FAMILY, FAMILY, DOG, CAT, CHICKEN: THE MULTISPECIES FAMILY AND THE SHARED GUARD OF PETS, AFTER THE BREAK OF THE MARITAL BOND IN BRAZIL

DOI: 10.19135/revista.consinter.00006.18

Bruno Torquato de O. Naves[1] – ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0961-1882

Ana Maria Alves R. Varela[2] – ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0561-7125

Resumo: O propósito do trabalho é analisar a possibilidade jurídica de se considerar o animal como integrante da família e a plausibilidade jurídica da concessão da guarda a animais de estimação, quando da ocorrência da ruptura do vínculo familiar. Para tanto, como ponto de partida, foram utilizados o acórdão da Apelação Cível 0019757-79.2013.8.19.0208, proferido pela 22ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, aos 27.01.2015; as garantias constitucionais, conferidas tanto para o homem quanto para animais não humanos; e a legislação infraconstitucional, especialmente o Código Civil. Metodologicamente, foram empreendidas pesquisas jurisprudenciais e doutrinárias, sobretudo com análise crítica de artigos científicos, utilizando-se do método do raciocínio dedutivo. Como resultado, contata-se que o Poder Judiciário parece acompanhar as exigências sociais, ao reconhecer a família como um espaço multiespécie de desenvolvimento, em que animais e seres humanos são tutelados.

Palavras-chave: Animais de estimação; Família multiespécie; Divórcio; Guarda.

Abstract: The aimof this article is to analyze the legal possibility of considering animals as family membersby the legal plausibility of granting custody to pets when the family bond rupture occurs. As a starting point, the trial of the Civil Appeal 0019757-79.2013.8.19.0208, issued by the 22 th Civil Court of the Rio de Janeiro Justice System, on January 27, 2015, was used. Also the constitutional guarantees, conferred on both man and non-human animals and infra-constitutional legislation, especially the Civil Code. Methodologically, jurisprudential and doctrinal research was undertaken, mainly with a critical analysis of scientific articles, using the method of deductive reasoning. As a result, it is reported that the Judiciary seems to follow social demands by recognizing the family as a multispecies development space in which animals and human beings are protected.

Keywords: Pets; Multispecies Family; Divorce; Guard.

INTRODUÇÃO

Um dos temas jurídicos mais vultosos da atualidade no Brasil diz respeito à questão dos animais não humanos, em seus mais variados segmentos, desde seu status jurídico, perpassando pela utilização em experimentações científicas, pela adoção responsável, dentre outros tantos embates.

A sociedade, sobretudo após a Revolução Industrial, passou por uma série de transformações que se deram, em apertada síntese, especialmente em razão das evoluções tecnológica e científica, o que acabou por impulsionar a urbanização e alterar o modus vivendi das famílias nos mais variados aspectos.

A ideia de que cães, gatos, galinhas e outros animais domésticos ou de estimação fazem parte da família é muito recente, tendo início a partir da segunda metade do século XX, sendo que tal fenômeno se tornou bastante comum, especialmente nas classes médias e altas dos centros urbanos, já que as funções de guarda e controle de pragas, anteriormente atribuídas aos animais não humanos, perderam a importância, dando lugar à função de companhia, por diversos motivos de cunho pessoal e relacional, entre os membros de determinada entidade familiar.

No Brasil, a popularização das raças de cães, gatos e outras espécies domésticas possibilitou que fossem cedidos aos animais de estimação os mais diversos espaços de convivência íntima, passando a dividir, inclusive, diversos momentos da rotina familiar.

Em paralelo, verifica-se que se operaram muitas alterações na estrutura das famílias. De se notar, então, que o conceito de entidade familiar passou por diversas mudanças, até chegar ao estágio atual, no qual se admitem o afeto e a busca da felicidade como grandes bússolas norteadoras da formação da mais antiga instituição social conhecida.

As pessoas já não mais constituem suas famílias tomando por base o modelo fundado na clássica teoria patriarcal, pelo contrário, buscam seus arranjos conjugais e familiares, tendo como pano de fundo o afeto, seja através do matrimônio, seja através da união estável, seja entre homem e mulher, seja entre pessoas do mesmo sexo.

Nesse esteio, o ordenamento jurídico pátrio trouxe a lume novos conceitos e proteção diferenciada para as entidades familiares, sem, no entanto, levar expressamente em conta a família considerada também nos laços afetivos multiespécies. Dito de outra forma: do ponto de vista do Direito, há elementos para se considerar os animais domésticos como membros da família? É de se reconhecer, juridicamente, a família multiespécie?

Interessante observar a letra da música “Família”, incluída no título desse artigo, de autoria de Antônio Bellotto e Arnaldo Dias, que, nos idos da década de 1980, trouxeram, em um dos seus trechos, os dizeres, “família, família, cachorro, gato, galinha”, denotando, já àquela época, o novo arranjo social, atualmente designado por família multiespécie.

A dissolução da entidade familiar é, frequentemente, traumática para todos os membros. No entanto, atualmente, uma discussão tem surgido numa espécie de lacuna, criada pelas rápidas alterações das conformações familiares: qual será o destino do animal de estimação?

Há tempos, a resposta a essa questão seria simples: como coisa móvel que era, seria concedida a um dos membros, como parcela do patrimônio a ele deferida. Hoje, todavia, a questão se põe de maneira diversa. Os familiares tratam os animais domésticos com afeto e respeito. Logo, querem decidir não apenas quem fica com o animal, mas inclusive se haverá ou não possibilidade de visita daquele a quem não coube a guarda.

Percebe-se, então, que a consideração jurídica da família multiespécie chancelaria um novo tratamento aos animais domésticos, aplicando-se analogicamente questões relativas à determinação da guarda ao direito de visita aos animais que compunham aquela família.

Em que pese à existência do Projeto de Lei 1.058/2011, o qual tem por escopo garantir que a guarda se estabeleça em função do vínculo afetivo criado entre uma das partes em litígio e o animal de estimação, o ordenamento jurídico pátrio não dispõe de legislação que discipline a questão da guarda dos referidos animais após a ruptura do laço matrimonial, da união estável ou de outra forma de convivência familiar.

Diante das novas realidades sociais e da omissão legislativa, alguns casos que tratam da guarda e do direito de visitas dos animais de estimação têm chegado ao Poder Judiciário, como o recentemente ocorrido no Rio de Janeiro, materializado no julgamento da Apelação Cível 0019757-79.2013.8.19.0208, proferida pela 22ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça, em 27.01.2015, o qual será objeto de análise do presente estudo.

Por meio de pesquisas jurisprudenciais, documentais e análise crítica de artigos científicos, utilizando-se do método do raciocínio dedutivo, busca-se avaliar se é juridicamente possível estender, por analogia, os institutos da guarda e o direito de visitas aos animais domésticos.

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS: DA FAMÍLIA PRIMITIVA ÀS FORMAÇÕES PLURAIS CONTEMPORÂNEAS

Por mais paradoxal que pareça, ainda hoje, apontar com exatidão o conceito e a origem da família é uma tarefa árdua, eis que existem várias teorias a esse respeito, a depender das valorações filosóficas, éticas, morais, religiosas, históricas, antropológicas, psicanalíticas, sociológicas ou jurídicas, adotada por cada pensador.

No prisma dogmático-religioso, em Gênesis, na Bíblia, a origem da família está na necessidade de convivência: “O Senhor Deus disse: Não é bom que o homem esteja só. Vou dar-lhe uma auxiliar que lhe seja semelhante” (BÍBLIA, Gn, 1:26), repercutindo-se no ideário das famílias cristãs.

Como todo fenômeno social, o conceito de família varia no tempo e no espaço, não existindo uma identidade entre as definições advindas de tantas ciências, como o direito, a sociologia e a antropologia.

Tomando-se por base uma visão bem tradicional, a família, entendida como a primeira das instituições sociais, sempre esteve ligada ao desempenho de algumas funções que lhe seriam peculiares, como a procriação, a transferência/manutenção de patrimônio, a formação de mão de obra e a base de aprendizado.

Entretanto, é possível se verificarem com clareza as profundas alterações ocorridas na estrutura familiar, desde os tempos mais remotos até os dias atuais, pois, como diz Fachin (1999), “a família é um construído”, e, como tal, mostra-se ativo, incorporando constantes transformações, de modo que, recentemente, se viu moldada pelo afeto.

Quanto à origem da família, uma das teorias defendidas por Pereira e Silva (2009), apregoa que a sociedade primitiva não era lastreada em relações individuais, sequer tendo noção de que a procriação se dava através de ato sexual. Logo, a origem da família seria a promiscuidade, por não existir, entre os membros da tribo, discriminação para o ato sexual, isto é, praticando algo bem semelhante à endogamia[3]. Nesse sentido, diz Pereira e Silva:

[…] certas sociedades primitivas chegaram mesmo a ignorar a paternidade biológica, confiando a proteção e a manutenção das mulheres e de seus filhos a um chefe que não o pai: o chamado big brother. Somente mais tarde é que o pai biológico vai apropriar-se da imagem de autoridade e chefe da sociedade familiar. (PEREIRA; SILVA, 2009, p. 209)

A ideia da família fundada na promiscuidade não é absoluta. Santos (1999, p. 55), dentre outros estudiosos, como Pereira (2009, p. 210), apontam que tal teoria não é homogênea para todos os povos, ainda que observadas situações nas quais a mulher era oferecida ao hóspede, em conformidade com regras costumeiras vigentes à época.

Ainda durante o período primitivo, com as guerras em curso, o homem passa a buscar mulheres fora de sua própria tribo, movimento comparado à exogamia[4], o qual se desdobrou mais tarde na poligamia[5], ainda usual em certas regiões do globo, conforme Pereira (2009, p. 210).

Já a teoria patriarcal, conhecida desde a Grécia antiga, aponta, nos dizeres de Santos (1999), o “estágio pré-social do homem”, no qual a chefia familiar era atribuída ao ascendente paterno de maior autoridade e de mais idade, sendo que os demais componentes da família eram completamente desprovidos de vontade, tendo como centro gravitacional a figura do pater.

No entanto, entende Rizzardo (2011) que as primeiras sistematizações de regras baseadas na teoria patriarcal, floresceram na Roma Antiga, cujas famílias eram organizadas em torno do pater familias, que, na condição de representante e organizador da família, detinha poder unitário, paterno ou marital. Além disso, a instituição assentava-se em outros dois pilares: o culto familiar aos antepassados e a religião ali professada.

Dessa forma, a família, segundo Wald (2004), é uma unidade econômica, religiosa, política e jurisdicional, sendo que, em outra fase, surgiram patrimônios individuais, como os pecúlios, administrados por pessoas escolhidas a critério do pater familias.

Como dito anteriormente, a família desde sempre esteve mergulhada nas constantes transformações em seu seio, adotando o modelo patriarcal a concepção unitária de família, baseada no matrimônio heterossexual, com submissão da esposa ao marido, dando origem à monogamia (JOHNSON, 1997, p. 192).

A Lei das XII Tábuas já estabelecia o matrimônio, sendo essa a forma mais tradicional de formação da família de que se tem notícia no ocidente, conforme Domingos (2008). Nesse diapasão, há que se mencionar que o matrimônio tinha como forte característica a perpetuidade, além de não ser realizado por afeto, salvo exceções, o que perdurou até o final da Idade Média.

Tomando-se, por exemplo, a mencionada família patriarcal romana, especificamente durante os primeiros quinhentos anos da República, nota-se nas palavras de Domingos (2008) que o homem o qual repudiava a esposa sem motivo justo, era censurado. Todavia, havia a hipótese de ruptura da sociedade conjugal fundada no matrimônio, por determinados motivos, como a infertilidade ou a infidelidade, não se levando em conta qualquer questão relacionada ao afeto.

Por outro lado, o contratualista Rousseau (1977) elucida que a família é a mais antiga de todas as sociedades, sendo a única sociedade natural existente. Simultaneamente, observa ser a família a primeira sociedade política, na qual o pai pode ser comparado ao chefe de Estado e os filhos ao povo, sendo que todos nascem iguais e livres, mas, em certo momento, alienam a sua liberdade pela utilidade a ser alcançada. No entanto, o traço distintivo entre a sociedade familiar e o Estado seria o amor, nutrido do pai para com sua prole.

O teórico do socialismo científico, Friedrich Engels (1984), identificou a origem da família, à sua época, apontando as seguintes fases e categorias, no que designou sua evolução temporal. Para tanto, falava que as tribos eram delineadas pelo ato sexual promíscuo entre membros; que a família consanguínea teve por início a fixação de parentesco por gerações, ressalvado unicamente o contato sexual entre pais e filhos; que na família punaluana o contato carnal entre irmãos fora proibido; que na família sindiásmica havia a possibilidade de que convivessem pares do mesmo sexo, elencando, por fim, a família monogâmica, fundada por seu turno em sólidos laços conjugais, os quais não poderiam ser rompidos pela vontade das partes.

Já a família contemporânea abandona o paradigma clássico, insculpido no sistema patriarcal, matrimonialista, heterossexual e patrimonialista. Tal ruptura com o modelo tão antigo se dá por diversos fatores, que surgem paulatinamente pós-Revolução Industrial.

Certo é que seria inimaginável, há alguns anos, constituir-se uma família baseada no afeto e na busca da felicidade, e, muito menos, considerarem-se como membros familiares animais não humanos de estimação, ou se lutar por sua guarda em qualquer circunstância, mesmo porque, por muito tempo, perdurou-se a ideia de que os animais, enquanto seres servientes aos humanos, funcionariam como se fossem máquinas.

No entendimento de Domingos (2008, p. 244), “[…] a velha visão de direito de família mostra-se ultrapassada, merecendo sua amplitude, inclusive de se buscar variação de formas afetivas, despindo-se daquelas exclusivistas advindas do casamento”. Assim, com a Revolução Industrial, a família deixa de ser uma unidade de produção, na qual todos trabalham sob o comando do pai, para um modelo no qual cada membro busca seu próprio emprego no mercado; a economia deixa de ser agrária; o papel da mulher, sobretudo após a segunda metade do século XX, é alterado, passando a trabalhar fora do ambiente doméstico, permanecendo boa parte do dia sem contato com casa, marido e filhos, nascendo, pois, novas espécies de família.

1.1 Formas Contemporâneas de Família: a Família Eudemonista e a Família Multiespécie

O instituto da família não comporta mais o fundamento da procriação e da proteção patrimonial, passando a ter como finalidade primordial a realização afetiva e sentimental. Nesse sentido, afirma Maria Berenice Dias:

A família transforma-se na medida em que se acentuam as relações de sentimentos entre seus membros: valorizam-se as funções afetivas da família. Despontam novos modelos de família, mais igualitárias nas relações de sexo e idade, mais flexíveis em suas temporalidades e em seus componentes, menos sujeitas à regra e mais ao desejo. (DIAS, 2006, p. 61)

A instituição familiar, como abordado, vem se transformando, quebrando paradigmas. Todavia, a adoção de novos paradigmas e teorias científicas sempre causa inquietação social.

Para Edna Cardozo Dias:

Uma teoria surge quando um novo paradigma a respeito de determinado conhecimento ou visão do fato substitui o anterior. Entretanto, a transição de um paradigma ao outro não acontece imediatamente com a chegada da ideia nova. O pensamento humano e a ciência evoluem dia a dia e geração após geração, gradualmente. E a dinâmica social não leva obrigatoriamente a uma mudança de paradigma. Há sempre muita resistência às mudanças, de qualquer espécie. E, para que um paradigma seja consagrado como novo, é necessário o seu reconhecimento por um grupo de cientistas. (DIAS, 2015, p. 32)

Destarte, perpassadas as considerações iniciais a respeito dos contornos delineadores da família, ao longo do tempo, mister se faz constatar que houve, sim, uma notória quebra de paradigmas ao se considerarem as formas contemporâneas de família e o ordenamento jurídico pátrio. De se notar que a Constituição assenta, no caput de seu art. 226, que a “família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”.

Cumpre dizer serem várias as espécies de famílias existentes e reconhecidas nos planos constitucional, infraconstitucional, doutrinário e jurisprudencial pátrio, como as famílias matrimonial, monoparental, substituta, anaparental, pluriparental, homoafetiva, em união estável, eudemonista e multiespécie, sendo as duas últimas de grande interesse ao presente estudo.

A família eudemonista, do grego eudaimonia, é aquela que tem por fito a busca da felicidade, de modo que o vínculo entre os integrantes desta entidade familiar é afetivo e não somente jurídico ou biológico. Nessa espécie de família, existe a busca da realização plena de seus membros, mediante a adoção do afeto recíproco, norteado pelo respeito mútuo entre seus membros.

Conforme Andrade:

Eudemonista é considerada a família decorrente da convivência entre pessoas por laços afetivos e solidariedade mútua, como é o caso de amigos que vivem juntos no mesmo lar, rateando despesas, compartilhando alegrias e tristezas, como se irmãos fossem, razão para qual os juristas entendem por bem considerá-los como formadores de mais de um núcleo familiar. (ANDRADE, 2008)

Aristóteles concebia a afetividade, a inteligência e a vontade como potências humanas. No que concerne à potência da afetividade, o filósofo grego teceu poucas considerações, por entender que pouco colaborava com a realização humana. No entanto, afirmava que a felicidade se alcançava mediante a aquisição de virtudes.

Segundo Blackburn:

Ética baseada na noção aristotélica de “eudaimonia” ou felicidade humana […] Embora próxima da “ética da virtude”, essa abordagem distingue-se daquele quando é eliminada a identificação grega entre a ação virtuosa e a felicidade. O eudemonismo pode também variar conforme as noções do que é, de fato, a felicidade. Assim, os cirenaicos acentuam o prazer sensual; os estoicos salientam o desapego em relação a bens mundanos, como a riqueza e a amizade. Tomás de Aquino dá mais atenção à felicidade como contemplação eterna de Deus e assim por diante. (BLACKBURN, 1997, p. 132)

A Constituição Federal de 1988 protege a família eudemonista, tendo como fundamento maior os princípios afirmadores da dignidade da pessoa humana.

O art. 226 da Carta Magna e seus §§ 3º, 4º e 7º, adotam a concepção eudemonista de família ao prever como entidade familiar não só o matrimônio, mas também a união estável e a família monoparental.

Partindo da mesma premissa, qual seja a busca da felicidade, e diante dos novos contornos sociais, tem-se admitido, na doutrina, a existência da família multiespécie.

Faraco (2003), ao defender sua tese de doutorado, conceituou a família multiespécie como aquela em que são reconhecidos como seus membros os humanos e os animais não humanos de estimação ou domésticos, desde que haja a convivência respeitosa, com os quais são travadas interações significativas.

De acordo com a Portaria Ibama 93, 07.07.1998, são considerados animais pertencentes à fauna doméstica, todos aqueles que, por meio de processos tradicionais e sistematizados de manejo e/ou melhoramento zootécnico, tornaram-se domésticos, apresentando características biológicas e comportamentais em estreita dependência do homem, podendo apresentar fenótipo variável, diferente da espécie silvestre que os originou.

Bowen, citado por Faraco (2003), ao definir família multiespécie, afirma se tratar de um sistema familiar emocional, composto não por laços de sangue, e sim de afeto, incluindo os membros da família estendida, compreendidas as pessoas sem grau de parentesco e os animais de estimação.

Por seu turno, Cohen, citada por Lima (2014), ao trabalhar o conceito de famílias multiespécies, explica que os animais são membros das famílias de seus tutores e analisa o grau de apego entre os animais humanos e não humanos.

Corroborando com a tendência da família multiespécie, dados da Associação Brasileira da Indústria de Produtos para Animais de Estimação – Abinpet dão conta de que, no ano de 2013, existiam aproximadamente 37,1 milhões de cães e 21,3 milhões de gatos domiciliados no país, o que consolidaria o Brasil como a segunda maior nação do mundo em população de cães e gatos e a quarta em animais de estimação.

Ainda no mesmo ano, a Pesquisa Nacional de Saúde do IBGE (2013) apresentava uma estimativa ainda maior: seriam 52,2 milhões de cães, presentes em 44,3% dos domicílios brasileiros, além de 22,1 milhões de gatos, presentes em 17,7% dos lares.

Levando-se em consideração esses números e os da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), o jornal Folha de S. Paulo (2015) e a Revista Veja (2015) noticiaram o fato de que o número de cães no país (52,2 milhões) superou o número de crianças com até 14 anos (44,9 milhões).

Tarefa fácil, portanto, é verificar que os números levantados apontam o quanto essa convivência tem se tornado frequente nos lares brasileiros, alterando os padrões até então experimentados pela sociedade.

De outro giro, diante da falta de legislação específica disciplinando o tema, tem-se submetido ao Poder Judiciário o exame de questões relativas à guarda dos animais não humanos de estimação, quando do fim do casamento ou da dissolução da união estável, como ocorrido no julgado a ser examinado no presente estudo.

2 CONSIDERAÇÕES FILOSÓFICAS ACERCA DOS DIREITOS DOS ANIMAIS

Para que se compreenda a família multiespécie, mister se faz tecer algumas considerações a respeito dos animais. Do ponto de vista filosófico, merece destaque o pensamento de alguns estudiosos no que diz respeito à proteção dos animais, conferindo-lhes direitos.

Humphy Primatt (1776), já falava a respeito do dever de compaixão dos homens para com os animais, contrapondo a moral com a capacidade de se fazer sofrer.

Jeremy Bentham (1979) partiu do trabalho de Primatt, asseverando que a consideração moral deve ser assegurada aos animais, ainda que, em vez de racionalidade, possua o ser senciência.

Em Libertação Animal, Peter Singer (2004) tornou público o sofrimento dos animais, vítimas de práticas injustas pelos humanos e considerou que os animais, por serem sencientes deveriam ser incluídos na consideração moral humana. Singer (2002) argumentou que, sendo os animais dotados de sensibilidade e consciência, merecem tratamento respeitoso, tal qual o que é comumente conferido ao humano, baseando-se na capacidade de sentir dor e sofrer.

Tom Regan (2006) apregoa o abolicionismo animal, reivindicando princípios éticos e valores inerentes a cada indivíduo para com os animais não humanos.

2.1 Instrumentos Legais de Proteção Animal no Ordenamento Jurídico Brasileiro

Como argumentado, a sociedade atual, vivencia o fenômeno da família multiespécie, admitindo que em sua formação existam animais domésticos, cuja proteção e direitos também foram objeto de alterações ao longo dos séculos.

Destarte, no âmbito internacional, a Declaração Universal dos Direitos dos Animais, proclamada no ano de 1978, em uma sessão realizada pela Unesco, visa reconhecer proteção do direito à vida, ao respeito e ao amparo contra maus-tratos e qualquer tipo de crueldade que ignore o direito à existência dos quais os animais são detentores.

Art. 1º. Todos os animais nascem iguais diante da vida, e têm o mesmo direito à existência.

Art. 2º. a) Cada animal tem direito ao respeito. b) O homem, enquanto espécie animal, não pode atribuir-se o direito de exterminar os outros animais, ou explorá-los, violando esse direito. Ele tem o dever de colocar a sua consciência a serviço dos outros animais. c) Cada animal tem direito à consideração, à cura e à proteção do homem.

[…]

Art. 6º. a) Cada animal que o homem escolher para companheiro tem o direito a uma duração de vida conforme sua longevidade natural. b) O abandono de um animal é um ato cruel e degradante. (BRUXELAS, 1978)

Por força do documento, surge uma obrigação ético-moral diferenciada em relação aos animais não humanos. O Brasil é signatário da citada Declaração, mas a considera como soft norm, razão pela qual é entendida como recomendação. Nesse sentido, Costa e Oliveira entendem que:

A discussão moral apresentada na Declaração da UNESCO é capaz de gerar reflexos nas legislações internas dos países e não seria diferente no caso do ordenamento jurídico brasileiro. Torna-se, portanto, necessária uma releitura do ordenamento interno que se refira aos animais tendo como referência a Declaração analisada. Simplesmente ser signatário de uma Declaração e não a incorporar internamente leva ao descrédito pela solução ambiental por meio de instrumentos jurídicos, o que traz, muitas vezes, a figura da tão temida descrença jurídica internacional. Deve-se, pois, existir a aderência interna das normas internacionais ao âmbito interno brasileiro, a fim de se evitar a incoerência normativa. (COSTA; OLIVEIRA, 2014, p. 90)

Os animais não humanos são tutelados pelo ordenamento jurídico brasileiro, levando-se em conta o princípio da não maleficência, sem, no entanto, gozarem de um ramo jurídico-didático específico, sendo estudados transversalmente no Direito Ambiental. Daí afirmarem Fiuza e Gontijo:

A proteção aos animais tem como parâmetro geral o princípio da não maleficiência. Por outros termos, recebem proteção legal os animais que não nos sejam maléficos. O princípio da não maleficência é um parâmetro geral, até mesmo porque os animais que nos sejam maléficos podem receber alguma proteção. Não podemos admitir um processo de desratização que implique tortura aos roedores. Nem mesmo a dedetização deverá ser cruel além da medida. O mesmo não se diga dos vírus ou das bactérias nocivas. Isso simplesmente porque de nenhuma forma nos projetamos nesses últimos. (FIUZA; GONTIJO, 2014, p. 72)

Possível, então, enquadrar os animais à lógica constitucional ambiental e considerar sua proteção, tal qual ocorre com o meio ambiente ecologicamente equilibrado, um direito fundamental. No que se refere à constitucionalização da proteção do meio ambiente, Costa (2013, p. 60) assevera que “[…] no Brasil, não há dúvida de que o meio ambiente é considerado um direito fundamental, porque qualquer interpretação contrária não encontrará amparo […]”.

A Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, em seu art. 225, § 1º, inc. VII, estabelece a proteção dos animais, inclusive quanto à proibição de submetê-los à crueldade:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:

[…]

VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade. (BRASIL, 1988)

Da análise do trecho constitucional supramencionado, verifica-se que os animais não humanos gozam de especial proteção, haja vista que a Constituição lhes garante o direito à vida, à integridade física, ao equilíbrio ecológico e a não submissão a crueldade. Correto afirmar, ainda, que os animais não humanos fazem jus à igualdade, neste caso, entendida como a preservação dos ecossistemas, mediante a existência de leis que vedem as práticas ameaçadoras do equilíbrio ecológico, que os coloquem em perigo de extinção ou que os submetam a crueldade.

No plano infraconstitucional, a própria Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, Lei 6.938/1981, em seu art. 3º, V, considera a fauna um recurso ambiental. A Lei dos Crimes Ambientais, Lei 9.605/1998, por seu turno, prevê, nos arts. 29 e 32, o respeito à integridade dos animais e estabelece penas privativas de liberdade de até um ano de detenção para aqueles que agem em desacordo com o que fora ali estabelecido.

Sem adentrar na discussão acerca dos animais serem considerados coisas, sujeitos de direitos ou categoria sui generis, o Código Civil vigente relega ao animal status de coisa. Todavia, tendo em vista a proteção dos direitos dos animais é impossível considerar os animais como se coisas fossem. Corroborando com essa perspectiva, alia-se o fato de serem considerados os animais sencientes. Nessa linha, Vieira pontua:

[…] em relação à natureza jurídica dos animais, o senso comum jurídico tem vivido um dilema, pois, analisando o fato de que os animais não são considerados sujeitos de direitos, também não poderiam ser considerados como objetos, uma vez que a lei dispõe direito aos animais, porém, objetos não possuem direitos, logo, animais não são objetos e sim sujeitos de direitos. (VIEIRA, 2014, p. 99)

No caso específico da ruptura das famílias multiespécies, ainda não existe nenhuma lei disciplinando o tema, no Brasil. Por seu turno, em Portugal, a Lei 8/2017, inaugurou um novo tempo naquele país no que diz respeito aos animais não humanos, ao publicar o Estatuto Jurídico dos Animais, alterando o Código Civil, o Código de Processo Civil e o Código Penal. Pela legislação vigente, desde 1º de maio, os animais são tidos por “seres vivos dotados de sensibilidade e objeto de proteção jurídica” (PORTUGAL, 2017). Especificamente, quanto aos animais de companhia, estabelece a lei portuguesa, nos casos de ruptura do vínculo conjugal, sejam os pets confiados a um ou a ambos os cônjuges, considerando, nomeadamente, os interesses de cada um dos cônjuges e dos filhos do casal e também o bem-estar do animal” (PORTUGAL, 2017).

Há, no entanto, em trâmite no Congresso Nacional, o Projeto de Lei 1.058/2011, apresentado aos 18.04.2011, pelo Deputado Federal Marco Aurélio Ubiali, filiado ao PSB/SP, o qual, se aprovado for, possibilitará que a guarda se estabeleça em função do vínculo afetivo criado entre uma das partes em litígio e o animal de estimação, observadas as condições de se bem exercer a propriedade ou posse responsável.

Pelo Projeto de Lei em apreço, a propriedade do animal será determinada tomando-se por base dois critérios distintos: a propriedade firmada por meio de documentos e da averiguada conforme a capacidade da parte para seu exercício responsável, mediante o cumprimento “dos deveres e obrigações atinentes ao direito de se possuir um animal de estimação”.

O Projeto de Lei prevê a possibilidade de determinação da guarda do animal de estimação unilateralmente, possibilitando-se que a parte que não esteja convivendo diariamente com o animal de estimação exerça o direito de visita e fiscalize o exercício da guarda da outra parte.

A guarda compartilhada também se faz presente no PL 1.058/2011, sendo que, para sua determinação, o juiz deverá analisar o “grau de afinidade e afetividade entre o animal e a parte” (BRASIL, 2011).

Mais inovador ainda, o critério subjetivo insculpido no § 4º, do art. 5º, do referido projeto de lei, ao trazer solução para a hipótese de o juiz verificar que o animal de estimação não deve permanecer sob a guarda de nenhuma das partes. Nesse caso, o juiz concederá a guarda do animal de estimação a outra pessoa, desde que essa revele condições para cumprir a medida, levando em consideração as relações de afinidade e afetividade dos familiares.

Uma vez determinada à guarda, essa não será revogada em caso de novas núpcias, porém, havendo prova de maus-tratos ou de que o animal não tem tratamento compatível com a determinação judicial, a guarda poderá ser então, revogada.

O PL 1.058/2011, inspirado no direito de guarda dos filhos humanos, se aprovado, demonstrará um grande avanço legislativo no que tange aos novos arranjos familiares representados pela família multiespécie, disciplinando a relação com animal mesmo após a ruptura do elo familiar.

3 APELAÇÃO CÍVEL 0019757-79.2013.8.19.0208, SOBRE DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL C/C PARTILHA DE BENS E POSSE DO CÃO DE ESTIMAÇÃO PARA A EX-CONVIVENTE

Frente aos novos contornos que assumiu a entidade familiar, a qual busca continuamente que as relações sejam pautadas pelo afeto, almejando a felicidade, houve a inserção dos animais de estimação como parte integrante de seus membros, sobretudo após a segunda metade do século XX. Corroborando com tal perspectiva, afirmam Leandro de Marzo Barreto e Paulo Affonso Leme Machado que “o primado da ecologia ou da proteção ao meio ambiente, em todas as suas vertentes, tem por escopo harmonizar o direito ao progresso e à evolução consciente da espécie humana, para a produção de níveis morais de felicidade e integração com a mãe-natureza” (BARRETO; MACHADO, 2016, p. 330).

Na Espanha, no ano de 2010, um Juiz da cidade de Badajoz, Luis Romualdo Hernández Díaz-Ambrona, concedeu a guarda alternada de um cão, a um ex-casal, levando em consideração os novos significados construídos pela sociedade urbana e os animais de estimação.

[…] Sea como fuere, en la actualidad, el perro sigue cazando para nosotros, vigila nuestros rebaños y propiedades, nos sirve de alimento, de sujeto experimental, trabaja en múltiples tareas como la detección de explosivos o drogas, em salvamento, ayuda a personas con minusvalías, etcétera. Y por encima de todo, tal vez por esa especial relación innata, el principal papel del perro es hacernos compañía, sobre todo en las sociedades urbanas. Y de esa compañía, como consecuencia lógica, nacen grandes y sentidos afectos […][6]. (BADAJOZ, 2010)

Nos Estados Unidos, em conformidade com Simmons (2013), já existem precedentes jurisprudenciais no que tange ao suporte financeiro devido aos animais de estimação, em caso de dissolução da entidade familiar. Exemplo disso é o caso Dickson v. Dickson, no qual as partes acordaram partilhar a custódia do cão da família, ficando a cargo do marido o pagamento da pensão mensal de US$ 150 para cobrir os gastos de cuidados com o animal.

Corroborando com essa nova realidade e prática social, o Poder Judiciário brasileiro, por meio da Apelação Cível 0019757-79.2013.8.19.0208, julgada pela 22ª Câmara Cível do Rio de Janeiro, em janeiro de 2015, tendo por Relator o Desembargador Marcelo Lima Buhatem, julgou parcialmente procedente o pedido para reconhecer e dissolver a união estável havida entre os litigantes e determinou, ainda, que a mulher ficasse com a posse do cão de estimação da raça Cocker Spaniel, “Dully”, por ter comprovado ser a sua legítima proprietária.

Em seu voto, o Desembargador Marcelo Lima Buhatem (2015) afirmou se tratar de um tema desafiador, posto que dependente da quebra de paradigma herdada dos tradicionais ensinamentos do Direito Civil, e, continua dizendo ser desafiador, “[…] pois singra por caminhos que, reconheça-se, ainda não foram normatizados pelo legislador […]”.

Ainda segundo o Desembargador Buhatem (2015), em se considerando a Constituição Federal de 1988, que enaltece a dignidade da pessoa como postulado que se esparge para outras relações jurídicas, como as advindas do condomínio, as consumeristas, dentre outras tantas, se faz tempo de enfrentar, despido de preconceitos e com a seriedade necessária, a questão da posse, da guarda, e o direito de se desfrutar da companhia do animal de estimação do ex-casal.

Com efeito, ao contrário de uma hipótese laboratorial ou irrelevante, tem-se como inquestionável a importância que os animais de estimação vêm ostentando em nossa coletividade. […] Uma miríade de interfaces, todas voltadas a tratar dessa cada vez mais imbricada relação homem x animal de estimação. (RIO DE JANEIRO, 2015)

O magistrado valora sua decisão tomando por base “as necessidades humanas, emocionais afetivas” e pontua:

Neste contexto, e considerando ser comum que as pessoas tratem seus animais de estimação sob a consagrada expressão “parte da família”, é que não nos parece satisfatória e consentânea com os modernos vetores do direito de família, que à luz e vista da partilha dos bens, os aludidos semoventes sejam vistos sob a restrita qualificação de bens semoventes que, em eventual partilha, devem ser destinados a somente um dos cônjuges. (RIO DE JANEIRO, 2015)

Além disso, o Desembargador se vale do Projeto de Lei 1.058/2011, apontando seu art. 2º para nortear o caso concreto em que a parte autora comprovou ser a responsável pelos cuidados do cão Dully, tendo-se em vista a apresentação do atestado de vacinação, receituários e laudos médicos, tendo seu nome insculpido nos documentos como proprietária do animal em questão. Não obstante, levou-se em conta a importância do animal para o casal, que foi dado como presente por ocasião de um aborto espontâneo.

Diante de tal contexto, impõe-se uma reflexão: De fato, cotejado o “ambiente normativo” constata-se que não existe legislação pátria que discipline de modo satisfatório e específico a questão. Contudo, se o postulado da dignidade da pessoa humana tem ostentado tão multifária aplicabilidade, espairando (sic) seus efeitos a tantos ramos do direito e hard cases, não seria razoável e plausível que, mesmo a despeito da ausência de previsão legal (somente ainda objeto de projeto de lei) que o julgador propusesse solução à lide, ainda que intermediária, mas consentânea com o atendimento dos interesses em jogo? A resposta é claramente positiva […]. (RIO DE JANEIRO, 2015)

Assim, entendeu a 22ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro ser possível ao ex-companheiro exercer a posse provisória, tendo consigo a companhia do cão Dully, facultando-lhe buscá-lo em fins de semana alternados, das 10 h de sábado às 17 h de domingo, denotando que embora não haja uma lei disciplinadora vigente, é a família multiespécie um fenômeno social vivenciado há alguns anos, e, como tal, diante dessa realidade, começam suas repercussões a adentrar o Poder Judiciário.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após a pesquisa realizada, o trabalho demonstrou que a partir da Revolução Industrial, novos paradigmas foram criados e quebrados. Os valores sociais se modificaram no transcurso da história, alterando a sociedade e refletindo diretamente nas relações de cunho pessoal.

Destarte, já não mais se admite, inclusive pelo ordenamento jurídico pátrio, entender-se a família a partir do casamento entre pessoas do mesmo sexo, com fincas à procriação e à proteção ao patrimônio.

Os novos arranjos sociais buscam, por meio da afetividade, a conquista da felicidade, e, portanto, consideram o alargamento do conceito de família, admitindo a formação multiespécie, na qual convivem humanos e animais de estimação.

Observou durante a pesquisa que, especialmente após a segunda metade do século XX, os animais de estimação, mormente nos centros urbanos, deixaram de desempenhar o papel de guarda e controladores naturais de pragas, alçando à condição de companheiros e, por conseguinte, de integrantes da família.

Em Portugal, o Estatuto dos Animais, estabelece nos casos de ruptura do vínculo conjugal, a possibilidade do pet permanecer confiado a um ou a ambos os cônjuges, desde que comprovados os interesses de cada um dos cônjuges e dos filhos do casal, além do bem-estar do animal.

O Brasil é considerado um dos países com maior número de animais de estimação, sendo que, atualmente, o número de cães é maior do que o número de crianças até quatorze anos. Ainda assim, não existe no país uma legislação que reconheça a família multiespécie, cabendo tal construção à doutrina. Também inexiste uma norma jurídica que discipline o destino dos animais nos casos de dissolução do vínculo conjugal.

Tais quais as famílias, o direito não é estático, devendo estar pronto para atender aos anseios sociais. Não é sem motivo que demandas envolvendo a situação de guarda e demais deveres de zelo para com os animais de estimação, quando desfeitas as famílias, têm chegado ao Poder Judiciário, em vários pontos do planeta, adotando-se para a resolução do conflito a adaptação da legislação, aplicando-se à relativa às crianças.

A decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, analisada neste trabalho, comprovou que o Poder Judiciário, ante o desafio que lhe foi imposto, tanto pela quebra de paradigmas já há muito enraizados quanto pela ausência de legislação específica, levou em conta a existência da afetividade e da busca da felicidade nas relações entre humanos e animais de estimação, quando da dissolução dos vínculos conjugais, determinando a guarda alternada do cão, comprado à época em que o casal experimentou a dor de um aborto espontâneo.

Com essa decisão, o Judiciário demonstra pugnar pela sintonia frente às novas exigências sociais, protegendo o direito dos animais e a família, pois, como diz a canção, a família hoje é muito mais que um pai ou uma mãe. Família hoje é cachorro, gato, galinha.

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Notas de Rodapé

[1] Doutor e Mestre em Direito Privado pela PUC Minas; Professor nos cursos de Graduação e de Especialização em Direito da PUC Minas e na Graduação e no Mestrado em Direito da Escola Superior Dom Helder Câmara; Coordenador do Curso de Direito Urbanístico e Ambiental da PUC Minas Virtual; Pesquisador do Cebid – Centro de Estudos em Biodireito. Belo Horizonte – Minas Gerais – Brasil.

[2] Mestranda em Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável pela Escola Superior Dom Helder Câmara, Minas Gerais; Pesquisadora do Cebid – Centro de Estudos em Biodireito. Belo Horizonte – Minas Gerais – Brasil.

[3] (endo, dentro + gamos, casamento). Regra social que exige que uma pessoa case dentro de um grupo. Sobre o tema, ver: HOEBEL; FROST, 2006, p. 188.

[4] (exo, fora + gamos, casamento). Regra social que exige que o indivíduo se case fora do grupo culturalmente definido do qual ele é membro. Sobre o tema, ver: HOEBEL; FROST, 2006, p. 188.

[5] Embora a maioria das pessoas vivam hoje em sociedades que só é permitido um cônjuge (monogamia), numerosas sociedades admitem cônjuges múltiplos (poligamia), prática essa que pode assumir várias formas. Sobre o tema, ver: JOHNSON, 1997, p. 192.

[6] Tradução livre: “[…] De qualquer forma, no momento, o cão segue caçando, assistindo nossos rebanhos e propriedade, funcionando em várias tarefas como detectar explosivos ou drogas, resgatar e ajudar pessoas com deficiência e assim por diante. E acima de tudo, talvez por essa relação inata especial, o principal papel do cão é a companhia, sobretudo nas sociedades urbanas. E essa companhia, como consequência lógica, faz nascer em sentidos e grandes sentimentos […]”.