Terceiro Setor em Portugal e o Regime Jurídico das Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS)
THIRD SECTOR IN PORTUGAL AND THE LEGAL STATUS OF THE PRIVATE INSTITUTIONS OF SOCIAL SOLIDARITY
José Marcelo Ferreira Costa[1]
Resumo: Analisa o regime jurídico das entidades privadas (sem fins lucrativos ou econômicos) à luz do direito português sob a perspectiva das Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS), especialmente quanto à forma, controle, registro obrigatório, rol de atividades passíveis de atuação e responsabilidade dos representantes legais. Adentra no conceito “Terceiro Setor” e a sua relação com o princípio da subsidiariedade. Aborda o tratamento conferido pela Constituição da República Portuguesa às entidades privadas non profit e a coexistência de três setores: (i) Setor Público, (ii) Setor Privado, e (iii) Setor Cooperativo e Social. Conclui a importância do incentivo aos diversos segmentos da sociedade civil e o papel das IPSS como coadjuvantes ao aparato público para minimizar os efeitos da crise do Estado Social.
Palavras-chave: Terceiro setor. Instituições privadas sem fins lucrativos. Estado social. Economia social e solidária em portugal.
Abstract: It analyzes the legal status of private organizations (non-profit) under portuguese law of the Private Institutions of Social Solidarity (IPSS). It targets the legal form, public control, official registration, activities enrolled and the responsibility of the legal representatives. It focus the expression “third sector” and its relationship with the principle of subsidiarity. It Addresses the legal treatment by the Portuguese Constitution to private non profits entities and the coexistence of three sectors: (i) public sector, (ii) private sector, and (iii) cooperative and social sector. It concludes the importance of encouraging the various segments of civil society once the IPSS plays important role as adjuncts to minimize the effects of the welfare state crisis.
Keywords: Third sector. Non profit organizations. Welfare state. Social and solidarity economy in portugal.
INTRODUÇÃO
A presente investigação tem por finalidade examinar o regime jurídico das pessoas coletivas de direito privado desprovidas de fins lucrativos perante o ordenamento jurídico português, especificamente aquelas qualificadas como Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS). O foco é abordar o rol das entidades constituídas por particulares, isto é, sem a intervenção administrativa do Estado (ou entidade pública), mas que desempenham importante missão para a efetivação dos direitos sociais, conforme dispõe o Decreto-Lei 119/83,[2] de 25 de Fevereiro, alterado e consolidado pelo Decreto-Lei 172-A/2014, de 14 de Novembro, com fundamento na Lei 30/2013, de 8 de maio, posteriormente modificado pela Lei 76/2015, de 28 de Julho.
Primeiramente, ingressar-se-á no âmbito de identificação conceitual da expressão “Terceiro Setor” e a sua relação com as entidades posicionadas entre o Poder Público e o mercado, mas que atuam no chamado segmento da “economia social”. Em seguida, a investigação também se voltará à abordagem da relação das entidades do Terceiro Setor e o princípio da subsidiariedade. A intenção é verificar o papel da atividade de fomento em prol do incentivo dos diversos grupos privados, representativos da sociedade civil, especialmente para promover os seus objetivos próprios de cidadania, solidariedade e voluntariado.
No item subsequente, o exame avançará para o tratamento reservado pela Constituição da República Portuguesa às entidades privadas non profit e o seu posicionamento nos meios de produção da economia social, pois, ao tratar da Ordem Econômica, desenhou-se a coexistência de três setores: (i) Setor Público, (ii) Setor Privado, e (iii) Setor Cooperativo e Social.
O último tópico ingressará no Regime Jurídico das IPSS, ocasião em que serão abordados temas como as formas de constituição, controle, registro obrigatório (e seus efeitos), rol de atividades passíveis de atuação e responsabilidade dos representantes legais. Ainda neste tópico, o papel das IPSS e a sua ação coadjuvante com o Poder Público na busca de minimizar os efeitos da crise do Estado Social também terá tratamento mais detalhado.
Frise-se, por oportuno, que o estudo será desenvolvido utilizando-se de pesquisa bibliográfica na legislação portuguesa e obras acadêmicas de referência. Todavia, em certos momentos, realizar-se-ão pontuais remissões comparativas sobre o disciplinamento de (similares) entidades privadas desprovidas de fins lucrativos perante o direito brasileiro, especificamente quanto às Organizações Sociais (Lei Federal 9.637, de 15.05.1998) e às Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (Lei Federal 9.790, de 23.03.1999), no intuito de enriquecer a reflexão sobre o objeto de estudo.
1 TERCEIRO SETOR
1.1 Aspectos Relativos à Expressão “Terceiro Setor”
A expressão “Instituições do Terceiro Setor” tem origem do inglês Third Sector e é utilizada frequentemente em paralelo com outras similares, exempli gratia, “Instituição sem Fins Lucrativos” (non-profit institution) ou “Setor sem Fins Lucrativos” (non-profit sector).
A definição para a expressão Terceiro Setor já foi – e ainda permanece – objeto de debates na doutrina em vários países. Ante a ausência de uma definição jurídica, aliada à vaguidade da locução e à diversidade das atividades desempenhadas por entidades filantrópicas constituídas por particulares, a Divisão de Estatísticas dos Estados Unidos da América e a Johns Hopkins University confeccionaram o Handbook on nonprofit institutions of national accounts[3] no intuito de apresentar critérios aptos a identificar o rol de “pessoas coletivas” pertencentes ao Terceiro Setor[4].
Na ocasião, foram apontados aspectos mínimos para a caracterização de uma pessoa jurídica (ou coletiva) como integrante do chamado Terceiro Setor: (i) organização sob ponto de vista jurídico (formalização da pessoa coletiva), registradas e com delimitação do objeto social; (ii) natureza exclusivamente privada (sem participação estatal); (iii) autoadministração e composição de quadro de integrantes; (iv) não distribuição de lucros entre os administradores, membros, sócios ou associados; e (v) liberdade associativa e de desenvolvimento da atividade pretendida pelo grupo social respectivo.
Vê-se, portanto, que, o regime idealizado para selecionar as entidades privadas do chamado Terceiro Setor já denota o seu papel importante na sociedade, especialmente por se encontrarem posicionadas entre o aparato estatal e o mercado.
Neste sentido, Diogo Freitas do Amaral[5] esclarece:
Julgamos mesmo que para o conjunto formado pelos milhares de associações e fundações de utilidade pública – que se dedicam, sem móbil lucrativo e em cooperação com a Administração Pública, à prossecução de fins de interesse geral – deve utilizar-se o conceito anglo-saxônico de third sector (terceiro setor). Porque, ao lado do sector público e sector privado lucrativo, que se dedica à economia, é indispensável sublinhar e valorizar a existência de um sector privado muito diferente – um sector não lucrativo, de fins altruístas, que se entrega a actividades humanitárias, culturais e de solidariedade social.
As pessoas colectivas de utilidade pública, que são o coração e o nervo deste terceiro sector, estão tão longe do sector público pelo seu espírito quanto o estão do sector privado pelos seus objectivos.
O conceito abrange as pessoas jurídicas de cunho privado voltadas à realização de atividades de interesse coletivo e desprovidas de interesses econômicos relacionados à aferição de lucro no sentido de acumulação de capitais[6]. Tais entidades são constituídas, mantidas por particulares e não integram a estruturas de direito público ou privado da Administração referidas nos arts. 266 e 267 da Constituição da República Portuguesa, o que revela o “processo genético”[7] de criação, o qual caracteriza-se por
(…) o seu processo genético: o acto de constituição há-de ser expressão genuína da vontade individual (no caso das fundações) ou – no caso das associações – da conjugação ou convergência de uma pluralidade de vontades, mas incidivelmente unidas porque partilham do mesmo fundamento – o valor ético e jurídico da solidariedade social – e comungam do um e mesmo fim – a realização de um dos objetivos em que se concretiza no mundo do direito da solidariedade social ou a justiça social.
A finalidade não lucrativa não exime a possibilidade de a entidade obter excedentes de receita ou mesmo a permissibilidade para cobrar pelos serviços prestados, o que se atrai para o debate o conceito de “economia social”. Para Francisco de Assis Alves[8], a exclusão do perfil econômico da pessoa jurídica “se configura não pela gratuidade de seus serviços, mas pela não-distribuição de seu patrimônio e de suas rendas como também pelo investimento na própria entidade dos resultados positivo auferidos”. É dizer, o vetor de aplicação do superávit (excedente) financeiro na própria pessoa jurídica para a melhoria dos serviços prestados ou de repartição desprovida do conceito econômico de lucro, o qual se caracteriza pela distribuição de resultados no processo produtivo, o que afasta o modelo cooperativo do capitalismo.
Com efeito, o que se verifica é uma assimetria de regimes jurídicos para obtenção de critérios adequados à confecção do conceito à expressão “terceiro setor”. Ante a complexidade do assunto, aliado ao fato das divergências[9] quanto aos critérios para tratamento do assunto, o presente trabalho adota o preclaro posicionamento do Professor Doutor Licínio Lopes[10] – (i) concepção restritiva (origem anglo-saxônica), inspiradas no Programa Johns Hopkins, a qual impede a inclusão no conceito das entidades non profit a distribuição de excedentes entre os respectivos membros; (ii) concepção ampla (origem francófona): abrange o conceito de “economia social”, cujo sentido engloba pessoas coletivas envolvidas em atividades econômicas e que distribuem excedentes entre os membros (por exemplo, as cooperativas e as mutualidades) – o qual se baseia em duas concepções para identificação do Terceiro Setor: ausência de fins lucrativos e iniciativa livre de particulares.
Desde já, importa frisar que, em Portugal, pode-se compreender o Terceiro Setor radicado ao gênero “Pessoas Coletivas de Utilidade Pública”, cujas espécies se desdobram em: (i) Pessoas Coletivas de Utilidade Pública Administrativa, (ii) Pessoas Coletivas de Mera Utilidade Pública, e (iii) IPSS, às quais merecerão maiores atenções no presente estudo.
Por sua vez, no Brasil, a doutrina reserva a expressão “Terceiro Setor” para as entidades desprovidas de finalidade lucrativa propriamente ditas. Ou seja, as pessoas coletivas que preveem estatutariamente a impossibilidade de repartição ou retirada de resultados financeiros (lucros, bonificações, percentagens ou qualquer outra vantagem) entre os dirigentes, diretores, administradores, mantenedores, associados ou associados, da pessoa jurídica[11]. Para Sílvio Luís Ferreira da Rocha[12], a expressão
Terceiro Setor indica os entes que estão situados entre os setores empresarial e estatal. Os entes que integram o Terceiro Setor são entes privados, não vinculados à organização centralizada ou descentralizada da Administração Pública, mas que não almejam, entretanto, entre seus objetivos sociais, o lucro e que prestam serviços em áreas de relevante interesse público.
A exemplo do modelo português, tais pessoas coletivas não são obrigadas a prestar serviços gratuitos e, consequentemente, poderão obter excedentes, os quais deverão ser reinvestidos na própria entidade. É dizer: as pessoas jurídicas sem fins lucrativos não se encontram impedidas de exercerem o animus lucrandi, porém se veda a prática do animus distribuendi[13]. A doutrina brasileira afasta as “sociedades cooperativas” do conceito “Terceiro Setor” em razão da sua organização ser pautada por objetivo de caráter econômico, visando a partilha dos resultados dessa atividade entre seus membros cooperados.
Infere-se, portanto, que, compõem o Terceiro Setor brasileiro as pessoas privadas de regime associativo ou fundacional, constituídas por particulares para realização de atividades voltadas ao interesse coletivo e desprovidas de interesses econômicos relacionados à aferição de lucro, às quais poderão obter credenciamentos (títulos ou certificados) que lhes possibilitem acesso a benefícios (ou incentivos) fiscais e repasses de recursos públicos[14].
1.2 Terceiro Setor e o Princípio da Subsidiariedade
Aspecto relevante e merecedor de comentários diz respeito à intrínseca relação existente entre as entidades do Terceiro Setor e o princípio da subsidiariedade (ou subsidiariedade social) perante a legislação portuguesa, cujo foco é estabelecer canais com a sociedade civil aptos a serem incentivados (subsidium) a assumirem a realização de atividades em prol da coletividade. A finalidade é obter a consolidação da atuação de pessoas coletivas da sociedade civil na missão de prestação de serviços e ampliação dos benefícios sociais à população. O princípio guarda estreita relação com a atividade de fomento, pois a atuação pública é limitada a impulsionar e orientar os setores privados[15] para a prestação de serviços em prol do bem-estar da população, pois procura auxiliar (e incentivar) os diversos grupos privados, representativos da sociedade civil, a promover os seus próprios objetivos sociais e, coparticipação com os demais setores da economia.
Por conseguinte, o princípio da subsidiariedade não significa dizer que o Estado deverá abster-se de instituir estrutura orgânica para prestar serviços à população. A adoção de medidas para a política pública de um Estado subsidiário não enseja a diminuição do seu papel constitucionalmente traçado[16]. Não há o afastamento do chamado compromisso constitucional com atividades essenciais, tais como os serviços de saúde[17] e de ensino[18]. O que se propõe é a existência de parcerias que possibilitem uma atuação direta por parte do setor privado.
Já no Brasil, a Lei Federal 9.637/1998 (Lei das Organizações Sociais) é fruto do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, elaborado durante o primeiro mandato do ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso. À época, considerou-se a existência de vários Órgãos ou Entidades da Administração Direta ou Indireta instituídas especificamente para prestar serviços não exclusivos. A proposta era segregar as atividades tidas por exclusivas ao Estado (serviços públicos, atividades de polícia administrativa e regulação) e as atividades não exclusivas (frequentemente assumidas pelo Estado, mas que são simultaneamente exploradas por entidades não estatais ou privadas, como por exemplo as universidades, hospitais e museus).
Logo, pode-se afirmar que – em Portugal ou no Brasil – as entidades do chamado Terceiro Setor que celebram pactos com o Estado para colaboração e prestação de serviços atuam sob a incidência do princípio da subsidiariedade, cuja função primordial é o incentivo da execução de uma dada atividade à pessoa coletiva de direito privado desprovida de fins lucrativos, que não faz parte do aparato estatal e sem pretensão de substituir diretamente tais pessoas privadas, às quais preservam sua autonomia regida pelo direito civil[19].
2 A CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP) E OS SETORES DE PROPRIEDADE DOS MEIOS DE PRODUÇÃO
O texto original do art. 89 da Constituição da República Portuguesa de 1976 (CRP) disciplinou os setores de propriedade dos meios de produção e prescreveu a transição para o socialismo sob a perspectiva da (co)existência de três segmentos: (i) público; (ii) privado; e (iii) cooperativo.
Em Portugal, até o início dos anos 70, a participação estatal no fomento de entidades envolvidas no seguimento de assistência social estava adstrita às instituições de base caritativa, o qual centrava-se preponderantemente o financiamento de organizações religiosas. A CRP impôs ao Poder Público a assunção de regulador de providências voltadas à economia social e a regulação das entidades privadas sobretudo no âmbito da assistência social. Ou seja, como à época já existia uma rede de prestação de serviços de interesse social em funcionamento, não se poderia deixar de ser considerado ante a inviabilidade de o Poder Público assumir tais estruturas (torná-las públicas) por incapacidade econômica e gerencial.
Neste cenário, surgiu o Decreto-Lei 519-G2/1979, de 29 de Dezembro, com fins a disciplinar o Estatuto das IPSS, às quais deveriam ser oriundas do seguimento privado, mas sem fins lucrativos, destinadas a “dar expressão organizada ao dever moral de solidariedade e de justiça entre os indivíduos e com o objectivo de facultar serviços ou prestações de segurança social” (art. 1º). Não obstante, o objeto do referido Decreto-Lei 519-G2/1979 restringia-se ao funcionamento de serviços ou prestações de segurança social.
Em 1982, a primeira revisão da Constituição da República Portuguesa modificou a redação do art. 63, n. 3, e ampliou os objetivos de segurança social e apoio às entidades organizadas em prol da familia, crianças, jovens, idosos e cidadãos portadores de deficiências. Assim, no dia 25.02.1983, foi publicado o Decreto-Lei 119[20], 25 de Fevereiro, com fins a adequar a legislação e a clarificar a segregação das IPSS envolvidas em atividades sociais das demais pessoas coletivas de direito privado non profit, cuja criação deve atender aos requisitos constantes do Código Civil Português.
Importante ressaltar que a segunda revisão da Constituição Portuguesa reformulou o art. 82 (para substituir o então art. 89) e inseriu o componente “social” ao setor cooperativo. Para Joaquim José Gomes Canotilho e Vital Moreira[21], a Constituição da República Portuguesa “procura gerar também uma espécie de policentrismo econômico ou de divisão de poderes a nível da constituição econômica, a qual, de algum modo, contribui para prevenir a emergência de poderes econômicos hegemônicos”. A Carta Portuguesa dispõe na parte referente à Organização Econômica (art. 80, b) que a organização econômico-social assenta-se no princípio da “coexistência do sector público, do sector privado e do sector cooperativo e social de propriedade dos meios de produção”.
Logo, seguindo-se os critérios estabelecidos no vigente art. 82 da CRP, é possível inferir a existência dos três setores de propriedade dos meios de produção da seguinte forma:
i) Setor Público: caracterizado por compreender os meios de produção cujas propriedade e gestão encontram-se sob titularidade do Estado ou de entidades submetidos ao regime jurídico de direito público;
ii) Setor Privado: constituído pelos meios de produção cuja propriedade ou gestão pertence a pessoas singulares ou coletivas privadas; e
iii) Setor Cooperativo e Social: compreendido como os meios de produção próprios e geridos por cooperativas, por comunidades locais ou por pessoas coletivas, desprovidas de caráter lucrativo e voltadas à solidariedade social.
A norma constitucional direciona-se ao Estado Português no sentido de que a política pública a ser desenvolvida deverá considerar os três setores dos meios de propriedade e produção. É dizer, o legislador constitucional prescreveu que, observadas as peculiaridades de cada área, cabe uma atuação apta a assegurar a sua coexistência e funcionalidade. Inclusive, veja-se que a Carta Portuguesa não utilizou a expressão Terceiro Setor. Em verdade, optou-se pela expressão “cooperativo e social” ou, como propõem Joaquim José Gomes Canotilho e Vital Moreira[22], a revisão constitucional de 1997 acrescentou “um quarto subsector ao sector social e cooperativo, a saber, o sector de solidariedade sem fins lucrativos”.
Já a sétima revisão da Constituição da República Portuguesa, ocorrida em 12 de agosto de 2005, alterou a capitulação do art. 63, mas preservou o compromisso de apoio, fiscalização da atividade e funcionamento das IPSS, bem como expressou que o “sistema de segurança social protege os cidadãos na doença, velhice, invalidez, viuvez e orfandade, bem como no desemprego e em todas as outras situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho”.
Recentemente, no intuito de assegurar a regulamentação do art. 82, n. 4, da Constituição da República Portuguesa, foi proposta e aprovada a Lei 30/2013[23], de 8 de maio, cujo objeto estabeleceu regras para o “sector cooperativo e social”, bem como fixou as bases gerais do regime jurídico da economia social e determinou a revisão dos regimes jurídicos das entidades por ela abrangidos, incluindo-se o das IPSS.
3 SOBRE O REGIME JURÍDICO DAS INSTITUIÇÕES PARTICULARES DE SOLIDARIEDADE SOCIAL (IPSS)
3.1 Formas de Constituição
Após trinta anos do surgimento do Decreto-Lei 119/1983[24], a Lei 30/2013 foi inserida no ordenamento jurídico português. Em consequência, o regime jurídico das IPSS revisto e consolidado pelo Decreto-Lei 172-A/2014, cuja motivação traz os seguintes aspectos adotados na reformulação do Decreto-Lei 119/1983: (i) a atuação das IPSS passa a ser pautada pelo cumprimento dos princípios orientadores da economia social, definidos na Lei 30/2013, de 8 de maio; (ii) a separação entre os fins principais e instrumentais das IPSS; (iii) a introdução de normas que possibilitam um controlo mais efetivo do Poder Público; (iv) a limitação dos mandatos dos presidentes das IPSS (ou cargos equiparáveis) a três mandatos consecutivos; (v) a introdução de regras mais claras para a concretização da autonomia financeira e orçamental, bem como para o seu equilíbrio técnico e financeiro.
O novel texto do Decreto-Lei 119/1983 tratou de manter heterogeneidade[25] das formas jurídicas aptas a fundamentar uma das espécies do gênero IPSS, a saber: (i) Associações de Solidariedade Social; (ii) Associações Mutualistas ou de Socorros Mútuos; (iii) Fundações de Solidariedade Social; e (iv) Irmandades da Misericórdia[26]. Outrossim, foi acrescido ao art. 2º, n. 2, do Decreto-Lei 119/1983, a possibilidade das instituições, nos termos da Concordata celebrada entre a Santa Sé e a República Portuguesa em 18 de maio de 2004, adotarem a forma de Institutos de Organizações ou Instituições da Igreja Católica, designadamente Centros Sociais Paroquiais e Caritas Diocesanas e Paroquiais.
Posteriormente, o Decreto-Lei 119/1983 foi pontualmente modificado pela Lei 76/2015, de 28 de julho, para “devolver” ao rol das diversas formas de IPSS as “Cooperativas de Solidariedade Social” credenciadas nos termos do art. 9º do Decreto-Lei 7/1998, de 15 de janeiro. Tais pessoas coletivas são igualmente desprovidas de fins lucrativos e baseiam-se na “entreajuda dos seus membros” (art. 2º, n. 1) para satisfação e promoção de necessidades sociais[27].
Apesar da pluralidade de “espécies” – de caráter solidário mutualista ou altruísta –, a “raiz” jurídica das IPSS amarra-se ao regime jurídico das entidades personificadas e reconhecidas pelo direito civil português, de substrato associativo ou fundacional. Estes “regimes” jurídicos servem de base para a constituição das Pessoas Coletivas de Utilidade Pública Administrativa, das Pessoas Coletivas de Mera Utilidade Pública ou das IPSS.
Registre-se, por oportuno, que o advento da legislação das IPSS no cenário das “Pessoas Coletivas de Utilidade Pública” poderia ensejar dúvidas sobre a absorção integral das demais pessoas coletivas pertencentes ao ramo. Todavia, esta pesquisa filia-se ao entendimento de que operou-se apenas uma hipotrofia das “pessoas coletivas de utilidade pública e administrativa”, sem retirá-las do sistema jurídico português. Para Diogo Freitas do Amaral[28], “a introdução no nosso direito da categoria das instituições particulares de solidariedade social acabou muitas espécies à categoria das pessoas colectivas de utilidade pública administrativa, mas não esvaziou esta de conteúdo útil”. O citado autor, noutro trecho, conclui que a “categoria das pessoas colectivas de utilidade pública administrativa continua, pois, a existir nos quadros do direito positivo português – bastante mais reduzida, é certo, mas subsiste, e nada obsta a que venha de novo a expandir-se no futuro”.
Na verdade, as recentes alterações empreendidas na legislação revelam o premente interesse do Estado Português em promover ajustes e ampliar a rede de parcerias com as pessoas jurídicas de direito privado, especialmente com aporte de recursos financeiros para a viabilização das ações sociais desempenhadas pelas IPSS. Inclusive, Decreto-Lei 165-A/2013[29], de 23 de dezembro, instituiu o Fundo de Reestruturação do Sector Solidário (FRSS) com o propósito de apoiar a sustentabilidade econômica e financeira das IPSS (e entidades similares). A medida possibilitará a manutenção e ampliação da capacidade instalada das entidades, afora disciplinar critérios[30] de acesso a instrumentos aptos ao equilíbrio e sustentabilidade econômica das entidades para o regular desenvolvimento das respostas e serviços prestados por setor que tem papel fundamental na economia e empregabilidade.
Não obstante o caráter subjacente da ação regulatória do Poder Público sobre as IPSS, o fato é que tais entidades não perdem o regime de direito privado e autonomia[31] para exercício de suas atividades por direito próprio e inspiradas nos fins axiológicos próprios, ainda que as instituições percebam contribuições estatais e estejam obrigadas a adotar mecanismos próprios do direito público[32].
Por se tratarem de pessoas coletivas criadas por particulares, tais entidades não integram a Administração Pública e não se submetem à tutela administrativa propriamente dita, ressalvados casos especialmente previstos na legislação. Por exemplo, na hipótese de fiscalização exercida pelo Estado, através dos seus órgãos e serviços competentes, para inspeção e auditoria e controle, especialmente sobre a destinação de subvenções públicas percebidas pela IPSS, nos termos da nova redação conferida ao art. 34 do Decreto-Lei 172-A/2014. É possível também identificar certa intervenção estatal para a constituição (e extinção) da IPSS, uma vez que a Administração Pública tem o dever de fiscalizar a regularidade dos atos constitutivos. No caso das associações, o Poder Público desempenha controle no momento inicial da constituição (registro notarial) e de exame entre a lavratura da escritura e o registro para aquisição de personalidade (art. 158º, 1, do Código Civil Português).
Já com relação às pessoas coletivas de caráter fundacional, o art. 158º, 2, e o art. 188º do Código Civil Português, criam restrições à sua constituição, pois caberá avaliar – para fins de reconhecimento da entidade – o preenchimento do critério “utilidade social”, além de suficiência da dotação patrimonial para a persecução do fim visado e não haja fundadas expectativas de suprimento da insuficiência. Ou seja, a instituição de uma fundação pressupõe o preenchimento de dois pontos: (i) subjetivo, pois envolve apreciação discricionária da autoridade pública quanto ao “interesse social” proposto pelo instituidor; e, (ii) objetivo, haja vista a necessidade de comprovação financeira para o seu regular funcionamento[33].
3.2 (Nova) Obrigatoriedade e Efeitos do Registro da IPSS
A relevância do registro oficial (e efeitos decorrentes do ato) das IPSS é evidenciada mormente a alteração trazida pelo Decreto-Lei 172-A/2014 ao texto original do Decreto-Lei 119/1983, o qual impôs tal obrigatoriedade às IPSS (art. 7º).
Somente após ser regularmente registrada, a IPSS passa a ostentar automaticamente a qualificação de “pessoa coletiva de utilidade pública” (art. 8º), cuja natureza do ato é de credenciamento administrativo, cujo regime jurídico centra-se em “uma outorga ou atribuição” nos dizeres do Professor Adilson Abreu Dallari[34]. Para o autor,
o credenciado recebe do Poder Público uma qualificação, uma situação jurídica ou uma prerrogativa que, sem isso, não lhe assistiria. O resultado do credenciamento é um acréscimo; o enriquecimento do patrimônio jurídico de alguém, pessoa física ou jurídica. Tal outorga se faz por meio de um ato formal. Credenciamento não se presume, embora possa estar implícito ou ser conferido a alguém sob outra forma de denominação.
O status jurídico conferido com essa certificação registral tem por função diferenciar as IPSS das demais “Pessoas Coletivas de Utilidade Pública”. Trata-se de uma demarcação estatal para organizar o sistema e agrupar quais podem fazer parcerias com a Administração, por exemplo, o acordo de cooperação (art. 4º-A). O registro das IPSS é requisito essencial para a percepção de fomento estatal. Sem o credenciamento regular e formalizado, a entidade encontra-se impossibilitada de celebrar acordo de cooperação com a Administração Pública.
Em verdade, poder-se-ia avançar um pouco na reflexão e concluir a existência de um rol de entidades do “Terceiro Setor” em sentido amplo, o qual congregaria todas as entidades privadas constituídas em prol de um interesse coletivo, desprovidas de fins lucrativos; e, em paralelo, um “Terceiro Setor” mais específico e comprometido (ou qualificado) com os ideiais de solidariedade, o que facilita a identificação das pessoas coletivas comprometidas em servir aos interesses da população. É dizer, a legislação opta pelo registro de certas entidades para facultar-lhes certos direitos de diferenciação em face das suas peculiaridades e a concessão de fomento estatal.
A título de enriquecimento do assunto sob exame, importante destacar que a legislação brasileira também adota para as entidades constituídas por particulares, sem fins lucrativos, similar modelo de credenciamento apto a assegurar-lhe status de qualificação diversa às demais pessoas coletivas com perfil filantrópico, como por exemplos os seguintes regimes jurídicos: (i) Lei Federal 91, de 28.08.1935 (Determina regras pelas quais são as sociedades declaradas de utilidade pública), a qual será revogada após o cumprimento de vacatio legis de quinhentos e quarenta dias estipulado no art. 88 da Lei Federal 13.019, de 14.12.2014, conforme redação da Lei Federal 13.204, de 14.07.2015; (ii) Lei Federal 8.742, de 07.12.1993 (Dispõe sobre a organização da Assistência Social e dá outras providências); (iii) Lei Federal 9.637[35], de 15.05.1998 (Dispõe sobre a qualificação de entidades como organizações sociais, a criação do Programa Nacional de Publicização, a extinção dos órgãos e entidades que menciona e a absorção de suas atividades por organizações sociais, e dá outras providências); e, (iv) Lei Federal 9.790/1999 (Dispõe sobre a qualificação de pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, institui e disciplina o Termo de Parceria, e dá outras providências).
Ainda sobre a legislação brasileira, a Lei Federal 13.019/2014, atualmente rotulada por “Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil”, estipula novel regime de parcerias entre pessoas privadas e o Estado, envolvendo (ou não) transferências de recursos financeiros. Trata-se de regime destinado a garantir a isonomia de acesso aos interessados em celebrar termo de cooperação ou de fomento, conferir maior margem de segurança às relações às entidades do Terceiro Setor que atuam em mútua cooperação e fomento do aparato estatal.
3.3 Atividades (atualmente) Desempenhadas pelas IPSS
Uma vez constituída e registrada, a IPSS terá atuação pautada com base nos princípios orientadores da economia da economia social previstos no art. 5º da Lei 30/2013 (Lei de Bases da Economia Social), e poderá contribuir para a concretização de direitos sociais[36] dos cidadãos nas diversas áreas (art. 1º-A do Decreto-Lei 119/1983 revisado pelo Decreto-Lei 172-A/2014): (i) apoio à infância e juventude (crianças e jovens em perigo inseridas), à família, às pessoas idosas e às pessoas com deficiência ou incapacidade; (ii) apoio à integração social e comunitária; (iii) proteção social dos cidadãos nos casos de doença, velhice, invalidez e morte; (iv) proteção social para assegurar meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho; (v) prevenção, promoção e proteção da saúde (medicina preventiva, curativa e de reabilitação e assistência medicamentosa); (vi) educação e formação profissional dos cidadãos; (vii) resolução dos problemas habitacionais das populações; (viii) outras ações de caráter social destinadas à efetivação dos direitos sociais dos cidadãos.
Vê-se, portanto, que, o embrionário modelo de IPSS, surgido nos anos oitenta com os desafios enfrentados pelo Estado para assegurar programas de seguridade social à população, sofreu grandes transformações e diversificou-se como instrumento importante na garantia dos compromissos sociais assumidos perante o modelo de Estado Social[37]. E várias são as razões para a proliferação de entidades envolvidas na realização da cidadania social, atualmente com quase quatro mil[38] instituições em funcionamento em Portugal:
i) insuficiência da estrutura administrativa pública que não tem condições de atender todos os anseios da sociedade, pois precisa criar e manter dispendiosos equipamentos, sem contar as despesas correntes e a contratação de mão de obra especializada;
ii) ainda que o Estado dispusesse de capacidade operacional para certas atividades sociais (técnica e financeira), há elementos de natureza humanitária (ideologia) que só os segmentos da sociedade civil conseguem proporcionar[39];
iii) se o setor privado tem condições de organizar-se civilmente para o exercício de atividades de interesse coletivo, torna-se descabido ao Poder Público pretender assumir tais responsabilidades (estatizá-las), ao invés de fomentá-las simplesmente[40].
Não há dúvidas que são suscetíveis de falhas no funcionamento (performance) quotidiano de certas entidades. Porém, cabe ao Estado regular e fiscalizar permanentemente o desempenho das IPSS. O que não se pode é pretender negar o modelo por razões ideológicas, até porque o seu papel como colaboradoras para o bem-estar da população é inegável. Tais entidades despontam como alternativa viável a ser incentivada por prescindir do lucro e desenvolver os setores solidários da sociedade. Não se trata de defender a substituição do Estado por pessoas coletivas filantrópicas de regime privado. Ao contrário, o importante é assegurar o bom desempenho dos talentos sociais e manter o Estado como incentivador de setores da população.
Os objetivos das IPSS concretizam-se mediante a concessão de bens, prestação de serviços e de outras iniciativas de promoção do bem-estar e qualidade de vida das pessoas, famílias e comunidades. Neste sentido, as IPSS poderão celebrar ajustes com a Administração Pública para se encarregarem de gerenciar instalações ou equipamentos pertencentes ao Estado (ou às autarquias locais), bem como a percepção de fomento mediante acordos de cooperação celebrados. O Estado deixa de ser protagonista e passa a fomentar, em dupla modalidade: (i) mediante a transferência de valores para as entidades via atos de natureza convencional; ou (ii) por intermédio da concessão de incentivos fiscais envolvendo os particulares doadores ou de isenção de tributos. Por exemplo, o art. 9º, n. 6, do Código do Imposto sobre Valor Acrescentado (IVA), isenta a IPSS nas “transmissões de bens e as prestações de serviços ligadas à segurança e assistência sociais e as transmissões de bens com elas conexas, efectuadas pelo sistema de segurança social”.
Porém, esses benefícios somente são concedidos às IPSS que se enquadrem no rol de requisitos do art. 10, a saber: (i) não distribuam lucros e os seus corpos gerentes não tenham, por si ou interposta pessoa, algum interesse direto ou indireto nos resultados da exploração; (ii) disponham de escrituração que abranja todas as suas atividades e a ponham à disposição dos serviços fiscais; (iii) pratiquem preços homologados pelas autoridades públicas ou, para as operações não susceptíveis de homologação, preços inferiores aos exigidos para análogas operações pelas empresas comerciais sujeitas de imposto; e, (iv) não estejam em concorrência direta com outros sujeitos passivos do imposto.
Por fim, frise-se que o Decreto-Lei 172-A/2014 ajustou a regra anterior do art. 1º, 2, do Decreto-Lei 119/1983, com a inserção do novo art. 1º-B, o qual disciplinou os limites de atuação das IPSS na persecução de fins secundários e atividades instrumentais aos previstos no seu objeto social, mas desde que sejam compatíveis com os fins principais. O escopo é assegurar que os excedentes econômicos das pessoas coletivas criadas pelas IPSS sejam revertidos à efetivação e custeio das suas finalidades próprias da instituição. Trata-se de forma adequada de possibilitar a ampliação da captação de recursos para a manutenção e investimentos da IPSS.
3.4 Responsabilidade Civil do Representante da IPSS
Ao longo do presente estudo, evidenciou-se a relevância das IPSS no atual cenário em Portugal. Em razão dessa participação alargada das entidades no setor da economia social, o que abrangerá cada vez mais a esfera de direitos dos indivíduos, impõe-se a adoção de medidas de qualificação e de profissionalização dos seus representantes. É preciso que os dirigentes das IPSS tenham boa formação profissional (qualificação técnica adequada) e atuem com a devida diligência e responsabilidade, a fim de se evitarem riscos e, consequentemente, danos aos particulares e à própria pessoa coletiva.
Aspecto merecedor de abordagem é a responsabilização dos representantes, agentes ou mandatários das IPSS, em razão das condutas (comissivas ou omissivas) causadoras de danos a terceiros no exercício das suas atividades.
Perante o direito português, a pessoa singular é o ser humano; e a expressão “pessoa coletiva” é utilizada nos demais casos, a exemplo das IPSS. Em nome de pessoas coletivas de direito privado, os representantes legais praticam condutas e firmam relações jurídicas, o que as torna titular de direitos subjetivos[41]. Neste sentido, o patrimônio da pessoa coletiva de direito privado responderá pelos atos e omissões dos representantes, agentes ou mandatários, cujo nexo de causalidade estabelece uma relação jurídica destinada a cumprir o dever fundamental de reparação.
As IPSS são pessoas coletivas constituídas e mantidas por particulares, o que as afasta da estrutura das pessoas jurídicas de direito público ou privado da Administração. E, não obstante os reflexos decorrente de termos de cooperação ensejarem o exercício de uma função de caráter público perante as IPSS, o Decreto-Lei 172-A/2014 inseriu expressa regra no art. 20 do Decreto-Lei 119/1983 para determinar que as responsabilidades dos titulares dos órgãos das IPSS são as definidas nos arts. 164º e 165º do Código Civil, sem prejuízo das definidas nos respectivos estatutos das instituições.
Portanto, os representantes legais (integrantes dos órgãos de administração e de fiscalização, por exemplo) integram unidades orgânicas da própria pessoa coletiva. Com efeito, a aplicação da regra do art. 165 do Código Civil Português, o qual determina a responsabilidade civil das pessoas colectivas em razão das condutas dos seus representantes, nos casos em que as ações ou omissões decorrem do exercício das funções próprias que lhes foram reservadas ou confiada.
O ônus reservado à IPSS para assumir danos[42] causados enseja desdobramentos na relação entre a pessoa coletiva e o representante. A situação deve ser submetida ao direito de regresso contra os respectivos membros, conforme regulação do art. 164 do Código Civil Português.
Em suma, no que diz respeito à exclusão de responsabilidade dos representantes, a validade da medida só se configura nem duas situações: (i) se os respectivos agentes não tiverem tomado parte na respectiva resolução e reprovarem-na com declaração na ata da sessão imediata em que se encontrem presentes; ou, (ii) caso tenham votado contra essa resolução e a decisão negativa tenha sido consignada na ata de sessão respectiva.
CONCLUSÕES
A complexidade dos interesses da sociedade contemporânea (ou “pós-moderna”) demanda a existência de canais variados de ação pública ou privada para a garantia dos direitos sociais.
Em Portugal, o exame do regime jurídico desenhado pela Constituição da República Portuguesa revela o grau de importância reservado ao estabelecimento de entidades privadas (sem fins lucrativos) para assumirem diversas áreas do setor da economia social, pois a ordem econômica prevê para os meios de produção a coexistência dos setores: o público, o privado e o cooperativo e social.
A presente investigação inferiu que o modelo inicialmente estabelecido no Decreto-Lei 119/1983, o qual se restringia a regulamentar a atividade de entidades destinadas a assegurar programas de seguridade social à população, foi ampliado ao longo dos últimos trinta anos para viabilizar a diversificada participação de segmentos importantes, a exemplo inter alia dos serviços de apoio à infância e juventude (crianças e jovens em perigo inseridas), à família, às pessoas idosas e às pessoas com deficiência ou incapacidade, bem como a educação e a formação profissional dos cidadãos ou resolução dos problemas habitacionais das populações.
À luz dos argumentos expostos, verificou-se que o advento da recente Lei 30/2013 possibilitou a revisão do regime jurídico das IPSS, nos termos do Decreto-Lei 172-A/2014, o qual manteve a heterogeneidade da natureza das pessoas coletivas passíveis de se enquadrarem como IPSS, bem como revelou a intenção do legislador em preservar o modelo original de entidades instituídas por particulares para atuação autônoma em parceria com a Administração.
Conclui-se, portanto, que, perante o sistema jurídico português, a participação na economia social das entidades do chamado Terceiro Setor (a exemplo das IPSS) revela-se favorável ao bem-estar da população, pois se posiciona como uma via paralela ao Estado para o alcance de resultados sociais positivos e permite o desenvolvimento de setores da sociedade concebidos sob regime jurídico de direito privado (civil).
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Notas de Rodapé
[1] Graduado pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Mestre em Direito de Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) e Doutorando em Direito de Estado pela Universidade de Coimbra (UC/PT). Procurador do Estado do Rio Grande do Norte.
[2] Registre-se, por oportuno, que o Decreto-Lei 119/1983 havia sido alterado pelos seguintes veículos normativos: (i) Decreto-Lei 9/1985, de 9 de janeiro; (ii) Decreto-Lei 89/1985, de 1 de abril; (iii) Decreto-Lei 402/1985, de 11 de outubro; e (iv) Decreto-Lei 29/1986, de 19 de fevereiro.
[3] “Such social institutions are variously referred to as ‘non-profit’, ‘voluntary’, ‘civil society’ or ‘non-governmental’ organizations and collectively as the ‘third’, ‘voluntary’, ‘non-profit’ or ‘independent’ sector. Types of organizations commonly included under these terms are sports and recreation clubs, art and cultural associations, private schools, research institutes, hospitals, charities, religious congregations and faith-based organizations, humanitarian assistance and relief organizations, advocacy groups and foundations and charitable trusts. Such non-profit institutions are currently covered by SNA; however, SNA does not group them into a single economic sector”. Vide também: Salamon, Lester. The voluntary sector and the future of the welfare state. Nonprofit and Voluntary Sector Quartely, 1989. v. 18, p. 1 e ss.
[4] Vide CORDEIRO, António Menezes. Da Responsabilidade Civil dos Administradores das Sociedades Comerciais. Lisboa: Lex, 1997. p. 318.
[5] Curso de Direito Administrativo. 4. ed. Coimbra: Almedina, 2015. v. I, p. 604.
[6] AGUILLAR, Fernando Herren. Direito Econômico. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 242.
[7] LOPES, Licínio. As Instituições Particulares de Solidariedade Social. Coimbra: Almedina, 2009. p. 123.
[8] Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público e Outras Modalidade de Prestação de Serviços Públicos. São Paulo: LTr, 2000. p. 218.
[9] CHAVES, Rafael; MONZÓN, José Luis. A Economia Social na União Europeia – Síntese, [International Center of Research and Information on the Public and Cooperative Economy (CIRIEC) e Comité Económico e Social Europeu], a. 2007, p. 13.
[10] LOPES, Licínio. As Instituições…, op. cit., p. 219.
[11] Vide GASPARINI, Diogenes. Associação de Utilidade Pública: Declaração. Revista de Direto Público. São Paulo: RT, n. 77, p. 170, jan./mar., 1986.
[12] ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Terceiro Setor. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 13.
[13] Idem, p. 97.
[14] Vide COSTA, José Marcelo Ferreira. Organizações Social: Comentários à Lei Federal 9.637, de 15.05.1998. Coleção Direito Administrativo Positivo (Coord. NOHARA, Irene Patrícia. MORAES FILHO, Marco Antônio Praxedes de). São Paulo: Atlas, 2015. v. 14, p. 12.
[15] Vide VIOLIN, Tarso Cabral. Terceiro Setor e as Parcerias com a Administração Pública: Uma Análise Crítica. Belo Horizonte: Fórum, 2006. p. 40.
[16] REGULES, Luiz Eduardo Patrone. Terceiro Setor, Regime Jurídico das OSCIPs. São Paulo: Método, 2006. p. 70.
[17] O art. 64, n. 1 e n. 2, da Constituição da República Portuguesa, impõe ao Estado na adoção de política pública o dever de assegurar a todos o direito à proteção da saúde e a concepção de um sistema de serviço nacional de saúde universal geral e, tendo em conta as condições econômicas e sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito o ensino básico universal, obrigatório e gratuito.
[18] Por exemplo, o art. 74, n. 1, “a”, da Constituição da República Portuguesa, impõe ao Estado na adoção de sua política pública o dever de assegurar a todos o ensino básico universal, obrigatório e gratuito.
[19] LOPES, Licínio. As Instituições…, op. cit., p. 346.
[20] O Decreto-Lei 119/1983 revogou o Decreto-Lei 519-G2/1979, o qual tinha objeto mais restrito a “facultar serviços ou prestações de segurança social”.
[21] Constituição da República Portuguesa Anotada. 4. ed. Coimbra: Coimbra, 2014. v. I, p. 958.
[22] Idem, p. 989.
[23] Lei de Bases da Economia Social.
[24] O Decreto-Lei 119/1983 foi ainda modificado pela Lei 76/2015, de 28 de julho, para inserir as Cooperativas de Solidariedade Social no elenco das IPSS.
[25] LOPES, Licínio. As Instituições…, op. cit., p. 94.
[26] Registre-se, por oportuno, que a redação original do Decreto-Lei 119/1983 incluía – entre as formas jurídicas passíveis de concepção das IPSS – as seguintes: (i) as associações de solidariedade social; (ii) as associações de voluntários de ação social; (iii) as associações de socorros mútuos; (iv) as fundações de solidariedade social; e (v) as irmandades da misericórdia.
Foi eliminada a referência às associações de voluntários de ação social, sendo que se acrescentou a designação “associações mutualistas ou de socorros mútuos”.
[27] O art. 2º do Decreto-Lei 165-A/2013 estipula as áreas de atuação das Cooperativas Sociais, tais sejam: (i) Apoio a grupos vulneráveis, em especial a crianças e jovens, pessoas com deficiência e idosos; (ii) Apoio a famílias e comunidades socialmente desfavorecidas com vista à melhoria da sua qualidade de vida e inserção socioeconômica; (iii) Apoio a cidadãos portugueses residentes no estrangeiro, durante a sua permanência fora do território nacional e após o seu regresso, em situação de carência econômica; (iv) Desenvolvimento de programas de apoio direcionados para grupos-alvo, designadamente em situações de doença, velhice, deficiência e carências econômicas graves; (v) Promoção do acesso à educação, formação e integração profissional de grupos socialmente desfavorecidos.
[28] Curso de Direito…, op. cit., p. 590-591.
[29] Alterado pela Lei 75-A/2014, de 30 de setembro, e pelo Decreto-Lei 44/2015, de 1º de abril.
[30] O Ministério da Solidariedade, Emprego e Segurança Social expediu Portaria 031/2014, de 5 de fevereiro, para definir as condições de acesso ao FRSS, os termos e as condições da concessão do apoio financeiro e a forma de reembolso. A título de exemplo, citam-se: (i) para candidatura, a instituição deve comprovar regular constituição e registro há pelo menos três anos registrada; (ii) encontrar-se adimplente sob ponto de vista da seguridade social e fiscal; (iii) a instituição não poderá se candidatar se estiver em estado de insolvência, de liquidação, de cessação de atividade, sujeita a qualquer meio; entre outras.
[31] O art. 4º, 4, do vigente Decreto-Lei 119/1983, com alterações do Decreto-Lei 172-A/2014, determina que o “apoio do Estado não pode constituir limitação ao direito de livre atuação das instituições”.
[32] Por exemplo, o art. 23, 1, do vigente Decreto-Lei 119/1983, com alterações do Decreto-Lei 172-A/2014, determina que as empreitadas de obras públicas das IPSS seguirão o estabelecido no Código dos Contratos Públicos, salvo se a empreitada não exceda vinte e cinco mil euros. Ainda o mesmo dispositivo exclui de aplicação da regra as instituições que não recebam apoios financeiros públicos.
[33] O art. 188, 3, do Código Civil Português, determina, na hipótese de ser negado o reconhecimento da fundação por insuficiência do patrimônio, o pedido o registro da instituição sem efeito, se o instituidor for vivo. Todavia, se o mesmo for falecido, os bens insuficientemente reservados à instituição da fundação deverão ser destinados a uma outra associação ou fundação de fins análogos que a entidade competente designar, salvo disposição do instituidor em contrário.
[34] Credenciamento. In: MELLO, Celso Antonio Bandeira de (Org.). Direito Administrativo e Constitucional – Estudos em Homenagem a Geraldo Ataliba 2. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 52.
[35] No Brasil, as Organizações Sociais de natureza associativa ou fundacional sem fins lucrativos ou econômicos (art. 44, I e III, do Código Civil Brasileiro) que desejem se qualificar como Organização Social, deverão tratar (ou adaptar) expressamente no seu Estatuto Social inscrito no Registro Civil de Pessoas Jurídicas (art. 114, I, da Lei Federal 6.015, de 31.12.1973) sobre a atribuição para exercer pelo menos uma das atividades relacionadas no art. 1º da Lei Federal 9.637/1998, sob pena de indeferimento objetivo do pedido de qualificação. Opera-se certa interferência da sua autonomia gerencial e liberdade associativa, pois o art. 3º, I, “a”, da Lei Federal 9.637/1998, determina a participação dos agentes públicos no Conselho de Administração, entre vinte e quarenta por cento dos membros do colegiado.
[36] “Um Estado social que não queira destruir os fundamentos da liberdade e da diversidade deve não apenas respeitar, mas também promover a articulação com as entidades da sociedade civil. Este é o terreno por excelência da lógica do dom, do desenvolvimento de matrizes de comunhão, campo do dar pelo dar e não do ‘dar pelo dever’, próprio do Estado, e do ‘dar para ter’, marca do mercado”. […] “Princípio fraternidade que envolve não só o Estado, mas, desde logo, também as entidades da sociedade civil” (LOUREIRO, 2010, p. 26-27).
[37] “[…] finalmente, foram proclamados os direitos sociais, que expressam o amadurecimento de novas exigências – podemos mesmo dizer, de novos valores –, como os do bem-estar e da igualdade não apenas formal, e que poderíamos chamar de liberdade através ou por meio do Estado”. (BOBBIO, 2004, p. 17)
[38] Dados extraídos do Relatório do Gabinete de Estratégia e Planejamento, Ministério da Solidariedade e Segurança Social de Portugal. O documento contabiliza as entidades não lucrativas sob as Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS), outras entidades sem fins lucrativos (entidades equiparadas a IPSS e outras organizações particulares sem fins lucrativos), as Entidades Oficiais, que prosseguem fins de ação social, os Serviços Sociais de Empresas e a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) (<http://www.cartasocial.pt/pdf/csocial2014.pdf>. Acesso em: 6 jan. 2016).
[39] NABAIS, José Casalta. Algumas Considerações sobre a Solidariedade e a Cidadania. Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1999. p. 153.
[40] LOPES, Licínio. As Instituições…, op. cit., p. 340.
[41] CORDEIRO, António Menezes. Da Responsabilidade Civil dos Administradores das Sociedades Comerciais. Lisboa: Lex, 1997. p. 318.
[42] Sobre a delimitação dos danos passíveis de ressarcimento à luz do Código Civil Português, vide MONTEIRO, Jorge Ferreira Sinde. Responsabilidade por Conselhos, Recomendações ou Informações. Coimbra: Almedina, 1989. p. 175 e ss.