Do Formalismo Ôntico à Ontologia: Por um Currículo Jurídico Pós-Crítico (O Ensino como Terceira Dimensão de Direitos)

FROM FORMALISM ONTIC TO ONTOLOGY: THE POST-CRITIC JURIDIC CURRICULUM (TEACHING AS THIRD DIMENSION OF RIGHTS)

Aloisio Krohling[1]

Dirce Nazaré de Andrade Ferreira[2]

Resumo: Pesquisa qualitativa descritivo-comparativa, que analisou seis currículos pedagógicos do curso de graduação em Direito e seus planos de ensino com o objetivo de cotejá-los com a teoria do currículo de Tomaz Tadeu e Silva. Após análise, os currículos foram situados nas categorias “formal” e “pós-crítico”, para, enfim, fazer uma comparação dessas categorias curriculares com os conceitos filosóficos ôntico e ontológico de Martin Heidegger. O currículo ôntico é objetal, formal e neutro; já o ontológico diz respeito ao ser educacional, sua historicidade e reflexão. Como resultado, a pesquisa mostrou que os currículos analisados fazem parte da teoria formalista ôntica, que tem na dogmática seu maior vetor.

Palavras-chaves: Currículo – formal – pós-crítico – ôntico – ontológico.

Abstract: Qualitative descriptive-comparative research, which analyzed six educational curricula of undergraduate course in law and her teaching plans, to compare them with the theory of curriculum and Tomaz Tadeu Silva. After analysis, the curricula were located in formal axes or post-critical, to finally make a comparison as the philosophical concepts of Martin Heidegger’s ontic reference that describes how object-formal and neutral; and ontological that pertain to be educational, its historicity and reflection. As a result, research has shown that the curricula analyzed part of the formalist theory that has dogmatic in its largest vector.

Keywords: Curriculum – Formal – Post-critical – Ontic – Ontological

APRESENTAÇÃO

Muito se tem pesquisado sobre os cursos de graduação no Brasil, todavia, o currículo jurídico ainda é território pouco visitado e quase sempre construído como decalques dos códigos jurídicos atemporais, às vezes clivados do mundo da vida. O currículo é edificado em um perfil que se aproxima tanto do conceito ôntico de Martin Heidegger (2000), quanto do modelo de currículo formal de Tomaz Tadeu e Silva (2005), um saber técnico construído na ratio. Entendendo que o currículo é um propósito pedagógico não neutral, derivativo de condicionantes heterogêneas, este trabalho é uma pesquisa qualitativa descritiva que analisou os currículos dos cursos de Direito, tomando como amostra seis instituições de ensino superior na cidade de Vitória, no Espírito Santo, no ano de 2013. É importante destacar que a amostragem foi prévia e intencionalmente selecionada a partir de dois critérios, quais sejam: o reconhecimento do curso pelo Ministério da Educação e Cultura e o selo de recomendação da Ordem dos Advogados do Brasil.

O trabalho de pesquisa se desenvolveu pela análise das estratégias curriculares da amostra, que foram comparadas com duas categorias de currículo descritas em Tomaz Tadeu e Silva (2005), quais sejam: o currículo formal e o pós-crítico, na perspectiva de aproximá-los e compará-los às categorias de “ôntico” e “ontológico” de Martin Heidegger (2003) para descrever em qual delas os currículos se situam. Daí ser possível caracterizar metodologicamente a pesquisa como qualitativa social crítico-comparativa, pois no entender de Richardson (1999, p. 92) este tipo de pesquisa configura-se como “investigação crítica que se aproxima da lógica dialética” já que torna possível reconhecer especificidades históricas e construções sociais de fenômenos postos no mundo axiológico. Sendo assim, a pesquisa almejou responder as seguintes questões:

– Qual modelo de Tomaz Tadeu está implícito nos currículos em análise?

– Em que aspectos ele se aproxima dos conceitos ônticos/ontológicos de Martin Heidegger?

A partir do delineamento do objeto de estudo e com a devida cautela, frisamos que esse estudo elucidativo não é exauriente, daí destacamos que, na trilha metodológica de um estudo focal nas seis instituições, o estudo almejou cumprir os seguintes objetivos:

– Estudar a modelagem curricular das instituições de ensino superior escolhidas em amostragem;

– Comparar o currículo das instituições com dois tipos descritos em Tomaz Tadeu e Silva (2005), o formal e o pós-crítico;

– Verificar em quais aspectos os currículos formais e pós-críticos se aproximam dos conceitos “ontológico” e ôntico” descritos em Martin Heidegger (2000).

Entendendo que não é desejável pensar currículos como partes pedagógicas focais únicas do processo ensino-aprendizagem sob pena de esquadrinhar uma análise estanque do fazer pedagógico isoladamente, não há como negar que o fenômeno educação é ação plural e complexa no mundo acadêmico. Entretanto, são os currículos uma das principais diretrizes que norteiam fazeres pedagógicos, pois é a partir deles que derivam outros subsídios complementares, principalmente o senso de identificação na academia, o que por sua vez é fator definidor de pertença aos membros do grupo e informará suas decisões na sociedade.

Daí a relevância de estudar currículos que são, na verdade, a base formadora de argumentos e interpretações emanados pelos profissionais. Portanto, julgamos o estudo relevante, e o justificamos face à pouca quantidade de estudos dirigido à temática curricular no meio acadêmico jurídico, e sobretudo, face ao parco cuidado que é dirigido ao alunado no meio jurídico. O corpo discente é muitas vezes submetido à lógica do ensino por mnemônicas, que decerto poderiam desaguar em aridez acrítica prejudicando sobremaneira a intelecção. Dito isto, passemos à análise dos currículos, como forma de delinear a identidade escolar no curso de Direito nas instituições pesquisadas.

1 O CURRÍCULO JURÍDICO ÔNTICO: A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE JURÍDICA FORMAL

Os dois primeiros cursos jurídicos brasileiros iniciados no século XIX no Recife e em São Paulo derivam da matriz ou vertente dogmática pedagógica coimbrã. Tércio Sampaio Ferraz (2006) ressalta que a ideia logocêntrica que esteve presente na educação jurídica desde o século XIX reverbera até hoje, sendo que é consenso entender “a ciência como um saber metodicamente fundado, demonstrado e sistematizado”, como complementa Ferraz (2006, p. 153), e daí decorrem os caminhos jurídicos acadêmicos convergindo para o modelo formalista.

O direito foi condensado em um amálgama de perfeição técnica chegando a aproximar-se das ciências exatas (SANTOS, 2000), à medida que, pela previsibilidade da descrição dos códigos, pretendeu gerar certeza e rigor do axioma mathesis nos comportamentos sociais. À luz da história, o direito racional com primazia na universalidade, buscava sobretudo, preservar ordem social e harmonização do processo civilizatório. Tura (2005) destaca que essa expressão do equilíbrio perfeito nas constelações jurídicas ocorre porque o direito se transformou em instrumento lógico-demonstrativo – um feixe de normas ou códigos de previsibilidade.

A proposta do Direito como desdobramento dedutivo do código da razão ilustra bem o papel regulatório da ciência jurídica descrita em Santos (2000, p. 23), que destaca “[…] ele [o direito] se separou dos princípios interpretativos gregos e tornou-se instrumento de regulação: o que era ideal humanista foi convertido em ferramenta racional”. O sistema jurídico se harmonizou ao formalismo como forma de atender às necessidades regulatórias e, neste sentido, a ciência do Direito foi submetida à dupla depuração: o afastamento de influências sociológicas e a clivagem dos aspectos fáticos. Isolada porém fortalecida, a ciência jurídica alargou seu modus operandi e se prolongou na comunidade envolvendo diversas áreas, inclusive a educacional. Cabe, portanto, examiná-la. Enquadra-se, de fato, na educação jus o termo formatio descrito por Heidegger (2003) ao criticar a racionalidade e o afastamento do ser humano pelas vias da instrução dogmática quando passa a operar pelo critério determinante da certeza. Para o filósofo, o método logocêntrico tem a sobriedade da planificação, pois defende a doutrina unidimensional que combate o sincretismo epistemológico; nesse caminhar a educação ortodoxa se aproxima do isomorfismo no condão de racionalizar seus enunciados.

Os currículos[3] seguindo o formalismo optaram pela modelagem dotada de coerência na perspectiva de afastar as lacunas e antinomias e trazer certeza para o campo jurídico. Assim, avultou o currículo pedagógico construído sob a metáfora da pirâmide vertical metaforizada por escalonamentos hierarquizados, de maneira que a ciência jurídica se manteve afastada das disciplinas zetéticas, aquelas consideradas pelo formalismo como “não profissionais”, tais como a ética, a ciência política e a filosofia, por exemplo. Costa (2011, p. 280), ao analisar este isolamento, ressalta que,

Definitivamente, a contar pelos moldes tradicionais com que a escola moderna costuma ensinar, é muito provável que no interior de seus muros se petrifique uma educação sem apetites, desejos e sonhos, sendo possível que ela própria se converta em apatia e inércia de ensinar e aprender, onde professores e alunos são impelidos a se reunir em torno de um trabalho tarefeiro e sem sabor, restrito a alguma finalidade mercadológica no presente ou no futuro.

Desse cânone pedagógico deriva o currículo jurídico, qual categoria insular enclausurada em um corpo de idealidades formal-normativas em que o papel da faticidade é sonegado ou posto em plano secundário, roupagem que se aproxima do skema ratio. Isto porque a ação formalista do currículo também tem como base a previsibilidade e esta, por sua vez, está assentada no ideário racional técnico que almeja ser coerente ao cumprimento de leis.

Logo, é preciso reforçar que, se o currículo expressa os propósitos que estão entrepostos nos fazeres pedagógicos do cotidiano escolar, então seus desígnios não militam na esfera da neutralidade, já que estão adjacentes às políticas educacionais. Passemos a analisar cada um deles, na visão do autor, reforçando que para este trabalho nosso recorte se fixou nos modelos formal e pós-crítico.

Considerando que cada currículo expressa sua visão de mundo através dos valores, crenças e elementos cognitivos nele implícitos, é importante destacar desde logo o modelo denominado currículo tradicional (SILVA, 2005) ou formalista, cânone encontradiço nos cursos de Direito cuja reprodução dos códigos reflete uma linguagem clássica, culturalmente cristalizada e que vai formar o edifício da praxis jurídica.

Segundo Tyler (1974), se o currículo formalista tem subjacente em seus cânones um conjunto de valores que o direciona às práticas eruditas, essas influências também convergem a uma educação endógena, cujo edifício epistemológico tem pouca relação contextual, priorizando, ao invés dos valores humanistas, o enfoque neutral. Sendo assim, nos lembra Heidegger (2003) que a formatio, além de obliterar os atores sociais da educação (docente, discente e sociedade), através de seu currículo formal os rechaça do processo educacional sublocando-os ao papel secundário da vida escolar.

Em verdade, o currículo formal tem um pragmatismo que alicerça a racionalidade (WEBER, 1958), principalmente quando, ao fazer cisão de campos científicos, encapsula a ciência em disciplinas dissociadas, normalmente vinculada às codificações, sendo esta uma dimensão especializada da ciência. Assim, nas proximidades do taylorismo o currículo formal procurou validar o modelo industrial nas escolas criando “[…] a educação tal como a usina de fabricação de aço, um processo de modelagem de pequenas gavetas ou caixas que devem ser empilhadas” (BOBBIT, 1918, p. 56).

Com efeito, se de um lado há a instrução para o exercício profissional versado no aprofundamento da técnica, por outro, o saber especializado captura a realidade em fragmentos e cinde também a relação sujeito-objeto, fragilizando-os e reforçando o que Heidegger (2003) chama de entificação dos seres, ou processo ôntico.

Na conformidade do exposto, Silva (2005) destaca que, não raro, o currículo formal é estabelecido para aplainar variabilidades e diferenças, sendo assim, seu ponto nodal é acepilhar a compreensão dos seres no mundo em uma visada categorial prévia, em uma dimensão que lembra o labor fabril taylorista e sua orientação padronizada. Sob esse aspecto, Kliebard (2011, p. 1) ensina que

[…] o quadro que emerge da atividade educacional, aparentemente frenética, durante as primeiras décadas do século [XX], parece ser o de crescente aceitação de um modelo burocrático para a educação, poderoso e restritivo, reflexo das técnicas de administração utilizadas pela indústria e transformadas em ideal de excelência e fonte de inspiração.

Assim, deve-se observar que a padronização curricular, conquanto seja um plano ou conjectura prévia, já parte da interpretação que enumera possibilidades, certas vezes obnubilando a reflexão mais intelectiva. Essa previsibilidade do currículo tradicional deve-se ao fato de que há, certas vezes, um obscurecimento à realidade, pois ela foi cerrada em códigos e leis, cuja observação é desvinculada dos seres. Isto posto, existe uma profusão legislativa no currículo tradicional no qual predomina a onipotência de elementos formais e simplificação de interpretação, pois há um entendimento de que as normas são imperativas e falam de per si. Daí que o currículo tradicional quase sempre tem uma tendência a tomar o objeto como categoria e examiná-lo pela operação mecânico-dedutiva, o que não raro atua pela padronização; isto implica adoção de parâmetros nacionais, obnubilando os valores e historicidades locais onde é implantado.

Analisando esses critérios, nos socorremos com Heidegger (2003) que destaca a ciência moderna e seus dois inconvenientes, quais sejam, a pouca importância dada ao ser educacional e a relevância marcadamente vultosa à técnica. Assim, diz o autor que o logos da prontidão deixa escapar o essencial na educação, que é o horizonte de possibilidades ofertado ao sujeito pelo estímulo à reflexão e compreensão, elementos articuladores da existência. Não é isso que ocorre, todavia, pelo currículo formalista, pois a emergência da técnica moderna demarca a influência do método cartesiano e, por conseguinte, a adoção da abstração do ser como sujeito cognoscente capaz de absorver ensinamentos dados a priori, muitas vezes alheios a seu cotidiano.

Cabe ressaltar, ainda, a aderência da racionalidade curricular às respostas demandadas pelo mercado de trabalho. Neste patamar, reiteramos ao leitor que é desejável à academia e seu currículo fazer uma aproximação com a sociedade, de forma a situar a educação no processo histórico, já que esta é resultante de convergências e contradições da própria sociedade e de seus atores sociais, sendo que um desses atores sociais é justamente o mundo do trabalho. Ocorre que a ação pedagógica do currículo tradicional – nos explica Silva (2005) – fez uma adesão aos anelos da empregabilidade de forma tão sequaz que quase se transformou em intervenção na escola, à medida que a esfera laborativa passou a ser o principal componente curricular.

Se é verdadeiro que esse pragmatismo alargou a possibilidade de inserção do profissional em seu campo de trabalho, também é certo que os conteúdos pedagógicos foram planejados na lógica ordenada da produtividade, aquela que transforma o currículo em fluxo atemporal de disciplinas acríticas formando um compósito para atender o mercado de trabalho.

São portanto os elementos do binômio racionalidade e empregabilidade que parecem ter informado o currículo clássico ou formalista, que na verdade auxiliou a estruturar um modelo de escola do século XIX, e que, sem dúvida, teve seu grau de colaboração com o processo educativo. Ocorre que a cisão entre currículo e sociedade, ou ainda, a fragmentação entre escola e educandos, por certo abriu uma fenda perigosa isolando o processo educativo, gerando assim a visão microscópica do homem na escola, aquele vazio ôntico, que obstaculiza a escola como pertencente ao grupo social.

Diante do exposto, foi necessário reconsiderar a caracterização tomada pelo currículo, na perspectiva de possibilitar novos diálogos e provocações que pudessem, por sua vez, impelir a criticidade para o interior dos currículos.

O currículo clássico ou formal permaneceu até a segunda metade do século XX, quando em 1960 diversos autores iniciaram uma análise crítica sobre ele. Surgem outras teorias, dentre as quais o marxismo, a fenomenologia, a hermenêutica etc. Citamos aqui Louis Althousser (1985), Bourdieu (1990) e Passeron (1990), advogando que o currículo formalista é um viés de reprodução de ideias nem sempre adequadas à sociedade escolar.

Para situar o leitor, trazemos um quadro demonstrativo de teorias, a partir de Tomaz Tadeu e Silva (2005):

Teoria formalista

Teoria crítica

Teoria pós-crítica

Ensino Ideologia Identidade
Aprendizagem Reprodução cultural e social Alteridade
Avaliação Capitalismo Diferenciação
Metodologia Relações sociais de produção Subjetividade
Didática Emancipação e Libertação Significação e discurso
Organização Currículo oculto Saber-poder
Planejamento Resistência Representação
Eficiência   Gênero, raça, etnia, sexualidade
Objetivos   Multiculturalismo

Fonte: Tomaz Tadeu e Silva (1999, p. 17).

Em Silva (1999), a teoria foi desfraldada em três partes, sendo que a teoria crítica é fase intermediária, mas para este trabalho demos um mergulho do currículo formal ao pós-crítico, e embora consciente da importância do crítico – aqui ele não será trabalhado – reconhecemos que ele foi predecessor de um outro currículo mais político, portanto, mais vanguardista, já que é fruto do tempo atual. Neste aspecto, Silva (2005) o denomina de currículo pós-crítico, uma proposta mais inventiva, já que a educação é caminho incerto a ser construído em processo colaborativo entre docente, discente e suas historicidades envoltas no meio que os abriga. Passemos então a compreender os meandros do currículo pós-crítico.

2 O CURRÍCULO PÓS-CRÍTICO: UMA APROXIMAÇÃO COM A ONTOLOGIA FILOSÓFICA

Para Silva (2005), a segunda metade do século XX representou um momento de transformações em vários campos científicos, sendo que a educação recebeu grandes impactos. É interessante citar nesta fatia histórica o movimento de reconceitualização curricular, atividade intelectiva que fez intensas discussões sobre os currículos formalistas julgando-os atemporais, e não raro, herméticos ao campo social. Como resultante, foram propostos novos aspectos ao currículo, considerando o caráter aberto e ontológico da educação de acordo com o modelo pós-crítico. Felício (2013, p. 130) ressalta que o currículo pós-crítico “é um campo privilegiado para analisar as contradições entre as intenções e a prática educativa que está para além das declarações, dos documentos, da retórica, uma vez que nas propostas de currículo se expressam mais os anseios do que as realidades”.

Por outras palavras, a teoria pós-crítica demonstra principalmente que, subjacente às grades curriculares, estão postas intenções ideológicas e ontológicas que informarão o caminhar pedagógico. Daí que, no final do século XX[4], engrossaram os movimentos contrários à concepção técnica do currículo, advogando dentre outras perspectivas a imersão do currículo no meio social, fazendo com ele importantes interlocuções e intervenções políticas, para entender de forma crítica os problemas contextualizados da sociedade.

Logo, iniciou-se àquela ocasião importantes aproximações da fenomenologia com os currículos escolares pelas alamedas da teoria crítica ou disciplinas zetéticas tais como a sociologia, filosofia, linguagem e a própria ciência política, enquanto pontos de convergência entre escola e alunos. Na esteira de Martin Heidegger (2003), a educação é atitude polemológica ou ontológica, pois além de priorizar o ser educacional, considera sua historicidade. Ontologicamente, seus atores são capazes de gerar um currículo inventivo, articulando disciplinas mais clássicas do direito com as contemporâneas, conduzindo desta forma novas experimentações interdisciplinares no ensino, de maneira que este se torne instigativo e provocador de reflexões.

Segundo Backes (2011), a denominação pós-crítica envolve uma gama de diferentes campos teóricos que se articulam. É neste sentido que se pode falar em um currículo cuja linguagem seja a de aprendizagem contínua, em aberto, pela possibilidade de articulação com novos saberes, de forma a projetar-se no mundo como linguagem dinâmica, pois o direito está incorporado em um mundo composto por ícones valorativos que quase sempre são desvelados pela linguagem.

Tomando o vocábulo linguagem na acepção mais ampla, é possível destacar seu caráter polissêmico, daí que o currículo com aderência à interpretação linguística adquire, por sua vez, um uso plurissignificativo que impele ao pensamento criador, já que a educação dinamizadora tem uma dimensão aproximada com a sensibilidade social.

Neste aspecto, Gandim (2002, p. 3) destaca que “o pensamento inventivo – e aqui sigo Gilles Deleuze – não nasce de uma reprodução, de uma representação, do lado de fora do pensamento, mas de um encontro do lado de fora com um ‘outro’ [exógeno] aquilo que é estranho ao pensamento”. Com esta plasticidade, é possível destacar que os currículos críticos constroem possibilidades de soerguer práticas com indicativos emancipatórios porque o ensino é tessitura viva fertilizada por transformações e criação de novos valores.

A educação pós-crítica fornece bases para estudos abrangentes e unificadores entre escola e meio, e os currículos serão pontos de interconexão entre esses dois elementos. Além do mais, os currículos são compostos por temas que, como galerias, unem-se aos demais tópicos em conexão e diálogo, formando elos infinitos de intercâmbio. Apple (2000), por seu turno, destaca que o currículo é um campo de poder que reflete a natureza das práticas que o criaram e que se desdobram no fazer cotidiano da escola, neste aspecto o currículo pós-crítico ressalta que a educação é rede horizontal, lócus de produção cognitiva e tempo de produção onde se rearticulam uma trama infinita de novos saberes.

E, embora contemple esse conceito vago e impreciso, típico de uma temporalidade pós-moderna, o currículo pós-crítico é também emancipatório, pois além de produzir trocas interdisciplinares, constrói plúrimos significados traduzindo um compartilhamento que contribui sobremaneira para a ação autônoma do ato de pensar. Para Gimeno Sácristan (1998) o currículo é uma confluência de práticas, e sendo emancipatório é sustentado pela reflexão, que por sua vez se comunga com o contexto sócio-histórico já que o locus e a ação política se associam, trazendo reflexos para a educação, e nesse aspecto a cultura e o ambiente de aprendizagem são aderentes à construção social.

As teorias pós-críticas destacam currículos como fatores instrucionais adjacentes ao meio social, refletindo e interligando culturas e sistemas de valores, crenças e ideias que irrigam a sociedade e que, como autorreferentes, passam a ancorar o currículo, significando principalmente trazer para a escola vertentes humanistas através de dialogicidades e convivência respeitosa com culturas diversas. Desta forma, a educação pós-crítica é um entrecruzamento tecido pelo encontro ontológico de sujeitos educacionais no exercício do diálogo, transformando a escola em espaço de comunhão de práticas enriquecedoras. Sob esse enfoque, cabe lembrar o aspecto ontológico de Martin Heidegger (2003. p. 67), para quem “o ser [educacional] é um ente solícito e sagrado”.

Coadunando com esta ideia, a escola e seu currículo pós-crítico são pensados como espaços de circularidade de culturas, já que neles mesclam-se saberes populares com ideias doutas articuladas e mediatizadas pelos atores educacionais, como construtores sociais. Deve-se considerar também que é no currículo que se faz a ancoragem social dos conteúdos, uma estratégia definida como associação de discursos de diferentes campos.

Desta forma, é pela vertente das ações multiculturais que se incorporam as diversidades na educação, procurando gerar uma ciência de turbulência. Assim, destacamos a importância das dinâmicas de sensibilização identitárias, explicando que o entendimento e respeito da cultura do outro representam alteridade. Portanto, acreditamos que o currículo pós-crítico se reveste da visão compreensiva sobre o ser, o sentido do ser, a verdade e a topologia do ser, a partir de Martin Heidegger (2003), pois ao se pensar em educação, é mister recolocar na clareira da vida o ser educacional.

Isto porque educar significa proporcionar relações de encontros culturais, políticos e sociais que proporcionem fundamentos para que o ser educacional tenha consciência de sua temporalidade e seja capaz de reconhecer múltiplos aspectos na sociedade, para vivenciar questões plurais que, por sua vez, demandam respostas multifacetadas. Desta forma, os currículos pós-críticos ou emancipatórios permitem reconceituar fenômenos através da reconstrução de conceitos tradicionais, trazendo para o seu interior questões tais como: raça, etnia, sexualidade e suas representações, na perspectiva de impulsionar o debate. Sobre a importante temática, Silva (2005) nos ensina sobre o termo “Queer”, destacando-o como uma “coisa estranha no currículo” (SILVA, 2005, p. 105), e enfatiza que a palavra queer foi usada equivocada e pejorativamente para denominar homossexualidade. Hoje, todavia, o movimento pós-crítico ressignificou o vocábulo trazendo-o para o interior do currículo,

[…] numa reação à histórica conotação negativa do termo, recupera-o então, como forma positiva de identificação […] aproveitando-se do outro significado: o estranho, como uma declaração política. Assim, [o termo queer] através de sua estranheza, quer perturbar a tranquilidade da normalidade. (SILVA, 2005, p. 105)

Feitas essas considerações sobre o currículo pós-crítico e sobre a teoria ontológica, passemos à análise da amostra, qual seja, o currículo de seis instituições de ensino, conforme destacado na introdução deste trabalho.

3 A PESQUISA E A EXPOSIÇÃO DAS CATEGORIAS ANALISADAS

Destacamos desde logo que por tratar-se de pesquisa descritivo-comparativa de currículos, neste trabalho desejamos somente analisar os documentos, quais sejam, a grade curricular contida no projeto pedagógico e os planos de ensino, sem quaisquer contatos sobre o tema com professores ou coordenadores dos cursos pesquisados, a fim de manter certo afastamento, evitando assim contaminar nossas percepções.

Daí que após entrar em contato com as seis instituições sensibilizando-as para a pesquisa, solicitamos por escrito a disponibilização dos documentos para análise, sendo que recebemos resposta de todas elas. Quatro instituições enviaram farta documentação por email, e duas delas sugeriram que a consulta fosse realizada em seus sítios eletrônicos. Por conseguinte, a pesquisa teve uma duração aproximada de 12 meses (março de 2012 a abril de 2013), de forma que analisamos 6 currículos e aproximadamente 60 conteúdos programáticos por amostragem.

Neste aspecto, foram tomadas algumas características ou tipologias como referências em cada um dos eixos de Silva (2005), para então pesquisá-las nos currículos e aproximá-las dos estratos ôntico ou ontológico de Martin Heidegger (2003). Vejamos as categorias pesquisadas.

Da teoria formalista ou tradicional de Silva (2005) foram escolhidas:

– Divisão ou especialização: segmentação ou divisão do currículo em áreas diferenciadas, gerando assim saber profundo e domínio extensivo especificamente àquela área.

– Padronização ou uniformidade: adoção de rotinas, categoria única utilizada como referência no sentido de reduzir variabilidade e eliminar dúvidas e incertezas.

– Codificações: extração de fragmentos dos códigos jurídicos apostos no currículo para seren trabalhados no processo educacional.

– Hermetismo: currículo endógeno com pouca ou quase nenhuma interlocução com outras áreas que não sejam jurídicas.

Da segunda teoria de Silva (2005), o currículo pós-crítico, as categorias selecionadas para análise foram:

– Dialogicidade: interlocução entre currículo e meio social a partir da apresentação de disciplinas com conteúdo político e temas sociais da atualidade.

– Direitos Humanos: temática que envolve a pessoa humana, sua vida digna e respeito.

– Multiculturalismo: estudo envolvendo gênero, raça, cor, faixa etária e sexualidade da pessoa, como forma de proteção por sua condição de maior vulnerabilidade.

– Interdisciplinaridade: diálogo entre a ciência jurídica e outros campos científicos.

Feitas essas considerações pedagógicas para situar o leitor, passemos à análise dos documentos coletados ne pesquisa.

3.1 A Análise dos Currículos e as Categorias

Estabelecidas as categorias, cada uma delas foi analisada individualmente no currículo e, após isso, refinada nos planos de ensino. Sob a perspectiva analítica foram pesquisados currículos como importantes diretrizes que informam a ação pedagógica, entendendo, todavia, que os currículos representam apenas uma parte do complexo sistema que significa educar. Logo, destacamos que não se deseja aqui julgar o todo pela parte, assim a presente pesquisa é um olhar sobre o currículo, não significando apor rótulos institucionais nas academias pesquisadas. Como forma de preservar a identidade das instituições, cada uma delas e seus currículos foram tratados pelas letras: A, B, C, D, E, F e passam a ser assim designados a partir de então. Dito isto, iniciemos as análises:

A instituição “A” declara em seu projeto pedagógico que se compromete a formar bacharéis éticos e autocríticos com a máxima eficiência. Acreditamos que por essa narrativa “A” já deixa uma clareira de que se inclina à formação pragmática especializada. De cunho conservador, relata seu percurso histórico ressaltando um fato pitoresco, e nos diz que a abertura do curso foi realizada por “um clã”, decerto homenageando os fundadores, mas revelando traços de um formalismo que depois será confirmado no currículo. Este, ao ser apresentado, é descrito na primeira página como “matriz curricular”, o que de certa forma confirma nossas hipóteses.

É de se destacar também que a aderência à formação para o trabalho é fator presente, tanto no percurso curricular quanto no projeto pedagógico da instituição “A”; seja quando anuncia o projeto já na apresentação, ou quando ressalta objetivos de “formar profissionais competentes às carreiras jurídicas”, e ainda ratifica o currículo oferecido “de modo ágil”, como forma de rápida inserção no mundo do trabalho.

Quanto à especialização, “A” faz aproximações pontuais com outras áreas em 06 (seis) disciplinas ao longo de seu currículo, e mesmo assim, essas circunvizinhanças são harmonias da ciência jurídica com outros campos, mas tendo o direito como protagonista, como exemplo: a sociologia aplicada ao direito, disciplina cujo conteúdo programático é dominado por temas tais como:

[…] o direito como fato social, o direito como instrumento de organização social […] a concepção dogmática da norma jurídica, o direito como fenômeno observável, o direito como rito, o direito como elaboração legislativa (quem é o legislador?); o destinatário da norma jurídica.

Pelo exposto, se percebe que a uniformização jurídica está presente, pois o currículo é um desdobramento padronizado dos códigos civil, processual civil, penal e processual penal, com pouca ênfase à Constituição e principalmente à ética, esparsamente aspergida no final do curso em uma disciplina que aborda a deontologia ou código de ética profissional. Consideramos, então, o currículo de “A”, hermético e aderente à codificação.

Quanto à dialogicidade, o que por sua vez poderia desaguar em discussões políticas, já que a proposta de “A” é “formar acadêmicos politizados”, pouca coisa está demonstrada com esta roupagem, a não ser pela inclusão da disciplina Direitos Humanos isolada como disciplina optativa. Já o multiculturalismo e alteridade são porvir em “A”, pois percebemos uma lacuna quanto a estes temas na matriz curricular. Também não foram percebidos nos documentos analisados quaisquer menções a temáticas tais como: gênero, raça, etnia e sexualidade, o que aloca o currículo de “A” no eixo formal e ôntico, seja em Tadeu como em Heidegger.

Quanto à “B”, a instituição se propõe a transmitir valores de ética e cidadania através da formação diferenciada. Todavia, observando a especialização no currículo de “B”, vimos que até o quarto período há uma mescla em cada semestre de uma disciplina de áreas não jurídicas, o que se considera grande avanço interdisciplinar. Todavia, a partir do quarto período o currículo padroniza a verticalidade dos códigos, desdobrando-os em disciplinas que acompanham o currículo até o último semestre. Destacamos a codificação, portanto.

Em relação à dialogicidade, um fator a ser destacado em “B” foi uma inclinação mais subjetiva e menos jurisdicizada, já que inclui disciplinas com título reflexivo tais como Metodologia da Pesquisa, historicidade e cultura e hermenêutica, nas séries iniciais do curso. Mesmo assim, temas como multiculturalismo e alteridade não são contemplados em primeira vista, tanto no currículo, quanto nos planos de ensino. Não obstante o projeto pedagógico de B destacar que a instituição tem um ambiente pedagógico com alternativas metodológicas inovadoras, dinâmicas e ativas, centradas no estudante como protagonista, seu currículo evidencia outra direção, aquela mais organizada, planejada, e não dissociada do mercado de trabalho. Daí que ele embora seja menos hermético, também não é de todo interdisciplinar.

Também no currículo de “B” sentimos falta das temáticas Direitos Humanos e Multiculturalismo, que explorassem temas tais como gênero, raça, etnia, sexualidade. Mas não se pode olhar somente por um viés, já que, malgrado esse vazio, o currículo evidencia temas reflexivos como significação e discurso, demonstrado no plano de ensino programático da disciplina hermenêutica.

A instituição “C”, por seu turno, propõe um curso com convivência humana entendendo liberdade e igualdade concatenados à ética e moral. Destaca também o desenvolvimento de um senso crítico e habilidade intelectual para dirimir conflitos. O percurso de “C”, embora seja mais flexível, também não afasta o currículo como cópia literal de códigos. Entretanto, para mitigar essa dogmática, “C” traz uma proposta argumentativa, que na verdade não se confirma. Contrario sensu, “C” incentiva a investigação, quando desde o primeiro semestre já oferece a disciplina “metodologia da pesquisa”. Esse elemento curricular, apesar de moderar o hermetismo de “C”, não torna seu currículo ontológico.

Quanto à especialização o currículo de “C” apresenta uma disciplina de áreas não jurídicas em cada semestre até o terceiro período, a partir dele, a padronização e uniformidade dos códigos penal, processual penal, civil e processual civil são os componentes curriculares até o último semestre, evidenciando a codificação. Essa rigidez foi amenizada, no entanto, pela presença da disciplina “argumentação jurídica”, que em seu conteúdo programático traz um discurso da diferenciação e metanarrativa bem destacado. Outro fator importante é a oferta das disciplinas “relações étnico-raciais” e “linguagem brasileira de sinais”, mesmo assim elas são extracurriculares, constando na grade como disciplinas optativas. Daí que embora militando na área multicultural, está nas adjacências do currículo de “C”, o que não o faz ontológico.

Quanto à instituição “D”, já na apresentação do curso o projeto pedagógico focaliza uma formação com base no senso crítico e ética profissional, através de seu currículo anunciado como fator de diferenciação sistematizada. Na verdade, nos primeiros semestres “D” faz um percurso levemente reflexivo, ao aproximar direito e pensamento político e propor discutir a realidade brasileira a partir de direitos humanos, dialogando com a filosofia. Essa perspectiva, embora se aproxime do currículo pós-crítico, não ocorreu no plano de ensino.

Ademais, a partir do quarto semestre a padronização está presente em “D”, evidenciada por seu currículo hermético, voltado à literalidade dos códigos, o que o torna aderente ao mercado de trabalho. Como imaginado, Direitos Humanos e Multiculturalismo não foram verificados, nem quaisquer temas relacionados ao gênero, raça, etnia e sexualidade no currículo de “D”. O que também faz de “D” um currículo formal e ôntico.

A instituição “E” na apresentação do curso de direito se propõe a formar profissionais críticos e criativos preparados para atuar, dentre outras áreas, na defesa dos Direitos Humanos. Mas, contrario sensu, denomina seu currículo de matriz, apresentando interessante percurso que inicia já no primeiro semestre com a disciplina Direitos Humanos, acompanhada de estudos da linguagem, em consonância com outras disciplinas jurídicas, que na verdade são predominantes.

A partir do segundo semestre há somente uma disciplina exógena ao mundo jurídico em cada semestre, até o quarto período, sendo que a partir do quinto período há predominância de somente disciplinas jurídicas. Chama atenção, todavia, uma disciplina presente do primeiro ao quinto semestre denominada projeto integrador, que pelo título leva-nos a imaginar um dinamismo e representação do sincretismo epistemológico, fato que não se confirmou ao analisar seu plano de ensino. No décimo período, o que poderia ser caracterizado como reflexão e autonomia pelas vias da ética, é apresentado como a disciplina Deontologia, versando seu plano de ensino sobre o código de ética do advogado, somente. E, tanto quanto os demais currículos aqui analisados, na instituição “E” também não percebemos temas pós-críticos ou o currículo apontando nessa direção, faltando, portanto, os temas: raça, etnia e sexualidade.

A instituição “F” apresenta suas perspectivas focalizando a necessidade de formação para suprir o mercado de trabalho competitivo e destaca o perfil profissional de seus egressos que adentram no mercado com intuito de se verem remunerados o mais rápido possível. Sendo assim, em “F” a matriz curricular é aderente ao empreendedorismo. Para além dessa perspectiva “F” também ressalta um perfil profissional de agente transformador da sociedade com espírito reflexivo, porém focado à “rápida inserção no mercado de trabalho”.

Quanto à padronização e especialização curricular, “F” demonstra no primeiro e segundo semestres, algumas disciplinas de outras áreas, e mesmo assim em número diminuto, são elas: Economia, Linguagem Jurídica, Metodologia e Sociologia, o que confirma o currículo hermético e uniforme tão desejado pelo mercado de trabalho. A partir do terceiro semestre o currículo é um desdobramento de disciplinas jurídicas refletindo o perfil formal, apresentando-se como um espaço de construção para preparação técnica, daí sua estratificação bem homogeneizada e hierarquizada, na verdade uma bricolagem dos códigos.

Surpreendentemente, a disciplina Direitos Humanos está presente no currículo de “F” no quinto período, mas seu conteúdo não converge com a temática proposta. Assim, “F” se inclina à teoria tradicional mais clássica, tanto que ainda apresenta a disciplina “medicina legal”, uma importante e vetusta área de trabalho quase já não mais encontrada nos currículos jurídicos. Portanto em “F” não encontramos vestígios do currículo pós-crítico, estando ausentes os vetores: dialogicidade, multiculturalidade, direitos humanos e interdisplinaridade curriculares. Analisados os seis currículos, e em tempo de caminhar para o desfecho, passamos a cumprir os objetivos traçados e a demonstrar nossas impressões.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Destacamos que não é nossa intenção generalizar os resultados, que aqui servem somente para os casos estudados. Ressaltamos também que, as diretrizes curriculares dos cursos de graduação em Direito são recomendadas pela Resolução 09 do Conselho Nacional de Educação. Malgrado a Resolução incentivar que os projetos pedagógicos devam contextualizar os aspectos políticos, sociais e geográficos em seus cursos, os seis currículos jurídicos aqui analisados – embora com menor ou maior grau – são formatados pelo formalismo, qual seja: dirigidos pelos códigos, fragmentados da sociedade, informados pela racionalidade e focados no mercado de trabalho.

Portanto, confirmada nossa hipótese, destacamos a aproximação do currículo formal de Tomaz Tadeu com o conceito ôntico descrito em Martin Heidegger (2003), exercitado no percurso curricular organizador e planejador. Nos casos estudados, essa vertente se mostrou pertinaz. Sendo assim, quando o currículo apresenta baixa interdisciplinaridade (AIRES, 2011) e discreta integração com o meio social acaba negligenciando o ser educativo e trazendo à tona a técnica, fato importante, mas que segundo Heidegger (2000) cria uma cortina de fumaça para encobrir e não desvelar o ser, ou, dito de outra forma, o metamorfoseia em ente que se sujeita ao método. Neste aspecto, reforçamos que os currículos analisados reacenderam a teoria de Bobbitt (1918), aquela inclinada ao taylorismo, enfatizando mais a eficiência que o ensino propriamente dito.

Portanto, os currículos analisados apontam para vertentes clássicas de ensino conservador, que replica códigos jurídicos secularmente escritos e reproduzidos como se a sociedade fosse estática. Malgrado a Resolução 09 recomendar também aos graduandos uma formação humanística e axiológica, não foi o que se verificou na pesquisa aqui realizada. Na verdade, a matriz processualística ainda é valorizada nas instituições, e muita importância se dá a temas com essa caracterização, portanto os currículos analisados se inclinam mais à perspectiva ôntica de Heidegger (2003), do que à filosofia ontológica, aquela recomendada como pós-crítica e que prioriza o homem e a valorização fenomênica de seus anseios na sociedade.

Eis que, ao invés da postura reflexiva, crítica, capaz de causar o efeito emancipatório que tanto se almeja em Martin Heidegger (2003) quanto no currículo pós-crítico de Tomaz Tadeu e Silva (2005), o que se verificou nos currículos foi uma quase ausência de sincretismo epistemológico, um isolamento que muitas vezes não consegue responder as complexas demandas da faticidade do mundo social. Assim, ao invés da aprendizagem ontológica, autônoma e dinâmica que é capaz de desenvolver cidadania, o currículo formal aderente ao mundo do trabalho gera um perfil tecnicista importante, mas desvencilhado dos reais dilemas e angústias complexas pelas quais a sociedade é abalada nos dias atuais.

É de se destacar também que, na esteira ontológica de Martin Heidegger (2003), comungando com a teoria pós-critica de Thomaz Tadeu e Silva (2005), o currículo recomendado na Resolução 09 é tripartite e em comunhão, pois exige: uma formação fundamental, a formação profissional e a formação prática. Na formação fundamental as disciplinas zetéticas são sugeridas fazendo uma ponte com a interdisciplinaridade, na perspectiva de comunhão da ciência e valorização do pensamento intelectivo capaz de exercitar a criticidade. Nessa esfera, os currículos analisados quase todos fazem ligeiros respingos de disciplinas isoladas em suas séries iniciais, e depois elas são preteridas, dando-se ênfase àquelas de formação profissional focadas somente no mundo do trabalho.

O enfoque profissional é importante, mas nem por isso poderia constar no currículo de forma descontextualizada e imune às oscilações sociais que circundam a vida e que, por sua vez, arremessam a ciência jurídica ao mundo real. Isto porque a norma não habita um mundo afastado, atemporal, metafísico, aquele que no dizer de Heidegger (2000) afasta o sujeito do objeto e o entifica.

Ademais, a formação prática ou o fazer do profissional do direito não é decisão autômata, entificada nos esquemas normativos dogmáticos pela ação subsuntiva de aplicar o fato à norma. Isso, sem dúvida, poderia gerar graves injustiças pois a norma, assim como a vida, não é estática. Advirta-se, outrossim, que a prática recomendada é exatamente a aprendizagem autônoma e dinâmica, aderente ao desenvolvimento da cidadania reflexiva, ou seja, é a conciliação no currículo da formação fundamental, profissional e da prática. Todavia, não foi isso que os currículos mostraram, priorizando a dogmática formalista e obnubilando as demais.

Sendo assim, nos casos analisados, o silenciamento acerca das demandas sociais emergentes foi a ausência mais inquietante e demonstrou, portanto, a dissonância do currículo formal com a sociedade atual. Temas como raça, etnia, sexualidade e gênero, por exemplo, amplamente discutidos na academia, passam ao largo do currículo jurídico tão preocupado em ler códigos brasileiros escritos no início do século XX. Decerto que há um descompasso desconcertante, o que para Heidegger (2003) é o esquecimento do ser, e que para Tomaz Tadeu é a negligencia do Queer e a confirmação da cristalização do direito como ferramenta de poder.

Todavia, quando se pensa em currículo e seu subjacente poder, não há neutralidade. No caso analisado, ao invés de emancipar a sociedade, o ensino jurídico se perfaz como pragmata a serviço meramente regulatório, no exercício da argumentação da reprodução cultural.

Caminhando para o final e ressaltando que os currículos emancipatórios interagem com o ambiente da aprendizagem, o que se viu nos currículos analisados foi a ciência jurídica enquanto instrumento de constituição e preparação para o mercado de trabalho; o que era ideal emancipatório foi convertido em anomia. Daí que confirmamos nossa hipótese de que os currículos jurídicos analisados se coadunaram tanto com o modelo formalista descrito em Tomaz Tadeu e Silva (2005), quanto com o perfil ôntico estudado por Martin Heidegger (2003).

Portanto, a educação jurídica muito haverá de ser impelida, para que seu caminhar se aproxime da criticidade e possa efetivar a roupagem humanista que abriga o ser educacional. Começando por seu currículo, fazendo, então, uma passagem do ôntico formal ao ontológico pós-crítico.

REFERÊNCIAS

AIRES, Joanes Aparecida. Integração curricular e interdisciplinaridade: sinônimos? Educação e realidade, Porto Alegre, v. 36, n. 01, p. 215-230, jan./abr., 2011.

ALTHOUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos do Estado. Rio de Janeiro: Graal, 1985.

APPLE, Michael. Ideologia e currículo. Porto Alegre: Artmed, 2000.

BACKES, José Licínio. As epistemologias dos estudos curriculares: diferenças e identidades. Educação e realidade. Porto Alegre, v. 36, n. 2, p. 465-483, maio/ago. 2011.

BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean Clude. A reprodução. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990.

BOBBITT, John Franklin. The Elimination of Waste in Educational. Publisher: The Elementary School Teacher, v. 12, n. 96, 1918.

COSTA, Gilcilene Dias da. Curricularte: experimentações pós-críticas em educação. Educação e Realidade. Porto Alegre, v. 36, n. 1, p. 279-293, jan./abr. 2011.

FELÍCIO, Helena Maria dos Santos. Análise crítica do currículo: um olhar sobre a prática pedagógica. Currículo sem Fronteiras, v. 13, n. 1, p. 129-142, jan./abr. 2013.

FERRAZ, Tércio Sampaio. A ciência do Direito. São Paulo: Atlas, 2006.

FERREIRA, Silvia. Concepção de Currículos de Ciências: análise dos princípios ideológicos e pedagógicos dos autores. Educação e Realidade, v. 35, n. 01, p. 283-309, jan./abr. 2010.

GANDIM, Luis Armando. Mapeando a complexa produção teórica educacional. Entrevista com Tomaz Tadeu e Silva. Currículo sem Fronteiras, v. 2, n. 1, p. 5-14, jan./jun. 2002.

GIMENO SACRISTÁN, José. O currículo: uma reflexão sobre a prática. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 1998.

HEIDEGGER, Martin. Ser y tiempo. Madrid: Trotta, 2003.

____. Serenidade. Lisboa: Instituto Piaget, 2000.

KLIEBARD, Herbert M. Burocracia e teoria de currículo. Currículo sem Fronteiras, v. 11, n. 2, p. 5-22, jul./dez. 2011.

RICHARDSON, Roberto Jarry. Pesquisa Social: métodos e técnicas. São Paulo: Atlas, 1999.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortês, 2000.

SILVA, Tomaz Tadeu. Documentos de Identidade: uma introdução à teoria do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.

____. O que produz e o que reproduz em educação. Porto Alegre: Artes médicas, 1992.

____. O currículo como fetiche: a poética e a política do texto curricular. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.

____. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.

TURA, Maria de Lourdes Rangel. Conhecimentos escolares e a circularidade entre culturas. In: Currículo, debates contemporâneos. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2005. p. 48-98.

TYLER, Ralph W. Princípios básicos de currículo e ensino. Porto Alegre: Globo, 1974.

WEBER, Maximilian Carl Emil. The protestant ethic and the spirit of capitalysm. New York: Scribner, 1958.

Notas de Rodapé

[1] Pós-Doutor em Filosofia na Universidade de Santo Anselmo Roma. Professor da Faculdade de Direito de Vitória.

[2] Doutora em Direito pela Faculdade de Direito de Vitória. Doutora em História Política pela UFES.

[3] É importante destacar que a teoria do currículo foi iniciada pelo estudioso Franklin John Bobitt, o criador do currículo formal. Na ebulição da revolução industrial, Bobitt, na mesma linha do engenheiro Frederick Taylor, aproximou as teorias fabris da escola, racionalizando a práxis educativa. O currículo formal enquanto decomposição de disciplinas em uma sequência lógica é exemplo desse modelo.

[4] Silva (2005) destaca que este marco aconteceu na I Conferência sobre Currículo, organizada em Nova York pela Universidade de Rochester.