A INSTRUMENTALIDADE DA EMPRESA INDIVIDUAL DE RESPONSABILIDADE LIMITADA (EIRELI)
THE INSTRUMENTALITY OF BRAZILIAN SINGLE MEMBER LIMITED LIABILITY COMPANY (EIRELI)
DOI: 10.19135/revista.consinter.00009.32
Alexandre de Albuquerque Sá[1] – https://orcid.org/0000-0002-0887-3899
Resumo: O presente trabalho investiga as aplicabilidades da empresa individual de responsabilidade limitada (EIRELI), pessoa jurídica inserida no direito brasileiro pela Lei 12.441, de 11.07.2011. Nesse sentido, é examinado o contexto histórico pretérito, englobando o instituto do legislador ao editar a norma. Posteriormente, são apresentadas as funções em si desempenhadas pela EIRELI, discorrendo-se sobre suas potencialidades em análise comparativa. Do ponto de vista metodológico, o artigo se funda essencialmente em pesquisa bibliográfica e documental, eminentemente teórica, utilizando-se das fontes jurídicas ortodoxas, isto é, a legislação, a doutrina especializada e a jurisprudência dos tribunais brasileiros.
Palavras-chave: Empresa individual de responsabilidade limitada. Instrumentalidade. Limitação de responsabilidade. Planejamento tributário. Descentralização de atividades.
Abstract: The present study investigates the applicabilities of the single member limited liability company (EIRELI), a legal entity inserted in Brazilian legal order by Law 12,441, of July 11, 2011. Therefore, the past historical context is examined, including the lawmaker’s intent. After that, the EIRELI`s functions are characterized, discussing their potentialities in a comparative analysis. From the methodological point of view, this paper is based essentially on bibliographical and documentary research, thereby being eminently theoretical, using the orthodox legal sources, that is, the legislation, specialized doctrine and jurisprudence of the Brazilian courts.
Keywords: Brazilian single member limited liability company. Instrumentality. Limitation of liability. Tax planning. Decentralization of activities.
1 INTRODUÇÃO
O artigo pretende identificar as principais finalidades da empresa individual de responsabilidade limitada (EIRELI), figura introduzida no Código Civil por meio da Lei 12.441, de 11.07.2011. Para tanto, serão apresentados os objetivos pretendidos pelo autor do projeto, a problemática relativa à ilimitação da responsabilidade civil da pessoa natural que exerce empresa no Brasil, perscrutando-se outras possíveis funções para o instituto.
Estrutura-se o presente em seis seguimentos: i. introdução: ii. apresentação do cenário jurídico brasileiro anterior à promulgação da Lei de 2011; iii. um breve exame comparativo entre as técnicas de limitação da responsabilidade da pessoa física (criação de patrimônios de afetação x sociedade unipessoal); iv. demais aplicabilidades para EIRELI; v. síntese conclusiva autoral, buscando-se evidenciar quais são as instrumentalidades da EIRELI, verificando-se se, de fato, a empresa individual de responsabilidade limitada se destina apenas a possibilitar a redução da responsabilidade do empresário individual; e, por fim, vi. as referências consultadas durante a investigação.
Finalmente, impede mencionar que o trabalho se funda em pesquisa eminentemente teórica, utilizando-se das fontes jurídicas ortodoxas, notadamente o ordenamento jurídico positivo, a doutrina especializada e a jurisprudência dos tribunais brasileiros.
2 PANORAMA JURÍDICO ANTERIOR AO SURGIMENTO DA EIRELI
Primeiramente, cabe salientar que a Lei 12.441/2011, desde sua formulação original expressa no Projeto de Lei da Câmara dos Deputados 4.605/2009, teve o objetivo declarado de possibilitar a constituição de sociedade por pessoa natural singularmente, utilizando-a como instrumento para a limitação da responsabilidade do titular único[2].
Essa proposta se baseava no fato de que, até a entrada em vigor da nova Lei, a legislação brasileira possibilitava somente às pessoas jurídicas instituir sociedades unipessoais, fossem sociedades brasileiras, no caso de subsidiária integral (art. 251 da Lei 6.404/1976), ou os entes federativos, na hipótese das empresas públicas (art. 3º da Lei 13.303/2016).
Restavam, portanto, às pessoas naturais duas opções: desempenhar diretamente as atividades negociais[3], respondendo ilimitadamente pelas obrigações advindas desse exercício, nos termos do art. 391 do Código Civil[4], ou buscar um sócio a fim de cumprir a exigência da pluripessoalidade permanente, então obrigatória para todas as sociedades criadas por pessoas físicas, a fim de obter o benefício da limitação de sua responsabilidade[5].
Sem embargo, é necessário frisar que, em diversas situações, o empreendedor pessoa natural não pretendia ter efetivamente um sócio, mas valia-se de outrem para cumprir o requisito formal da pluralidade, facultando-lhe participação societária praticamente irrisória, muitas vezes menor que 1% (um por cento) do capital social, e nenhuma atuação significativa na gestão da sociedade[6].
A utilização de um sócio de palha, especialmente como meio de inviabilizar à responsabilização do sócio controlador perante os terceiros credores, sofreu diversas críticas da doutrina por ser considerada um abuso do instituto da sociedade, um uso fraudulento da estrutura concebida pelo legislador[7].
Essa prática, que pode ser caracterizada como abuso da personalidade, seja pelo desvio de finalidade do instituto da sociedade, ao ser criada como um subterfúgio, seja pela eventual confusão patrimonial entre o ente e seu controlador, daria margem à desconsideração de sua personalidade jurídica pelo Poder Judiciário, consoante o art. 50 do Código Civil.
Por outro lado, a pessoa natural ao exercer a atividade econômica em nome próprio, assumiria a responsabilidade total e irrestrita sobre o desempenho dos negócios. Essa diferença considerável no risco assumido em relação às sociedades com responsabilidade limitada acabava por desestimular o exercício solitário das atividades econômicas[8].
Nesse prisma, Sylvio Marcondes Machado[9] lecionava desde 1956 que a dinâmica contemporânea das relações jurídicas concernentes ao desenvolvimento de atividades econômicas não se harmonizava com a ideia de ilimitação da responsabilidade da pessoa natural que atua no mercado.
Já Antonio Martins Filho[10], ao defender a inserção da limitação da responsabilidade do empreendedor pessoa natural no direito brasileiro, se referia a esta como a última fase do processo evolutivo da limitação de riscos, questionando o panorama legal que possibilitava a limitação de responsabilidade quando duas ou mais pessoas estão reunidas por meio de sociedade e determinava a responsabilização ilimitada quando o exercício era feito por pessoa singular.
Outro argumento elencado pela literatura que apontava para a incongruência do sistema então vigente seria a violação ao postulado da isonomia, uma vez que não haveria razões suficientes para justificar o tratamento diferenciado entre aqueles que desempenham negócios coletiva (como, por exemplo, por intermédio de uma sociedade limitada) ou individualmente[11].
Nesse contexto, a doutrina[12] apresenta essencialmente duas técnicas para a limitação da responsabilidade da pessoa natural que realiza atividade negocial: i. a afetação de parcela do patrimônio especificamente para o desenvolvimento de negócios; e ii. a constituição de pessoa jurídica de titular único, notadamente concebida na forma de sociedade unipessoal[13], as quais se passam a analisar.
3 ANÁLISE COMPARATIVA ENTRE AS TÉCNICAS DE LIMITAÇÃO DA RESPONSABILIDADE DA PESSOA NATURAL
Quanto à primeira técnica de limitação de responsabilidade da pessoa natural, por meio da afetação, cabe destacar que esta só foi possível com a superação da teoria clássica subjetiva da conceituação de patrimônio, estudada notadamente pelos juristas franceses Charles Marie Barbe Antoine Aubry e Charles Frédéric Rau.
Para tais autores, o patrimônio seria uma universalidade de direito, um conjunto de bens que, apesar de natureza e origem distintas entre si, se encontram reunidos pelo fato de pertencerem a uma mesma pessoa. Desse modo, entendem que a ideia de patrimônio derivaria da própria noção de personalidade[14]/[15].
Assim sendo, diante dessa estreita conexão entre patrimônio e personalidade, não seria possível se admitir uma pessoa sem patrimônio, mesmo que negativo. Ademais, se depreendia dessa íntima relação que o patrimônio, tal qual a personalidade, seria sempre uno e indivisível, consequentemente, impossível de ser afetado[16].
Orlando Gomes (2016, p. 203), a seu turno, resume essa visão doutrinária em quatro princípios fundamentais: i. só as pessoas, naturais ou jurídicas, podem ter patrimônio; ii. toda pessoa tem necessariamente um patrimônio; iii. cada pessoa só pode ter um patrimônio; e iv. o patrimônio é inseparável da pessoa.
De acordo com Caio Mário da Silva Pereira (2015, p. 399) as principais vantagens dessa unicidade patrimonial seriam i. a garantia dos credores, haja vista que todos os bens do devedor a princípio amparariam a satisfação do débito, e ii. a fixação do estado patrimonial do de cujus no momento da abertura da sucessão.
Contudo, tal conceito de patrimônio foi sendo revisitado ao longo do tempo pela doutrina, especialmente por causa de sua incapacidade de lidar com algumas previsões legais expressas em sentido oposto a tais lições. Nesse sentido, por exemplo, Sylvio Marcondes Marchado (1970, p. 91), ao comentar o art. 57 do Código Civil de 1916, salientava a coexistência entre o patrimônio e a herança:
Em face de nosso direito positivo, portanto, o patrimônio e a herança – para ficar apenas nessas universalidades – são universalidades de direito. E mais. Colocado o observador na posição do herdeiro, verifica-se que elas coexistem, por pertinência ao mesmo titular. Sem negar aos objetos de direito o suporte do sujeito de direito, o legislador pátrio contradiz, assim, a indivisibilidade e, pois, a unicidade do patrimônio, deduzidas ambas pela teoria clássica. (grifo do autor)
Para a doutrina moderna objetivista, não haveria sempre uma unidade patrimonial, podendo existir simultaneamente, em relação a uma pessoa, um patrimônio geral e patrimônios separados ou autônomos, destinados à atingimento de um propósito previamente estipulado, nos termos previstos em Lei[17]. Dessa maneira, o patrimônio separado seria “o conjunto de bens coesos pela afetação a fim econômico determinado”[18] (GOMES, 2016, p. 210).
No direito brasileiro, a possibilidade de constituição de patrimônio de afetação está prevista, por exemplo, no âmbito das incorporações imobiliárias como umas das garantias do sistema de proteção dos adquirentes[19], ante o art. 31-A da Lei 4.591, de 16.12.1964, incluído pela Lei 10.931, de 02.08.2004.
Nesse quadro, o patrimônio separado serve como uma importante figura direcionada à salvaguarda do prosseguimento das obras e da efetiva entrega das unidades autônomas a seus compradores, mesmo que a incorporadora passe dificuldades financeiras, inclusive em caso de sua falência[20].
Entretanto, no que tange à limitação de responsabilidade da pessoa natural que desenvolve atividade econômica, a legislação nacional não traz qualquer possibilidade de instituição de patrimônio segregado voltado exclusivamente ao risco do negócio desempenhado.
Diferentemente, verbi gratia, do direito português que concebe no art. 1º do Decreto-Lei 248, de 25.08.1986, o estabelecimento mercantil individual de responsabilidade limitada, espécie de afetação de patrimônio formulada por pessoa natural para o exercício de atividade de comércio[21].
A intenção do legislador lusitano, conforme se percebe da Exposição de Motivos do Decreto-Lei 248/1986[22], foi clara no sentido de permitir à pessoa natural a limitação do risco empresarial, optando-se, todavia, pela técnica do patrimônio separado a fim de se preservar a conceituação clássica de sociedade como contrato, a qual seria incompatível com a unipessoalidade permanente[23].
Em terras brasileiras, Sylvio Marcondes Machado é considerando o principal defensor da adoção da limitação de responsabilidade por meio de afetação de patrimônio[24]. Para o autor, a afetação de patrimônio seria o melhor expediente para conceder a limitação de responsabilidade à pessoa natural, haja vista que, segundo ele, não seria possível a constituição de uma sociedade unipessoal por ausência de pluripessoalidade, ainda que mediante uma sociedade fictícia, composta pelo verdadeiro titular do negócio e um sócio de palha, para cumprimento do referido requisito legal[25].
Sem embargo, a concepção de sociedades unipessoais permanentes não é só possível, como foi paulatinamente reconhecida em diversos ordenamentos jurídicos, não havendo qualquer impossibilidade concreta de seu uso no direito brasileiro. Ademais, a utilização da técnica de limitação de responsabilidade por meio da sociedade unipessoal possui algumas vantagens em relação à criação de patrimônios de afetação.
Primeiramente, cabe ressaltar que, na afetação, ainda que o empreendedor utilize o mecanismo da firma, o discernimento entre o patrimônio geral e especial se encontra bem menos perceptível do que no caso da sociedade unipessoal em relação a seu sócio, especialmente no que se refere aos lucros obtidos na exploração da atividade econômica, o que poderia aumentar as chances de haver confusão patrimonial e conflitos de interesses[26].
Além disso, a técnica do patrimônio separado, a princípio, não permite a admissão de novos parceiros a fim de se ampliar os negócios, diferentemente da estrutura societária que, nos termos dos arts. 1.113 e 1.115 do Código Civil, facilita a transformação da sociedade unipessoal para a pluripessoal, sem prejudicar os direitos de terceiros[27].
De outro giro, no que se refere ao patrimônio afetado, haveria também uma dificuldade maior na inclusão ou exclusão de bens vinculados ao desempenho da atividade, uma vez que as modificações nesse conjunto de bens poderiam afetar substancialmente a garantia dos credores, sejam os pessoais, sejam referentes aos negócios[28].
Igualmente, impende salientar que a ausência da atribuição da personalidade jurídica inibiria a obtenção de financiamento dos negócios desvinculado da esfera privada do empreendedor, tendo em conta que concerniria a pessoa natural celebrar os contratos de mútuo, obstaculizando, portanto, o acesso ao crédito[29].
Por outro lado, destaca-se o fato de que as possibilidades de transferência por ato inter vivos a outrem da universalidade especial seriam mais limitadas, justamente para preservar os interesses dos credores.
Nesse sentido, recordar-se, por exemplo, da norma insculpida no art. 1.145 do Código Civil, que declara a ineficácia do trespasse realizado por alienante que não possua bens suficientes para pagar seu passivo, salvo se houver o pagamento de todos os credores ou o consentimento, expresso ou tácitos, destes no prazo de 30 (trinta) dias a contar de sua notificação.
No caso de falecimento da pessoa natural, a transferência do patrimônio separado causa mortis seria ainda mais problemática, posto que é muito difícil haver um consenso entre os herdeiros acerca da forma de continuidade da atividade ou da forma de alienação a terceiros, de modo que, o mais provável seria a liquidação do conjunto especial de bens no juízo do inventário[30].
Considerando todas essas diferenças, entende-se que a técnica de limitação de responsabilidade por meio de constituição de sociedade unipessoal se torna muito mais vantajosa para a pessoa natural que pretende exercer atividade econômica em relação à criação de patrimônio afetado[31]. Contudo, a EIRELI não se destina apenas para esse fim, como se demonstrará a seguir.
4 OUTRAS FINALIDADES DA EIRELI
Ainda que se reconheça que o principal intuito vislumbrado pelo legislador ao introduzir a EIRELI foi possibilitar, por meio da estrutura societária, a limitação de responsabilidade da pessoa natural empreendedora, não se pode negar que a redação final do caput do art. 980-A facultou a constituição dessa sociedade unipessoal também por pessoa jurídica, ainda que haja corrente doutrinária divergente[32].
Isso se dá porque a redação final dada à norma expressa que a EIRELI “será constituída por uma única pessoa titular”, sem qualificá-la, dando margem tanto a instituição por pessoa natural, como jurídica, mesmo que não detenha natureza societária, como fundações e associações[33].
Nesse ponto de vista, a empresa individual de responsabilidade limitada pode ser utilizada no bojo da organização de estruturas complexas, sendo instrumento para descentralização de atividades pela pessoa jurídica instituidora.
Contudo, destaca-se que essa instrumentalização pode, no aspecto subjetivo, ser ainda mais ampla do que no caso da subsidiária integral, considerando-se que esta última só poderia ser constituída por sociedade brasileira conforme o art. 251 da Lei 6.404/1976, enquanto a EIRELI pode ser criada por qualquer pessoa, sem restrição quanto ao tipo ou a sua nacionalidade.
Por fim, enfatiza-se que a EIRELI também pode ser usada como meio de se obter uma tributação significativamente menor[34] para a pessoa natural que exerce atividade econômica simples, cuja a receita bruta anual não seja superior a R$ 4.800.000,00 (quatro milhões e oitocentos mil reais), ante o art. 3º da Lei Complementar 123, de 14.12.2006, com a redação dada pelo art. 1º da Lei Complementar 155, de 27.10.2016.
Em que pese o fato de o art. 2º da Lei Complementar 139, de 10.11.2011 ter modificado a Lei Complementar 123/2006 para incluir expressamente a EIRELI, entende-se que a esta figura, mesmo antes da menção explícita, já poderia se valer do regime especial, haja vista que o art. 3º do diploma de 2006, desde sua concepção original[35], se referia às sociedades, sejam empresárias ou não.
Nesse ponto, cabe salientar, no entanto, que esse tratamento diferenciado não é extensível à empresa individual de responsabilidade limitada constituída por pessoa jurídica, uma vez que o art. 3º, § 4º, da Lei Complementar 123/2006 veda sua aplicação à sociedade de cujo capital participe outra entidade de direito privado.
Em contrapartida, frisa-se que a pessoa natural que desempenha uma empresa não necessita da formação de EIRELI para receber esses benefícios fiscais, haja vista que o caput do supramencionado dispositivo mencionada expressamente “o empresário a que se refere o art. 966 da Lei 10.406, de 10.01.2002”.
Dessa maneira, se constata, portanto, que a constituição da empresa individual de responsabilidade limitada para fins de obtenção do regime diferenciado da microempresa e da empresa de pequeno porte interessa sobretudo às pessoas naturais que desenvolvem atividades econômicas simples, as quais, sem a utilização da estrutura societária, não poderiam usufruir das vantagens previstas na Lei Complementar 123/2006.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste trabalho, percebeu-se que o principal intuito vislumbrado pelo legislador ao introduzir a EIRELI foi possibilitar, por meio da estrutura societária, a limitação de responsabilidade da pessoa natural empreendedora, a qual, a princípio, não gozaria desse direito, consoante o art. 391 do Código Civil.
No entanto, restou demonstrado que a legislação em vigor, também oportuniza o uso da EIRELI como meio de se obter uma tributação significativamente menor para a pessoa física que exerce atividade econômica simples, cuja a receita bruta anual não seja superior a R$ 4.800.000,00 (quatro milhões e oitocentos mil reais), através do regime diferenciado da microempresa e da empresa de pequeno porte, fixado na Lei Complementar 123/2006.
Além disso, reconheceu-se que a composição escrita utilizada pelo legislador na redação do caput do art. 980-A da Codificação de Direito Privado permitiu a adoção de uma terceira funcionalidade ao instituto.
Isto porque, ao se empregar a expressão “constituída por uma única pessoa titular”, não sendo esta sócia definida expressamente como pessoal natural, propiciou a constituição de EIRELI por pessoa jurídica, de modo que a sociedade unipessoal passou a ser aproveitada na composição de estruturas econômicas sofisticadas, como ferramenta para descentralização de atividades por sua instituidora.
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Notas de Rodapé
[1] Doutor em Direito de Empresa e Atividades Econômicas pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
[2] Nessa direção é a justificativa da referida Proposta de Lei: “Pelo menos desde os primeiros anos da década de 80, discute-se, no Brasil, a instituição da figura da ‘empresa individual de responsabilidade limitada’ ou, simplesmente EIRL. A idéia foi analisada no âmbito do Programa Nacional de Desburocratização, conduzido à época por seu criador, o saudoso Ministro Hélio Beltrão. Na ocasião, tinha-se em mente aplicar o conceito apenas às microempresas, cujo estatuto estava sendo então concebido pela equipe do programa. A prioridade no tratamento da questão tributária fez com que o exame da proposta de criação das EIRLs fosse adiado.
Já na década de 90, no âmbito do Programa Federal de Desregulamentação, com o apoio e a colaboração dos então dirigentes do Departamento Nacional do Registro do Comércio, tive a oportunidade de apresentar ao governo um anteprojeto sobre o assunto. O propósito era permitir que o empresário, individualmente, pudesse explorar atividade econômica sem colocar em risco seus bens pessoais, tornando mais claros os limites da garantia oferecida a terceiros.
A essa altura, o conceito de ‘sociedade unipessoal de responsabilidade limitada’, adotado na França e em outros países (ou de ‘estabelecimento individual de responsabilidade limitada’, utilizado em Portugal) já estava inserido no direito europeu. O próprio Conselho da Comunidade Européia havia publicado uma diretriz com o objetivo de harmonizar o conceito no âmbito comunitário” (BRASIL, 2009a, p. 2-3).
[3] Optou-se por utilizar essa terminologia “atividades negociais” pelo fato de que a configuração da empresa individual de responsabilidade individual dada pela Lei 12.441/2011 permite a existência de EIRELI não empresária, a despeito de seu nomen juris. Nesse sentido, aduz Fábio Ulhoa Coelho (2014, p. 377): “Não devemos nos impressionar com a designação legal dada ao instituto: ‘empresa’. Embora, a [sic] primeira vista, ela sugira que a EIRELI não poderia se dedicar a atividades econômicas não empresariais (como são, no direito brasileiro, as exploradas pelos profissionais liberais), o certo é que não tem, decididamente, tal alcance. A mesma expressão vem empregada, no Código Civil e em outras legislações (como a trabalhista, por exemplo) em sentido diverso do que empregam os comercialistas mais cuidadosos. Empresa, neste contexto mais amplo, é sinônimo de ‘atividade econômica’, incluindo as classificadas juridicamente como não empresariais.
Deste modo, pode-se falar em EIRELI-simples. Como o art. 983 do CC admite que a sociedade limitada possa ser simples ou empresária; e como o art. 980-A, § 6º, do CC, manda aplicar à EIRELI as normas das sociedades limitadas; então, não pode haver dúvidas de que a EIRELI pode ser tanto simples como empresária” (grifo do autor).
[4] Não se desconhece, entretanto, que tal regra comporta exceções, como o bem de família legal estabelecido pelo art. 1º da Lei 8.009, de 29.03.1990.
[5] No mesmo sentido é o magistério de Adalberto Simão Filho (2015, p. 194): “[…] esta nova figura jurídica poderá se prestar a ser uma alternativa válida para a viabilização da atividade empresarial com a limitação de responsabilidade, tanto aos que pretendem nela se iniciar como aos pequenos empreendedores, afastando a necessidade de constituição de sociedades pró-forma, apenas para cumprir a pluralidade do quadro social, numa situação nefasta àquela pessoa que apenas detinha participação social ilusória, na medida em que acabava por correr todos os riscos fiscais, ambientais, trabalhistas e civis, inerentes à atividade empreendida, sem qualquer chance de defesa”.
[6] Segundo Nilton Serson (2012, p. 147-148): “A Eireli nasce, notadamente, da vontade do legislador de fazer uma depuração de um ambiente lícito societário que vinha sendo conspurcado pela exigência de toda e qualquer sociedade ter necessariamente mais de um sócio. Assim, para poder-se estar em sociedade, criou-se a figura do sócio controlador com 99% das quotas sociais e um sócio fantoche, quase sempre partícipe, com 1% ou menos das quotas sociais, sem qualquer função de gestão e alheio aos desígnios societários. Tal simulação do sócio minoritário que presta gratuita ou interessadamente o quantum satis de cooperação pessoal da manutenção da aparência criada cai, por assim agora ser, em desuso” (grifo do autor).
[7] Nessa perspectiva, até mesmo José Inácio Ferraz de Almeida Prado Filho (2004, p. 93-94), que defende a validade das sociedades fictícias, reprova seu emprego como instrumento de fraude contra o interesse de terceiros credores: “Afinal, pode-se concluir que as sociedades fictícias não padecem que qualquer vício que lhes atinja o plano da validade. Não existente na sua constituição nenhuma divergência entre a vontade das partes e suas declarações. Os participantes que nela tomam parte querem o negócio nos exatos e precisos termos em que foi celebrado de forma que a sociedade constituída é real e efetivamente querida por todos os contratantes, nos exatos termos do contrato firmado. Não fosse suficiente, também não se encontra, na constituição de sociedade de favor, a clandestinidade que é peculiar aos contratos simulados.
Dessa forma, a constituição das sociedades fictícias representa hipótese de negócio indireto. E hipótese lícita, uma vez que não existe, em nosso ordenamento, nenhuma proibição de resultado no tocante à segregação patrimonial ou limitação de risco do empresário individual. A questão coloca-se como pura e simples ausência de meios diretos para obter tais resultados, que o negócio indireto vem a suprir temporariamente, até que o legislador digne-se a tratar do assunto.
A validade das sociedades fictícia [sic] não pode, obviamente, representar uma espécie de salvo conduto para a perpetração de fraudes contra terceiros.
[…]
Na criação de sociedades com o exclusivo intento de fraude, representando essa constituição simplesmente o processo escolhido para causar a terceiros um prejuízo econômico, não mais subsistirá o obstáculo ao levantamento da forma utilizada.
Trata-se, em outras palavras, da verificação de abuso de forma, a autorizar a desconsideração da personalidade jurídica, de resto aplicável em qualquer hipótese de utilização das formas societárias para a fraude a terceiros, e que não é exclusividade das sociedades fictícias” (grifo do autor).
[8] Acerca da importância do cálculo do risco de perdas patrimoniais, Marcelo Andrade Féres (2003, p. 174-176) leciona que: “Seguindo essa orientação, o empresário é aquele que, por sua iniciativa, assume os riscos de uma determinada atividade. Ele experimenta todo o gosto do sucesso, bem como o amargo de eventuais perdas. E, esse risco de perdas patrimoniais, no mais das vezes, é fator determinante a orientar a exclusão de um indivíduo do mercado, onde a competição cresce em progressão geométrica.
Para que um sujeito ingresse numa atividade econômica ou mesmo para nela se manter é imprescindível que ele goze de mecanismo que lhe permitam sopesar de antemão suas eventuais perdas. É o chamado cálculo do risco empresarial, que deve permear toda e qualquer atividade seriamente desempenhada.
[…]
A limitação da reponsabilidade dos sujeitos que exercem atividades econômicas de risco atua no sentido da distribuição social desses mesmo riscos. Ao se esquivar juridicamente da reponsabilidade ilimitada sobre seus débitos, o sujeito tem como demandar menor remuneração do seu capital, revertendo-se o fato em benefício de toda a coletividade”.
[9] Assim aduz o Sylvio Marcondes Machado (1956, p. 11-12): “O princípio da responsabilidade individual ilimitada, especialmente no caso de pessoas físicas, não se coaduna com os caracteres da atividade econômica moderna. A extensão e o complicado entrelaçamento dos negócios, a enorme dificuldade de previsão nas operações comerciais e industriais, os riscos e perigos que as circundam na interdependência, frequentemente mundial, dos fatos econômicos, impõem a limitação dos riscos patrimoniais”.
[10] Desse modo, Antonio Martins Filho se manifestou (1950, p. 25-26): “Depois, com o advento do direito pretoriano, sensível modificação operou-se relativamente ao devedor em mora, pois, sendo admitida a execução real, a responsabilidade pela dívida contraída deixou de encerrar um vínculo exclusivamente pessoal e passou a ser considerada uma relação de órdem patrimonial.
Já então não mais a pessoa física do devedor, porém os seus bens, passam a representar a garantia comum dos seus credores.
De início, a totalidade dos bens. Depois, apenas uma parte deles… desde que o devedor exerça a mercancia por meio de determinadas formas societárias.
A essa altura, parece oportuno inquerir:
– Se duas pessoas associadas podem limitar a responsabilidade, porque isoladamente lhes é vedado fazê-lo? Não é verdade que a limitação dos riscos, em matéria de direito civil, constitue problema de órdem técnica e, pois, capaz de ser solucionado pelo acolhimento de novo instituto jurídico?
Noutras palavras: como explicar o estacionamento do processo evolutivo da limitação da responsabilidade na empresa comercial societária, quando é evidente que a última etapa dessa evolução está na empresa do comerciante individual?
– O tradicional argumento da ‘indivisibilidade do patrimônio’ e outros que tais, poderão ser invocados, à guisa de resposta a essas interrogações. Mas, a eles teremos ensejo de abordar, em outro capítulo deste trabalho.
Por enquanto limitamo-nos a reconhecer que a emprêsa individual de responsabilidade limitada representa um imperativo da hora presente, isto é, mais uma pressão dos fatos sôbre a lei” (grifo do autor).
[11] Nesse sentido, Marcelo Andrade Féres (2003, p. 185-186) chega a afirmar que esse tratamento distinto não estaria de acordo com a Constituição da República: “Portanto, a limitação da responsabilidade do empresário individual no Brasil, seja através da adoção da teoria do patrimônio separado, seja preferencialmente, pela normalização da sociedade unipessoal, é questão urgente, tendo-se em vista a ordem constitucional. É constitucionalmente incoerente que o exercício da atividade empresarial, mediante constituição de sociedades, pessoas jurídicas, ofereça maior segurança e menores riscos do que o seu exercício individual. Onde, nesse atual contexto, estaria a realização dos fundamentos da República?
Num Estado Democrático de Direito, que tem, dentro seus fundamentos, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, não pode subsistir essa paradoxal situação das técnicas de limitação da responsabilidade empresarial.
Somente a pronta limitação da responsabilidade do ser humano que procede à empresa individualmente pode restabelecer o equilíbrio rompido. É imprescindível à restauração da dignidade da pessoa humana a sua equiparação, em riscos e oportunidades, às pessoas jurídicas”.
[12] Conforme Tatiana Facchim (2010, p. 47): “A busca da limitação de responsabilidade do empresário individual deu-se, historicamente, de duas formas: pela via da sociedade unipessoal e pela via não societária da separação patrimonial”.
No mesmo sentido, Marcelo Andrade Féres (2003, p. 177): “Contemporaneamente, são conhecidos do Direito dois mecanismos de limitação da responsabilidade daqueles que desejam desenvolver uma atividade empresarial sozinhos: o patrimônio separado e a sociedade unipessoal”.
[13] Neste ponto, cabe salientar que a natureza jurídica da empresa individual de responsabilidade limitada é objeto de intensos debates na doutrina. Entretanto, para fins deste trabalho, adota-se o posicionamento de Alexandre Ferreira de Assumpção Alves (2014, p. 139), classificando-a como sociedade unipessoal.
[14] Nas palavras de Charles Marie Barbe Antoine Aubry e Charles Frédéric Rau (1953, p. 3): “O patrimônio é conjunto de bens de uma pessoa, considerado como uma universalidade de direito, isto é, uma massa de bens que, de natureza e origem diversas, e materialmente separadas, somente são unidos em razão do fato de que pertencem a uma mesma pessoa. A ideia de patrimônio é corolário da ideia de personalidade” (tradução nossa).
[15] O texto em língua estrangeira é “Le patrimoine est l’ensemble des biens d’une personne, envisagé comme formant une universalité de droit, c’est-à-dire une masse de biens, qui, de nature et d’origine diverses, et matériellement séparés, ne sont réunis par la pensée qu’en considération du fait qu’ils appartiennent à une même personne. L’idée de patrimoine est le corollaire de l’idée de personnalité” (Ibidem).
[16] Conforme Eric Fonseca Santos Teixeira (2012, p. 54): “Em razão da relação existente entre a personalidade e o patrimônio, a teoria clássica considera impossível conceber uma pessoa sem patrimônio. Além disso, dada a dificuldade de se distinguir o patrimônio e a personalidade, os clássicos consideram aquele, da mesma forma que esta, uno e indivisível”.
[17] Consoante os ensinamentos de Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda (2007, p. 379): “Todo patrimônio é unido pelo titular único, ou por titulares em comum, mas únicos. Isso não quer dizer que a cada pessoa só corresponda um patrimônio; há o patrimônio geral e os patrimônios separados ou especiais. Somente a lei pode separar patrimônios”.
Por sua vez, Caio Mário Pereira da Silva (2015, p. 2010) comenta que: “Os escritores modernos imaginaram a construção de uma teoria chamada da afetação, através da qual se concebe uma espécie de separação ou divisão do patrimônio pelo encargo imposto a certos bens, que são postos a sérviços de um fim determinado. Não importa a afetação uma disposição do bem, e, portanto, na sua saída do patrimônio do sujeito, mas na sua imobilização em função de uma finalidade. Tendo sua fonte essencial na lei, pois não é ela possível senão quando imposta ou autorizada pelo direito positivo, aparece toda vez que certa massa de bens é sujeita a uma restrição em benefício de um fim específico”.
[18] Não se desconhece que haja doutrina que busca diferenciar os conceitos de patrimônio separado e autônomo, sendo o primeiro uma massa de bens segregado do patrimônio geral destinado para a um determinado fim, mas pertencente à mesma pessoa. Já o segundo, seria um patrimônio novo e independente, com finalidade própria, sendo objeto de direitos e obrigações destinadas de seu antigo titular. Contudo, para fins deste artigo, utiliza-se essas expressões como sinônimas. Para melhor estudo sobre essas distinções, recomenda-se as lições de Francesco Messineo na seguinte obra: MESSINEO, Francesco. Manuale di diritto civile e commerciale: Diritti della personalità. Diritti della famiglia. 8. ed. Milão: Giuffrè. Diritto reali. 1952. 8 v, V. 2.
[19] Segundo Melhim Nanem Chalhub (2010, p. 295-296): “O sistema de proteção dos adquirentes de unidades imobiliárias no regime das incorporações sustenta-se nos mesmos princípios do sistema de proteção dos consumidores em geral, e ambos encontram fundamento, basicamente, nos princípios constitucionais da isonomia, do devido processo legal e da garantia de propriedade privada, observada sua função social, os quais, por sua vez, inspiram-se nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º, III e IV), fundados no desenvolvimento humano e na dignidade da pessoa humana (arts. 5º, XXII e XXIII, e 170)” (grifo do autor).
[20] Melhim Namem Chalhub (2004, p. 11), ao comentar o mérito das modificações da Lei 4.591/1964 pela Lei 10.931/2004, assevera que: “Já a nova lei sobre as incorporações imobiliárias, que agora entrou em vigor, cria um regime especial de segregação patrimonial, denominado ‘patrimônio de afetação’, que visa a assegurar a continuação da obra e entrega dos apartamentos aos adquirentes, mesmo em caso de falência da incorporadora” (grifo do autor).
[21] Na dicção de José Augusto Quelhas Lima Engrácia Antunes (2006, p. 401): “O ‘Estabelecimento Individual de Responsabilidade Limitada’ (doravante abreviadamente ‘EIRL’) – figura introduzida na ordem jurídica portuguesa através do Decreto-Lei 248/86, de 25 de Agosto – consiste genericamente num património autónomo de uma pessoa singular através do qual esta pode desenvolver uma actividade comercial beneficiando de uma limitação de sua responsabilidade pelas dívidas emergentes do respectivo exercício” (grifo do autor).
[22] Exposição de Motivos do Decreto-Lei 248/1986: “Como também já se aduziu, o exercício profissional da actividade mercantil implica pesados riscos: é a álea inerente ao comércio. Para alcançar benefícios, importa correr o risco de suportar graves prejuízos. Prejuízos que no limite podem acarretar a ruína da empresa, sendo certo que, no quadro do direito vigente, é muito difícil que a ruína da empresa não arraste consigo a do próprio empresário (individual) e virtualmente a da sua família: de facto, é princípio acolhido na generalidade dos sistemas jurídicos o de que o devedor responde com todo o seu património pelas obrigações validamente assumidas. Por outro lado, a regulamentação a que o nosso direito sujeita as dívidas comerciais dos devedores casados em regime de comunhão (v. Código Civil, art. 1.691, n. 1, alínea d, e Código Comercial, arts. 15º e 10º), associada à realidade sociológica portuguesa (são poucos entre nós os casamentos em que vigora o regime de separação de bens), torna pouco provável que a falência do comerciante não consuma o melhor do património familiar.
O juízo favorável à limitação de responsabilidade do empresário singular, que daqui emerge, não se altera se forem perspectivadas as coisas do ponto de vista do interesse da própria organização mercantil, ou seja, da empresa. Certo é que os credores da empresa perdem agora a vantagem de poderem executar a totalidade do património do empresário e do seu casal, mas ganham em troca a de verem os bens investidos no estabelecimento rigorosamente afectados ao pagamento das dívidas contraídas na respectiva exploração. Efectivamente, qualquer que seja a opção tomada quanto ao enquadramento jurídico do novo instituto, sempre ela há-de ter por base a constituição de um património autónomo ou de afectação especial, com o regime característico (bem conhecido) desta figura.
Ponto é que, ao delinearem-se os contornos jurídicos do instituto, efectivamente se acautelem os vários interesses envolvidos, quer exigindo a destinação ao escopo mercantil de uma massa patrimonial de valor suficientemente elevado, quer instituindo os necessários mecanismos de controle da afectação desse património ao fim respectivo.
[…]
Mas, em contrapartida, não deixa de ser verdade que entre nós (diferentemente do que acontece na Alemanha) nunca se admitiu – entre outras razões, por fidelidade à ideia da sociedade-contrato – a unipessoalidade originária. E não menos certo é, por outro lado, que (e também ao invés do que se passa naquele país) as contribuições doutrinais portuguesas sobre a regulamentação jurídica específica das sociedades de um único sócio são escassas. A hipótese configurada no art. 488º daquele novo Código repercute um regime excepcional, que não altera esta forma de ver as coisas.
Eis porque, tudo pesado, não parece que a figura da sociedade unipessoal, nos latos termos em que passou a ser emitida no direito alemão e francês, seja em Portugal o instrumento jurídico mais apropriado para a solução do problema da limitação de responsabilidade do empresário individual. Mais lógico e mais conforme com os princípios tradicionais do nosso direito se apresenta o outro caminho apontado: a criação de um novo instituto jurídico – o estabelecimento mercantil individual de responsabilidade limitada. Esta se afigura ser a solução preferível, apesar da inovação que representa e das acrescidas dificuldades de regulamentação que determina” (PORTUGAL, 1986) (grifo do original).
[23] Nessa direção também apontou José Augusto Quelhas Lima Engrácia Antunes (2006, p. 405-406): “Reconhecendo também a necessidade de permitir aos empresários individuais uma limitação da sua responsabilidade empresarial, dispunha o legislador português de duas vias ou dois modelos técnico-jurídicos alternativos e fundamentais para a consecução desse desiderato: um modelo de cariz jussocietário, consistente na consagração da figura da sociedade unipessoal, e um outro de cariz jusprivatista geral, consistente no recurso à figura tradicional do património autónomo.
O legislador português optou inequivocamente pelo último destes modelos. No lugar de proceder a uma personificação jurídica da própria empresa individual (seja através da introdução da figura da sociedade unipessoal, seja através da atribuição de personalidade jurídica à própria empresa), o Decreto-Lei 248/86, de 25 de Agosto, configurou o ‘Estabelecimento Individual de Responsabilidade Limitada’ como um mero património autónomo ou de afectação do empresário em nome individual, mediante a segregação ou destacamento, no seio do património geral deste, de um acervo de bens exclusivamente afecto à exploração da atividade económica da sua empresa: com efeito, recusando a subjectivação jurídica do EIRL e erigindo a autonomia patrimonial em cerne do seu regime jurídico-positivo, o legislador estabeleceu que, em via de princípio, os bens afectos ao referido estabelecimento apenas respondem pelas dívidas contraídas na sua exploração (e não pelas dívidas pessoais do comerciante: cf. art. 10º, nº 1) e por estas dívidas respondem apenas aqueles bens (e não os restantes bens pessoais do seu titular: cf. art. 11º, n. 1)” (grifo do autor).
[24] Conforme o entendimento de Tatiana Facchim (2010, p. 52): “Alguns autores brasileiros, como Philomeno Joaquim da Costa e Carlos Celso Orcesi da Costa, defenderam a solução do problema da limitação de responsabilidade do empresário individual por meio da criação de um modelo não societário para o exercício da atividade.
Mas o grande defensor da teoria do patrimônio de afetação como forma de limitação da responsabilidade do empresário individual no Brasil foi, sem dúvida, Sylvio Marcondes Machado, em sua tese de 1956”.
[25] Nos termos empregados por Sylvio Marcondes Machado (1956, p. 42-47): “Predomina na doutrina e na jurisprudência o preconceito da impossibilidade de existir sociedade de um sócio sòmente. Entre os casos de dissolução de sociedade, enumerados no art. 335 do Código, não se incluiu o de reduzir-se a um o número dos sócios. E isso porque, em verdade era desnecessário, por intuitivo. Se o art. 287 do Código precisamente declara ‘ser da essência das companhias e sociedades comerciais que o objeto e fim a que se propõem seja lícito e que cada um dos sócios contribua para o seu capital com alguma quota, ou esta consista em dinheiro ou em efeitos e qualquer sorte de bens ou em trabalho ou indústria’, – perde sua essência a sociedade em que apenas um dos que a formaram entre ou fica a contribuir de maneira oposta à estabelecido pelo Código, confundindo-se o patrimônio social com o do único sócio, se é que êle pode, de então em diante, continuar a ser sócio.
[…]
Dentro da noção clássica do contrato de sociedade, constitui uma verdadeira heresia jurídica a sociedade unipessoal, pois o substantivo sociedade e o adjetivo unipessoal estão em flagrante contradição.
[…]
A formação de um patrimônio e a limitação da responsabilidade do ‘sócio único’, pelo expediente da sociedade fictícia, pode, em verdade, não decorrer de intuito preconcebido de lesar terceiros; êstes, por outro lado, quando negociam com a sociedade anônima ou de responsabilidade limitada, não desconhecem o risco que correm, em face do patrimônio social; não são induzidos a êrro algum, quanto à limitação da responsabilidade do sócio único, que para êles, como tal, inexiste. Não havendo a intenção de enganar, nem terceiros enganados, poder-se-ia sustentar que a sociedade fictícia não configuraria negócio jurídico anulável, pois enquadra-se na figura da simulação inocente, prevista no art. 103 do Código Civil.
Contra a assertiva, porém, é de objetar-se que, embora sem intenção específica de prejudicar credores, a limitação da reponsabilidade do ‘sócio único’ envolve necessàriamente o objetivo latente de restringir-lhes o poder de ação e, ainda, que, à vista do disposto no mesmo texto, não basta, para caracterizar simulação inocente, a ausência de intenção de prejudicar terceiros. É mister, também, não haja intenção de violar disposição de lei. Permite esta, é certo, a limitação da responsabilidade dos sócios, na sociedade de responsabilidade limitada e na anônima, pela formação de uma pessoa jurídica, que, òbviamente, não se confunde com as pessoas de seus componentes, mas exige, como requisitos ou pressupostos essenciais, a concorrência mínima de duas pessoas, na primeira, e de sete, na segunda. Assim, a sociedade fictícia violaria disposição de lei, de ordem pública, que define os requisitos essenciais das referidas sociedades.
[..]
De todo o exposto, parece resultar evidente que as sociedades fictícias e unipessoais constituem expediente indesejável para limitação da responsabilidade” (grifo do autor).
[26] Para Eric Fonseca Santos Teixeira (2012, p. 58-59): “[…] a distinção operada pela teoria do patrimônio separado entre a esfera civil e empresarial do titular do patrimônio especial seria bem tênue, sendo difícil evitar a confusão patrimonial e o conflito de interesses, sobretudo no que tange à distribuição dos resultados da atividade ao titular do patrimônio afetado”.
[27] De acordo com Tatiana Facchim (2010, p. 59): “Outro ponto negativo que se pode citar com relação à limitação de responsabilidade via patrimônio de afetação é a impossibilidade de ampliação do negócio, uma vez que não é possível agregar novos membros ou mesmo incluir ou excluir bens do patrimônio especial, sob pena de violação das garantias ora dos credores particulares do empresário, ora dos credores empresariais”.
[28] Eric Fonseca Santos Teixeira (2012, p. 58) afirma que: “Além disso, a técnica do patrimônio afetado também dificultaria a inclusão ou exclusão dos bens destinados à exploração da empresa, eis que referida alteração patrimonial, em última análise, sempre afetaria a garantia, quer dos credores pessoais, quer dos credores empresariais do titular do patrimônio afetado”.
[29] Conforme Tatiana Facchim (2010, p. 60): “Demais disso, a limitação de responsabilidade que pode ser obtida pela afetação patrimonial não permite ao empresário individual ter acesso a crédito descolado de sua pessoa, o que, a nosso ver, é um dos pontos mais desfavoráveis à solução não societária” (grifo da autora).
[30] Eric Fonseca Santos Teixeira (2012, p. 57) ensina que: “É que, tomando a legislação portuguesa como exemplo, a transferência causa mortis do estabelecimento individual de responsabilidade limitada ficaria condicionada a celebração de acordo entre os herdeiros e o cônjuge supérstite, num prazo de 90 (noventa) dias, sob pena de qualquer interessado poder requerer sua liquidação judicial. (art. 23º, n. 3, do Decreto-lei 248/1986)
Nessa hipótese, diante dos notórios problemas familiares que envolvem a sucessão empresarial, bem como o exíguo prazo fixado pela legislação lusitana, a preservação e, por conseguinte, a continuação da empresa poderiam ser consideradas, na realidade, uma exceção” (grifo do autor).
[31] Não é por mero acaso que, em terras lusitanas, a sociedade por quotas unipessoal se tornou um instituto muito mais utilizado do que o estabelecimento individual de responsabilidade limitada, conforme aponta José Augusto Quelhas Lima Engrácia Antunes (2006, p. 440-441): “Enfim, se outra prova fosse necessário do desacerto da sua opção originário [estabelecimento individual], aí estaria a circunstância de o legislador nacional ter sido forçado a arrepiar caminho ao consagrar entretanto a sociedade por quotas unipessoal, instituindo assim em Portugal um novo figurino de limitação de responsabilidade, semelhante ao previsto por esse mundo fora e indistintamente aplicável a empresários civis e comercias (arts. 270º-A e segs. CSC, introduzidos pelo Decreto-Lei 257/96, de 31 de dezembro).
Em resultado deste errático percurso legislativo, os empresários individuais portugueses passaram assim a dispor, não de um, mas simultaneamente de dois instrumentos jurídicos que lhes permitem uma limitação do seu risco ou responsabilidade empresarial. Qualquer réstia de esperança que ainda porventura fosse depositada no revigoramento prático do já então moribundo modelo privatístico do EIRL no seio da comunidade empresarial portuguesa, ela terá tido aqui o seu derradeiro ‘canto do cisne’ ou ‘golpe de misericórdia’ ante a concorrência do novel modelo societário, o qual, tendo apenas no seu primeiro mês de vigência suscitado mais adesões por parte dos empresários do que o modelo do EIRL logrou obter em cerca de duas décadas, se afirmou em definitivo entre nós como o modelo regulatório da empresa individual de responsabilidade limitada.
Com tudo o que – ressalvado um caso improvável de ressuscitação ‘terá assim nascido (mais) uma das peças do já rico acervo museológico jurídico-comercial lusitano” (grifo do autor).
[32] Nessa orientação segue, por exemplo, o Enunciado 468 da V jornada de direito civil do Conselho da Justiça Federal: “Enunciado 468. Art. 980-A. A empresa individual de responsabilidade limitada só poderá ser constituída por pessoa natural” (BRASIL, 2011).
Em um primeiro momento, o então Departamento Nacional do Registro do Comércio (DNRC) entendia que as EIRELIs só poderiam ser constituídas por pessoas naturais, consoante o item 1.2.11 do manual de registro anexo à Instrução Normativa 117/2011: 1.2.11 – IMPEDIMENTO PARA SER TITULAR.
Não pode ser titular de EIRELI a pessoa jurídica, bem assim a pessoa natural impedida por norma constitucional ou por lei especial. (grifo do original).
Contudo, atualmente, o Departamento de Registro Empresarial e Integração regulamentou no sentido de que não há vedação à constituição de EIRELIs por pessoas jurídicas, conforme se vislumbra do item 1.2.5 do Anexo V da Instrução Normativa 38/2017: 1.2.5 CAPACIDADE PARA SER TITULAR DE EIRELI Pode ser titular de EIRELI, desde que não haja impedimento legal: […] c) Pessoa jurídica nacional ou estrangeira (grifo do original).
[33] Assim é o magistério de Alexandre Ferreira de Assumpção Alves (2014, p. 149-150): “O ponto digno de maior relevo em relação ao caput do art. 980-A é que a ‘permissão’ da constituição de EIRELI por pessoa jurídica, sem restrição quanto à participação em outras EIRELIs, é fruto de uma omissão não intencional na redação do último substitutivo e que acabou prevalecendo. O relatório do Deputado Marcelo Itagiba não traz nenhuma consideração a esse respeito, apenas à terminologia ‘sócio’ no texto.
A menção na redação final do caput a ‘uma única pessoa’, sem caráter excludente ou limitativo, se interpretada sistematicamente com a disposição do § 2º, permite concluir, ainda que em divergência aos PLs 4.605 e 4.953, que é lícita a constituição de EIRELI tanto por pessoa natural quanto jurídica. Nesse aspecto, o texto final alterou substancialmente a proposta originária, uma vez que o objetivo crucial era permitir aos empresários individuais limitar sua responsabilidade, através da constituição de sociedade, ou formalizar a situação de ‘sócio único’, também pessoa natural, em caráter permanente” (grifo do autor).
[34] Cabe destacar que não se desconhece que a Lei Complementar 123/2006 estabelece outras prerrogativas, não tributárias, às microempresas e empresas de pequeno porte, como, por exemplo, a preferência em processos licitatórios, consoante seu art. 44.
[35] “Art. 3º. Para os efeitos desta Lei Complementar, consideram-se microempresas ou empresas de pequeno porte a sociedade empresária, a sociedade simples e o empresário a que se refere o art. 966 da Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002, devidamente registrados no Registro de Empresas Mercantis ou no Registro Civil de Pessoas Jurídicas, conforme o caso, desde que:”.