Julgar é humano
Judging is a human activity
DOI: 10.19135/revista.consinter.00018.09
Recebido/Received 29/06/2023 – Aprovado/Approved 19/01/2024
Rogério Medeiros Garcia de Lima[1] – https://orcid.org/0000-0001-5490-5102
Resumo
O objetivo deste trabalho é demonstrar que a Inteligência Artificial, desenvolvida no contexto da Quarta Revolução Industrial (Revolução 4.0), é ferramenta extremamente útil. Porém, existem atividades que, por suas peculiaridades, não podem ser desempenhadas por robôs. Julgar é uma função predominantemente humana. Parte-se da hipótese de que os Robôs podem ser úteis para movimentar os processos, preparando despachos e decisões sobre matérias simples e repetitivas. Mas não são providos de uma especial consciência de justiça; por isso, não podem proferir decisões em situações complexas. O Direito, desde os primórdios da civilização, evoluiu em um processo aberto e inovador. Essa marcha desaguou, contemporaneamente, na adoção das novas tecnologias e da Inteligência Artificial. Todavia, a conclusão da pesquisa é no sentido de que somente o juiz humano – de carne, osso e cérebro – poderá julgar com justiça. Para tanto, a partir do método dedutivo, foi realizada uma pesquisa teórica na vertente jurídico-sociológica, com foco na teoria de Eduardo Espínola e Eduardo Espínola Filho acerca da necessidade do juiz se atentar para a evolução da vida social, não podendo permanecer alheio à realidade circundante sob pena de ser escravo de um rigorismo teórico de funestas consequências.
Palavras-chave: Direito; interpretação; juiz; tecnologia; robô.
Abstract
The purpose of this paper is to demonstrate that Artificial Intelligence, developed in the context of the Fourth Industrial Revolution, is an extremely useful tool. However, there are activities that cannot be performed by robots, due to their peculiarities. Judging is a predominantly human activity. It is assumed that robots can be useful for moving processes and preparing decisions on simple and repetitive matters. But they are not endowed with a special consciousness of justice. Therefore, they cannot make decisions in complex situations. The historical-deductive method will be used. Law has evolved into an innovative process since the dawn of civilization. Contemporaneously this march resulted in the adoption of new technologies and Artificial Intelligence. However, the conclusion of the research is that only the human judge will be able to judge with justice. To this end, using the deductive method, theoretical research was carried out in the legal-sociological aspect, focusing on the theory of Eduardo Espínola and Eduardo Espínola Filho regarding the need of the judge to pay attention to the evolution of social life, not being able to remain oblivious to the surrounding reality under penalty of being a slave to a theoretical rigorism with disastrous consequences.
Keywords: Law; interpretation; judge; technology; robot.
Sumário: 1. Introdução. 2. O direito como fenômeno cultural. 3. Direito e linguagem. 4. O direito escrito. 5. Direito e novas tecnologias. 6. Juízes robôs. 7. Direito e interpretação. 7.1. Positivismo. 7.2. Hermenêutica estrutural. 7.3. Direito e experiência. 7.4. Princípios. Habermas, esfera pública e ação comunicativa. 8. Considerações finais; 9. Referências.
1 INTRODUÇÃO
O objetivo deste trabalho é demonstrar que a Inteligência Artificial, desenvolvida no contexto da Quarta Revolução Industrial (Revolução 4.0), é ferramenta extremamente útil para o desempenho de profissões. Tanto nos serviços públicos, quanto no setor privado.
Porém, existem atividades que, por suas peculiaridades, não podem ser desempenhadas por robôs.
Será demonstrado que julgar é uma função predominantemente humana com foco na teoria de Eduardo Espínola e Eduardo Espínola Filho acerca da necessidade do juiz se atentar para a evolução da vida social, não podendo permanecer alheio à realidade circundante sob pena de ser escravo de um rigorismo teórico de funestas consequências.
A técnica metodológica adotada foi a de pesquisa teórica, em livros, artigos e normas jurídicas, a partir do método dedutivo na vertente jurídico-sociológica.
Parte-se da hipótese de que os robôs podem ser úteis para movimentar os processos, preparando despachos e decisões sobre matérias simples e repetitivas. Mas somente juízas e juízes humanos podem proferir decisões em situações complexas, a exigir uma especial consciência de justiça – sentimento do qual robôs são desprovidos.
Serão abordados, em sucessivos capítulos e subcapítulos, o direito como fenômeno cultural; a relação da linguagem com o Direito; o advento das leis escritas; as novas tecnologias e o Direito; o surgimento dos juízes robôs; a interpretação do Direito; o positivismo jurídico; a hermenêutica estrutural; o Direito como experiência; e a ação comunicativa na esfera pública.
Toda a argumentação conduzirá à dedução de que os robôs não são capazes de exercer uma interpretação jurídica estrutural e valorativa.
Resumidamente, o Direito, desde os primórdios da civilização, evoluiu em um processo aberto e inovador.
Essa marcha deságuou, contemporaneamente, na adoção das novas tecnologias e da Inteligência Artificial.
Conforme o economista e escritor brasileiro Luiz Carlos Bresser-Pereira, “a realidade social é essencialmente histórica e é intrinsecamente contraditória”. Os indivíduos fazem escolhas, aprendem por meio da experiência e, assim fazendo, “mudam permanentemente as estruturas sociais e principalmente criam cultura e instituições que, por sua vez, mudam as preferências individuais” (PRADO, 2023).
Nas considerações finais, a conclusão é a de que somente o juiz humano – de carne, osso e cérebro – poderá julgar com justiça, afinal, de acordo com o marco teórico da presente pesquisa, apenas quando dotados de consciência e sensibilidade é que poderão decidir causas que, por sua complexidade, exijam tais atributos.
Trata-se de questão com importância teórico-acadêmico-científica e prática diante do real e efetivo avanço na implantação de inteligência artificial nos tribunais do Brasil e do mundo e, assim, há necessidade do estudo acerca das implicações da implementação dos julgamentos por robôs em causas complexas.
Será mostrado que centenas de tribunais brasileiros desenvolvem projetos de Inteligência Artificial (IA), com objetivo de aumentar a produtividade, buscar a inovação, melhorar a qualidade dos serviços judiciários e reduzir custos.
O Poder Judiciário não foi estruturado para enfrentar os desafios dos fenômenos “judicialização da política” e “ativismo judicial”, em um País onde as deficiências estatais representam o cotidiano da sociedade.
A utilização da tecnologia e das novas ferramentas, portanto, são decorrências do princípio da eficiência, constitucionalmente consagrado.
Todavia, é indispensável diferenciar a utilização de sistemas voltados para atividades administrativas, burocráticas, realizadas geralmente por servidores e/ou auxiliares (atividade meramente judicial); e sistemas que auxiliam ou “desempenham” atividade própria do exercício da função de julgar.
Essa diferenciação evitará o retrocesso a um paradigma positivista, com a tomada mecânica de decisões com base em padrão decisório previamente definido, dissociado do caso concreto e sem a fundamentação em contraditório pelo juiz do caso.
Evitará, enfim, a violação a garantias fundamentais como ampla defesa, contraditório, motivação e publicidade, a exemplo do verificado, nos Estados Unidos, com um sistema de IA para dosimetria de penas.
Não há como fugir de considerações de ordem ética. O magistrado não pode adotar postura acomodatícia e transferir para a Inteligência Artificial a responsabilidade decisória. Decidir é um ato personalíssimo e solitário.
A prudência e a imparcialidade são deveres indeclináveis no exercício da jurisdição.
2 O DIREITO COMO FENÔMENO CULTURAL
O Direito é o conjunto de regras de organização e conduta, consagradas pelo Estado. Tais regras são impostas coativamente, a fim de disciplinar a convivência social (LIMA, 1980, p. 31).
Direito e sociedade possuem mútua dependência. Não pode haver sociedade sem Direito. Nenhuma sociedade pode subsistir sem um mínimo de ordem e direção. Conforme Levi-Strauss, o sentido de ordem, longe de ser uma conquista racional no plano da evolução da espécie humana, é uma qualidade imanente no pensamento de todo ser humano – a começar pelo homem selvagem e sem cultura (La pensée sauvage). O Direito, mais do que qualquer outro tipo de controle social, corresponde a essa exigência de ordem, essencial à sociedade e conatural ao ser humano. É a máxima expressão desse imperativo da ordem. Não se concebe o homem fora da sociedade; igualmente, não há convivência das pessoas sem o Direito. Daí o aforismo: ubi societas, ibi jus (onde a sociedade, aí o direito).
Do mesmo modo, não há Direito sem sociedade. O Direito existe na sociedade e em função da sociedade. É essencial à sociedade, mas não prescinde dela. Se uma pessoa é isolada numa ilha deserta, para ela não importarão regras de conduta. Não existem relações jurídicas sem substractum social. Vale a recíproca da fórmula latina: ubi jus, ibi societas (onde o direito, aí a sociedade) (BETIOLI, 2008, p. 9-10).
O sistema jurídico – a começar pela Constituição – integra a cultura de um povo (PONTES DE MIRANDA, 1967, p. 3).
Apesar de o Direito conter corpo teórico e técnico próprio, não se subtrai às abordagens sociológicas, antropológicas, políticas e econômicas, pois é exatamente nessas esferas que ele surge. O Direito, portanto, é uma construção cultural (IAMUNDO, 2013, p. 20-21).
Escrevia Eduardo Frieiro: “A civilização do homem não reside no homem: acha-se nas bibliotecas, nos museus e nos códigos” (FRIEIRO, 1969, p. 8).
3 DIREITO E LINGUAGEM
A linguagem é um arquivo de experiências e noções práticas, transmitidas de geração a geração. É um dos fatores mais decisivos de socialização da espécie humana:
Ela é, como muito bem observa Louis Weber, ‘o instrumento da técnica social, do mesmo modo que o soco, a clava, a flecha o são da técnica industrial’, tendo concorrido com o emprego destes e de outros instrumentos e com o uso do fogo, para que a humanidade, mental e socialmente, se elevasse e prosseguisse, no seu evolver, muito além da escala em que estacionaram as outras espécies (PIMENTA, 1963, p. 393-394).
Na abertura da sua obra Política, Aristóteles afirmava que somente o homem é um “animal político”, isto é, social e cívico, porque somente ele é dotado de linguagem:
Os outros animais, escreve Aristóteles, possuem voz (phoné) e com ela exprimem dor e prazer, mas o homem possui a palavra (lógos) e, com ela, exprime o bom e o mau, o justo e o injusto. Exprimir e possuir em comum esses valores é o que torna possível a vida social e política e, dela, somente os homens são capazes (CHAUÍ, 2005, p. 119, negritos no original).
Enfim, observou o historiador israelense Yuval Noah Harari: “O Homo sapiens conquistou o mundo, acima de tudo, graças à sua linguagem única” (HARARI, 2016, p. 27).
O Direito possui um vocabulário próprio. Cada ciência exprime-se numa linguagem. Onde quer que exista uma ciência, existe uma linguagem correspondente. Cada cientista tem a sua maneira própria de se expressar. Isso também acontece com a Jurisprudência ou Ciência do Direito. Os juristas falam uma linguagem multimilenar (REALE, 1978, p. 8).
4 O DIREITO ESCRITO
O costume é um modo de agir que, pela continuidade de tempo ou força da tradição, torna-se comum e obrigatório para todos os membros de uma coletividade.
Nos povos primitivos, o costume fundia a religião, a moral e o direito em um mesmo bloco de ritos:
Mas não só nas sociedades pré-históricas, como nos povos já em alto nível de civilização, tem sido o costume a força de maior resistência e estabilidade das instituições, muitas das quais, ou na sua quase totalidade, dele emergiram ou dependeram, ou ainda dependem mais da sua sanção do que do direito escrito, da lei e da jurisprudência que, depois e definitivamente, tiveram de as reconhecer e incorporar ao mecanismo constitucional da ordem jurídica (PIMENTA, 1963, p. 171).
As leis, portanto, não brotam do nada.
Conforme Eduardo Espínola, o Direito “tem suas raízes na convicção jurídica da comunidade” (ESPÍNOLA, 1977, p. 37).
No mundo antigo, surgiram as primeiras leis escritas.
O Código de Hamurabi – rei da Babilônia – foi o primeiro código escrito da história. Vigorou entre 1792 e 1750 a.C. (HIGA, 2023). Foi gravado em escrita cuneiforme, num monumental bloco de pedra negra (diorito), com mais de dois metros de altura (COSTA, 2023).
A Lei das Doze Tábuas foi promulgada em Roma por volta do ano de 417 a. C. Estava redigida em doze tábuas de madeira, acrescidas posteriormente de mais duas: “A sua existência significou a transição de um sistema baseado num direito de tipo consuetudinário para uma lei escrita, resultando num evidente aumento da segurança e do rigor legal” (Porto Editora, XXXX).
Com o advento da tipografia e da indústria gráfica, as leis passaram a ser editadas em códigos e compilações (vade-mécuns) impressos.
Desde o final do século 20, os textos legislativos são publicados e armazenados em meios eletrônicos (informáticos).
O jurista espanhol Eduardo García de Enterría apontou a “crise da lei”, produzida pela inflação descontrolada de leis e normas regulamentares. É uma maré incontida de atos não estáveis, em estado de perpétua ebulição e mudança frenética (GARCÍA DE ENTERRÍA, 2006, p. 47).
No mesmo compasso, evoluiu o processo: “(Os romanos libertaram-se) do sistema processual oral inflexível das Legis Actiones e com o papiro, implantam o sistema processual escrito, com fórmulas flexíveis e moldáveis às infindáveis controvérsias” (CASEIRO NETO, 2023).
5 DIREITO E NOVAS TECNOLOGIAS
A Primeira Revolução Industrial deslanchou no fim do século 17, quando a produção deixou de ser manual e se mecanizou (máquina a vapor).
Na Segunda Revolução Industrial, em meados do século 19, a energia elétrica possibilitou a manufatura em massa.
A partir da metade do século 20, a Terceira Revolução Industrial foi marcada pelo desenvolvimento das tecnologias eletrônica, da informação e de telecomunicações.
Finalmente, está em curso a Quarta Revolução Industrial – também chamada de “Revolução 4.0”. Conduz à automatização total das fábricas, como resultado de um projeto de estratégia de alta tecnologia do governo da Alemanha. Desenvolvido desde 2013, torna a produção totalmente independente da ação humana:
A automatização acontece através de sistemas ciberfísicos, que foram possíveis graças à internet das coisas e à computação na nuvem.
Os sistemas ciberfísicos, que combinam máquinas com processos digitais, são capazes de tomar decisões descentralizadas e de cooperar – entre eles e com humanos – mediante a internet das coisas. (...) ‘Estamos a bordo de uma revolução tecnológica que transformará fundamentalmente a forma como vivemos, trabalhamos e nos relacionamos. Em sua escala, alcance e complexidade, a transformação será diferente de qualquer coisa que o ser humano tenha experimentado antes’, diz Klaus Schwab, autor do livro A Quarta Revolução Industrial (…).
Os ‘novos poderes’ da transformação virão da engenharia genética e das neurotecnologias, duas áreas que parecem misteriosas e distantes para o cidadão comum (PERASSO, 2019).
Surgiram os robôs.
Juristas e legisladores se debruçam em estudos e propõem textos normativos, para regulamentar a atividade robótica (VIDE, 2018, p. 7-8). Em 2017, o Parlamento Europeu recomendou à Comissão Europeia a elaboração de normas de Direito Civil sobre robótica e definiu os “robôs inteligentes” (Resolución del Parlamento Europeo, 2017).
A Inteligência Artificial (AI) é um campo da ciência da computação em que máquinas realizam tarefas análogas às da mente humana, tais como aprender e raciocinar:
O termo Inteligência Artificial representa um conjunto de software, lógica, computação e disciplinas filosóficas que visa fazer com que os computadores realizem funções que se pensava ser exclusivamente humanas, como perceber o significado em linguagem escrita ou falada, aprender, reconhecer expressões faciais e assim por diante. O campo de AI tem um longo histórico, com muitos avanços anteriores, como reconhecimento de caracteres ópticos, que agora são considerados rotina.
AI é um conceito atraente para muitas das partes envolvidas em negócios, ciências e governo. Em termos econômicos, existe muita vantagem em ter máquinas que realizam tarefas que costumavam precisar de seres humanos. Uma solução de inteligência artificial eficiente pode ‘pensar’ mais rápido e processar mais informações do que qualquer cérebro humano. Além disso, a inteligência artificial tem o potencial de levar as habilidades humanas a locais onde as pessoas têm dificuldade em chegar, como espaço sideral ou locais remotos na terra em que a experiência humana, como conhecimentos médicos, pode ser útil”. (RESOLUCIÓN DEL PARLAMENTO EUROPEO, 2017).
Os avanços da robótica, a inteligência artificial, a Internet das coisas, o big data e tecnologias similares são de grande utilidade para a humanidade; mas também podem representar sérias ameaças (SEOANE, 2018, p. 80-81).
Os efeitos da Quarta Revolução Industrial interferem no nosso comportamento e relacionamento com outras pessoas, até mesmo nos pontos mais longínquos do planeta: “A revolução afetará o mercado de trabalho, o futuro do trabalho e a desigualdade de renda. Suas consequências impactarão a segurança geopolítica e o que é considerado ético” (PERASSO, 2019).
A Inteligência Artificial impacta o Direito.
No campo da advocacia, robôs podem desempenhar tarefas repetitivas, como a revisão de contratos:
A inteligência artificial e os robôs estão se ocupando de tarefas repetitivas, subalternas. Os humanos devem se concentrar em trabalho que requer pensamento crítico. Mas as máquinas estão se tornando progressivamente melhores na imitação da inteligência humana e, a cada dia, fazendo mais e mais por nós (MELO, 2018).
No Brasil, a Lei nº 11.419, de 19 de dezembro de 2006, seguiu a tendência mundial, disciplinou o uso de meios eletrônicos na tramitação de processos judiciais, comunicação de atos e transmissão de peças processuais.
O Processo Judicial Eletrônico (PJe) é uma plataforma digital desenvolvida pelo Conselho Nacional de Justiça, em parceria com diversos tribunais. Conta com a participação consultiva do Conselho Nacional do Ministério Público, Ordem dos Advogados do Brasil, Advocacia Pública e Defensorias Públicas. (BRASIL, 2023).
Em 2011, no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, quase 90% dos 290 mil processos em tramitação já eram eletrônicos. (BRASIL, 2011).
Também as atividades correcionais dos tribunais são facilitadas pelas novas tecnologias, mediante acompanhamento remoto da movimentação processual em todas as unidades jurisdicionais[2].
O novo Código de Processo Civil Brasileiro, editado em 2015, contém preceitos referentes ao processo eletrônico, tais como: uso da Internet; fornecimento gratuito de equipamentos de acesso ao processo eletrônico, inclusive por pessoas com deficiência; assinatura digital das partes, advogados e juízes, em todos os graus de jurisdição; audiência de conciliação – ou mediação – realizada por meio eletrônico; gravação da audiência de instrução e julgamento; utilização de videoconferência na prática de atos processuais; e sustentação oral de advogado por videoconferência.
A Lei n° 11.900, de 08 de janeiro de 2009, alterou o Código de Processo Penal Brasileiro, para dispor sobre o interrogatório do acusado e a inquirição das testemunhas por videoconferência.
O Conselho Nacional de Justiça implantou o Sistema Nacional de Videoconferência. (BRASIL, 20XX).
É preciso, todavia, atentar para a irretocável observação do jurista, ex-magistrado e advogado brasileiro Aroldo Plínio Gonçalves:
As máquinas e os recursos tecnológicos facilitam nossa vida, economizam nossos esforços, mas não nos humanizam. A sensibilidade para as necessidades humanas é o fator que desperta nosso anseio por fazer o melhor, e nos habilita a tirar o mais benéfico proveito do progresso tecnológico, no cumprimento de nossas tarefas e na oferta de seus resultados. Somente com o acréscimo da sensibilidade dos Juízes para a urgência que acompanha todos que clamam pela Justiça poder-se-á esperar que eles sejam ouvidos. E somente respondendo aos anseios de quem a procura, a justiça andará em compasso com os reclamos da sociedade. Este é o maior, o mais valioso e mais urgente objetivo de sua modernização (GONÇALVES, 1997).
6 JUÍZES ROBÔS
A Estônia, pequeno país do norte da Europa, desenvolveu um “robô juiz” para analisar causas cujo valor não exceda sete mil euros (ÉPOCA NEGÓCIOS ONLINE, 2019).
Indaga-se: é possível a utilização de juízes robôs?
Sim. Como em quaisquer outras atividades humanas, os robôs podem praticar tarefas judiciais repetitivas e programadas pela Inteligência Artificial.
No entanto, não poderão julgar casos concretos para cuja solução se exija valoração e experiência.
Levantamento do Conselho Nacional de Justiça, realizado no ano de 2022, apontou centenas de projetos de Inteligência Artificial (IA) no Poder Judiciário. Variados tribunais brasileiros desenvolvem soluções com uso dessa tecnologia, com vista a aumentar a produtividade, buscar a inovação, melhorar a qualidade dos serviços judiciários e reduzir custos:
Há grande variedade: desde ferramentas que realizam a classificação, o agrupamento e a similaridade de processos até assistentes virtuais e ferramentas de reconhecimento facial.
Os modelos de classificação de processos, por exemplo, possibilitam uma boa triagem e classificação de demandas, com um índice de acerto similar ao das vias tradicionais, o que permite rapidamente estabelecer um tratamento uniforme a processos que são similares e atribuir as mesmas decisões àqueles que têm conteúdo idêntico, dando maior consistência e agilidade e aprimorando a prestação jurisdicional”, afirma Rafael Leite. “A implementação de algoritmos com capacidade de processamento de linguagem são o caminho para alcançar a razoável duração dos processos e uma maior segurança jurídica (MAEJI, 2022).
Daniel Vianna Vargas e Luis Felipe Salomão enfatizam que o Judiciário não foi pensado, estruturado, organizado e capacitado para enfrentar os desafios dos fenômenos “judicialização da política” e “ativismo judicial”, em um País onde as deficiências estatais representam o cotidiano da sociedade. A utilização da tecnologia e das novas ferramentas é simples corolário do princípio da eficiência, constitucionalmente consagrado (VARGAS, SALOMÃO, 2022).
Contudo, é possível fazer uma diferenciação básica entre as diversas soluções propostas e adotadas com a utilização da Inteligência Artificial:
(Alguns sistemas) são utilizados para atividades administrativas, burocráticas, realizadas geralmente por servidores e/ou auxiliares; outros, no entanto, auxiliam ou “desempenham” atividade própria do exercício da função de julgar.
A atividade meramente judicial, ou seja, que é desempenhada pelo Poder Judiciário, mas não possui traços característicos próprios da função jurisdicional, é atividade burocrática, administrativa, como qualquer outra exercida pelos demais Poderes, órgãos públicos e empresas privadas.
Todavia, como um dos Poderes da República, o Judiciário possui função precípua definida na Constituição, indelegável, improrrogável, que é a resolução de conflitos de interesses entre particulares e entre esses e a Administração Pública.
Não há qualquer dúvida de que a utilização de novas tecnologias e a substituição do trabalho manual pela automação não é novidade e deve avançar sobre as atividades administrativas do Judiciário. Cuida-se de redução de custos e equívocos, com ganho de velocidade e capacidade operacional. Eficiência, portanto. Nesse passo, a eficiência pode ser medida simplesmente pelo resultado produzido através do emprego da inteligência artificial, sem que se faça qualquer juízo de valor quanto à legitimidade do autor da tarefa.
O recebimento de petições iniciais através de formulários e plataformas digitais, a busca de endereços e dados qualificativos, a busca de patrimônio, a separação de processos com pedidos de gratuidade de Justiça e tutelas provisórias de urgência, o gerenciamento de fluxo e acervo processual, o arquivamento de processos, a contagem de prazos, cálculo e certificação de custas, o cálculo de evolução de dívidas nos autos, a publicação de atos ordinatórios previamente definidos, a análise dos endereços para triagem quanto à competência, dentre outros muitos exemplos, são tarefas que não exigem a atuação do juiz, embora comumente assim ocorra, com subtração de tempo precioso e escasso dos magistrados.
Noutro giro, a identificação de causas de pedir, configurações fáticas e jurídicas, temas, ratio decidendi, adequação de causas, distinguishing e fundamentação são funções inexoravelmente ligadas ao exercício da jurisdição. Algumas das práticas acima relacionadas – com justificativa utilitarista e de eficiência quantitativa – revelam a utilização de inteligência artificial no processo de tomada de decisão, ou seja, na atividade jurisdicional. (VARGAS, SALOMÃO, 2022).
Enfim, ressaltam os autores, que não se pode retroceder a um paradigma positivista, com a tomada mecânica de decisões com base em padrão decisório previamente definido, dissociado do caso concreto e sem a fundamentação em contraditório pelo juiz do caso (VARGAS, SALOMÃO, 2022).
Vargas e Salomão referem-se à tramitação, no Congresso Nacional, do projeto PLS nº 5.051/2019, de autoria do Senador Styvenson Valentim, com o objetivo de estabelecer princípios para o uso da inteligência artificial no Brasil. Um dos enunciados propostos vai de encontro à preocupação acima externada, ao vedar a utilização dos sistemas de inteligência artificial na tomada de decisão, podem ser empregados somente como auxiliares (art. 4º) (VARGAS, SALOMÃO, 2022).
Sob outro ângulo – prosseguem os articulistas – a substituição do juiz no ato de julgar oferece riscos de violações aos direitos e garantias fundamentais dos jurisdicionados. Citam exemplificativamente o case ocorrido nos Estados Unidos, Estado de Wiscosin, onde foi utilizado o software privado COMPAS (Correctional Offender Management Profiling for Alternative Sanctions) para a dosimetria da pena aplicada a um condenado em 2013. O algoritmo utilizado não é de conhecimento público, tendo o réu recorrido à Suprema Corte de Wisconsin para a explicitação e acesso aos critérios adotados:
A Suprema Corte de Winsconsin negou o recurso, extraindo-se da decisão que a sentença teria sido prolatada através de uma análise do juiz acerca do crime praticado e dos antecedentes do acusado. A Suprema Corte Americana não admitiu o writ de certiorari apresentado pelo condenado, que permanece preso.
O caso ilustra de forma categórica a hipótese levantada por este trabalho, qual seja: a utilização de sistemas de inteligência artificial no processo de tomada de decisão pode levar a um panorama equivalente ao positivismo clássico, com a tomada mecânica de decisões com base em padrão decisório previamente definido, dissociado do caso concreto e sem a fundamentação em contraditório pelo juiz do caso. Se no positivismo clássico, o juiz era simplesmente a boca que enunciava a vontade da lei, tendo o arcabouço legislativo todas as respostas para os conflitos, agora a inteligência artificial apresentará a solução do caso concreto, através de um complexo, opaco e incontrolável sistema randômico de tomada de decisão. O juiz simplesmente enunciará o resultado, chancelando-o. Uma espécie de positivismo tecnológico. (VARGAS, SALOMÃO, 2022).
Não se nega a necessidade de uma prestação jurisdicional menos formal e mais ágil, para que o Judiciário possa enfrentar os desafios do volume de ações atualmente em trâmite. Todavia – prosseguem Vargas e Salomão – a introdução de algoritmos como parâmetros de fundamentação para alcançar resultados satisfatórios em termos numéricos pode vir a ter resultados perniciosos no tocante à qualidade da prestação jurisdicional e ao respeito às garantias processuais fundamentais:
A vedação à rediscussão dos fatos através da equivocada implementação de mecanismos de inteligência artificial no processo de tomada de decisão para julgamentos virtuais, excluindo o direito fundamental de participação dos envolvidos, denominados pela doutrina e jurisprudência como absent parties, interessados não participantes ou litigantes-sombra, retrocedendo no conceito de contraditório, retira a legitimidade democrática da decisão judicial. Trata-se de supressão de garantias constitucionais que se refletem no acesso à Justiça, no devido processo legal e no contraditório.
Conforme Dierle Nunes e Rafaela Lacerda: “O pressuposto equivocado é o de que mediante o julgamento de um único caso, sem um contraditório dinâmico como garantia de influência e não surpresa para sua formação (…) o Tribunal Superior formaria um julgado que deveria ser aplicado a todos os casos ‘idênticos’”. (VARGAS, SALOMÃO, 2022).
Recorde-se que Montesquieu, no auge do liberalismo, enxergava no juiz somente a “boca” que pronuncia as palavras da lei, sem tentar lhes moderar a força nem o rigor (CRUET, p. 25-26).
No entanto, o denominado “exegetismo” não mais servia à realidade dos tempos modernos:
As descobertas da ciência moderna, que modificaram até mesmo a noção de liberdade humana, e as conquistas extraordinárias da técnica, determinaram a alteração da vida humana. Novos fatores econômico-sociais fizeram surgir novas condições de vida social; consequentemente, operou-se a mudança do sistema de referência. Velhos problemas já resolvidos hão de exigir soluções novas e novos problemas jamais cogitados hão de surgir, requerendo uma solução jurídica imediata. (...) Daí as sábias palavras de Recaséns Siches: ‘Uma lei indeformável somente existe numa sociedade imóvel’. O malogro da orientação exegética resultou da necessária adequação da lei às novas circunstâncias em virtude da evolução social (DINIZ, 1995, p. 52).
Nesse evoluir da vida social, o juiz não pode ficar alheio à realidade circundante:
O juiz não pode se encerrar num ambiente irreal, alheado do meio em que vive, para decidir, escravizado a um rigorismo teórico de funestas consequências, mas tem de agir como homem inteligente, raciocinando, na senhoria das ideias e conhecimentos, que formam o patrimônio intelectual e a experiência do seu tempo, utilizando conhecimentos extrajurídicos, que constituem elementos e pressupostos do raciocínio, verdades naturais ou matemáticas, regras de comércio e da vida social, princípios psicológicos, em suma, os princípios de experiência (ESPÍNOLA e ESPÍNOLA FILHO, 1943, p. 177).
No Brasil, o Superior Tribunal de Justiça decidiu com pertinência:
O jurista, salientava Pontes de Miranda em escólio ao Código de 1939 XII/23, ‘há de interpretar as leis com o espírito ao nível do seu tempo, isto é, mergulhado na viva realidade ambiente, e não acorrentado a algo do passado, nem perdido em alguma paragem, mesmo provável, do distante futuro’. ‘Para cada causa nova o juiz deve aplicar a lei, ensina Ripert (Les Forces Créatives du Droit, p. 392), considerando que ela é uma norma atual, muito embora saiba que ela muita vez tem longo passado’; ‘deve levar em conta o estado de coisas existentes no momento em que ela deve ser aplicada’, pois somente assim assegura o progresso do Direito, um progresso razoável para uma evolução lenta (BRASIL, 1990).
Não ha como fugir das considerações de ordem ética. O magistrado não pode adotar postura acomodatícia e transferir para a Inteligência Artificial a responsabilidade decisória. Decidir é um ato personalíssimo e solitário:
O drama do juiz é a solidão, porque ele, que para julgar deve estar liberto de afetos humanos e colocado um furo acima dos seus semelhantes, raramente encontra a doce amizade que requerem espíritos ao mesmo nível e, se vê avizinhar-se, tem o dever de evitar com desconfiança, antes que tenha de aperceber-se que a movia apenas a esperança dos seus favores, ou antes que ela lhe seja censurada como traição à sua imparcialidade (CALAMANDREI, 19XX).
O Código Iberoamericano de Ética Judicial define o juiz equitativo:
Artículo 37. El juez equitativo es el que, sin transgredir el Derecho vigente, toma en cuenta las peculiaridades del caso y lo resuelve basándose en criterios coherentes con los valores del ordenamiento y que puedan extenderse a todos los casos sustancialmente semejantes. (BRASIL, 2008).
A prudência é outro importante atributo dos juízes. No Brasil, dispõe o Código de Ética da Magistratura Nacional, aprovado pelo Conselho Nacional de Justiça em 26.08.2008:
Art. 24. O magistrado prudente é o que busca adotar comportamentos e decisões que sejam o resultado de juízo justificado racionalmente, após haver meditado e valorado os argumentos e contra-argumentos disponíveis, à luz do Direito aplicável.
Art. 25. Especialmente ao proferir decisões, incumbe ao magistrado atuar de forma cautelosa, atento às consequências que pode provocar (BRASIL, 2008).
Eros Roberto Grau, jurista e antigo ministro do Supremo Tribunal Federal, critica o “ativismo” juízes e tribunais:
Isso tudo terá fim quando começar a comprometer a fluência da circulação mercantil, a calculabilidade e a previsibilidade indispensáveis ao funcionamento do mercado. Juízes e tribunais limitar-se-ão, corretamente, à prática da prudência, a velha phrónesis aristotélica. Voltarão a exercitar a prudência do Direito – a juris prudentia. (GRAU, 2018)
Não se olvide a imparcialidade como outra importante peculiaridade dos julgadores:
As qualidades que mais se respeitam nos magistrados: a imparcialidade, a resistência a todas as seduções do sentimento, a sua indiferença serena, quase sacerdotal, essas qualidades que purificam e recompõem sob a rígida forma legal as manifestações mais vergonhosas da vida. (CALAMANDREI, 19XX)
Importante salientar que dispõe o Código de Ética da Magistratura Nacional:
Art. 8º O magistrado imparcial é aquele que busca nas provas a verdade dos fatos, com objetividade e fundamento, mantendo ao longo de todo o processo uma distância equivalente das partes, e evita todo o tipo de comportamento que possa refletir favoritismo, predisposição ou preconceito. (BRASIL, 2008).
José Renato Nalini salientou que juízes e servidores da justiça necessitam passar por uma “insurreição ética”, contaminar-se todos pelo “vírus da eficiência” e renunciar à condição de “surdos morais”:
O magistrado não precisa ser formalista, mas um solucionador de problemas. As questões concretas submetidas ao juiz não precisam, necessariamente, ser revestidas com a blindagem técnico-jurídica, se puderem ser enfrentadas com o senso comum. O juiz tem de ser um décideur, alguém que resolva uma questão aflitiva. Não um técnico burocrata e insensível às angústias sofridas por seus semelhantes […].
Justiça é um assunto de todos. Serve a todos, interessa a todos. Interagir com a comunidade é impositivo para quem queira edificá-la com padrões denunciadores de um estágio civilizatório retumbantemente proclamado no discurso. Infelizmente, nem sempre detectado na realidade e na rotina de quem optou por fazê-la seu ideal existencial (Revista da Escola Nacional da Magistratura, 6/442-469, negritos no original).
Sentenciar é sentir. A palavra sentença tem origem etimológica no latim sententia, “modo de ver, parecer, decisão” (DE PLÁCIDO E SILVA, 1984, p 201). Assinalou Cândido Dinamarco:
O vocábulo sentença origina-se do latim sententia e traz em si a ideia da manifestação do juiz sobre o modo como ele sente a causa e as pretensões contrapostas dos litigantes – e é realmente que o juiz deve aplicar seus sentimentos ao julgar a causa, não só a razão (DINAMARCO, 2001, p. 489, negritos no original).
Para bem “sentir” a causa e intuir a solução justa, o juiz precisa ser dotado de inteligência e cultura.
Vale para o juiz um dos clássicos mandamentos pregados por Eduardo Couture aos advogados: “Pensa. O direito se aprende estudando; porém, se pratica pensando” (COUTURE, 1999, p. 7-8).
O saudoso ministro brasileiro Sálvio de Figueiredo Teixeira, do Superior Tribunal de Justiça, notável professor, escritor e formador de magistrados, pontificava:
Se a inteligência é dom de Deus, e não entendemos como se possa recrutar juízes não-inteligentes, embora muitas inteligências não devam ser acolhidas na magistratura por carências de outras virtudes específicas e sobretudo vocação, a cultura é adquirida com esforço e dedicação. E sem cultura sólida e atualizada não se pode ter juízes à altura da relevante função de julgar (TEIXEIRA, 1999, p. 82).
Sentença envolve sentimento, algo de que robôs jamais serão dotados.
7 DIREITO E INTERPRETAÇÃO
Celso, jurista da Roma antiga, orientava: “Incivile est, nisi lege prospecta, una aliqua particula ejus proposita, judicare, vel respondere” (CELSO apud COÊLHO, 1999)[3].
Carlos Maximiliano, jurista brasileiro e antigo ministro do Supremo Tribunal Federal, reputava ser tarefa primordial do executor da lei a pesquisa da relação entre o texto abstrato e o caso concreto, entre a norma jurídica e o fato social. Assim se aplica o Direito: “Não basta conhecer as regras aplicáveis para determinar o sentido e o alcance dos textos. Parece necessário reuni-las e, num todo harmônico, oferecê-las ao estudo, em um encadeamento lógico” (MAXIMILIANO, 1988, p. 1-5).
Miguel Reale – outro gênio das letras jurídicas nacionais – ensinava:
Interpretar uma lei importa, previamente, em compreendê-la na plenitude de seus fins sociais, a fim de poder-se, desse modo, determinar o sentido de cada um de seus dispositivos. Somente assim ela é aplicável a todos os casos que correspondam àqueles objetivos.
Como se vê, o primeiro cuidado do hermeneuta contemporâneo consiste em saber qual a finalidade social da lei, no seu todo, pois é o fim que possibilita penetrar na estrutura de suas significações particulares. O que se quer atingir é uma correlação coerente entre ‘o todo da lei’ e as ‘partes’ representadas por seus artigos e preceitos, à luz dos objetivos visados (REALE, 1978, p. 285, negritos no original).
O jurista, professor e escritor brasileiro Eros Roberto Grau assim se expressou, quando era ministro do Supremo Tribunal Federal:
Não se interpreta a Constituição em tiras, aos pedaços. Tenho insistido em que a interpretação do direito é interpretação do direito, não de textos isolados, desprendidos do direito. Não se interpreta textos de direito, isoladamente, mas sim o direito – a Constituição – no seu todo (GRAU, 2005, p. 127)[4].
Serão analisadas brevemente, a seguir, algumas doutrinas interpretativas, para demonstrar que a hermenêutica – e mais especificamente a aplicação judicial da lei – é atividade eminente humana, não atribuível aos robôs.
7.1 Positivismo
Nos séculos 18 e 19, o Iluminismo vivia o apogeu na Europa.
Floresceu o movimento de codificação, inspirado no individualismo. Foram promulgados códigos – diplomas legislativos – cientificamente sistematizados e organizados. Abrangiam um importante ramo ou sector da vida jurídica:
De acordo com fundamentação já lançada pelo Iluminismo, entende-se que grande parte dos males que afligem a sociedade provêm da existente pluralidade de fontes de direito (lei, costume, estilo, direito romano, direito canónico) e da abundância desordenada de normas extravagantes. Há, pois, que unificar, sistematizar, simplificar; há que considerar como única fonte a lei e que conservar, em vigência, poucas e claras leis. Em resumo: só a lei e poucas e claras leis. O combate contra a pluralidade de fontes fora – como já se viu – encetado pela Lei da Boa Razão. Mas esse problema e, bem assim, o da multiplicidade desordenada de leis, não estavam, ainda, resolvidos quando sobreveio a revolução liberal; com tal finalidade, irão surgir os Códigos, que deverão conter todo o direito vigente, nos vários ramos (GOMES DA SILVA, 2011, p. 496-499).
Dimitri Dimoulis conceituou o positivismo jurídico:
As definições dadas por autores que pertencem ao positivismo jurídico, no sentido amplo do termo, coincidem na afirmação de que o direito é um conjunto de normas formuladas e postas em vigor por seres humanos. Austin observava que o direito ‘decorre de fontes humanas’ e Kelsen considerava que ‘somente o direito posto por seres humanos é direito positivo’.
O direito surge de atos de vontade da autoridade legislativa cujos titulares e procedimentos são diferentes em cada período histórico, sendo, porém, sempre vinculantes (DIMOULIS, 2023).
Adquiriu enorme prestígio Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen:
Chama-se pura porque seu escopo é o conhecimento do direito, desvinculado de todos os ‘elementos estranhos’. A ciência jurídica, sob a luz da Teoria Pura do Direito, nada tem a ver com a Psicologia, a Biologia ou a Sociologia, com a Ética, a Teologia ou a Política (MATA-MACHADO, 1976, p. 133, negrito no original).
Dalmo de Abreu Dallari apontou a forte influência da teoria de Hans Kelsen na América Latina. Foi deturpada por muitos que se dizem “kelsenianos”, sem nunca terem lido um só dos livros do austríaco; ou por juristas que encontraram, em parte da obra do eminente teórico, um bom escudo para a sustentação de posições formalistas antidemocráticas e contrárias à ética e à justiça:
Para os adeptos dessa linha de pensamento o direito se restringe ao conjunto de regras formalmente postas pelo Estado, seja qual for o seu conteúdo, resumindo-se nisso o chamado positivismo jurídico que tem sido praticado em vários países europeus e em toda a América Latina. Desse modo, a procura do justo foi eliminada e o que sobrou foi um apanhado de normas técnico-formais, que, sob a aparência de rigor científico, reduzem o direito a uma superficialidade mesquinha. Essa concepção do direito é conveniente para quem prefere ter a consciência anestesiada e não se angustiar com a questão da justiça, ou então para o profissional do direito que não quer assumir responsabilidades e riscos e procura ocultar-se sob a capa de uma aparente neutralidade política. Os normativistas não precisam ser justos, embora muito deles sejam juízes (DALLARI, 1996, p. 82-83).
É verdade que o modelo formalista do positivismo “kelseniano” restringe a interpretação à norma legal. Não permite o diálogo multidisciplinar com outros ramos científicos e tampouco admite valorações éticas.
No entanto, o magistrado positivista assume essa postura por um ato de consciência.
A simples tomada de consciência é atitude racional e exclusivamente humana.
Não pode ser assumida por um robô.
7.2 Hermenêutica Estrutural
Miguel Reale assim definia a hermenêutica estrutural: “O processo interpretativo não obedece a essa ascensão mecânica das partes ao todo, mas representa antes uma forma de captação do valor das partes inserido na estrutura da lei, por sua vez inseparável da estrutura do sistema e do ordenamento” (REALE, 1978, p. 286).
Norberto Bobbio considerava sistema uma “totalidade ordenada”:
Um conjunto de entes entre os quais existe uma certa ordem. Para que se possa falar de uma ordem, é necessário que os entes que a constituem não estejam somente em relacionamento com o todo, mas também num relacionamento de coerência entre si. Quando nos perguntamos se um ordenamento jurídico constitui um sistema, nos perguntamos se as normas que o compõem estão num relacionamento de coerência entre si, e em que condições é possível essa relação (BOBBIO, 1996, p. 71).
Um robô não é dotado de visão sistêmica.
7.3 Direito e Experiência
Oliver Wendell Holmes Jr., antigo juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos, propugnava que o direito não é a lógica, mas é a experiência (GODOY, Revista de Informação Legislativa, 171/94).
Baseado na própria experiência como juiz, Holmes afirmava que a dedução silogística mecânica não é a única força operante no conhecimento e desenvolvimento do direito, mas sim a experiência; ou seja, as necessidades de cada época; as teorias morais e políticas predominantes; e as intuições que inspiraram a ação política (DINIZ, 1995, p. 55).
Benjamin Cardozo, também antigo integrante da Suprema Corte norte-americana, considerava o juiz um criador de direito, capaz de guiá-lo no sentido da maior utilidade social. É um “farmacêutico” apto a preparar, à vista de uma receita geral, o remédio apropriado. Deve levar em consideração a conveniência, a utilidade e os mais profundos sentimentos de justiça “O juiz interpreta a consciência social e lhe dá efeito; mas, ao fazê-lo, auxilia a formação e modificação da consciência que interpreta. A descoberta e a criação reagem uma sobre a outra” (CARDOZO, 1978, p. 17-18).
Robô não sai às ruas, não vai à escola, não trabalha, não sofre e não diverte; enfim, é desprovido de experiência.
7.4 Princípios
Paulo Bonavides – renomado constitucionalista brasileiro – apontava o advento de uma nova materialidade constitucional. Ela alcançou o patamar supremo da Constituição. Está inserida na órbita principal, com superioridade normativa em relação aos demais preceitos da Constituição. Em caso de conflito constitucional, o princípio é superior à regra: o princípio se aplica, a regra não.
Os juristas do positivismo sempre foram contundentes no menosprezo e aversão aos princípios. Outrora designados simplesmente “princípios gerais de Direito”, jaziam na esfera menor dos Códigos. Eram frágeis, subsidiárias e insignificantes peças hermenêuticas do sistema.
No final do século 20, as correntes antipositivistas fundaram uma Nova Hermenêutica. Alçaram os princípios para a região mais elevada e aberta das Constituições. Ocuparam aquele espaço oxigenado e se fixaram com densidade normativa. Foram convertidos em senhores supremos da juridicidade constitucional.
De tal sorte que os princípios governam a Constituição e a governam nos termos absolutos que a legitimidade impõe (BONAVIDES, 1998, p. 22-29).
García de Enterría – como referido alhures – apontava a multiplicidade de normas existentes na contemporaneidade. Isso força, paradoxalmente, a voltar os olhos para os métodos pré-codificadores da jurisprudência. Adotados pelos antigos juristas romanos, jamais deixaram de estar presentes na consciência dos operadores do Direito. Conferem primazia aos valores substanciais do Direito, acima do invólucro formal das normas sobretudo quando estas são ocasionais e fugazes. Trata-se do método da primazia dos princípios gerais do Direito. Estes consistem na condensação ética da justiça e regem todos os regramentos positivos de uma ordem jurídica. São, em sentido literal, princípios gerais de Direito, porque transcendem as normas concretas e expressam necessariamente uma ordem de valores de justiça material. São nódulos de condensação de valores ético-sociais, centros de organização do regime positivo das instituições e animadores do seu funcionamento (GARCÍA DE ENTERRÍA, 2006, p. 103-105).
Ricardo Luis Lorenzetti – jurista integrante da Corte Suprema da Nação Argentina – publicou o consagrado livro Teoria da decisão judicial, onde sustenta que a experiência jurídica não se esgota na lei. A construção da decisão jurídica depende da harmonização de regras, costumes, princípios e valores jurídicos (LORENZETTI, p. 5-6).
Segundo José Joaquim Gomes Canotilho, hoje a subordinação à lei e ao Direito, por parte dos juízes reclama, de forma incontornável, a principialização da jurisprudência. O Direito do Estado de Direito do Século XIX e primeira metade do Século XX é o Direito das regras dos códigos. O Direito do Estado Constitucional Democrático e de Direito leva a sério os princípios, é um Direito de princípios. O tomar a sério princípios implica uma mudança profunda na metódica de concretização do Direito e, por conseguinte, na atividade jurisdicional dos juízes (CANOTILHO, 2000, 98/83-89).
A existência de regras e princípios – prossegue o constitucionalista luso – permite a descodificação, em termos de um “constitucionalismo adequado” (Alexy), de estrutura sistêmica. Isto é, possibilita a compreensão da Constituição como sistema aberto de regras e princípios. Um modelo ou sistema constituído exclusivamente por regras conduzir-nos-ia a um sistema jurídico de limitada racionalidade prática. Exigiria uma disciplina legislativa exaustiva e completa – legalismo – do mundo e da vida, fixando, em termos definitivos, as premissas e os resultados das regras jurídicas. Conseguir-se-ia um “sistema de segurança”, mas não haveria qualquer espaço livre para a complementação e desenvolvimento de um sistema, como constitucional, que é necessariamente aberto (CANOTILHO, 1993, p. 168-169).
Robert Alexy apontou a coerência como contributo para a racionalidade prática. E definiu os princípios:
São normas que ordenam que algo, relativamente às possibilidades físicas e às jurídicas, seja realizado em medida tão alta quanto possível. Princípios são, segundo isso, mandamentos de otimização, que são caracterizados pelo fato de a medida ordenada de seu cumprimento depender não só das possibilidades fáticas, mas também das jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado essencialmente por princípios em sentido contrário. Em colisões de princípios, por exemplo, entre o direito individual à fruição da natureza e o bem coletivo da proteção ambiental, não se trata disto, de despedir um de ambos os princípios, mas disto, de otimizar ambos os princípios no sistema. Isso é um problema de produção de coerência. A solução do problema pode dar bom resultado somente pela fixação de relações de primazia, mais ou menos concretas, definitivas, condicionadas, assim como pela determinação de primazias (ALEXY, 2006, p. 297-310, grifei).
Nesse ponto, vale recordar a ressalva de Alexy a respeito da propensão dos princípios a colidirem entre si. Para o jurista alemão, a colisão de princípios somente por ponderação pode ser resolvida. Num caso concreto, exemplifica, pode haver colisão entre o princípio da liberdade de expressão e direito personalíssimo à intimidade. Pela ponderação, mediante critério de proporcionalidade, verificará o intérprete qual dos princípios terá primazia naquele caso concreto (ALEXY, 2005, p. 334-344).
Robô não tem aptidão para aquilatar costumes e valores jurídicos.
E nem para criar soluções jurídicas pelo exercício da ponderação.
7.5 Habermas, Esfera Pública e Ação Comunicativa
O filósofo alemão Jürgen Habermas considera a esfera pública essencial para a tomada de decisões políticas. Nela se processa uma ação comunicativa entre o Estado, agentes políticos, agentes econômicos e outros setores da sociedade civil (HABERMAS, 1997, p. 92).
Conforme Habermas, o uso da linguagem é capaz de promover o entendimento entre os participantes de discussões a respeito do assunto a ser discutido, validade e legitimidade da participação de cada um e outros aspectos.
Assim, não é qualquer discussão que se transforma em uma ação comunicativa, na esfera pública. Há uma série de condições a serem respeitadas para que isso aconteça, por exemplo: todos podem falar livremente, sem constrangimento e coerção; cada pessoa deve respeitar o outro e seu direito de ter uma opinião diferente; e cada um deve, de antemão, mostrar-se disposto a ouvir o outro e a mudar de opinião (MARTINO, MARQUES, 2018, p. 83-84).
O processo possui relação direta com o Estado Democrático de Direito (art. 1º, Constituição da República Federativa do Brasil):
O elemento ‘participação’ é fundamental para a democracia e consequentemente para o processo. Pensar o direito processual democrático a partir de uma concepção participativa é o desafio da teoria geral do processo democrático. (...)
“Ao relacionar os institutos do processo e democracia temos o objetivo de indicar a necessidade de participação no processo de tomada de decisão. Enquanto a democracia pensa a participação dos cidadãos pelo aspecto político, o processo relaciona a participação pelo aspecto jurisdicional de aplicação do direito ao caso concreto. Ambos os conceitos, processo e democracia, se bem exercidos, podem garantir aos cidadãos e partes a plenitude da cidadania. Deve-se entender que processo e democracia são resultados da atividade dialógica pela busca do consenso e pela construção de uma decisão que seja racionalmente aceitável para as partes. Não há nenhuma pretensão em indicar que isso é construído por uma atividade calma e tranquila. Pelo contrário, a participação dos interessados no processo de tomada de decisão é sempre conflituosa. Incumbe ao processo e à democracia garantir as regras de discussão e construção do direito, impedindo que o autoritarismo possa inviabilizar o direito de participação. A importância do juiz no processo democrático é de um agente fiscalizador. No entanto, a fiscalização não é atividade exclusiva e autocrática. Ela deve ser exercida, na democracia, por todos, e o resultado é justamente uma decisão jurisdicional de qualidade. O processo tem justamente, na democracia, uma função de dar qualidade e legitimidade às decisões jurisdicionais, garantindo os direitos fundamentais. Esse objetivo é o desafio do Estado pós-moderno e precisa ser desenvolvido de forma efetiva (SOARES, 2023. p. 23-25, negritos no original).
No campo do processo constitucional, o jurista alemão Peter Häberle prega a adoção de uma hermenêutica constitucional adequada à sociedade pluralista ou à chamada sociedade aberta:
Tendo em vista o papel fundante da Constituição para a sociedade e para o Estado, assenta Häberle que todo aquele que vive a Constituição é um seu legítimo intérprete.
Essa concepção exige uma radical revisão da metodologia jurídica tradicional, que, como assinala Häberle, esteve muito vinculada ao modelo de uma sociedade fechada. A interpretação constitucional dos juízes, ainda que relevante, não é (nem deve ser) a única. Ao revés, cidadãos e grupos de interesse, órgãos estatais, o sistema público e a opinião pública constituiriam forças produtivas de interpretação, atuando, pelo menos, como pré-intérpretes (‘Vorinterpreten’) do complexo normativo constitucional. (...)
A ampliação do círculo de intérpretes constituiria para Häberle apenas uma consequência da necessidade de integração da realidade no processo de interpretação (HÄBERLE, 2002, p. 9-10)
As audiências públicas no Poder Judiciário brasileiro foram previstas, inicialmente, pelas Leis 9.868/99 e 9.882/99, que disciplinam processo e julgamento das ações diretas de inconstitucionalidade, ações declaratórias de constitucionalidade e arguições de descumprimento de preceito fundamental.
No âmbito do Supremo Tribunal Federal, as audiências públicas foram regulamentadas pela Emenda Regimental 29/2009, que atribuiu competência ao Presidente ou ao Relator, nos termos dos artigos 13, XVII, e 21, XVII, do Regimento Interno, para “convocar audiência pública para ouvir o depoimento de pessoas com experiência e autoridade em determinada matéria, sempre que entender necessário o esclarecimento de questões ou circunstâncias de fato, com repercussão geral e de interesse público relevante” debatidas no Tribunal. O procedimento a ser observado consta do art. 154, parágrafo único, do Regimento Interno.
A primeira audiência pública realizada pelo Tribunal foi convocada pelo Min. Ayres Britto, Relator da ADI 3510, que impugnava dispositivos da Lei de Biossegurança (Lei 11.105/2005), e ocorreu no dia 20 de abril de 2007[5].
Robô não é habilitado a participar de ações discursivas na esfera pública, porque é desprovido de experiência e sentimentos.
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
De todo o exposto, é possível extrair as seguintes conclusões:
O Direito é uma construção cultural.
O Direito, desde os primórdios da civilização, evoluiu em um processo aberto e inovador.
Os operadores do Direito utilizam uma linguagem multimilenar.
Do Código de Hamurabi e da Lei das Doze Tábuas – editados na Antiguidade – avançamos, no final do século 20, para a publicação e armazenamento dos textos legislativos em meios eletrônicos (informáticos).
A marcha evolutiva do Direito deságuou, contemporaneamente, na adoção das novas tecnologias e da Inteligência Artificial.
Para bem “sentir” a causa e intuir a solução justa, o juiz precisa ser dotado de inteligência e cultura.
Superado o positivismo jurídico, imperante até meados do século 20, os princípios ganharam relevância hermenêutica.
Resultando de valores éticos, os princípios conferem harmonia e coerência ao ordenamento jurídico.
O Direito, enquanto sistema, é uma “totalidade ordenada” (Norberto Bobbio).
O direito não é a lógica, mas é a experiência (Oliver Wendell Holmes Jr.).
Começa a surgir, no campo da Inteligência Artificial, o juiz robô.
Robô é desprovido de experiência.
O magistrado positivista assume essa postura por um ato de consciência.
A tomada de consciência é atitude racional e exclusivamente humana.
Robô não tem aptidão para aquilatar costumes e valores jurídicos.
Robô não cria soluções jurídicas pelo exercício da ponderação.
Robô não é habilitado a participar de ações discursivas na esfera pública, porque é desprovido de experiência e sentimentos.
Somente o juiz humano – de carne, osso e cérebro – poderá julgar com justiça.
Centenas de tribunais brasileiros desenvolvem projetos de Inteligência Artificial (IA), com objetivo de aumentar a produtividade, buscar a inovação, melhorar a qualidade dos serviços judiciários e reduzir custos.
Isso por que o Poder Judiciário não foi estruturado para enfrentar os desafios dos fenômenos “judicialização da política” e “ativismo judicial”, em um País onde as deficiências estatais representam o cotidiano da sociedade.
A utilização da tecnologia e das novas ferramentas, portanto, são decorrências do princípio da eficiência, constitucionalmente consagrado.
Todavia, é indispensável diferenciar a utilização de sistemas voltados para atividades administrativas, burocráticas, realizadas geralmente por servidores e/ou auxiliares (atividade meramente judicial); e sistemas que auxiliam ou “desempenham” atividade própria do exercício da função de julgar.
Essa diferenciação evitará o retrocesso a um paradigma positivista, com a tomada mecânica de decisões com base em padrão decisório previamente definido, dissociado do caso concreto e sem a fundamentação em contraditório pelo juiz do caso.
Evitará, enfim, a violação a garantias fundamentais como ampla defesa, contraditório, motivação e publicidade, a exemplo do verificado, nos Estados Unidos, com um sistema de IA para dosimetria de penas.
Não descuremos das implicações éticas. O magistrado não pode adotar postura acomodatícia e transferir para a Inteligência Artificial a responsabilidade decisória. Decidir é um ato personalíssimo e solitário.
A prudência e a imparcialidade são deveres indeclináveis no exercício da jurisdição.
Para concluir, importante recordar o que o antigo jurista francês Henri Robert citava o Cardeal de Retz: “O espírito nada é sem coração” (ROBERT, 1959, p. 7).
9 REFERÊNCIAS
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ALEXY, Robert, Fundamentação jurídica, sistema e coerência, São Paulo, Revista de Direito Privado, nº 25, jan-mar/2006, p. 297-310.
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BONAVIDES, Paulo, Reflexões – Política e Direito, 3. ed, São Paulo, Malheiros Editores, 1998.
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[1] Rogério Medeiros Garcia de Lima é desembargador (juiz de segundo grau) do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Doutor em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais, Professor da Escola Judicial Desembargador Edésio Fernandes, Tribunal de Justiça de Minas Gerais, Belo Horizonte, e-mail: rogeriom@tjmg.jus.br. https://orcid.org/0000-0001-5490-5102.
[2] Trabalho por um Judiciário ágil e eficaz, Corregedoria Geral da Justiça de Pernambuco 2018/2020.
[3] Tradução: “É contra o Direito julgar, ou responder, sem examinar o texto em conjunto, apenas considerando uma parte qualquer do mesmo”.
[4] Supremo Tribunal Federal, Medida cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.923-5/DF, rel. min. Ilmar Galvão, fonte: Notícias do Supremo Tribunal Federal, 07.02.2007, negritos no original.
[5] Portal do Supremo Tribunal Federal, disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/audienciaPublica/audienciaPublicaPrincipal.asp>, acesso em: 10 maio 2020.