The Kelsenian Normative Framework and Neurobiology
DOI: 10.19135/revista.consinter.00008.05
Alvaro Luiz T. A. Gonzaga[1] – ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4051-0748
André Moraes De Nadai[2] – ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1329-5341
Resumo: O presente artigo realiza uma crítica da moldura normativa kelseniana à luz da Neurobiologia de Humberto Maturana e Francisco Varela. Nesse sentido, estudaremos como os conceitos desenvolvidos pelos cientistas chilenos como sistema fechado, acoplamento estrutural e “objetividade entre parênteses” fornecem fundamentos para divergir da visão hermenêutica de Hans Kelsen baseada na teoria da moldura normativa.
A metodologia empregada trabalha com a reflexão zetética e dogmática, baseada na técnica da argumentação, na lógica formal e na discussão filosófica, utilizadas no relacionamento entre as seguintes áreas do conhecimento científico, a Biologia e o Direito.
Por fim, como conclusão, obtivemos uma reavaliação do modo interpretativo kelseniano com base na Neurobiologia estudada.
Palavras-chave: Moldura normativa. Hans Kelsen. Neurobiologia. Humberto Maturana. Francisco Varela. Sistema fechado. Acoplamento estrutural. “Objetividade entre parênteses”.
Abstract: This article criticizes the Kelsenian normative framework in the light of the Neurobiology of Humberto Maturana and Francisco Varela. In this sense, we will study how the concepts developed by Chilean scientists as closed system, structural coupling and “parenthesis objectivity” provide grounds to diverge from Hans Kelsen’s hermeneutic vision based on normative framework theory.
The methodology used works with zeptic and dogmatic reflection, based on the technique of argumentation, formal logic and philosophical discussion, used in the relationship between the following areas of scientific knowledge, Biology and Law.
Finally, as a conclusion, we obtained a reappraisal of the Kelsenian interpretive mode based on the Neurobiology studied.
Keywords: Normative framework. Hans Kelsen. Neurobiology. Humberto Maturana. Francisco Varela. Closed System. Structural coupling. “Objectivity in parentheses”.
1 Introdução
Nosso artigo tem como proposta de trabalho realizar uma crítica da Hermenêutica jurídica de Hans Kelsen à luz dos estudos no campo da Neurobiologia dos cientistas chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela.
Desse modo, na seção 2, abordaremos a concepção científica e jurídica de Hans Kelsen, analisando o seu método interpretativo, o qual separa de um lado o cientista e do outro o aplicador do direito.
Na seguinte, estudaremos os conceitos de sistema fechado e acoplamento estrutural desenvolvidos por Varela e Maturana segundo suas pesquisas neurológicas.
Na quarta seção, trataremos de algumas consequências filosóficas de tais descobertas em relação ao modo de se enxergar a “realidade”. Abordaremos, assim o conceito de “objetividade entre parênteses” desenvolvido pelos estudiosos chilenos.
E na quinta, faremos uma análise da teoria interpretativa do eminente jurista austríaco sob os holofotes dos estudos neurobiológicos previamente apresentados, realizando, após, uma conclusão nesses parâmetros.
2 Hermenêutica Kelseniana
A publicação da principal obra do jurista Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito, cuja primeira edição é de 1933, causou um grande impacto no meio jurídico. A partir dela o Positivismo ganha, dentro do direito, bases teóricas arrojadas as quais darão ao paradigma positivista um forte apoio ao longo dos anos.
Na sua mais célebre obra, Kelsen divide o plano do ser do plano do dever-ser. O primeiro significa a facticidade, o mundo dos fatos, a realidade mensurável. O segundo a prescritividade, o mundo das normas, a realidade valorativa. Segundo Kelsen (1999, p. 05):
A distinção entre ser e dever-ser não pode ser mais aprofundada. É um dado imediato da nossa consciência. Ninguém pode negar que o enunciado: tal coisa é – ou seja, o enunciado através do qual descrevemos um ser fático – se distingue essencialmente do enunciado: algo deve ser – com o qual descrevemos uma norma – e que da circunstância de algo ser não se segue que algo deva ser, assim como da circunstância de que algo deve ser não se segue que algo seja.
Sua teoria atribui à relação factual a causalidade (Ciência Natural). E à relação normativa a imputação (KELSEN, 1999, p. 54). Ambas são espécies de liame, uma do universo fenomenal físico e a outra do universo fenomenal cultural (ético).
No plano fático, dada uma causa q (ser) ocorre automaticamente uma determinada consequência r (ser), por exemplo, a queda de um raio sobre uma árvore vem a ocasionar um incêndio. Em outras palavras, de um ser decorre outro ser (fato ocasiona fato).
Já a ligação entre regras[3] possui vínculo prescritivo. Em outras palavras, dada a valoração de um bem, por exemplo a proteção da vida humana, é emitida, pelo poder competente[4], uma norma que terá por objeto uma prescrição, que pode ser proibitiva, permissiva ou obrigatória. Dessa forma, há na realidade uma relação imputativa, e não causal como entre um fato e outro. Existe um dever-ser, ou seja, dada uma condição x atribui-se pelo ser humano uma dada consequência y (uma sanção[5] ou um outro efeito jurídico).
É essa separação entre fato e norma que dirigirá o raciocínio do eminente jurista austríaco. E é por esse motivo que ele dividirá a Ciência do Direito do seu objeto, o direito[6]. Ciência, de um lado, e conhecimento jurídico, do outro.
Em seu entendimento a relação científica é descritiva; trabalha com proposições:
Proposições jurídicas são juízos hipotéticos que enunciam ou traduzem que, de conformidade com o sentido de uma ordem jurídica – nacional ou internacional – dada ao conhecimento jurídico, sob certas condições ou pressupostos fixados por esse ordenamento, devem intervir certas conseqüências pelo mesmo ordenamento determinadas. (KELSEN, 1999, p. 51)
Já o direito é uma relação normativa prescricional; trabalha com prescrições. “As normas jurídicas, por seu lado, não são juízos, isto é, enunciados sobre um objeto dado ao conhecimento. Elas são antes, de acordo com o seu sentido, mandamentos e, como tais, comandos, imperativos” (KELSEN, 1999, p. 51).
O cientista, para Kelsen (1999, p. 51) não prescreve (não dita o que deve ser), mas somente descreve (diz o que é). “A ciência jurídica tem por missão conhecer – de fora, por assim dizer – o Direito e descrevê-lo com base no seu conhecimento”.
É essa visão dualista do conhecimento que norteará todo o pensamento do eminente jurista. O ser e o dever-ser são esferas distintas; embora a existência do dever-ser dependa da existência do ser.
Segundo tal modelo, ele separa o papel do cientista do papel do juiz (e do legislador) (KELSEN, 1999, p. 54). O primeiro é aquele responsável por “descobrir” o direito; o segundo por atribuir, decisoriamente, um sentido à determinada norma.
Essa separação de papéis (cientista/juiz[7]) é trabalhada por ele do seguinte modo. O sentido da norma é “extraído” pelo intérprete dentro do que ele denomina de moldura normativa:
Se por ‘interpretação’ se entende a fixação por via cognoscitiva do sentido do objeto a interpretar, o resultado de uma interpretação jurídica somente pode ser a fixação da moldura que representa o Direito a interpretar e, conseqüentemente, o conhecimento das várias possibilidades que dentro desta moldura existem. Sendo assim, a interpretação de uma lei não deve necessariamente conduzir a uma única solução como sendo a única correta, mas possivelmente a várias soluções que – na medida em que apenas sejam aferidas pela lei a aplicar – têm igual valor, se bem que apenas uma delas se torne Direito positivo no ato do órgão aplicador do Direito – no ato do tribunal, especialmente. Dizer que uma sentença judicial é fundada na lei, não significa, na verdade, senão que ela se contém dentro da moldura ou quadro que a lei representa – não significa que ela é a norma individual, mas apenas que é uma das normas individuais que podem ser produzidas dentro da moldura da norma geral. (KELSEN, 1999, p. 247)
Ou seja, o ato de interpretação identifica vários sentidos possíveis que uma regra jurídica pode conter. É nesse momento que se encerra o papel do cientista, o qual apenas descobre os significados do texto jurídico. Já a escolha, a atribuição de sentido para um determinado caso, é papel do juiz. É este que possui o poder decisório, de escolher qual o melhor sentido para aquele caso sub judice.
Após a apresentação desse quadro teórico, passaremos a discutir tais pressupostos à luz dos estudos da Neurobiologia de Humberto Maturana e Francisco Varela.
3 A Neurobiologia de Humberto Maturana e Francisco Varela
Os estudos no campo da Neurobiologia de Humberto Maturana e Francisco Varela revolucionaram o modo de pensar o fenômeno da vida. Suas ideias têm exercido forte influência tanto nas Ciências Naturais quanto nas Humanas, incluindo a Sociologia[8] e também o Direito (RODRÍGUEZ; TORRES, 2003, p. 132).
Suas investigações começaram com o problema da percepção da cor, ou seja, como o sistema visual humano opera:
Nossa experiência de um mundo feito de objetos coloridos é literalmente independente da composição dos comprimentos de onda da luz que vem de cada cena que observamos. Com efeito, se levo uma laranja de dentro de casa até o pátio, ela continua sendo da mesma cor. No entanto, no interior da casa ela era iluminada por, digamos uma luz fluorescente, que tem uma grande quantidade de comprimentos de onda chamados azuis (ou curtos), enquanto que no sol predomina comprimentos de onda chamados vermelhos (ou longos). Não há maneiras de estabelecer uma correspondência entre a tremenda estabilidade das cores com as quais vemos os objetos do mundo e a luz que dele provém. A explicação de como vemos as cores não é simples e tentaremos fornecê-la com detalhes aqui. Contudo, o essencial é que para entender o fenômeno devemos deixar de pensar que a cor dos objetos que vemos é determinada pelas características da luz que nos chega a partir deles. Em vez disso, precisamos nos concentrar em compreender como a experiência de uma cor corresponde a uma configuração específica de estados de atividade no sistema nervoso, determinados por sua estrutura. Com efeito, embora não façamos neste momento, é possível demonstrar que, como tais estados de atividade neuronal (como a visão do verde) podem ser desencadeadas por uma variedade de perturbações luminosas (como as que tornam possível ver as sombras coloridas), é possível correlacionar o nomear das cores com estados de atividade neuronal, porém não com os comprimentos de onda. Os estados de atividade neuronal deflagrados por diferentes perturbações estão determinados em cada pessoa por sua estrutura individual e não pelas características do agente perturbador. O que foi dito é válido para todas as dimensões da experiência visual (movimento, textura forma etc.), bem como para qualquer outra modalidade perceptiva. Poderíamos falar de situações similares, que nos revelam, de um só golpe, que aquilo que tomávamos como uma simples captação de algo (tal como espaço ou cor) traz a marca indelével de nossa própria estrutura. (VARELA, 2001, p. 26-27)
Tais testes foram realizados para entender esse funcionamento. Assim, numa dessas experiências ficou constatado que o cérebro não apenas processava a gama de cor que vinha do raio de luz externo. Havia mais que um mero processamento, uma simples captação informacional do ambiente para o organismo humano. Havia, segundo a pesquisa, uma criação pela própria estrutura neuronal da cor visualizada.
É esse tipo de estudo que contribuiu para uma nova teoria científica no campo da Biologia. Maturana e Varela verificaram que nosso cérebro não pode ser comparado a um computador:
O sistema nervoso não é solipsista porque, como parte do organismo, participa das interações deste com o seu meio, que nele desencadeia continuamente mudanças estruturais que modulam sua dinâmica de estados.
[…] O sistema nervoso também não é representacionista, porque em cada interação é seu estado estrutural que especifica quais as perturbações que são possíveis, e que mudanças elas podem desencadear em sua dinâmica de estados. Seria um erro, portanto, definir o sistema nervoso como entradas ou saídas, no sentido tradicional. Isso significaria que tais entradas e saídas tomariam parte da definição do sistema, como acontece com o computador e outras máquinas produzidas pela engenharia. Fazer isso é inteiramente razoável quando projetamos uma máquina na qual o principal é saber como queremos interagir com ela. Mas o sistema nervoso (ou organismo) não foi projetado por ninguém: é o resultado da deriva filogenética de unidades centradas em sua própria dinâmica de estados. (VARELA, 2001, p. 188)
Ou seja, não há meramente uma recepção neuronal das informações exteriores, uma mera representação interna do externo. Há mais que isso. Há uma seletividade do organismo frente ao ambiente. Em outras palavras, ele seleciona os dados que irá receber.
Nesse sentido, eles entendem que os organismos vivos são sistemas fechados e não abertos. Fechados porque não há uma relação passiva de emissor/receptor. Mas há uma interação ativa. Seleciona-se a informação que será internalizada. O restante deixa de ser percebido, não é relevante, não interfere internamente.
Tal fechamento não apenas se refere aos entes vivos, mas aos seus órgãos internos também. Cada um deles possui uma função específica, com aberturas seletivas. Por exemplo, o fígado humano “trabalha” de determinada maneira para desempenhar um papel específico. Ele, no caso, fará uma seleção prévia das informações biológicas que serão processadas internamente. Essa relação entre sistema e ambiente foi denominada de acoplamento estrutural.
É esse acoplamento que explica a interação entre um gorila e o meio (por exemplo, a floresta) em que ele habita. Seus sentidos funcionam dentro de uma rede fechada de informação. Seus olhos, por exemplo, desempenham um papel dentro do sistema visual. Eles receberão a luz, ela será captada pelos nervos ópticos e será levada ao cérebro, por exemplo. Ou seja, cada sistema age e opera dentro do seu “universo”, dentro do seu contexto e por meio de seus próprios códigos
Assim sendo, é possível fazer com um sapo um experimento muito revelador. Toma-se um girino ou larva de sapo, corta-se a borda de seu olho – respeitando o nervo óptico – e faz-se com ele um giro de 180 graus. Deixa-se que o animal assim operado complete seu desenvolvimento larvar e sua metamorfose, até que se transforme num adulto. Toma-se agora o sapo experimental e, com o cuidado de cobrir o olho virado, mostra-se a ele uma minhoca. A língua se projeta para diante e acerta perfeitamente o alvo. Repetimos o experimento, dessa vez cobrindo olho normal. E verificamos que o animal lança a língua com desvio de exatamente de 180 graus. Ou seja, se a presa está abaixo do animal ou à sua frente, como seus olhos apontam um pouco para o lado ele gira e projeta a língua para cima e para trás. Cada vez que repetimos a prova, ele comete o mesmo tipo de erro: desvia-se em 180 graus e é inútil insistir. O animal com olho virado jamais muda esse novo modo de lançar a língua com um desvio em relação à posição da presa, que é igual à rotação imposta pelo experimentador. O animal atira sua língua como se a zona da retina onde se forma a imagem da presa estivesse em sua posição normal.
Esse experimento revela, de forma dramática, que para o animal o acima e o abaixo e o adiante e o atrás não existem em relação ao mundo exterior, do mesmo modo que existem para o observador. O que há é uma correlação interna entre o lugar onde a retina recebe uma determinada perturbação e as contrações musculares que movem a língua, a boca, o pescoço e, por fim, o corpo inteiro do sapo. (VARELA, 2001, p. 141)
Enfim, após essa breve apresentação da teoria de Maturana e Varela, veremos sua repercussão no campo filosófico e jurídico.
4 A Neurobiologia e a Filosofia
Nossa abordagem nesse artigo focaliza as consequências hermenêuticas do funcionamento do modelo teórico apresentado no âmbito do direito, a partir da maneira como a Biologia, em seus estudos neurológicos, revela-nos uma visão de mundo e realidade diferentes das que comumente temos, modificando nosso entendimento filosófico e jurídico.
O acoplamento estrutural entre ambiente e sistema altera a percepção consagrada de que um ser vivo reage à influência ambiental. É muito mais que isso; algo muito mais sutil. Aqui não ocorre uma reação, mas sim uma resposta. Não há uma separação entre ser vivo e ambiente. Melhor dizendo, eles estão em contínuo relacionamento. Como em uma dança, em um fluxo constante. Um influi no outro. Mas cada um opera dentro de seu código, de sua coerência. Caso ela sofra um abalo, e seja rompida essa relação, não havendo um rearranjo interno que a possa equalizar, o organismo morre. São esses o acoplamento estrutural e o fechamento sistêmico. Dessa nova compreensão surge uma realidade externa e interna (de cognoscência do ser) extremamente tênue, fluída e dinâmica. É a partir desse ponto, depois de toda uma análise prévia, que debateremos os frutos dessa nova visão no campo filosófico e jurídico.
Desse estudo podemos verificar que uma completa objetividade descritiva de uma realidade exterior é na prática irrealizável. Primeiro, porque todo observador (cientista) está localizado dentro de um tempo e um espaço. Portanto, seu modo de entender, seu modo de enxergar o mundo está condicionado, senão totalmente, mas majoritariamente pelas crenças vigentes naquele lugar.
Não há um olhar neutro, isento. Isso é impossível. Visto que todo ser humano está dentro de um ponto focal, dentro de uma certa perspectiva, a sua compreensão é sempre parcial, nunca total. Podemos dar como exemplo o papel de um rei e de um escravo que vivem no mesmo lugar e na mesma época. O rei, como rei, tem diante da “realidade”, a perspectiva de senhor[9]. Já o escravo, nesse papel, tem uma visão de mundo completamente diferente, seu viver é regido por todos os tipos de restrições de uma vida servil.
No entanto, pode-se objetar que como cientista, atuando nesse papel como buscador da “verdade”, sua posição deveria ser de neutralidade. Embora essa seja sua intenção, não há como separar o cientista do ser humano. Ou seja, o homem, como pessoa, possui dentro de si toda sua história de vida, sua criação, sua educação (o modo como a rede de familiares o educou), seus círculos sociais; todos esses aspectos moldam sua mentalidade. Até mesmo um cientista do século XIX não pode ser comparado com um que nasceu e cresceu nos dias atuais; a linguagem científica pode ser semelhante, mas sua mentalidade possui especificidades.
Em segundo lugar, porque todo fato é uma descrição linguística. Não se pode apartá-lo da linguagem. Não há pensamento fora da linguagem. E é o ato de pensar que promove o recorte factual. Para um cavalo, um cachorro ou um gato não há fatos, há um fluxo sucessivo de eventos, mas não fatos. Não há nascimento ou morte para eles. Esses eventos somente podem ser sentidos ou percebidos. Ou seja, podem ser notados por certas espécies de animais (como os elefantes ou gorilas no caso da morte), mas não podem ser descritos, não podem ser mentalizados, pois não há pensamento. E este para que exista necessita de uma linguagem.
Diante disso, chegamos ao que Humberto Maturana (2014, p. 297) denomina de “objetividade entre parênteses”. “Entre parênteses” porque a objetividade, a concepção de mundo dependerá do repertório linguístico do qual faz parte o observador. “De tudo isso segue-se que a realidade que vivemos depende do caminho explicativo que adotamos e que isso, por sua vez, depende do domínio emocional no qual nos encontramos no momento da explicação” (MATURANA, 2014, p. 315).
É esse novo modelo de objetividade que, face aos estudos neuronais, aqui apresentamos. Assim, a ideia de fato passa a ser uma construção linguística. Não há algo externo ao observador que seja absolutamente independente dele. Mas, ao contrário, a sua percepção está condicionada pelas construções da linguagem utilizada. Vejamos, nas próprias palavras de Maturana (2014, p. 313), a diferença entre essas duas concepções:
Como eu disse acima, se o observador segue o caminho explicativo da objetividade sem parênteses, ele ou ela aceita a priori uma realidade objetiva independente como uma fonte de validação de suas explicações da práxis do viver, e o faz invocando entidades que, em última análise, não depende do que ele ou ela faz. No caminho explicativo da objetividade entre parênteses, ele ou ela aceita que a realidade é a que ele ou ela faz na validação de suas explicações da práxis do viver, e que, fazendo isso, ele ou ela faz emergir muitos domínios de realidade diferentes, na forma de muitos domínios de entidades diferentes que são constituídos em sua explicação. Em outras palavras, seguindo esse caminho explicativo, o observador torna-se consciente de que cada domínio de realidade é um domínio de entidades constituído na explicação de sua práxis de viver com as coerências operacionais de sua práxis de viver.
Essa diferença de entendimento revoluciona o modo como enxergamos a “realidade” e o seu conhecimento. Perceber que a nossa estrutura biológica e cultural modelam a forma com que interagimos com o mundo, definindo o modo como nos relacionamos com o outro e com nosso entorno.
Assim, embora o organismo seja um sistema fechado (o que significa que a sua ordem interna determina sua relação com o exterior), ele está em permanente relacionamento com seu meio.
A correspondência estrutural entre o organismo e o meio não surge da determinação do organismo pelo meio, mas se dá constitutivamente como condição de existência do organismo em sua dinâmica histórica de interações com o meio enquanto conserva sua organização e sua adaptação. (MATURANA, 2014, p. 84)
Nessa linha, o ser vivo e o ambiente formam o que o autor denomina de acoplamento estrutural, uma relação, ao mesmo tempo, de interdependência e independência. Dessa maneira, é o organismo que irá determinar o seu tipo de configuração estrutural (MATURANA, 2014, p. 84). Assim, o limite entre o espaço interno e externo do observador é tênue. “Dado um sistema fechado, o dentro e o fora existem somente para o observador que o considera, não para o sistema” (MATURANA, 2014, p. 161).
Vejamos por meio de um exemplo para melhor esclarecer esse ponto. Quando olhamos para uma árvore e a separamos de seu entorno, do solo, das outras espécies de plantas, do rio que corre ao lado, estamos fazendo um recorte cognitivo para estudá-la. Separamos mentalmente aquela árvore do restante. Porém, essa é apenas uma operação da mente. Pois ela não existe separada do todo. Suas relações gasosas (com o oxigênio, com o gás carbônico), suas relações com o solo (com os nutrientes), com o Sol (com os raios de luz), fazem dela um sistema que embora estruturado internamente mantém com o seu meio uma relação de interdependência, ou seja, vive enquanto mantiver essa dinâmica funcionando e, ao mesmo tempo, modifica o próprio ambiente em que se encontra pelas redes comunicativas da qual cria e faz parte. Maturana (2014, p. 168), assim, nos dá um outro exemplo bem significativo:
Deixem-nos considerar o que acontece num voo instrumental. O piloto é isolado do mundo externo; tudo o que ele pode fazer é manipular os instrumentos do avião de acordo com uma certa linha de mudanças em suas leituras. Quando o piloto sai do avião, todavia sua mulher e seus amigos, abraçando-o alegremente lhe dizem:
– ‘Que pouso maravilhoso você fez, estávamos com medo, porque havia um forte nevoeiro’. Mas o piloto responde surpreso:
– ‘Voo!? Pouso!? Do que é que vocês estão falando!? Eu não voei nem pousei; eu apenas manipulei uma sequência particular de leituras num conjunto de instrumentos.`
Tudo o que ocorreu no avião foi determinado pela estrutura do avião e do piloto, e foi independente da natureza do meio que produziu as perturbações compensadas pela dinâmica de estados do avião: voo e pousos são irrelevantes para a dinâmica interna do avião. Todavia, do ponto de vista do observador, a dinâmica interna do avião resultará num voo somente se, a esse respeito, a estrutura do avião for correspondente à estrutura do meio; caso contrário, o voo não se dará mesmo se, em um meio não correspondente, a dinâmica interna de estados do avião for indistinguível da dinâmica interna de estados do avião sob o voo observado. Segue-se que, uma vez que a dinâmica de estados de um organismo, ou de um sistema nervoso, ou de qualquer sistema dinâmico é sempre determinado pela estrutura do sistema, o comportamento adequado é necessariamente apenas o resultado de uma correspondência estrutural entre o organismo (sistema dinâmico) e o meio.
Nesse sentido, sistema e ambiente são apenas recortes do observador. O que será tido como sistema e meio são apenas formas escolhidas para a descrição. É, assim, que o sujeito define por meio de sua linguagem o seu objeto de estudo. Desse modo, este não é algo dado, mas algo construído.
Dessa maneira, até mesmo a ideia de ser humano pode ser considerada uma construção. Já que ele(ela) só pode existir em sociedade. A sua própria humanidade dela depende. Esta não existe como algo dado, natural, mas formulado. Nosso caráter humano só pode vir a florescer dentro do universo humano. Aquela bela imagem do Homem Vitruviano, de Leonardo da Vincci, no centro de todas as coisas, faz todo sentido dentro do que estamos aqui discutindo. Assim, temos como um interessante exemplo, o caso das duas meninas indianas perdidas e que foram criadas por uma família de lobos. Quando elas foram encontradas, apenas moviam-se de quatro patas. Não ficavam em pé. Não sabiam falar. Seus rostos não tinham expressividade. Somente comiam carne crua e recusavam a companhia humana (VARELA, 2001, p. 143). Esse caso revela claramente que embora a genética possua papel importante, o desenvolvimento de certas características só pode vir a ocorrer dentro do meio adequado, no caso, dentro de um ambiente humano.
Esse caso – que não é o único – mostra que embora em sua constituição genética a anatomia e a fisiologia fossem humanas, as duas meninas nunca chegaram a acoplar- -se ao conteúdo humano. Os comportamentos que o missionário e sua família queriam mudar nelas, por serem aberrantes no âmbito humano, eram inteiramente naturais para as meninas lupinas. Na verdade, Mowgli, o menino da selva imaginado por Kipling, jamais poderia ter existido em carne e osso; porque sabia falar e comportou-se como um homem quando conheceu o ambiente humano. Nós seres de carne e osso, não somos alheios ao mundo em que existimos e que está disponível em nosso existir cotidiano. (VARELA, 2001, p. 146)
Enfim, isso vem a comprovar que mesmo os aspectos humanos que consideramos mais naturais como a expressão de um rosto são, de fato, o resultado de uma interação social desenvolvida com base em uma determinada linguagem que molda a forma que os seus integrantes se comportam e, ao mesmo tempo, veem a realidade.
5 A Neurobiologia e a Moldura Normativa
Voltemos ao começo do artigo, quando apresentamos a concepção de Hans Kelsen sobre o Direito e a Ciência e a separação entre o papel do cientista e a do aplicador jurídico.
Há uma divisão entre proposição (Ciência) e prescrição (o direito) no momento da atividade hermenêutica. A moldura kelseniana que dentro dos seus limites abriga (em muitas situações) uma pluralidade de sentidos. O ato de interpretar e determinar a esfera semântica da norma é atribuído ao cientista jurídico (jurista). No entanto, o ato de escolha (que possui em si o elemento volitivo) não cabe ao jurista, mas ao aplicador do direito, aquele que possui a competência estatal para tanto, o juiz, que frente ao caso concreto, após interpretar, definido o alcance semântico, atribuirá o sentido da regra jurídica. É essa separação entre Ciência (ato cognitivo) e política (vontade, poder) tão bem delimitada pelo jurista austríaco.
Porém, vimos ao longo de todo o texto, conforme os estudos dos neurobiólogos Humberto Maturana e Francisco Varela, a sua inovadora concepção de realidade e conhecimento. “(…) porque o Real é um argumento explicativo da experiência. O que é o real? Um argumento explicativo da experiência” (MATURANA, 2014, p. 412).
A clara separação kelseniana entre proposição e prescrição bem como a separação entre os papéis de cientista e aplicador do direito perdem o sentido diante do entendimento[10] de uma “objetividade entre parênteses”:
Este último caminho explicativo, a realidade e o real são também proposições explicativas da práxis do viver de um observador que surgem num colapso de suas coordenações de ações com o outro, mas que não surgem como tentativas de coagir o outro a satisfazer sua vontade. Ao contrário, nesse caminho explicativo, a realidade e o real surgem como convites de um observador a outro para envolver-se na constituição de um domínio particular de coordenações de ações enquanto um domínio de coexistência em aceitação mútua. (MATURANA, 2014, p. 386)
Posto que todo conhecimento é um construído, está moldado pela linguagem do observador. “ou seja, experiência, como experiência, não pertence a linguagem (…). A experiência, como experiência, fica substituída por sua descrição, mas sua presença fica constituída na distinção. Porque se não for constituída na distinção não se pode fazer nada com ela!” (MATURANA, 2014, p. 411).
Assim, a distinção entre Direito (Ciência) e direito (objeto) revela-se meramente aparente. Já que a linguagem do observador determinará o modo como ele definirá o seu objeto de estudo. Até mesmo a preocupação com o rigor linguístico no estudo do direito que vemos nas obras de juristas como Norberto Bobbio (1990, p. 180) e Tércio Sampaio Ferraz Júnior (2015, p. 197) fica em parte comprometida diante da concepção de “objetividade entre parênteses”. Não há, portanto, como separar linguagem (científica) da experiência (o direito). Assim, essa pretendida neutralidade e objetividade do observador (do cientista) por mais que seja buscada acaba resultando na prática em mera aparência (CHAUI, 2001, p. 31). É como no mito do rei Midas, o qual tudo que tocava se tornava ouro. É o mesmo que acontece com a linguagem: tudo o que descrevemos fazemos por meio dela sem que assim possamos separá-la do experienciado.
Dessa maneira, de nosso ponto de vista, tal dualidade deve ser posta de lado. O ato de interpretação é ao mesmo tempo uma forma cognitiva e volitiva pautada pela linguagem do observador, a qual molda sua perspectiva da realidade, seu conhecimento e também sua vontade. Nessa linha, segundo Thomas Kuhn (2011, p. 207), o paradigma científico e a concepção de mundo estão estritamente relacionados, mencionando por exemplo, que depois de 1630, após os estudos muito influentes de Descartes, a maior parte dos físicos passou a enxergar o Universo composto por partículas microscópicas e a entender os fenômenos naturais em termos de forma, tamanho do movimento e interação entre corpos (KUHN, 2011, p. 111).
Finalmente, esse novo paradigma neurobiológico, de certa forma, tensiona ainda mais a crise dos fundamentos da Ciência abordada por Martin Heidegger (2009, p. 37) em sua obra Introdução à Filosofia. Assim, da perspectiva da “objetividade entre parênteses”, o certo ou errado são apenas perspectivas do observador.
6 Conclusão
Em primeiro lugar, estudamos a teoria kelseniana da moldura normativa que separa, de um lado, o papel do cientista como intérprete e, de outro, a autoridade jurídica que decide (que escolhe o sentido da norma). Depois fizemos uma análise do entendimento neurobiológico de Humberto Maturana e Francisco Varela do organismo vivo e da “realidade”. Por fim, fizemos uma crítica, à luz de tal pensamento, da separação rígida que o jurista Hans Kelsen realizou entre ato cognitivo e ato decisional.
Frente aos estudos da Biologia, pudemos constatar que tal separação é impraticável. Não há como separar entendimento de volição. Esta é consequência daquele. Ou seja, o agir está baseado na percepção do agente, fruto de um recorte linguístico prévio e ao mesmo tempo concomitante do evento ocorrido. Nessa linha, como assevera Karl Popper (2007, p. 120) não há observações que sejam puras; elas estão imersas na dimensão teórica cujos problemas estão por ela orientados.
Assim, o direito visto como a arte da argumentação não busca encontrar a verdade, mas convencer. Encontrar a solução mais adequada para o problema em debate. Exemplo disso, é a sentença motivada que não explicita simplesmente um raciocínio lógico, um silogismo, mas exerce a autoridade pela tentativa do convencimento, da persuasão (PERELMAN, 2004, p. 211). Nesse sentido, os legisladores e judicadores que fazem parte todos de um mesmo sistema de educação, de uma mesma inserção cultural e de um mesmo ambiente civilizatório estão regidos por uma série de policiamentos implícitos ou explícitos que os fazem estar inseridos dentro de uma visão de mundo (PUGLIESI, 2005, p. 19). Portanto, a “verdade” pretendida passa a ser relativa, dependendo da perspectiva do observador.
É aqui que ressaltamos a ideia de “objetividade entre parênteses” de Maturana e Varela que contraria essa visão de completa objetividade da ciência e da técnica e que, como bem ressalta Jurgen Habermas (2014, p. 126), exercem uma dominação suave como ideologia. Nessa linha, como afirma Miguel Reale (2002, p. 24), diante da importância que a reflexão filosófica tem para apreciação dos pressupostos segundo critérios de valor e diante de toda nossa exposição, concluímos com uma análise perspicaz de Chaim Perelman (2004, p. 180):
Estes exemplos indicam suficientemente, parece-me, como nessa concepção do emprego argumentativo das noções, toda a estruturação do real é acompanhada da valorização de alguns de seus aspectos, ou seja, de juízos de valor concomitantes. Mas, quando uma visão do real se impõe e deixa de ser objeto de controvérsia, passa-se a considerá-la expressão fiel da realidade, um perceber os juízos de valor subjacentes. É assim que toda concepção científica, admitida de um modo geral, perde de vista os pressupostos filosóficos que a justificaram quando era ainda nova e revolucionária.
REFERÊNCIAS
BOBBIO, Norberto. Ciencia del Derecho y Analisis del Linguaje. Contribución a la Teoría del Derecho, Madrid: Debate, 1990, caps. VII.
CHAUI, Marilena. O que é Ideologia. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 2001.
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Direito, Retórica e Comunicação. São Paulo: Atlas, 2015.
HABERMAS, Jurgen. Técnica e Ciência como “Ideologia”. Tradução de Felipe Gonçalves da Silva. São Paulo: Unesp, 2014.
HEIDEGGER, Martin. Introdução à Filosofia. 2. ed. Tradução de Marco Antonio Casanova. São Paulo, Martins Fontes, 2009.
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6. ed. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
KUHN, Thomas. A Estrutura das Revoluções Científicas. 10. ed. São Paulo: Perspectiva, 2011.
MATURANA, Humberto. A Ontologia da Realidade. 2. ed. Belo Horizonte: UFMG, 2014.
PERELMAN, Chaim. Lógica Jurídica: Nova Retórica. 2. ed. Tradução de Virgínia K. Pupi; rev. Maria Ermentina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
POPPER, Karl. A Lógica da Pesquisa Científica. 15. ed. Tradução de Leônidas Hogenberg e Octanny Silveira da Mota. São Paulo: Cultrix, 2011.
PUGLIESI, Márcio. Por uma Teoria do Direito: Aspectos Microsistêmicos. São Paulo: RCS, Editora, 2005.
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20. ed. São Paulo, Saraiva, 2002.
RODRÍGUEZ, Darío; TORRES N., Javier. Autopoiesis, la unidad de una diferencia: Luhmann y Maturana, Sociologias, Porto Alegre, a. 5, n. 9, p. 106-140, jan./jun. 2003.
VARELA, Francisco J; MATURANA, Humberto R. A Árvore do Conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. Tradução de Humberto Mariotti e Lia Diskin. São Paulo: Palas Athena, 2001.
Notas de Rodapé
[1] Livre Docente em Filosofia do Direito pela PUCSP. Pós-Doutor pela Universidade de Coimbra e pela Universidade Clássica de Lisboa. Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP).
[2] Mestrando em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo (USP).
[3] Nesse texto atribuímos o mesmo sentido para norma e regra. Assim, não distinguiremos regras de princípios.
[4] O Positivismo Jurídico, especialmente o kelseniano, que no caso tratamos, dá extrema importância à competência legal do emissor da regra jurídica. O poder estatal é aquele que possui a soberania. Esta possibilita, entre outras atribuições, ditar o direito. Nesse sentido, mesmo na esfera privada, contratual, a criação jurídica é uma permissão do Estado.
[5] Sanção entendida como efeito punitivo (negativo), não abarcando também o sentido premial (positivo).
[6] Direito como Ciência, Dogmática, grafamos com a letra inicial maiúscula. Já direito como objeto de estudo, grafamos com a inicial minúscula.
[7] Juiz, legislador e qualquer aplicador do direito cuja função também seja de criação jurídica.
[8] Os pesquisadores Darío Rodriguez e Javier N. Torres fizeram um interessante estudo da influência de Maturana e Varela em Niklas Luhmann.
[9] Obviamente, tal ponto de vista pode alterar ao longo da vida: o rei pode ser destronado, pode renunciar a tudo, como o príncipe indiano Sidharta Gautama (mas isso para nossa presente análise não vem ao caso).
[10] Maturana ressalta que sua posição diverge da de Piaget, pois este acredita em um mundo real enquanto o pesquisador chileno entende que não há sentido em falar de um mundo real, independente do observador.