E-PROCEDURE, HYPERTEXT AND RIGHT TO A FAIR TRIAL
DOI: 10.19135/revista.consinter.00008.10
Luis Alberto Reichelt[1] – ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3861-5409
Paulo Roberto Pegoraro Junior[2] – ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9537-0826
Resumo: É possível o aprofundamento tecnológico da implantação do processo eletrônico mediante a assimilação de modelos conceituais já familiares no âmbito da internet como o hipertexto, entendido como ligação dinâmica na qual se agregam um conjunto de informações de textos, palavras, imagens ou sons. O presente ensaio propõe-se a investigar algumas das possibilidades envolvendo o emprego de hiperlinks no âmbito do Direito Processual, analisando-as sob a ótica do direito fundamental ao processo justo. Nesse sentido, propõe-se a enfrentar os reflexos decorrentes da inclusão de QR Codes em atos processuais, remetendo o leitor desses atos a um cenário audiovisual e, ao mesmo tempo, preocupado com o direito fundamental à segurança jurídica, bem como as implicações presentes na formação de uma comunidade virtual de trabalho (groupware) no que se refere ao direito fundamental ao contraditório.
Palavras-chave: Hipertexto. Groupware. Processo eletrônico. Processo justo.
Abstract: The technological improvement of the e-procedure is possible through the use of conceptual models that are already familiar well known in Internet such as hypertext, understood as a dynamic link through a group of text, words, images or sound informations are aggregated. The present essay aims to investigate some of the possibilities related to the use of hyperlinks in the field of Procedural Law, analyzing them under the perspective of the fundamental right to a fair trial. That said, it intends to face the consequences of QR Codes inclusion in procedural acts, referring the reader of such acts to an audiovisual cenarium and, at the same time, concerned with the fundamental right to legal certainty, as well as the implications in the formation of a virtual work community (groupware) over the fundamental right to hearsay.
Keywords: Hypertext. Groupware. E-procedure. Fair trial.
1 INTRODUÇÃO
O aprofundamento paulatino das potencialidades envolvidas na operação do denominado “processo eletrônico” tende a permitir a incorporação de uma série de funcionalidades em sede de tecnologia[3], para além da noção limitada de um meio eletrônico meramente destinado a estocar documentos[4]. Nesse sentido, a internet já contempla um elemento que ainda não foi introduzido completamente no processo eletrônico, mas do qual se faz uso intuitivo no cotidiano fora dos autos, qual seja o hipertexto, pelo qual é possibilitada uma ligação dinâmica entre elementos que facilita a navegação na rede agregando outros conjuntos de informações na forma de textos, palavras, imagens ou sons. Esse entrelaçar de elementos ocorre por meio de hiperligações (hyperlinks), que adotam a forma de termos destacados no corpo do texto principal, ícones gráficos ou imagens, e que têm a função de interconectar os diversos conjuntos de informações, oferecendo acesso a objetos que estendem ou complementam o texto principal, facilitando a navegação dos internautas. Um texto pode ter diversas palavras, imagens ou até mesmo sons que, ao serem clicados, remetem para outra página em que se amplia o assunto do link abordado[5].
O conceito de linkar textos foi criado por Theodor Nelson[6] nos anos 1960, e tratava de uma “escrita não sequencial, rede interligada de nós que os leitores podem percorrer de forma não linear”[7]. Em horizonte semiológico, a questão do hipertexto assume ares de “texto ideal”, redesenhando-se os papéis de autor, leitor e texto, envolvidos em “redes de referência” e elos conceituais. A doutrina aponta no sentido de que o leitor, navegando entre diferentes “lexias”, “é tornado em autor, participando de uma experiência coletiva nas redes ilimitadas da linguagem”[8].
O ato de ler, através do hipertexto e da internet, ganhou outro significado. O texto impresso não incorpora tantas informações como o hipertexto, servindo como parâmetro para o surgimento de um leitor caracterizado pelas suas habilidades de leitura, interpretação e decodificação de variados signos. O leitor do hipertexto, por seu turno, participa ativamente das etapas do texto eletrônico (elaboração, difusão e leitura), alterando o conteúdo na rede. O aprimoramento tecnológico permite a incorporação de novos elementos capazes de informar o significado do texto mediante a complementação com outras experiências sensoriais, somando-se às palavras o uso de imagem e som através da utilização de recursos de hipertexto e hipermídia[9]. Em ciência da informação, o hipertexto é, antes de mais nada, um complexo sistema de estruturação e de recuperação da informação de forma multissensorial, dinâmica e interativa[10]. Ademais, a exemplo do que se passa nas redes sociais, o leitor também pode ser coautor, autor e crítico do texto literário, o que se tem como uma conquista cultural irrenunciável.
Um desafio a ser considerado é o fato de que até o presente momento ainda há uma tímida assimilação do hipertexto no âmbito do processo eletrônico. Ainda que os autos do processo eletrônico sejam estruturados de modo que documentos possam ser consultados mediante o acesso a links correspondentes, o fato é que, como regra, os atos processuais, mesmo aqueles reduzidos a termo como petições ou sentenças, continuam a seguir a linearidade própria da escrita. A questão é relevante, já que não se pode ignorar que os atores que interagem no processo eletrônico, aí inseridas as partes, os advogados e os juízes, são intérpretes formados e influenciados a partir do conceito do hipertexto e da cultura a ele subjacente, e que as possibilidades que surgem por força dessa tecnologia[11] são consideráveis.
Presentes tais premissas, o presente estudo propõe-se a investigar possibilidades de apropriação da tecnologia de hiperlinks no processo eletrônico no âmbito cível, considerando que as mesmas devem guardar sintonia com as múltiplas dimensões do direito fundamental ao processo justo, considerado como ponto de partida para a construção do sistema jurídico processual contemporâneo. Nesse sentido, investigar-se-á, inicialmente, a respeito da viabilidade e dos limites a serem considerados com vistas ao emprego de QR Codes em petições apresentadas pelas partes, de modo a remeter a conteúdos estranhos ao texto. Em um segundo momento, será efetuada uma análise quanto à estruturação de um groupware processual a partir da combinação da tecnologia de hiperlinks e do respeito ao direito fundamental ao contraditório.
2 HIPERLINKS VIA “QR CODE” EM PETIÇÕES APRESENTADAS PELAS PARTES: POSSIBILIDADES E LIMITES
Um ilustrativo caso de uso do hipertexto no processo eletrônico pode ser visto em episódio no qual um advogado brasileiro incluiu um QR Code[12] em uma petição apresentada nos autos, remetendo o leitor a um vídeo[13]. Tal experiência reclama análise atenta por diversos ângulos.
Um primeiro viés a ser considerado é o que considera o previsto no art. 188 do Código de Processo Civil de 2015, segundo o qual que os atos e termos processuais independem de forma determinada, sendo válidos todos os atos que, independentemente da forma como são praticados, preencham a finalidade essencial. A legislação brasileira, através de tal ditame, registra sua filiação ao sistema de instrumentalidade das formas, porque uma vez atendida a finalidade essencial do ato por outra forma que não a legal, reputa-se válido[14].
O ponto é relevante na medida em que evidencia que o conteúdo do ato processual é diretamente influenciado pelo modo como o mesmo se manifesta, mas não se esgota em sua dimensão formal[15]. Daí a advertência de Marshall McLuhan de que, para efeitos práticos e operacionais, “o meio é a mensagem” pois “é o meio que configura e controla a proporção e a forma das ações e associações humanas”[16], ou seja, aquele que afirma algo o faz mediante ajustamento ao formato empregado como veículo.
A forma dos atos processuais, vista em sentido amplo, consiste em fator significativo a influenciar a mudança de comportamento dos agentes que atuam no debate processual[17]. É nesse sentido que a exigência quanto à forma dos atos processuais deve tomar em conta aquilo que Jose Miguel Garcia Medina logrou apontar como sendo o “sistema interacional” do processo, no qual
(…) sucedem relações entre os sujeitos processuais de modo complexo, dinâmico, bidirecional e circular. As relações que sucedem desenvolvem-se não apenas entre os sujeitos, mas também entre os atributos de tais sujeitos. Esse modo de ver o fenômeno facilita a compreensão de que tal sistema desenvolve-se através de uma estrutura dialética. Trata-se, pois, de um sistema (em que sucede um plexo de relações e situações jurídicas) interacional (em que há comunicação e influência mútua, entre todos os sujeitos). É importante que o papel da forma, nesse contexto, seja devidamente compreendido. A forma não é apenas a manifestação exterior de um ato processual. Aceitar que a forma seja simplesmente o aspecto externo de um ato significaria dizer que a forma poderia separar-se do conteúdo, quando, na verdade isso talvez só seja possível de se fazer abstratamente. Forma não é algo “externo” ao conteúdo. Segundo pensamos, o conteúdo se manifesta através da forma, ou, com outras palavras, a forma é o modo como se configura o conteúdo aos nossos sentidos (afirma Shahn que forma é a configuração visível do conteúdo; em suas palavras, “form is the visible shape of content”; Ben Shahn, The shape of content, p. 61)[18].
A reorientação do agir dos sujeitos do processo graças ao emprego de hiperlinks em manifestações nos autos pode ser sentida de diversas formas. Distâncias que impediam uma adequada discussão quanto à valoração da prova por tribunais superiores podem ser superadas: um arquivo de vídeo associado ao texto de uma petição da parte por força de um hiperlink poderia, por exemplo, trazer diante dos olhos de um Ministro em Brasília uma compreensão da realidade que iria além da significação contida em palavras que não fossem associadas a imagens e som.
É sob essa ótica que se impõe afirmar, como decorrência lógica inarredável, que a criação de exigências formais exageradas ou injustificadas, que não guardem relação ou que dificultem o atendimento aos valores tutelados pelo ordenamento jurídico, deve ser incessantemente combatida. É nesse sentido a previsão do art. 277 do CPC segundo a qual “quando a lei prescrever determinada forma, o juiz considerará válido o ato se, realizado de outro modo, lhe alcançar a finalidade”. O emprego de hipertexto em petições, sob essa ótica, é uma alternativa a evidenciar maneiras distintas de se alcançar, com consideráveis vantagens, os mesmos resultados que se buscaria mediante o emprego da escrita linear. A inegável maior sofisticação do panorama de argumentos que se pode trazer ao (e construir no) debate processual mediante o emprego de hiperlinks é uma vantagem considerável.
Outro argumento a ser considerado em favor do emprego de QR Codes que veiculassem hiperlinks em petições das partes é o baixo custo envolvido em tal tecnologia. A existência de aplicativos gratuitos de criação de QR Code democratiza substancialmente o alcance a tal recurso.
Milita em favor do emprego de hiperlinks, ainda, a circunstância de que não se há de ver exigências no texto legal naquilo em que ele não for expresso. Pensar o contrário seria fazer com que os fantasmas que assombravam em um passado de irracionalidade assumam novas feições e tenham que ser novamente exorcizados, a exemplo do que já foi feito outrora na afirmação da irrazoabilidade presente na imposição de limites injustificados à apresentação de manifestações por cota nos autos[19].
Apesar de tais vantagens, é preciso, contudo, atenção para uma série de limites a serem considerados com vistas ao válido emprego de QR Codes que estabeleçam hiperlinks em petições acostadas aos autos pelas partes. Nesse sentido, impõe-se desde logo lembrar que o CPC estabelece em seu art. 195 os requisitos de segurança para produção e armazenamento dos atos processuais, consignando as exigências de integridade[20], autenticidade[21], não repúdio[22] e conservação[23].
Nesse sentido, a hiperligação de um determinado conteúdo a um ato processual mediante o emprego de um link que remeta a um site da internet, para além dos limites da rede interna dos órgãos do Poder Judiciário que armazenam os autos eletrônicos, envolve riscos de uma fragilidade e volatilidade evidentes. A possibilidade de alteração ou exclusão do conteúdo faz com que não se mostrem devidamente atendidos os requisitos exigidos para prática eletrônica de atos processuais.
Uma alternativa a ser considerada seria a viabilização de um serviço estável, confiável e oficial para o depósito do conteúdo associado ao hiperlink, como, por exemplo, um servidor do Conselho Nacional de Justiça ou dos Tribunais que admitisse o upload de arquivos de áudio ou vídeo. Outra alternativa seria a expedição de ordens por parte do Poder Judiciário aos responsáveis pelos servidores nos quais estejam armazenados os conteúdos, determinando a impossibilidade de que os arquivos sejam deletados ou alterados sem autorização judicial, forte no art. 139, III e VII do CPC. Com isso, ter-se-ia o atendimento aos de integridade, autenticidade, não repúdio e conservação, indispensáveis para que se considere válida a utilização do hipertexto no processo eletrônico.
3 HIPERTEXTO, PROCESSO E GROUPWARE: UM POSSÍVEL REDESENHO DO DIREITO FUNDAMENTAL AO CONTRADITÓRIO NO PROCESSO ELETRÔNICO
Há ainda uma outra potencialidade a ser explorada em termos de uso do hipertexto no processo eletrônico, que concerne à forma como nele é possível a formação de uma comunidade de trabalho (groupware) entre os sujeitos do debate processual.
Não é nova a incitação normativa com vistas ao prestígio ao princípio da oralidade no processo[24]. Contudo, a prevalência da forma escrita na prática de atos processuais consiste em uma escolha política que resulta no estabelecimento de uma dialética linear na interação entre partes e juiz, a qual é pautada por verdadeiras travas de irreversibilidade[25] dentro dessa linearidade, as quais surgem na medida em que os citados atos se sucedem ao longo do tempo.
Como instrumental que é, o processo eletrônico oferece a possibilidade de modular a complexidade e de ensejar um deslocamento da dimensão cognitiva, sem que isso necessariamente represente a substituição ou a sucessão da oralidade ou da escrita na forma dos atos processuais. Antes, o que se sustenta é a utilização de trabalhos recentes da psicologia cognitiva para que se possa analisar a articulação entre gêneros de conhecimento e tecnologias intelectuais, de modo a permitir a identificação de novas ferramentas a serem consideradas na dimensão jurídica.
As considerações acima apontadas são relevantes, ainda na medida em que alertam na direção de que o processo eletrônico não é um mero instrumental burocrático sem qualquer significado em si, nem deve ser visto como um modelo de mera gestão de documentos. Não se pode ignorar que não há qualquer tecnologia neutra ou ferramental que não seja atravessado por ideologia. Ao contrário, o que se vê é que a associação de novas tecnologias no âmbito do processo, e, em especial, do processo eletrônico, deve ser vista como uma dinâmica conectada à ideologia da eficiência da prestação jurisdicional[26].
O emprego da tecnologia no processo eletrônico, mais do que objeto, é protagonista na construção de uma nova significação da realidade daqueles que atuam perante o Poder Judiciário[27]. A tecnologia tornou-se hoje o meio pelo qual se dá a percepção do processo e da prestação jurisdicional. Trata-se de uma constatação que avança para além da empírica observação do que acontece, por exemplo, em uma penhora on-line, mas que avança para uma dimensão transcendental, na medida em que cada vez mais se concebe o social, os seres vivos ou os processos cognitivos através de uma matriz de leitura computacional. A rigor, a própria experiência de quem vivencia o processo e a jurisdição acaba sendo estruturada pela nova tecnologia.
A compreensão do processo sob o signo do hipertexto permite avançar em direção a aspectos inerentes à significação deste último. Avança-se em direção a um sistema de escrita não sequencial, que funcionaria por associações, em que um item é atrelado a outro, movendo-se, instantaneamente, em direção ao próximo em meio a uma complexa rede formada por caminhos, atalhos e encruzilhadas[28]. E, nesse sentido, mostra-se possível um esforço no sentido de descrever o processo como uma comunidade virtual de trabalho que entrelaça os sujeitos do processo em torno de um verdadeiro groupware que serve como interface de um ambiente compartilhado.
A noção em questão reclama desenvolvimentos ulteriores. Pensa-se em um software no qual os atos de linguagem praticados por autor, juiz e réu deixam de ser vistos como meras informações armazenadas em um servidor e passam a ser considerados como verdadeiras manifestações que expressam vontades e impõem compromissos aos responsáveis pela prática de tais atos. A constante interação entre as manifestações unidas por links e que se entrecruzam de forma constante levam à formação de circuitos de diálogo dialeticamente estruturados de maneira progressiva, mas não necessariamente linear.
Nesse novo contexto, o direito fundamental ao contraditório[29], ancorado no art. 5º, LV da Constituição Federal brasileira, ganha nova significação. Noções como as de participação, reação e colaboração[30] são potencializadas na medida em que os sujeitos assumem a posição de efetivos protagonistas e suas manifestações passam a ser objeto de interações nas quais aumenta consideravelmente a capacidade de exercer influência no desfecho do diálogo entre eles travado.
O emprego do modelo de groupware como palco para o desenvolvimento do processo pode assumir diversas feições, para além do cenário no qual se dá o exercício da atividade tipicamente jurisdicional. Pense-se em canais de mediação judicial, ou, ainda, de emprego de meios de autocomposição pré-processual, nos quais pedidos e compromissos, ofertas e promessas, assentimentos e recusas, consultas e resoluções são submetidos a constante contraste e reflexão de forma recorrente.
Esse panorama imposto em uma reinvenção do trabalho do juiz, a quem compete animar e manter a rede de conversas em que são trocadas as mensagens, coordenando as ações dos sujeitos inseridos em tal teia comunicativa. Cabe ao juiz a tarefa de discernir sobre as novas possibilidades que poderiam se abrir à comunidade virtual que integra com as partes e o juiz, eventualmente dispondo sobre a reorientação do debate, gerando assim novos circuitos de conversa[31]. Sob essa ótica, redesenha-se a atividade de direção do processo prevista no art. 139 do CPC, que passa a ser exercida de maneira colaborativa, de forma que o exercício do poder do Estado é, antes, efetivamente precedido por um agir coordenador sem que isso importe em um viés autoritário, no sentido pejorativo da palavra.
O estabelecimento de um groupware apoiado no formato do hipertexto no âmbito do processo eletrônico acaba por realinhar a forma como se manifesta o direito fundamental ao contraditório em outras dimensões igualmente essenciais. O emprego de um groupware com tais feições acaba por funcionar como um fator constituinte fundamental para a própria concepção e estruturação do debate processual, uma vez que permite que cada agente do processo pudesse ter uma melhor compreensão da sua posição dentro da dialética processual ao fornecer uma representação gráfica da rede de argumentos. Um tal groupware torna transparente, ainda, a ligação efetiva de cada argumento trazido ao debate com os diversos documentos e atos processuais anteriormente praticados, extrapolando as fronteiras da linearidade do diálogo escrito e projetando-se de maneira omnidirecional.
O rompimento com a linearidade no processo por força do hipertexto permite um olhar mais detido não só em direção a posições, argumentos e questões envolvidas no debate processual, mas também às relações entre tais posições, argumentos e questões, que passam a ser vistas como construção progressiva a ser feita diretamente pelos sujeitos do debate, não se esgotando no esquema cronológico do procedimento preconcebido de antemão pelo legislador, ainda que se mantenha a manifestação final sob responsabilidade do julgador. Sob o signo de tal construção, o emprego de hipertexto no processo eletrônico traz consigo o clamor por uma nova geometria a servir como representação capaz de explicar os elos que se estabelecem entre autor, juiz e réu ao longo do processo[32]. Um groupware com tais feições acaba por repercutir, ainda, na dimensão da segurança jurídica inerente ao direito fundamental ao devido processo legal[33], consagrado no art. 5º, LIV da Constituição Federal brasileira, que passa a ser vista em perspectiva dinâmica.
Dois casos podem ser citados como exemplos de funcionamento de groupwares com feições análogas ao modelo acima apresentado. O primeiro deles é o de um software chamado Agatha, desenvolvido por Alison Chorley e Trevor Bench-Capon, do Departamento de Ciências da Computação da Universidade de Liverpool, o qual foi desenhado para automatizar a construção teórica em domínios baseados em casos.
A partir de um caso tomado como problema e de um conjunto de casos considerados como precedentes, o programa utiliza um conjunto de movimentos de argumentos para gerar um espaço de busca para um diálogo entre as partes. Lançando mão de um método heurístico de busca, cada movimento é associado a um conjunto de motores teóricos, de modo que cada indicador incluído no espaço de busca acaba sendo associado a uma teoria destinada a explicar não só o caso tomado como problema, mas também os demais casos em confronto. Diante dos resultados promissores, defendeu-se a ideia de que o programa possa ser usado para construir uma teoria de um determinado fundamento jurídico sem orientação manual, desde que presentes precedentes em relação a uma determinada matéria. Foram encontrados resultados encorajadores no que tange ao fornecimento de suporte para explicação teórica do raciocínio, abrindo espaço para constatação de que o processo de construção da teoria pode estar aberto à automação, uma vez que a análise de domínio necessária para produzir o fundo foi efetivamente demonstrada[34].
Um segundo caso a ser considerado é a experiência brasileira da criação de softwares de automação em execuções fiscais com a ferramenta SikuliX, iniciativa de Francisco Antonio Cavalcante Lima premiada pela Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (IBRAJUS). Mediante o emprego de sistema aberto, sem custos de aquisição nem restrições de uso em sua licença, os robôs poderiam, por exemplo, conferir se no texto de petições apresentadas pelas partes há pedido de citação por edital, comparar se o endereço do executado cadastrado no sistema é o mesmo indicado na petição e carregar processos eletrônicos, esperando o momento de clicar para a próxima página[35].
Pensar o novo, assim, em matéria de processo eletrônico exige que se levem em conta alguns conceitos, tais como “hipertexto” e “groupware”, através dos quais seja possível o estabelecimento de novas formas de interações processuais que preencham o gap de acesso à justiça graças a uma construção digital plena consentânea com os parâmetros próprios do direito ao processo justo[36].
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O hipertexto é uma ferramenta de uso corrente na navegação pela internet que ainda não foi assimilada em sua plenitude pelo processo eletrônico. A experiência prática envolvendo o emprego de QR Code em petição escrita serve como parâmetro emblemático para que se possa propor uma reflexão em termos concretos a respeito da forma como se daria a incorporação de tal tecnologia. A possibilidade que um conjunto significativo de dados possa ser disponibilizado e acessado pelas partes é promissora ao conectar a prática do ato processual ao tempo presente da evolução tecnológica e cultural.
Embora se admita a prática sob o aspecto formal processual, todo ato processual eletrônico deve assegurar o atendimento às exigências de integridade, autenticidade, não repúdio e conservação dos dados. A adoção do hipertexto pelo processo eletrônico reclama por garantias capazes de efetivamente assegurar que o conjunto de dados disponibilizado pelo hipertexto não sofra alteração ou exclusão pelo seu emissor. Isso poderia exigir um servidor que servisse como depositário e autenticador do arquivo enviado, ou, ainda, o emprego de medidas de direção do processo pelo juiz com vistas a tal desiderato.
De outro lado, o modelo do hipertexto permite especular sobre um cenário no qual o contraditório seja alimentado através de um esquema de groupware, com os sujeitos do processo atuando numa comunidade virtual de trabalho que supere a linearidade estrita da dialética.
A potencialidade de utilização do hipertexto no processo eletrônico, a permitir a associação de informações que se encontrem em outros textos (ou na rede) representa uma interligação poderosa de informações, dinamizando a forma de prestação jurisdicional e permitindo um ganho cognitivo diante de uma realidade que se impõe, em algo que já é utilizado cotidianamente.
A prática não afasta os riscos envolvidos na automação e na padronização de decisões, bem como de teorizar acerca das perturbações sofridas pelo leitor virtual em relação à construção dos vieses mentais por força da nova plataforma. O tema do hipertexto, contudo, não deixa de se desenhar como um desafio a ser ainda efetivamente enfrentado no processo eletrônico, pois sua assimilação envolve, a despeito de uma evolução disruptiva, a atenção para uma forma diferenciada de atuação dos atores processuais que reclama por soluções que não necessariamente coincidem com aquelas hoje existentes.
REFERÊNCIAS
ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. Do Formalismo no Processo Civil. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
______. Poderes do juiz e visão cooperativa do processo. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, v. 44, p. 179-212, 2003.
ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria da segurança jurídica. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2014.
BELLEI, Sérgio Luiz Prado. O livro, a literatura e o computador. São Paulo: Educ, 2002.
CAPPELLETTI, Mauro. La testimonianza della parte nel sistema dell’oralità. Parte Prima. Milão: Giuffrè, 1974.
CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. O Devido Processo Legal e os Princípios da Razoabilidade e da Proporcionalidade. Rio de Janeiro: Forense, 2010.
CHORLEY, Alison; BENCH-CAPON, Trevor. AGATHA: Using heuristic search to automate the construction of case law theories. Artificial Intelligence and Law, v. 13, n. 1, p. 9-51, 2005.
DANTAS NETO, Renato de Magalhães. Autos virtuais: o novo layout do processo judicial brasileiro, Revista de Processo, v. 194/2001, p. 173-204, abr. 2011.
DIDIER JÚNIOR, Fredie Souza. O princípio da cooperação: Uma apresentação. Revista de Processo, v. 127, p. 75-79, 2005.
GRANT, George. Thinking about Technology. In: GRANT, George. Technology and Justice. Ontario: Anansi, 1986. p. 11-34.
GRASSO, Eduardo. La collaborazione nel processo civile. Rivista Di Diritto Processuale, v. 21, p. 580-609, 1966.
JOBIM, Marco Félix. As Funções da Eficiência no Processo Civil Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018.
KATSH, Ethan; RABINOVICH-EINY, Orna. Digital justice. Technology and the internet of disputes. New York: Oxford University Press, 2017.
KOPLIN, Klaus Cohen. O novo CPC e os direitos fundamentais processuais: uma visão geral, com destaque para o direito ao contraditório. In: RUBIN, Fernando; REICHELT, Luis Alberto (Orgs.). Grandes temas do novo Código de Processo Civil. Porto Alegre: Liv. do Advogado, 2015. p. 15-51.
LAURENTIZ, Silvia. Tags e metatags? De Ted Nelson a Tim Berners-Lee. Porto Arte, v. 17, n. 28, 2010.
LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática. Tradução de Carlos Irineu da Costa. Rio de Janeiro: 34, 1993.
McLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. 11. ed. Tradução de Décio Pignatari. São Paulo: Cultrix, 1996.
MATTOS, Sérgio Luís Wetzel de. Devido processo legal e proteção de direitos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.
MEDINA, José Miguel Garcia. Novo Código de Processo Civil Comentado [livro eletrônico]: com remissões e notas comparativas ao CPC/1973. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.
MITIDIERO, Daniel Francisco. Colaboração no processo civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
MUCCI, Latuf Isaias. Para uma retórica do hipertexto. Revista de Estudos Literários, Literatura e Hipertexto, Universidade Federal de Juiz de Fora, v. 14, n. 1, p. 11-20, 2010.
NELSON, Theodor. Proposal for a Universal eletronic publishing system and archive. In: WARDRIP-FRUIN, Noah; MONTFORT, Nick (Eds.). The New Media Reader. Massachusetts: MIT Press, 2003. p. 441-461.
PARENTE, André. O hipertextual. Revista Famecos, Porto Alegre, v. 1, n. 10, 2008.
REICHELT, Luis Alberto. O conteúdo da garantia do contraditório no direito processual civil. Revista de Processo, v. 162, p. 330-351, 2008.
SERRES, Michel. Hermes IV. Minuit, Paris: La Distribuition, 1977.
WINOGRAD, Terry; FLORES, Fernando. L’intelligence artificielle en question. [s.l.]: Presses Universitaires de France, 1989.
XAVIER, Antônio Carlos. Hipertexto e intertextualidade. Cadernos de Estudos Linguísticos, v. 44, p. 283-290, 2011.
Notas de Rodapé
[1] Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Doutor em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor em cursos de graduação, especialização, mestrado e doutorado em Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Procurador da Fazenda Nacional em Porto Alegre/RS.
[2] Mestre em Direito pela Universidade Paranaense e Doutorando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Professor dos cursos de graduação e especialização do Centro Universitário Univel. Advogado no Estado do Paraná.
[3] Sobre o conceito de tecnologia, ver GRANT, George. Thinking about Technology. In: GRANT, George. Technology and Justice. Ontario: Anansi, 1986. p. 11-34.
[4] NORTHFLEET, Ellen Gracie. A utilização do fax no Poder Judiciário. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 728, p. 122-127, 1996, p. 127 já antevia que o apego ao formato-papel e às formas tradicionais de apresentação das petições e arrazoados não deve impedir de vislumbrar as potencialidades de emprego das novas tecnologias: “No liminar do terceiro milênio devemos, também nós do Poder Judiciário, estar prontos para utilizar formas novas de transmissão e arquivamento de dados, muito diversas dos antigos cadernos processuais, recheados de carimbos, certidões e assinaturas, em nome de uma segurança que, embora desejável, não pode constituir obstáculo à celeridade e à eficiência. Teremos, certamente, a oportunidade, ainda em nosso final de século, de assistir ao ingresso dos pleitos em juízo mediante simples transferência de arquivos eletrônicos, desde os escritórios de advocacia; à consulta aos “autos” processuais em telas de computador; ao confronto entre as peças produzidas pelas parte se os elementos de prova, através de um clic de mouse ou de um comando de voz; ao arquivamento de enormes massas de informação em CDs e à sua pesquisa mediante a utilização de recursos de busca aleatória e hipertexto”.
[5] LAURENTIZ, Silvia. Tags e metatags? De Ted Nelson a Tim Berners-Lee. Porto Arte, v. 17, n. 28, p. 19-20, 2010.
[6] NELSON, Theodor. Proposal for a Universal eletronic publishing system and archive. In: WARDRIP-FRUIN, Noah; MONTFORT, Nick (Eds.). The New Media Reader. Massachusetts: MIT Press, 2003. p. 441-461. Trad. dos autores.
[7] NELSON, T. H. The literary machine. 2009. Disponível em: <http://www.literarymachine.com/lm__index2.htm>. Acesso em: 10 dez. 2009.
[8] MUCCI, Latuf Isaias. Para uma retórica do hipertexto. Revista de Estudos Literários, Literatura e Hipertexto, Universidade Federal de Juiz de Fora, v. 14, n. 1, p. 11-20, 2010, p. 11.
[9] BELLEI, Sérgio Luiz Prado. O livro, a literatura e o computador. São Paulo: Educ, 2002. p. 45.
[10] PARENTE, André. O hipertextual. Revista Famecos, Porto Alegre, v. 1, n. 10, 2008.
[11] Alan Kay, da Apple, disse certa vez que tecnologia é tecnologia apenas para as pessoas que nasceram antes da sua invenção. Com 12 anos, Niki Tapscott concorda: quando lhe perguntaram se ela participaria de um painel sobre o consumidor do futuro, em uma conferência sobre tecnologia, ela discursou para seu pai: “Ok, papai, farei isso se você quiser. Mas eu não entendo porque vocês, adultos, fazem tanto alarde em torno da tecnologia. As crianças apenas usam os computadores para fazer as coisas. Não pensamos nelas como tecnologia. Assim como a geladeira faz as coisas. Não é tecnologia. Quando abro a geladeira, quero que a comida esteja gelada. Não penso na tecnologia que torna a comida gelada” (TAPSCOTT, Don. Economia digital. Tradução de Maria Claudia dos Santos Ribeiro Ratto. São Paulo: Makron Books, 1997. p. 20).
[12] “Código QR (sigla do inglês Quick Response) é um código de barras em 2D que pode ser escaneado pela maioria dos aparelhos celulares que têm câmera fotográfica. Esse código, após a decodificação, passa a ser um trecho de texto, um link e/ou um link que irá redirecionar o acesso ao conteúdo publicado em algum site. Inicialmente criado pela empresa japonesa Denso-Wave em 1994 para identificar peças na indústria automobilística, desde 2003 é usado para adicionar dados a telefones celulares através da câmera fotográfica. Os “QR Codes” estão sendo usados em muitas revistas, campanhas publicitárias e até em games, como o Homefront para divulgação de mensagens e dicas do jogo”. PRASS, Ronaldo. Entenda o que são os ‘QR Codes’, códigos lidos pelos celulares. 2011. Disponível em: <http://g1.globo.com/tecnologia/noti cia/2011/05/entenda-o-que-sao-os-qr-codes-codigos-lidos-pelos-celulares.html>. Acesso em: 09 jun. 2018.
[13] O vídeo do advogado Euro Júnior, linkado no QR Code da petição. LIMA JÚNIOR, Euro Cássio Tavares de. Inovação – QR Code – Despacho virtual – Exceção de pré-executividade – Violação dos direitos constitucionais do contraditório e da ampla defesa, 2017. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=pfv_D1277dg>. Acesso em: 20 dez. 2017. Com notícia e reflexão a respeito do episódio narrado, ver ROVER, Tadeu. Advocacia disruptiva. Advogado usa QR Code em petição para facilitar comunicação com juiz, 2017. Disponível em: <http:// www.conjur.com.br/2017-set-25/advogado-usa-qr-code-peticao-facilitar-comunicacao-juiz>. Acesso em: 30 set. 2017.
[14] A jurisprudência anota que a filiação ao sistema em questão não é de hoje, mas, antes, já podia ser sentida no Código de Processo Civil de 1973. Nesse sentido, ver STJ – 4ª T. – REsp. 7.184/SP – Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira – j. em 08.10.1991 – DJU 11.11.1991, p. 16.149.
[15] É mais do que acertada a lição segundo a qual “a manifestação externa do ato, em contraposição à vontade e ao escopo que o anima, constitui apenas um dos seus momentos, uma parte ideal de sua totalidade, uma e outra indissociáveis, assim como a sombra segue o corpo” (ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. Do Formalismo no Processo Civil. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 25)
[16] McLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. 11. ed. Tradução de Décio Pignatari. São Paulo: Cultrix, 1996. p. 21.
[17] Segue-se a mesma linha de raciocínio defendida por ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. Do Formalismo no Processo Civil. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 28.
[18] MEDINA, José Miguel Garcia. Novo Código de Processo Civil Comentado [livro eletrônico]: com remissões e notas comparativas ao CPC/1973. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.
[19] É nesse sentido que o Superior Tribunal de Justiça afirmou ser válida manifestação em cota nos autos utilizando tinta verde-escuro, sob o argumento de que “não se pode restringir o que a lei não restringe” (STJ – Recurso ordinário em Mandado de Segurança 5.699/SP – 6ª T. – Rel. Min. Adhemar Ferreira Maciel – j. em 29.08.1995 – DJU 30.10.1995, p. 36.811). Vale anotar, aqui, que o CPC de 2015 não repetiu a fórmula inscrita no art. 169 do CPC/1973, segundo a qual “os atos e termos do processo serão datilografados ou escritos com tinta escura e indelével”.
[20] A exigência de integridade impõe que o ato processual não tenha seu conteúdo modificado, referindo-se tanto à higidez do arquivo digital como também a impossibilidade de inclusão ou exclusão de arquivos ou de informações no movimento que já tenha sido gerado. Nesse sentido, CARVALHO FILHO, Antônio. Os atos processuais eletrônicos no CPC/2015. Revista de Processo, v. 262, p. 469-481, 2016.
[21] A doutrina refere que a exigência de autenticidade possui duplo sentido, tanto referindo-se à certeza quanto a autoriza do ato processual (signer authetication) quanto ao próprio arquivo produzido (document authentication), de modo a proteger o documento contra a falsificação (CARVALHO FILHO, Antônio. Os atos processuais eletrônicos no CPC/2015. Revista de Processo, v. 262, p. 469-481, 2016).
[22] A exigência de não repúdio “é a obstaculização criada pela Legislação às partes (advogados, servidores, peritos, magistrados e promotores) de negarem o conteúdo ou autoria do documento. Em outras palavras, é a garantia de que o emissor de uma mensagem não poderá, posteriormente, negar sua autoria nem o seu conteúdo. Isto decorre da segurança jurídica dos atos praticados no processo eletrônico, instituído pelo art. 10, § 1º da MedProv 2.200-2/2001, 46 com base no art. 219 do CC/2002” (DANTAS NETO, Renato de Magalhães. Autos virtuais: o novo layout do processo judicial brasileiro. Revista de Processo, v. 194, p. 173-204, 2001).
[23] A conservação dos arquivos digitais compreende a exigência no sentido de que se assegure a integridade do ato processual pelo tempo que for necessário, de modo que não se tenha esvaziamento do seu conteúdo ou que o decurso do tempo implique em sua avaria.
[24] A esse respeito, por todos, CAPPELLETTI, Mauro. La testimonianza della parte nel sistema dell’oralità. Parte Prima. Milão: Giuffrè, 1974. especialmente p. 187 e ss.
[25] A expressão “travas de irreversibilidade” pode ser encontrada em LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática. Tradução de Carlos Irineu da Costa. Rio de Janeiro: 34, 1993. p. 76: “Seja nas mentes, através de processos mnemotécnicos, no bronze ou na argila pela arte do ferreiro ou do oleiro, seja sobre o papiro do escriba ou o pergaminho do copista, as inscrições de todos os tipos – e em primeiro lugar a própria escrita – desempenham o papel de travas de irreversibilidade. Obrigam o tempo a passar em apenas um sentido; produzem história, ou melhor, várias histórias com ritmos diversos. Uma organização social pode ser considerada como um dispositivo gigantesco servindo para reter formas, para selecionar e acumular novidades, contanto que nesta organização sejam incluídas todas as técnicas e todas as conexões com o ecossistema físico-biológico que a fazem viver. As sociedades, estas enormes máquinas heteróclitas e desreguladas (estradas, cidades, ateliês, escritas, escolas, línguas, organizações políticas, multidões no trabalho ou nas ruas […]) secretam, com sua assinatura singular, certos arranjos especiais de continuidade e velocidade, um entrelace de história”. E, mais adiante, arremata o autor: “ao deitar a exegese sobre o papel, quando em certo sentido escreve-se uma leitura, constrói-se uma irreversibilidade” (p. 85).
[26] Para uma ampla reflexão a respeito da exigência de eficiência no âmbito processual, ver, por todos, JOBIM, Marco Félix. As Funções da Eficiência no Processo Civil Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018. passim.
[27] Nas palavras de Pierre Levy, “certamente podemos ressaltar a diferença entre as coisas em sua materialidade utilitária e as narrativas, símbolos, estruturas imaginárias e formas de conhecer que as fazem parecer aquilo que elas são aos olhos dos membros das diversas sociedades consideradas. Mas quando colocamos de um lado as coisas e as técnicas e do outro os homens, a linguagem, os símbolos, os valores, a cultura ou o ‘mundo da vida’, então o pensamento começa a resvalar. Uma vez mais, reificamos uma diferença de ponta de vista em uma fronteira separando as próprias coisas. Uma entidade pode ser ao mesmo tempo objeto da experiência e fonte instituinte, em particular se diz respeito à técnica” (LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática. Tradução de Carlos Irineu da Costa. Rio de Janeiro: 34, 1993. p. 38). Linhas depois, arremata o citado autor: “o cúmulo da cegueira é atingido quando as antigas técnicas são declaradas culturais e impregnadas de valores, enquanto que as novas são denunciadas como bárbaras e contrárias à vida. Alguém que condena a informática não pensaria nunca em criticar a impressão e menos ainda a escrita. Isto porque a impressão e a escrita (que são técnicas!) o constituem em demasia para que ele pense em apontá-las como estrangeiras. Não percebe que sua maneira de pensar, de comunicar-se com seus semelhantes, e mesmo de acreditar em Deus […] são condicionadas por processos materiais” (p. 38).
[28] A reflexão é construída a partir da lição de XAVIER, Antônio Carlos. Hipertexto e intertextualidade. Cadernos de Estudos Linguísticos, v. 44, p. 283-290, 2011, especialmente p. 284.
[29] A respeito do conteúdo do direito fundamental ao contraditório, ver ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. Poderes do juiz e visão cooperativa do processo. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, v. 44, p. 179-212, 2003; REICHELT, Luis Alberto. O conteúdo da garantia do contraditório no direito processual civil. Revista de Processo, v. 162, p. 330-351, 2008; KOPLIN, Klaus Cohen. O novo CPC e os direitos fundamentais processuais: uma visão geral, com destaque para o direito ao contraditório. In: RUBIN, Fernando; REICHELT, Luis Alberto (Org.). Grandes temas do novo Código de Processo Civil. Porto Alegre: Liv. do Advogado, 2015. p. 15-51.
[30] Para uma reflexão a respeito do ponto, ainda que com distintos pontos de vista em relação a certos aspectos do tema, ver GRASSO, Eduardo. La collaborazione nel processo civile. Rivista Di Diritto Processuale, v. 21, p. 580-609, 1966; DIDIER JÚNIOR, Fredie Souza. O princípio da cooperação: Uma apresentação. Revista de Processo, v. 127, p. 75-79, 2005; MITIDIERO, Daniel Francisco. Colaboração no processo civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. passim.
[31] Para um paralelo a respeito do funcionamento de tal revisão do papel do juiz em um groupware, vale trazer à baila a lição de Pierre Lévy, o qual, refletindo sobre o modelo teórico proposto por Winograd e Flores a respeito de organizações como redes de conversações, anota que em tal modelo “o trabalho do dirigente ou do executivo não consiste em ‘resolver problemas’ ou em ‘tomar decisões’ sozinho. Ele anima e mantém a rede de conversas onde são trocados os compromissos. Ele coordena as ações. Irá, sobretudo, tentar discernir, durante sua atividade comunicativa, as novas possibilidades que poderiam abrir-se à comunidade e ameaçariam reorientar algumas de suas finalidades, gerando assim novos circuitos de conversa. Seguindo este modelo teórico, o groupware concebido por Winograd e Flores visa sobretudo auxiliar a dimensão pragmática da comunicação nos grupos, em detrimento de seu aspecto semântico. A primeira preocupação é a de coordenar a ação. Cada um dos atos de linguagem que transita pela rede é rotulado: isso é uma pergunta, um assentimento, a anulação de uma promessa, uma contraproposta? O programa verifica o estado da conversa em andamento e alerta os participantes quanto a datas, atraso se eventuais rupturas de promessas. Em caso de litígio, o histórico da conversa está sempre disponível” (LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática. Tradução de Carlos Irineu da Costa. Rio de Janeiro: 34, 1993. p. 64-65).
[32] Novamente, tem-se o apoio em Pierre Levy ao referir que “os hipertextos de auxílio à inteligência cooperativa garantem o desdobramento da rede de questões, posições e argumentos, ao invés de valorizar os discursos das pessoas tomados como um todo. A representação hipertextual faz romper a estrutura agonística das argumentações e contra-argumentações. A ligação das idéias a pessoas torna-se nebulosa. Em uma discussão comum, cada intervenção aparece como um microacontecimento, ao qual outros irão responder sucessivamente, como em um drama teatral. O mesmo ocorre quando dois ou mais autores discutem através de textos intercalados. Com os groupwares, o debate se dirige para a construção progressiva de uma rede de argumentação e documentação que está sempre presente aos olhos da comunidade, podendo ser manipulada a qualquer momento. Não é mais “cada um na sua vez” ou “um depois do outro”, mas sim uma espécie de lenta escrita coletiva, dessincronizada, desdramatizada, expandida, como se crescesse por conta própria seguindo uma infinidade de linhas paralelas, e portanto sempre disponível, ordenada e objetivada sobre a tela. O groupware talvez tenha inaugurado uma nova geometria da comunicação” (LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática. Tradução de Carlos Irineu da Costa. Rio de Janeiro: 34, 1993. p. 65-66).
[33] Sobre segurança jurídica e suas múltiplas dimensões, ver ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria da segurança jurídica. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2014. passim. A respeito da evolução do alcance do direito ao devido processo legal, com ampla abordagem a respeito do substantive due process na experiência americana, ver MATTOS, Sérgio Luís Wetzel de. Devido processo legal e proteção de direitos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. Passim; CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. O Devido Processo Legal e os Princípios da Razoabilidade e da Proporcionalidade. Rio de Janeiro: Forense, 2010. passim.
[34] CHORLEY, Alison; BENCH-CAPON, Trevor. AGATHA: Using heuristic search to automate the construction of case law theories. Artificial Intelligence and Law, v. 13, n. 1, p. 9-51, 2005.
[35] AJUFE – Associação dos Juízes Federais do Brasil. Juízes premiam projeto que propõe criar robôs para analisar petições, 2016. Disponível em: <http://www.ajufe.org/imprensa/ajufe-na-imprensa/juizes-premiam-projeto-que-propoe-criar-robos-para-analisar-peticoes/>. Acesso em: 30 mar. 2017.
[36] Preocupação semelhante pode ser vista em KATSH, Ethan; RABINOVICH-EINY, Orna. Digital justice. Technology and the internet of disputes. New York: Oxford University Press, 2017. p. 178, ao referir que “despite the potential of digital technology to enhance access to justice, what we call a ‘digital justice gap’ exists. Technology has generated a large number of disputes for which there are currently limited channels of redress. Where such mechanisms do exist, it is difficult to ascertain their fairness and efficiency”.