dias de hoje, gira em torno de um sentimento único: o afeto, respaldado no respeito e consideração, e apoiado em um objetivo comum, a saber, a busca da felicidade, a partir de uma visão eudemonista[8].

De acordo com a lição de Paulo Lôbo (2008, p. 1), a família atual está matrizada em paradigma que explica sua função atual: a afetividade. Assim, diz ele, enquanto houver affectio haverá família, unida por laços de liberdade e responsabilidade, e desde que consolidada na simetria, na colaboração, na comunhão de vida.

É justamente a presença do afeto, portanto, que justifica haver família ou entidade familiar, em todos esses novos modelos (mesmo nas assim denominadas famílias estendidas, mosaico e multiparentais)[9].

Prega-se, com razão, que os laços afetivos e a expectativa de segurança e proteção suscitada pelo convívio afetivo familiar criam também elos jurídicos capazes de impor deveres e obrigações e de gerar direitos e poderes entre os membros do grupo familiar que compartilham a convivência familiar.

A partir desse cenário se afigura, pois, a importância humanizada da convivência familiar estritamente na relação paterno-materno-filial, fiada nos princípios da proteção integral e no melhor interesse da criança, em especial quando se sabe ser dever da família (da sociedade e do Estado) garantir vida, saúde, alimentação, educação, esporte, lazer, profissionalização, cultura, dignidade, respeito, liberdade e convivência familiar e comunitária às crianças[10].

Importante que se acene, a essa altura, que o que se pretende reconhecer no presente estudo é que, independentemente do modelo familiar em que se insira (pequena família ou família-base biologizada, hetero ou homoafetiva; família monoparental; família estendida; família socioafetiva; família desbiologizada; família anaparental), é inconteste admitir que o direito deva dar voz e vez a convivência familiar, em especial, em relação à criança, dentro do ambiente no qual ela não só se identifique como também desenvolva uma sensação de pertencimento familiar.

Nessa perspectiva, como adverte João Baptista Vilella (1977, p. 242), fazendo alusão à paternidade responsável, estão engajados como deveres dos genitores, no exercício regular do poder familiar, o de proporcionar aos filhos carinho, afeto e companheirismo.

Assim também sinaliza Jorge Shiguemitsu Fujita (2011, p. 100):

Carinho, afeto e companheirismo são elementos essenciais na formação da personalidade e desenvolvimento emocional, psíquico e moral do menor, desempenhando os seus pais um papel de relevo.

O filho deve receber de seus pais, carinho, no sentido de carícia, afago, mimo, cuidado; afeto, como estado da alma produzido por um sentimento profundo de bem-querer; e companheirismo, com um significado de interação afetiva e intelectual entre ele e seus pais, fundada no carinho ambiental e nos bons exemplos.

Sem todos esses elementos ou parte deles, a criança cresce fragilizada, torna-se adolescente com revolta pessoal, baixa autoestima, inconformismo com a vida, consolidando-se, ao final, como adulto traumatizado, com marcas indeléveis causadas pela falta de afeto.

 

Partindo desse pressuposto, portanto, a convivência familiar corresponde à expressão viva do princípio da paternidade responsável corolário da prioridade absoluta e do melhor interesse da criança. Realmente, sendo a criança pessoa em processo de desenvolvimento, natural se atribua a ela prioridade absoluta, significando que, à frente dos adultos, estão justamente elas, as crianças. Note-se que o legislador adjetivou a priorização da criança dizendo-a absoluta. Logo, a prioridade relativa não é suficiente. Ela deve ser absoluta, pena de ser ineficaz.

Na lição de Paulo Afonso Garrido de Paula (2002, p. 39-40), a “prioridade absoluta constitui princípio informador do Direito da Criança e do Adolescente”, pois

 

(…) a concretude do interesse juridicamente protegido da criança ou do adolescente está em primeiro lugar, devendo ocupar espaço primordial na escala de realizações do mundo jurídico.

Antecedem quaisquer outros interesses do mundo adulto, de vez que a rapidez das transformações que lhe são próprias impõe a realização imediata de seus direitos.

Os direitos da criança e do adolescente são essencialmente efêmeros.

A infância e a adolescência atravessam a vida com a rapidez da luz, iluminando os caminhos que conduzem à consolidação de uma existência madura e saudável. Aquisições e perdas, privações e satisfações, alegrias e tristezas, prazeres e desagrados, êxitos e fracassos e tantos outros experimentos materiais e emocionais sucedem-se em intensidade e velocidade estonteantes. Não raras vezes não podem ser repetidos, constituindo-se em experiências únicas e ingentes.

Esse complexo viver a infância e a adolescência têm como pressuposto material a existência de condições fundamentais, entre as quais a alimentação, saúde, educação, liberdade, cultura, lazer, etc. Emocionalmente reclama amor e acolhimento.

(…) Os direitos da criança e do adolescente devem ser validados com a presteza necessária para que sirvam, no tempo certo, como alicerces do desenvolvimento pessoal e garantias da integridade.

Depois é tarde, as necessidades foram embora, ficando apenas as consequências irreparáveis da invalidação dos direitos, representada muitas vezes pela morte, debilidade física ou mental, ignorância, ausência de instrumental para enfrentar os desafios do cotidiano, psicoses, neuroses, etc.

 

O princípio da prioridade absoluta revela, portanto, a urgência no tratamento dos direitos da criança merecendo uma atitude enérgica e proativa por parte de todos os envolvidos em dar-lhes efetivo cumprimento (sociedade, família e Estado), de modo a preponderar o interesse infantojuvenil, em detrimento do interesse do adulto.

Priorizar a criança implica em oferecer, em primeira mão, a esse grupo de pessoas a possibilidade de estabelecer em família uma convivência digna, independentemente do modelo configurado.

3. Compartilhamento de responsabilidades como forma de garantia de direitos à criança

O exercício do poder familiar implica em obrigatória e responsável cooperação dos genitores derivada da relação de dependência que se estabelece entre pais e filhos. Os pais são os cuidadores naturais de seus filhos. Nesse sentido, pouco importa a condição sócioeconômico-religiosa desse grupo familiar; o que se deve pôr em relevo é o senso de responsabilidade que vincula o adulto à criança. Da mesma forma, nenhuma importância se dá, hodiernamente, a origem da filiação.

De fato, o art. 227, § 7º da Carta Maior assentou uma pá de cal em torno da polêmica gerada pela distinção odiosa havida entre os filhos, revogando, nesse aspecto, todas as normas que assim se posicionavam, influenciando as legislações que se seguiram, notadamente, o Estatuto da Criança e do Adolescente, além, é claro, da Lei 10.406/2002.

A Constituição Federal, realmente, atribuiu à família enfoque completamente diferente, orientando as relações familiares em razão da dignidade de cada integrante como pessoa humana. Colocada no ápice do ordenamento jurídico, como bem esclarece Guilherme Calmon Nogueira da Gama (2008, p. 70), a dignidade da pessoa humana representa o epicentro axiológico da ordem constitucional, encontrando na família o solo apropriado para o seu enraizamento e desenvolvimento, daí a ordem constitucional dirigida ao Estado no sentido de dar especial e efetiva proteção à família, independentemente de sua espécie.

Adotou-se, assim, a concepção unitária em matéria de filiação, já existente em muitos países, para o fim de se rechaçar toda e qualquer designação discriminadora que, no passado há de permanecer, como uma lembrança triste da história nacional.

A relação de intensa afinidade e afetividade que liga o filho aos seus pais é norteada, ainda, pelos princípios do melhor interesse da criança e da paternidade responsável.

Positivado na Convenção Internacional dos Direitos da Criança, art. 3.1[11], muito embora não esteja previsto de forma explícita no texto constitucional brasileiro, de se entender que tal dispositivo tenha força de norma fundamental interna, eis que os tratados internacionais de Direitos Humanos, ratificados pelo Brasil, adquirem tal estatura em obediência ao disposto no art. 5o, §§ 1o e 2o, da Constituição.

Lembra Tânia da Silva Pereira (2000, p. 32), que a origem do princípio do melhor interesse da criança advém do instituto inglês do parens patriae, cujo fundamento era a proteção de pessoas incapazes, bem como de suas propriedades.

Do referido instituto evoluiu o princípio best interest of the child (traduzido para o vernáculo, como o “melhor interesse da criança”), cuja primeira referência, no direito costumeiro inglês, data de 1925, no julgamento do caso Finlay v. Finlay, julgado pelo Juiz Cardozo, reproduzido por Tânia da Silva Pereira, e no qual se concluiu que, em hipótese de conflitos entre os interesses da criança e os interesses de seus pais, são os primeiros que devem prevalecer. Na decisão, ficou claro que o pai ou a mãe agiriam como parens patriae para fazer o que é melhor para o interesse da criança e não atentos ao seu próprio desejo[12]. Os pais devem se colocar na posição de genitor sábio, carinhoso e cuidadoso.

Na aplicação do princípio do melhor interesse da criança, portanto, o adulto deve assumir o lugar do outro (ou seja, da criança) e sob essa perspectiva analisar o que é melhor para ela, respaldado no respeito à pessoa em peculiar processo de desenvolvimento a quem visa proteger prioritariamente.

Essa também a lição de Heloísa Helena Gomes Barboza (2011, p. 838) sustentando que o melhor interesse deve ser considerado cláusula genérica traduzida nos direitos fundamentais constitucionais de crianças e adolescentes.

Estando lado a lado os princípios da prioridade absoluta e do melhor interesse da criança destaca-se entre eles, e, justamente, para fazê-los valer, o da paternidade responsável.

É cediço que o Estado e a sociedade em geral assumem a responsabilidade pelo bem-estar da criança. Contudo, é no seio familiar que despontam os primeiros sinais vitais desse cuidado. Por meio do princípio da paternidade (ou parentalidade) responsável (parental responsability), há responsabilidade individual e social das pessoas do homem e da mulher geradores, no exercício das liberdades inerentes à sexualidade e à procriação, de uma nova vida humana, cuja pessoa – a criança – deve ter priorizado o seu bem-estar físico, psíquico e espiritual, com todos os direitos fundamentais reconhecidos em seu favor.

Sob esse prisma, atendem os genitores (ou guardiães que lhes façam às vezes) ao princípio da paternidade responsável quando propiciam aos filhos uma convivência familiar efetiva que não só se afigure como um “clichê”, como mera aparência plástica estereotipada, indene à transmissão de valores e despreocupada com a formação do caráter. A convivência efetiva é a convivência diuturna, laboriosa, atenta, dedicada, densa, amparada na seriedade, no comprometimento e na responsabilidade do adulto, pouco importando o “modelo” de família em que se achem inseridos seus agentes.

Pouco importa qual(is) o(s) adulto(s) engajado(s) no contexto relacional com a criança; quem quer que se afigure nessa posição, isolada ou conjuntamente, estará integralmente responsabilizado em atender à convivência plena e digna como verdadeira obrigação familiar que, uma vez descumprida, pode até mesmo configurar causa para eventual suspensão do poder familiar.

4 A Convenção sobre os direitos da criança à luz dos novos modelos familiares

A fim de discorrer sobre a Convenção dos Direitos da Criança no que se refere aos novos modelos familiares, citam-se alguns instrumentos internacionais de proteção dos Direitos Humanos, e, consequentemente, faz-se uma análise dos instrumentos específicos de proteção dos Direitos Humanos relativos à criança e sua convivência familiar.

Inicialmente, a Carta Internacional dos Direitos Humanos, composta pela Declaração Universal de Direitos Humanos, de 10.12.1948, é tida como Instrumento Internacional que consagra os Direitos Humanos.

Trata-se de marco histórico de proteção internacional dos direitos das liberdades, da igualdade e da solidariedade.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos em seu art. 1º aduz que “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos…”. A Declaração Universal consagra, pois, o direito de igualdade a todos os seres humanos, sem quaisquer distinções.

No art. 1º da Declaração Universal, têm-se o critério de isonomia formal, no qual toda pessoa humana é igual perante a lei, mas este mesmo artigo, ao disciplinar a igualdade quanto à dignidade, depende da concretização do ideário dos Direitos Humanos, como aduz Patrícia de Mello Sanfelice (2011, p. 16),

 

Para tanto, é necessário que todos os ideais sejam realizados, ou seja, que não se garanta ao homem apenas a liberdade de ir e vir, de expressão, de pensamento, de religião e todas as demais esferas libertárias… […]. Imprescindível, também, que às garantias de liberdade some-se a igualdade efetiva, o que poderá determinar eventuais discrímens legais, a fim de se assegurar a igualdade material.[…],

 

Nesse mesmo sentido, também, a lição do filósofo Norberto Bobbio (2004, p. 45-46):

 

A Declaração Universal dos Direitos do Homem representa a manifestação da única prova através da qual um sistema de valores pode ser considerado humanamente fundado e, portanto, reconhecido: e essa prova é o consenso geral acerca da sua validade. […] A liberdade e a igualdade dos homens, não são um dado de fato, mas um ideal a perseguir; não são uma excelência, mas um valor; não são um ser, mas um dever ser.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, além de internacionalizar, também universalizou tais direitos (humanos), na medida em que foi reconhecida pelos Estados-partes da Organização das Nações Unidas, que a consagraram no seu ordenamento jurídico.

Os direitos enunciados pela Declaração atingem toda pessoa humana, mas, em sua igualdade formal, pois, no que se refere a igualdade material, nem todos os seres humanos são materialmente iguais, necessitando de medidas legislativas que estabeleçam os critérios de igualdade, tal como se dá com as crianças.

Eis porque é importante reconhecer que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, muito embora tenha atribuído igualdade a todos perante a lei, acabou fechando os olhos à criança, equiparando-a a um “adulto em miniatura”, sem prestigiar – como deveria – haver especificidade no trato dos direitos infantis, dentre eles o da convivência familiar.

Com o intuito de ampliar os direitos previstos na Declaração Universal e efetivá-los, verificou-se a necessidade de catalogar novos direitos, impondo aos Estados uma responsabilidade no tocante ao cumprimento dos Direitos Humanos, assim como também, o dever de constituir um sistema especial de proteção dos Direitos Humanos no qual grupos denominados vulneráveis pudessem receber maior atenção, a fim de suprimir, justamente, as abomináveis discriminações por eles sofridas, no âmbito de sua igualdade material.

Eis o papel que passou a desempenhar a Declaração dos Direitos da Criança, adotada pela Assembleia das Nações Unidas, em 20.12.1959, por meio da qual são regulados os direitos da criança, enquanto sujeito vulnerável, necessitando de proteção especial.

Trata-se do primeiro instrumento do sistema global da Organização das Nações Unidas a disciplinar, no plano internacional, a proteção direcionada especificamente à criança.

No tocante ao catálogo de direitos para a efetivação dos Direitos Humanos consagrados na Declaração Universal, lembre-se que também o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, reforçaram, apenas, a igualdade formal, compondo a Carta Internacional dos Direitos Humanos.

Do mesmo modo que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, os direitos disciplinados pelo Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, em seu art. 26, bem assim o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, em seu art. 2º, proíbem toda e qualquer forma de discriminação.

Entretanto, a importância de fazer-se uma breve exposição sobre os instrumentos internacionais de proteção dos Direitos Humanos acima mencionados e traçar uma relação com o direito da criança, justifica-se exatamente para compreender-se a adoção de um sistema especial de proteção à criança, visto que a Carta Internacional dos Direitos Humanos sobre o tema não dispôs com especificidade.

O sistema especial de proteção à criança, portanto, tem início efetivo com a Declaração dos Direitos da Criança de 1959, mas, como a própria denominação sugere, ela apenas declara tais direitos; é um instrumento que estabelece uma nova doutrina, vale dizer, a doutrina da proteção integral à criança. Integral, sim, em razão da genuína imaturidade física e mental da criança, que necessita de cuidados e de proteção especial, devendo seus direitos ser reconhecidos não só pela família, mas, principalmente, pelos Estados, pela sociedade civil e pela comunidade em geral, devendo, todos, indistintamente, empenhar-se na observância dos direitos proclamados pela Declaração dos Direitos da Criança (1959).

Partindo desse pressuposto, o Estado brasileiro, à luz da Declaração dos Direitos da Criança de 1959, inseriu, na Constituição Federal de 1988, um capítulo destinado aos direitos da família e da criança, cuja disciplina consta do art. 226, por meio do qual há proteção à família. O art. 227, por seu turno, dispõe sobre os direitos fundamentais da criança, dentre os quais, o de proteção integral, fundado nos princípios da absoluta prioridade e da convivência familiar e comunitária.

Apesar de representar o marco primeiro na defesa dos direitos infantis, a Declaração dos Direitos da Criança de 1959, como instrumento de garantia de direitos da criança, ainda não foi suficiente para que os Estados se obrigassem a constituir um elenco de proteção de direitos destinados especificamente à criança.

A Organização das Nações Unidas, em 20.11.1989, resolveu, então, instituir, por meio de Assembleia Geral, a Convenção sobre os Direitos da Criança, o que fez a partir da Resolução L44.

A Convenção sobre os Direitos da Criança é verdadeiramente um tratado internacional de proteção dos direitos humanos, com o mais elevado número de ratificações feitas pelos Estados, inclusive o Estado brasileiro, que a reconheceu, aos 24.09.1990. Nos termos da Convenção sobre os Direitos da Criança (1989, art. 1º), a criança é definida como sendo toda pessoa com idade inferior a dezoito anos, salvo se, em conformidade com a lei aplicável, a maioridade for alcançada mais cedo.

Trata-se de um instrumento que assegura a proteção dos direitos civis, políticos, sociais e culturais, assim como também os direitos coletivos (STEINER; GOODMAN, 2013, p. 516).

Funciona como um aparelho que garante a proteção integral dos direitos da criança, ser humano em desenvolvimento, e torna efetivos o princípio da absoluta prioridade, distanciando-se, assim, da Declaração dos Direitos da Criança de 1959, no que se refere a eficácia, vez que a Convenção além de ser um instrumento de universalização, obriga os Estados, por meio dela, a cumprir e efetivar os Direitos Humanos da criança, a fim de coibir toda e qualquer forma de discriminação, como meio de assegurar-lhes, ainda, o direito de assistência em todas as áreas de sua vida. A Convenção sobre o Direito da Criança (1989, art. 42) criou um Comitê de Proteção de Direitos Humanos, órgão que tem por finalidade monitorar a implementação da própria Convenção, por meio do exame de relatórios periódicos encaminhados pelos Estados-partes.

Em 1993, realizou-se a Conferência de Viena, entre os dias 14 e 25 de junho, tendo sido instituída a Declaração do Programa de Ação de Viena, mediante a elaboração de catálogos de direitos que reafirmaram a universalidade e a indivisibilidade dos direitos humanos, como também, elencaram novos direitos de proteção à criança, proibindo o envolvimento da criança em conflitos armados, na prostituição e na pornografia, bem como impedindo o tráfico de crianças, e, ainda, dando proteção à criança abandonada. Todos esses direitos foram incluídos na Convenção sobre os Direitos da Criança através de Protocolos Adicionais.

A Assembleia da Organização das Nações Unidas adotou, ainda, em 19.11.2011, o Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança, relativo ao procedimento de comunicações, o qual instituiu a sistemática de denúncia individual contra o Estado que vier a violar quaisquer dos direitos da criança previstos na Convenção, tornando-a um instrumento com força jurídica vinculante na medida em que os Estados-partes reconhecem também o Protocolo Facultativo vigente desde 14.04.2014.

Desta forma, a Declaração dos Direitos da Criança de 1959, a Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989 e os Protocolos Adicionais à Convenção, são, todos, instrumentos que constituem o sistema de proteção especial à criança, a fim de assegurar-lhe materialmente o princípio de igualdade, enquanto verdadeiro sujeito de direitos.

Ao falarmos sobre os recentes modelos familiares no presente ensaio, reportamo-nos, novamente, à Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, no seu art. XVI (item 3), o qual assim dispõe:

A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado.

No mesmo sentido, enuncia o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, nos artigos abaixo descritos:

Art. 23. I. A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e terá de ser protegida pela sociedade e pelo Estado.

Art. 24. I. Toda criança terá o direito, sem discriminação alguma por motivo de cor, sexo, língua e religião, origem nacional ou social, situação econômica ou nascimento, à medida de proteção que a sua condição de menor requer por parte de sua família, da sociedade e do Estado.

É importante ter presente que ao discorrermos nesse pequeno ensaio sobre o conceito de família e seus novos paradigmas, apontamos também para a proteção internacional sobre a família, a partir da qual o Estado e a sociedade brasileiros se colocaram na obrigação de igualmente protegê-las como, aliás, observou Lafayette Pozzoli (2011, p. 115),

O núcleo familiar é o primeiro grupo social do qual se percebe e recebe, não somente herança genética ou material, mas especialmente moral. Nossa formação de caráter depende, fundamentalmente, do exemplo ou modelo familiar que temos na formação de nossa personalidade, cuja formação da personalidade da pessoa ocorre em sua fase infantil.

5 Responsabilidade Social e Política dos Estados na Convivência Familiar da Criança como Direito Fundamental

A própria Convenção sobre os Direitos da Criança (1989) reconhece o convívio da criança e a proteção de sua família, assegurando-lhes as políticas públicas a serem implementadas pelos Estados-partes, conforme os artigos abaixo destacados:

 

Art. 3º. §2. Os Estados Membros se comprometem a assegurar à criança a proteção e os cuidados necessários ao seu bem-estar, tendo em conta os direitos e deveres dos pais, dos tutores ou de outras pessoas legalmente responsáveis por ela e, para este propósito, tomarão todas as medidas legislativas e administrativas apropriadas.

Art. 5º. Os Estados Membros respeitarão as responsabilidades, os direitos e os deveres dos pais ou, conforme o caso, dos familiares ou da comunidade, conforme os costumes locais, dos tutores ou de outras pessoas legalmente responsáveis pela criança, de orientar e instruir apropriadamente a criança de modo consistente com a evolução de sua capacidade, no exercício dos direitos reconhecidos na presente Convenção.

Art. 6º. §1. Os Estados Membros reconhecem que toda criança tem o direito inerente à vida. §2. Os Estados Membros assegurarão ao máximo a sobrevivência e o desenvolvimento da criança.

Art. 9º. §1. Os Estados Membros deverão zelar para que a criança não seja separada dos pais contra a vontade dos mesmos, exceto quando, sujeita à revisão judicial, as autoridades competentes determinarem, em conformidade com a lei e os procedimentos legais cabíveis, que tal separação é necessária ao interesse maior da criança. Tal determinação pode ser necessária em casos específicos, por exemplo, nos casos em que a criança sofre maus-tratos ou descuido por parte de seus pais ou quando estes vivem separados e uma decisão deve ser tomada a respeito do local da residência da criança. §2. Caso seja adotado qualquer procedimento em conformidade com o estipulado no “presente artigo, §1”, todas as partes interessadas terão a oportunidade de participar e de manifestar suas opiniões. §3. Os Estados Membros respeitarão o direito da criança que esteja separada de um ou de ambos os pais de manter regularmente relações pessoais e contato direto com ambos, a menos que isso seja contrário ao interesse maior da criança. §4. Quando essa separação ocorrer em virtude de uma medida adotada por um Estado Membro, tal como detenção, prisão, exílio, deportação ou morte (inclusive falecimento decorrente de qualquer causa enquanto a pessoa estiver sob a custódia do Estado) de um dos pais da criança, ou de ambos, ou da própria criança, o Estado Membro, quando solicitado, proporcionará aos pais, à criança ou, se for o caso, a outro familiar, informações básicas a respeito do paradeiro do familiar ou familiares ausentes, a não ser que tal procedimento seja prejudicial ao bem estar da criança. Os Estados Membros se certificarão, além disso, de que a apresentação de tal petição não acarrete, por si só, consequências adversas para a pessoa ou pessoas interessadas.

Art. 10º. §2. A criança cujos pais residam em diferentes Estados Membros terá o direito de manter regularmente, salvo em circunstâncias excepcionais, relações pessoais e contatos diretos com ambos os pais (…).

Art. 20. §1. Toda criança, temporária ou permanentemente privada de seu ambiente familiar, ou cujos interesses exijam que não permaneça nesse meio, terá direito à proteção e assistência especiais do Estado. §2. Os Estados Membros assegurarão, de acordo com suas leis nacionais, cuidados alternativos para essas crianças. §3. Esses cuidados poderão incluir, inter alia, a colocação em lares de adoção, a Kafalah do direito islâmico, a adoção ou, se necessário, a colocação em instituições adequadas de proteção para as crianças. Ao se considerar soluções, prestar-se-á a devida atenção à conveniência de continuidade de educação da criança, bem como à origem étnica, religiosa, cultural e linguística da criança.

Os artigos da Convenção sobre os Direitos da Criança acima destacados revelam a efetividade dos Direitos Humanos da criança no convívio com sua família e a responsabilidade dos Estados-Partes em implementar, por meio de políticas públicas, mecanismos necessários para que não haja desagregação no convívio familiar.

Mas, nem sempre foi assim.

De fato, o Brasil foi um dos adeptos da doutrina da situação irregular do menor, que teve início na década de 1940, mas que foi consolidada com a Lei 6.697, de 10.10.1979 (Código de Menores), e que se destinava a atender aos menores carentes e delinquentes.

Durante todo o período de vigência da doutrina de proteção da situação irregular do menor, até o advento da Lei 6.697, no dizer de Andréa Rodrigues Amin (2013, p. 48), “…a cultura da internação, para carentes ou delinquentes, foi a tônica. A segregação era vista, na maioria dos casos, como a única solução”. Com isto, o direito fundamental do convívio familiar não era enfatizado pela mencionada norma, a qual admitia, inclusive, a renúncia ou a destituição do poder familiar – outrora denominado pátrio poder – em razão da falta de condições econômicas suficientes para criação de seus filhos, sendo muitas vezes as crianças (menores), encaminhadas às instituições públicas, em flagrante desagregação familiar.

A doutrina da situação irregular do menor foi muito contestada por diversos setores da sociedade brasileira, em razão de seu caráter meramente assistencial (ou superficial).

Porém, no ano de 1984, com o processo de redemocratização no Brasil, mediante as instalações de Comissões Constituintes Parlamentares que se reuniam para a elaboração de uma nova Constituição Federal, muitas manifestações populares em prol dos direitos da criança foram realizadas, acaloradas, também, pelo reconhecimento de instrumentos internacionais de proteção à criança como, justamente, a Declaração dos Direitos da Criança de 1959, e a atuação dos “organismos internacionais como a Unicef” (AMIN, Andréa R. 2013, p. 49). Tamanha a força daqueles movimentos até que foi constituída a Comissão Nacional Criança e Constituinte, por meio da qual foi lançada a ideação de um capítulo sobre o direito fundamental da criança na Constituição Federal de 1988, conforme já comentado linhas acima.

Ao reconhecer o Estado brasileiro a Convenção sobre os Direitos da Criança, viu-se compelido a instituir, em seu ordenamento jurídico, a Lei 8.069, de 13.07.1990, que colocou uma pá de cal sobre a doutrina da situação irregular do menor, recepcionando a da proteção integral, disciplinando, por conseguinte, diversos direitos à criança, no capítulo III do referido diploma, sob o título do “Direito à Convivência Familiar e Comunitária”.

A partir daí, a convivência familiar foi alçada ao status de direito fundamental da criança. O viver junto à sua família natural ou, subsidiariamente, à sua família extensa passa a ser condição incontestável para o atingimento de sua igualdade material e reforço do conteúdo previsto no art. 9º da Convenção sobre os Direitos da Criança, por meio do qual a criança não deve ser separada dos pais contra a vontade da mesma.

Ao falarmos sobre o direito fundamental da convivência familiar, nos referimos à “doutrina da proteção integral e ao princípio da prioridade absoluta” (ISHIDA, 2015, p. 45) o que se deve garantir também aos novos modelos familiares.

Realmente, a proteção dos recentes arranjos familiares, advém da eficácia dos instrumentos internacionais de proteção específica, que possibilitam o convívio familiar da criança, sendo este um direito natural assegurado na órbita internacional e nacional como garantia fundamental da criança.

Como pondera Lafayette Pozzoli (2011, p. 115):

 

A defesa e a aplicação da fraternidade como princípio jurídico, reafirmando os princípios que o norteiam, com as mudanças no paradigma dominante, impondo-se tais mudanças e conceitos como um novo paradigma a ser solidificado como emergente.

6 Conclusões

É fato que a convivência familiar corresponde a verdadeiro direito fundamental da criança inserido no bojo da família pós-moderna em qualquer dos arranjos em que ela se afigure.

Ao ser adotada pela Organização das Nações Unidas, a Convenção sobre os Direitos da Criança alterou o enfoque dado à criança dispondo sobre a doutrina da proteção integral que visa proteger a criança enquanto pessoa humana, sujeito de direitos específicos, atendendo a todas, independentemente de etnia, cor, condição econômica, sexo, religião, sem qualquer discriminação, como ocorria nas doutrinas de proteção anteriores à 1989.

A partir da aludida doutrina de proteção integral, os princípios da absoluta prioridade, do melhor interesse, bem como, da condição peculiar ao desenvolvimento da criança tornaram-se essenciais, e estão presentes na aplicabilidade do direito da convivência familiar.

Os Estados-Parte, à medida que reconhecem a referida Convenção, instituem no seu ordenamento jurídico não apenas os direitos consagrados pela Convenção, mas também a efetividade de tais direitos, por meio de medidas administrativas e legislativas.

O Brasil, antes mesmo de ratificar a Convenção sobre os Direitos da Criança, em seu ordenamento jurídico por meio da Constituição Federal, já havia estabelecido, no art. 226, a proteção também à entidade familiar, ampliando o sentido de família, reconhecendo a união estável e a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, assim como, no art. 227, previu a convivência familiar como direito fundamental da criança.

Porém, as medidas administrativas e legislativas passaram a ser efetivadas com o reconhecimento da referida Convenção, criando-se políticas públicas, parte delas inseridas na Lei 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), como, por exemplo, as referidas no capítulo III do aludido diploma, que se dedica a disciplinar as medidas de convivência familiar.

O Estado Brasileiro, em prol de assegurar os direitos de convivência familiar, afastando-se, pois, do modelo de proteção da situação irregular do menor, não admite, sob qualquer pretexto, que haja a destituição ou a renúncia do poder familiar em razão da falta de condições econômicas e financeiras no sustento da família, motivo pelo qual, ao ratificar os termos da Convenção sobre o Direito da Criança, adotam-se políticas públicas assistenciais com a finalidade de manutenção da convivência familiar.

É seguro o direito à convivência familiar, mas necessário dar-lhe visibilidade e guarida não só por conteúdos normativos, mas, também, por políticas que reforcem a importância da convivência em família nutrida pelo afeto, pelo cuidado, pela solidariedade e, sobretudo, pela responsabilidade de seus interlocutores.

Fechar os olhos (e oportunidades) para a agregação familiar pautada em ranços revestidos por discrímen sexista e de gênero é pequenez a ser refutada pela sociedade preocupada em preservar o bem-estar da criança acima de tudo.

REFERÊNCIAS

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https://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/492747/o-que-se-entende-por-familia-eudemonista.

Notas de Rodapé

[1] Mestra em Direito do Trabalho e Doutora em Direitos Humanos ambos pela PUC-SP. Professora Assistente Mestra na cadeira de Direitos Humanos e Direito da Criança e do Adolescente na mesma instituição. Autora de artigos jurídicos na área de Direitos Humanos, dos Direitos do Refugiados e da Criança e do Adolescente. Advogada em São Paulo.

[2] Mestra em Direito Civil Comparado e Doutora em Direitos Difusos (PUC-SP). Professora Assistente Mestra na cadeira de Direito Civil na mesma instituição. Assistente de Coordenação na PUC/COGEAE no Curso de Pós-Graduação em Direito Imobiliário. Autora de livros e artigos jurídicos nas áreas de Direito Civil e Biodireito. Advogada em São Paulo.

[3] Modelo usado por veículos publicitários para expressar a ideia de família perfeita, feliz e saudável.

[4] A violência intrafamiliar é toda ação ou omissão que prejudique o bem-estar, a integridade física, psicológica ou a liberdade e o direito ao pleno desenvolvimento de outro membro da família. Pode ser cometida dentro ou fora de casa por algum membro da família, incluindo pessoas que passam a assumir função parental, ainda que sem laços de consanguinidade, e em relação de poder à outra. O conceito de violência intrafamiliar não se refere apenas ao espaço físico onde a violência ocorre, mas também as relações em que se constrói e efetua (BRASIL, 2001, p. 15).

[5] É preciso repersonalizar a família, ou seja, reconhecer quem são as pessoas que hoje a constituem, abstraindo-se do vetusto estigma que só reconhecia haver família nas relações pautadas em interesses político-religiosos, chancelados pelo matrimônio para validar a procriação, quase sempre abstraída do afeto. Nessa perspectiva, esclarece Paulo Lôbo (2008, p. 11), “ao converter-se em espaço de realização da afetividade humana, a família marca o deslocamento da função econômica-política-religiosa-procracional para essa nova função. Essas linhas de tendências enquadram-se no fenômeno jurídico-social denominado repersonalização das relações civis, que valoriza o interesse da pessoa humana mais do que suas relações patrimoniais. É a recusa da coisificação ou reificação da pessoa, para ressaltar sua dignidade. A família é o espaço por excelência da repersonalização do direito”.

[6] Como advertem Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery (2017, p. 1989), “existe consenso político sobre a defesa dos interesses e direitos fundamentais do homem, o que posiciona as Nações a favor da vida, da liberdade e da dignidade humana. Porém, nas relações privadas, não existe o mesmo consenso; não há a percepção de que, hoje, os grandes ataques à vida, à integridade humana e à liberdade ocorrem no seio das relações privadas, sob olhos omissos do Estado, muitas vezes ao ensejo do esfacelamento da família, o que permite afirmar que, no direito privado, apesar do sistema lógico que o estrutura, nem sempre os direitos fundamentais têm sido respeitados”.

[7] Mais recentemente, tem-se sugerido haver família, também, nas relações que se estabelecem entre as pessoas e seus animais domésticos de estimação. O direito vem estendendo a proteção também para os animais (em ramo autônomo a que se intitula pet law ou animal law, v.g. direito dos animais), a eles reconhecendo certos direitos, como, por exemplo, os alimentos e o de visitas, estas regulamentadas especialmente diante do divórcio de seus guardiões. Não raras vezes, tem-se sustentado a necessária fixação de guarda compartilhada como forma ideal no trato dos animais diante da separação do casal guardião.

[8] A família eudemonista é identificada como aquela que “admite ser a felicidade individual ou coletiva o fundamento da conduta humana moral”, o que a aproxima da afetividade. Em outras palavras, a família eudemonista é um conceito moderno que se refere à família que busca a realização plena de seus membros, caracterizando-se pela comunhão de afeto recíproco, a consideração e o respeito mútuos entre os membros que a compõe, independente do vínculo biológico. Disponível em: <https://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/492747/o-que-se-entende-por-familia-eudemonista>. Acesso em: 22.04.19.

[9] Recurso Extraordinário. Repercussão Geral Reconhecida. Direito Civil E Constitucional, Conflito Entre Paternidades Socioafetiva E Biológica. Paragima Do Casamento. Superação Pela Constituição De 1988. Eixo Central Do Direito De Família: Deslocamento Para O Plano Constitucional. Sobreprincípio Da Dignidade Humana (Art. 1º, III, da CRFB). Superação De Óbices Legais Ao Pleno Desenvolvimento Das Famílias. Direito À Busca Da Felicidade. Princípio Constitucional Implícito. Indivíduo Como Centro Do Ordenamento Jurídico-Político. Impossibilidade De Redução Das Realidades Familiares A Modelos Pré-Concebidos. Atipicidade Constitucional Do Conceito De Entidades Familiares. União Estável (Art. 226, § 3º, CRFB) E Família Monoparental (Art. 226, § 4º, CRFB). Vedação À Discriminação E Hierarquização Entre Espécies De Filiação (Art. 227, § 6º, CRFB). Parentalidade Presuntiva, Biológica Ou Afetiva. Necessidade De Tutela Jurídica Ampla. Multiplicidade De Vínculos Parentais. Reconhecimento Concomitante. Possibilidade, Pluriparentalidade. Princípio Da Paternidade Responsável (Art. 226, § 7º, CRFB). Recurso A Que Se Nega Provimento. Fixação De Tese Para Aplicação A Casos Semelhantes. (RE 898.060/SP, STF, Rel. Min. Luiz Fux, j. em 21.09.2016).

[10] Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (Constituição Federal, 1988, na redação dada pela EMC-065, de 13.07.2010).

[11]Art. 3.1. In all actions concerning children, whether undertaken by public or private social welfare institutions, courts of law, administrative authorities or legislative bodies, the best interest of the child shall be a primary consideration” (Todas as decisões relativas a crianças, adotadas por instituições públicas ou privadas para o bem-estar social, tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, o melhor interesse da criança deve ser considerado em primeiro lugar).

[12] O princípio do melhor interesse da criança é muito útil nas situações em que se disputa a guarda da criança. Deve o julgador, nessas hipóteses, colocar-se no lugar da criança ao avaliar o que é melhor para ela e não atender aos caprichos, exigências ou conveniências de seus pais.