Do Paradigma da Racionalidade Moderna à Era da Complexidade: As Trilhas da Ética na Sociedade Moderna
Dirce Nazaré de Andrade Ferreira[1]
Aloísio Krohing[2]
Resumo: O paradigma racional que deu vigor às ciências, conquanto tenha colaborado para tonificá-las como formas fidedignas de socializar informação de uma geração a outra, também imprimiu critérios de exatidão e mensuração. As ciências humanas, na esteira de inserção desse modelo, foram revestidas de padrões verticalizados nos quais a ética quase não toma parte. A avulsão do novo paradigma complexo advindo da modernidade rompe com critérios de previsibilidade e irrompe nova forma de pensamento circular, no entanto, embora se considere novo alvorecer na ciência, ela também traz consigo uma ausência e distorção da ética. Busca-se afirmar a tese da ética com matriz rizomática dos direitos humanos fundamentais.
Palavras-chave: ética. Racionalidade moderna. Complexidade.
Abstract: The rational paradigm that gave force to the sciences, although it has contributed to toning them as ways to socialize reliable information from one generation to another, also printed criteria and measurement accuracy. The human sciences in the wake of integration of this model were coated uprighted patterns in which human ethics hardly take part. Avulsion of the new paradigm was originated from the systemic complexity of the criteria of predictability breaks new way of doing erupt circular thinking, but even when considering new dawn in science, she also brings a lack of human ethics.
Keywords: Ethic. Modern rationality.Complexity.
INTRODUÇÃO
As características do paradigma racional que dominou o início da era moderna revelam uma verticalidade, uma vez que a ciência precisava de conceitos exatos para comprovação de seus postulados. Ao inserir mensurabilidade e certeza nos domínios da ciência, ela própria se mantém distanciada dos objetos que analisa, na tentativa de exercitar neutralidade. Assim, afastamento e neutralidade foram características presentes na pauta científica, na perspectiva de imprimir previsibilidade àquilo que fosse conexo ao campo de saber.
Desta forma, mensurabilidade e racionalidade revestiram a ciência de exatidão, preconizando verdades científicas absolutas, contribuindo com o percurso determinista para garantir rigor. Submetidas ao rigor onipotente da ciência exata, os postulados derivativos de suas matrizes refletiam dogmas inflexíveis que serviam como diretrizes aos demais campos de saber, incluindo-se, dessa forma, as ciências humanas.
Essa vertente funcional muito contribuiu com as ciências humanas na perspectiva de revestimento científico, e até hoje parece adensar a construção dos conceitos dessa área. Nas ciências humanas o paradigma racional fundado na boa ordem através do exercício da razão se aproximou do determinismo, fundamentando seus desdobramentos na tensão dialética da objetividade sobre a subjetividade. Em contraponto com a fluidez das ciências humanas o isomorfismo dos postulados exatos subtrai a importância das experiências empíricas e cotidianas e neste vácuo preenche as subjetividades com o positivismo enquanto a filosofia da regulação lógica, como forma de certeza e previsibilidade.
Ocorre que, no final do século XIX, o chamado paradigma da modernidade perfaz novo giro na ciência, eclodindo então, o modelo orgânico como forma de pensar a ciência de forma mais horizontalizada. Assim, nessa nova pauta conceitual de conceitos de totalidade e pensamento circular, e principalmente a metáfora da pirâmide científica, vai sendo adicionada percepção à visão de ciclos ou redes neurais complexas que se entrelaçam de forma dialética, gerando formas multíplices, no entendimento científico.
Com isso, este texto tem como objetivo: analisar que tanto o paradigma racional quanto o modelo orgânico da era complexa tornam a ética serva de si mesma, podendo gerar desigualdades nas sociedades, produzindo fossos culturais, financeiros e sociais, e opacizados princípios de dignidade humana, negligenciando altruísmo e alteridade. Em verdade, na esteira dos novos tempos produziu-se uma clivagem entre homem e sociedade, gerando crises éticas, as quais, Edgar Morin caracteriza como elementos típicos da complexa sociedade atual.
Trata-se, portanto, de uma pesquisa bibliográfica qualitativa que dialoga com os conceitos de ética em Edgar Morin, na perspectiva de responder às seguintes questões:
– Quais as características do paradigma racional da ciência e de que forma ele se apresenta?
– Quais as características da era da complexidade?
– Quais os impactos sofridos pela eticidade tanto no paradigma racional quanto na era da complexidade?
1 DO PARADIGMA RACIONAL À ORGANICIDADE DA ERA COMPLEXA
O desenvolvimento da história se perfaz por ondas dialéticas que ora se mesclam, ora se separam, trazendo nessa interlocução elementos dos dois momentos que se interpenetram formando novas roupagens. Pensar o desenvolvimento da ciência a partir do paradigma racional irrompido pelas luzes da revolução francesa significa traçar um caminho lógico refletido pela combinação da tríade ordem, separação e razão.
O marco político delimitador desse momento histórico assim procedeu com a chancela da própria sociedade burguesa da época, na tentativa de expurgar nuances do velho regime e florescer o novo momento político-social. Desse fenômeno de transformação social irrompem ondas protetivas do próprio momento político que funcionam como elementos constritivos, como forma de impedir possíveis retroações ao momento político anterior.
É desta protetividade que os embriões racionais irrompem na ciência, ramificando-se na sociedade e fazendo dela serva, isto porque a ideologia de onipotência gerada pelo racionalismo evidencia incontestáveis movimentos de exatidão no seio da própria sociedade científica. Daí dizer-se que se abstrai o elemento teocêntrico subjetivo para, em seu lugar, alocar noções antropocêntricas jungidas aos conceitos de racionalidade e certeza. Morin (1999, p. 22) destaca que “no domínio da ciência […] havia três idéias poderosas que davam certeza de um conhecimento verdadeiramente pertinente: […] a ordem, a separação e a razão”.
Assim avultam no seio da ciência conceitos determinísticos, e como exemplo desse modelo lógico citamos a experimentação – cuja mensurabilidade é concebida como consequência, tornando-se um dos requisitos da ciência moderna. Assim o modelo determinístico calcado em códigos binários instaura-se na ciência como forma de ação, uma vez que padronizar significa gerar noções de certeza na ciência, na perspectiva de replicar modelos que confirmassem fórmulas anteriores para confirmar postulados e torná-los universais. Fez-se assim na expectativa de extrair elementos empíricos e noções de senso comum considerados instrumentos místicos, com pouca confiabilidade.
Pela ótica racional se concebia na ciência posturas verticalizadas, na tentativa de preservação da ordem científica e geração de axiomas exatos. Morin (1999, p. 22), nesta linha de entendimento, destaca que na visão racionalista “o universo é ordenado. O universo obedece a um determinismo universal”. São do paradigma da racionalidade moderna, a testagem fenomênica pela experimentação e observação como procedimentos racionais, sendo que essas ações subtraem o próprio fenômeno do meio social para análise separada. A extração contextual implica excisar o objeto de análise para purificá-lo e enfim aplicar-lhe o método científico pela neutralidade, sob o controle cerrado do cientista enquanto detentor de saber.
Esses procedimentos racionais implicam, na verdade, experiências ou procedimentos para gerar leis universais acerca do fenômeno observado. Morin (1999, p. 23) com propriedade destaca que, o cerne dessa lógica, não é apenas de dedução, ou indução, mas também “[…] obediência à razão”.
Na verdade, embora tenha contribuído sobremaneira para desenvolver a ciência, o racionalismo implementa esferas conceituais mecanicistas nas ciências, uma vez que opera pela lógica cartesiana da ordem exata. Essa exatidão jungida à análise fragmentada do fenômeno traça com ele olhares neutrais como se fosse possível a visão isolada de cada elemento. Desta forma, a fragmentação em partes e análise por fases dominaram a ciência. Isto porque na visão de Morin (1999, p. 22) “o conhecimento era também baseado no princípio da separação”. Na verdade, o olhar isolado está próximo a outra característica racional: o atomicismo, implicando considerar cada parte isolada de seu meio, negligenciando as conexões internas e externas que o fenômeno gera quando se movimenta.
Além de pouco considerar as interlocuções do fenômeno com seu meio social, o paradigma racional faz análise segmentada dos elementos estudados entrecortando suas partes em outras partes, fragmentando cada uma delas e tomando-as como elementos isolados de si mesmo e de seu contexto. Instaura-se a prática do hermetismo nas ciências e elas se fecham ao meio social como se cada área do conhecimento atuasse isoladamente.
Assim cada parte olhada de per si constitui fatia não comunicante com as demais. Morin, (1999, p. 22-25) ao analisar esse aspecto, ressalta que o conhecimento também recebeu fortes influências dos princípios cartesianos da análise e síntese, conjugando segmentação e análise isolados do contexto. São desses movimentos as correntes científicas ou áreas de especializações dividindo cada ciência em multipartições, cada parte da ciência representando circunscrição de domínio ou área de atuação profissional com a perspectiva de mapear e aprofundar cognição naquela área.
Morin (1999, p. 22) ainda destaca que “era inteiramente legítimo circunscrever um domínio disciplinar para fazer progredir o conhecimento sem levar em conta as [suas] inferências”. Ocorre que essa visão microscópica do paradigma racional se traduz em parcialidade fenomênica, uma vez que negligencia sua capacidade de interlocução. Assim a visão racional pode implicar, certas vezes, em abordagem incompleta de análise, pois se perfaz por conceitos de disjunção e redução. Morin (1999, p. 22) ainda destaca que, “de resto, a própria idéia de experimentação significa separar”.
Não há como deixar de perceber formas reducionistas neste modelo que apregoa decomposição simplista de elementos, retirando-os do meio e depositando-os em jaulas mentais, como se fosse possível trabalhar de forma insular nas ciências sociais.
Ocorre que “a partir do início do século [ XIX] surge algo de realmente revolucionário no campo da ordem e da certeza […] Boltzman autenticou um fenômeno […] traduzido como tendência à desintegração do que é ordenado ou integrado”. Assim, no interior das ciências avulta novo paradigma denominado “orgânico” ou era da incerteza, isto porque a lógica algorítimica e sua determinação lentamente ocupam espaço ao lado da rotinização mecânica que conformou às ciências humanas até o momento anterior. Morin (1999, 23) leciona que “nosso universo é inseparável da desordem” e ela ocorre por ser integrativa, fato que o modelo racional anterior negligenciava.
Desta forma a visão da ciência isolada no vácuo perde tônus, sendo lentamente adicionados a ela os conceitos de expansionismo, sustentando-se que os fenômenos são partes de outros macrofenômenos maiores, e que em sua interrelação haverá de ser analisado o todo complexo que o compõe. Assim, refuta-se desde logo a relação causal simplista do modelo racional.
Hock (2000 p. 17), ao criticar os teoremas racionais, dá novo alento discorrendo sobre a avulsão da era caórdica e neste aspecto destaca que “[…] o comando e o controle da era industrial nos últimos quatrocentos anos cresceram a ponto de dominar a vida […] política e social estão cada vez mais irrelevantes diante das explosivas diversidade e complexidade da sociedade”.
Assim, os fenômenos perseguem objetivos e o fazem imersos em campos sociais pela trajetória integrativa com o meio. Nessa integração há dialética, sendo que desordem e incerteza são forças que emergem de forma recorrente, podendo alterar o equilíbrio; logo não há que se falar, somente, em conceitos de exatidão na ciência, tampouco destacar determinismo como se pretendera no modelo anterior.
Por via contrária, na esfera orgânica a noção de conjunto como parte dinâmica apresenta tendência à desintegração, a ameaça da perda de equilíbrio é constante devido à contextualização ou elemento contingencial que envolve os fenômenos sociais. A razão orgânica é aberta e dada ao diálogo, daí sua caracterização policêntrica. A lógica orgânica dialoga com ordem e desordem, assim Morin (1999, p. 24) apresenta o conceito de renovação epistemológica que se inicia com as obras de Bachelard e Popper. Este último critica com veemência o método indutivo, destacando que ele não induz à certeza absoluta como pretendera o racionalismo.
Desta forma, desordem e incerteza são elementos que rompem com a causalidade linear do modelo racional inaugurando o que Morin denomina de pensamento em espiral, uma visão transdisciplinar que faz a ciência dialogar dialeticamente tanto com a subjetividade quanto a objetividade
2 A ERA ORGÂNICA DA COMPLEXIDADE
A palavra complexidade liga-se ao elemento de transformação indefinida, gerando novos contornos à ciência; Moigne (1999, p. 50) nesse aspecto, ensina que aconteceram “alguns deslocamentos explícitos dos referencias epistemológicos” que davam suportes à ciência racional. Inicia-se, assim, novo giro paradigmático na ciência desafiando-a a pensar novas perspectivas.
A metáfora anterior da sociedade piramidal representada por uma figura entrecortada por camadas hierárquicas escalonadas parece ter sido substituída pela figura circular. Esta remete ao movimento em rede, abrangendo tempo e espaços simultâneos, embora multilocalizados, e que apresenta problemas plurais, cujas colorações recebem matizes diferenciados a partir do meio social onde emergem. Moigne (1999, p. 47) ao abordar o tema enfatiza que “precisamos nos reconhecer encerrados em uma das espirais cognitivas preconizadas pelos escolásticos e pelos lógicos clássicos”, e que esse paradigma racional não consegue responder às demandas multifacetadas da era atual.
A velocidade com que as redes de informações se deslocam no universo gera problemas multifacetados que exigem pensamento neural e inteligência múltipla para facear desafios. Vive-se a era da complexidade, um tempo de incertezas que na verdade é produto de ações cognitivas e requer intelecções complexas para lidar com desafiantes conceitos abstratos, e que às vezes tem eclosão em várias partes simultâneas do globo terrestre, exigindo respostas diferenciadas.
Moigne (1999, p.54) ressalta que “essa passagem […] do analítico ao geno-funcional complexo […] é a revolução paradigmática que irá legitimar os enunciados da teoria científica”. Assim instaura-se novo paradoxo na ciência, pois esta, absorve conceitos dos paradigmas racional e orgânico se transformando em novo modelo complexo e diferenciado de seus anteriores.
Desta forma as respostas emanadas pelos antecessores já não mais respondem ao novo modelo neural da rede de interações da era complexa. Santos (2002, p. 2) sobre essa transformação ressalta que “estamos perante um fenômeno multifacetado com dimensões planetárias […] interligadas de modo complexo, por esta razão, as explicações monocausais e as interpretações monolíticas parecem pouco adequadas a este fenômeno”. Morin (2000 p, 4) por sua vez, destaca a ideia de redes para demonstrar as metáforas sociais, e ressalta que “[…] uma das idéias mais importantes que parece ter surgido nos últimos 50 anos foi a da circularidade”.
Neste aspecto, a teoria complexa dialoga com os teoremas lineares de causalidade, instituindo a visão de retroatividade no círculo, uma vez que enquanto ciclo de eventos não verticalizados, os fenômenos são porosos ao meio ambiente e se autoregulam, pois são autônomos. Morin (2000, p. 4) ensina que “esta autonomia, provocada pela regulação (circularidade retroativa), é ela própria produzida por uma circularidade mais intensa, chamada circularidade autoprodutiva”.
A visão da complexidade reflete principalmente a visão totalizante da ciência para entender os fenômenos e suas interconexões com as partes. Assim, a teoria da complexidade se opõe à visão atomicista de entendimento parcelado defendida com tanta veemência pelo paradigma racional. Morin (2000, p. 3) nessa linha de entendimento assevera que,
não podemos, portanto, compreender o ser humano apenas através dos elementos que o constituem. Se observarmos uma sociedade, verificaremos que nela há interações entre os indivíduos. Mas essas interações formam um conjunto e a sociedade, como tal, é possuidora de uma língua e de uma cultura que se transmite aos indivíduos; essas emergências sociais permitem o desenvolvimento destes.
Para o autor, a inteligência que separa o mundo em fragmentos também fraciona o saber em espaços herméticos e que no mais das vezes ali se encerram e destaca que o conhecimento insular se fragmenta gerando fronteiras calcificadas, no interior do saber especializado operando-se outro fenômeno mais agudizante – a tendência a autorreplicação – isto pode ocorrer por que as ilhas de saber no geral dialogam somente com seus iguais. Então na especialização perde-se a riqueza da diversidade e a criatividade tende a se esmaecer, permanecendo somente a replicação ou reprodução de fazeres.
É de se destacar também que a especialização pode gerar atrofia na própria forma de pensar a ciência, uma vez que o isolacionismo pode eliminar diversidade uma vez que exclui conexões entre outras áreas, e entre o meio social. Desta forma na visão de Morin (2000, p. 12) “a especialização […] rejeita os laços e a intercomunicação do objeto com o meio […] e assim opera uma cisão”. O autor destaca que, neste modelo burocrático de saber ocorrem fraturas no interior da ciência, à medida que não se opera dialogicidade entre os campos diversificados.
Por via contrária, a complexidade pode ser representada por ciclos – todavia aqui se refuta a ideia de completude e equilíbrio mecânico assinalada pelo paradigma racional –, ou seja, decursos incompletos que se retroalimentam, uma vez que não tem limite de amplitude, tampouco definição exata. Moigne (1999, p. 49) destaca que “a complexidade surpreende pela irrealidade, ou mais que isso, pela invisibilidade de seu conteúdo: é uma noção não-positiva por excelência”.
Desta forma, na complexidade os problemas apresentam níveis de variabilidade maior e forças contrárias que modificam o interior de seus elementos em ritmos velozes de transformação. Logo, a natureza essencialmente dinâmica da sociedade complexa requer respostas multidimensionais envolvendo teorias multidisciplinares que se interpenetram e mutuamente se auxiliam.
Ademais, na era da complexidade, há que se destacar o caráter contingencial dos fenômenos, significando que o locus onde eles ocorrem fornece seus matizes multifacetados. Daí o conceito de diversidade nas ciências, significando convivência com polos antagônicos de roupagens diferenciadas, para delas extrair elementos plurais e fornecer respostas. Morin (2000, p. 5), ao defender o caleidoscópio da complexidade, ressalta com propriedade que, “Compreender a unidade e a diversidade é muito importante hoje, visto estarmos num processo de mundialização que leva a reconhecer a unidade dos problemas para todos os seres humanos onde quer que estejam; ao mesmo tempo, é preciso preservar a riqueza da humanidade, ou seja, a diversidade cultural”.
Assim, pensar complexidade significa “repensar a consciência moderna e reformar-se” (CARVALHO, 1999, p. 111), pois tomada pela sensação de espanto, a própria ciência atônita, se desorienta. Isto por que a desterritorialização gera policentrismos de saberes combinados que se mesclam na dialética da própria complexidade e riqueza da ciência. Isso significa geração de desordem para reorganização de saberes, descritos em Morin, (2000, p. 15), como, “vetores interconexos que orientam, apontam tendências e sinalizam diretrizes”, sem jamais “ter a pretensa capacidade de guiar o pensamento humano”, completa o autor.
Neste aspecto Morin (2000, p. 15) destaca que pensar complexo significa orientar-se pela visão do elemento integral implícito nos fenômenos. Assim, o todo é maior que a soma das partes, formando na verdade sinergia entre seus elementos, tanto que a constelação de forças que move o fenômeno é o efeito multiplicador dessas somas.
Já “o princípio hologramático” (MORIN, 2000, p. 16) do representa a própria noção de conjunto enquanto pensado em noções envoltas no conceito de totalidade do fenômeno e suas imbricações com o meio social. Ressalta Morin (2000, p.15) que a metáfora do holograma “coloca em evidência o aparente paradoxo dos sistemas complexos, onde não somente a parte está no todo, mas o todo se inscreve na parte”.
Assim o fenômeno complexo opera de forma teleológica, buscando objetivos e estabelecendo o “princípio do anel retroativo” pelo qual a teoria da complexidade busca equilíbrio rompendo com o princípio da causalidade linear através do anel de retroação. Assim Morin (2000, p. 15) conclui que dentre outros princípios “a dialógica entre ordem/desordem e organização através de inúmeras inter-retroações” permite assumir racionalmente a associação de noções contraditórias para que seja possível entender a complexidade dos fenômenos analisados. Essa percepção de forças contrárias na ciência é possível devido à expansão do saber, que relacionado à informação democratiza acesso de conhecimento na sociedade complexa.
Assim na era da complexidade a geração de saber se desvela como fenômeno dos mais complexos. Isto porque o acúmulo de saberes não implica necessariamente conhecimento quando preenche desordenadamente espaços mentais humanos sem que haja reflexão sobre eles. Carvalho (1999, p. 111) ao discorrer sobre informação na era planetária ensina que, “[…] nesse processo as contribuições advindas das teorias dos sistemas, da cibernética e da teoria da informação serão sempre salutares, embora devam ser incorporadas de maneira cautelosa”. Daí a complexidade da sociedade de informação, que ao mesmo tempo que disponibiliza saberes, também pode se esvaziar da faculdade de pensar.
Morin (2003, p.12) neste aspecto chama a atenção para a dispersão da informação enquanto elemento desconectado do mundo; quando assim procede é elemento e alienação. Daí a necessidade de reflexão do sujeito enquanto cidadão interligado à sua sociedade e ao mundo de informações que o circunda. O saber recebido deve, portanto, vir acompanhado do exercício da dúvida, sustentáculo da independência e atividade criativa do sujeito cognoscente.
Neste aspecto Morin (2003, p. 18) ensina que “[…] trata-se desde cedo, de encorajar, de instigar a aptidão interrogativa e orientá-la para os problemas fundamentais de nossa própria condição e de nossa época”. Logo, o exercício do pensamento é o bem mais valioso da sociedade complexa, é dele a faculdade de criticar, colocar-se diante dos fenômenos como filtro mental de absorção das informações. Diante disso, passamos a ética, que também sofre modificações e passamos a discorrer sobre ala na sociedade moderna.
3 A MODERNIDADE E O ESGARÇAMENTO DO CONSTRUTO ÉTICO
Desde o final do século XIX a sociedade mundial experimenta fenomenal processo de complexas mudanças. O desenvolvimento científico preconiza queda vertiginosa de taxas de mortalidade e eleva longevidade da população. Neste patamar de desenvolvimento, Santos (2002, p. 2) ensina que as interações transnacionais conheceram uma intensificação dramática, desde a globalização dos sistemas de produção e das transferências financeiras, à disseminação, a uma escala mundial, de informação e imagens através dos meios de comunicação social ou às deslocações em massa de pessoas, quer como turistas, quer como trabalhadores migrantes ou refugiados.
É de se destacar também que a descoberta de inovações da sociedade complexa elevou a qualidade de vida das pessoas semeando esperança no futuro, isto implica oferecer bem-estar à população. Todavia, Hobsbaum (1994, p.15) ao discorrer sobre o século XX, escreve que houve tanta melhoria que “durante décadas, em meados do século, chegou a parecer que se havia descoberto maneiras de distribuir pelo menos parte da enorme riqueza com certo grau de justiça entre os trabalhadores dos países mais ricos”. Desta forma, tomados como medidas comparativas ao século anterior, os séculos XIX e XX representam lapsos temporais marcados por grandes revoluções, complementa o autor.
Quanto à teoria das comunicações, a base técnico-científica alargada transformou o mundo das comunicações e transportes, ofertando exponenciais informações em tempo real, fator que expressa sensação de tempo comprimido e encurtamento de distâncias. Quanto à velocidade de informações Duarte (2006, p. 11) assevera que “vivemos em um mundo globalizado, em que quase todos somos partidários da máxima liberdade, autonomia e criatividade” e sobretudo pela sensação de esperança e bem-estar que povoa as liberdades políticas das sociedades democráticas no mundo.
Este fator político (a democratização) foi alcançado na maioria dos países do ocidente, mitigando a sensação de não liberdade e inserindo populações à participação na vida pública, na perspectiva de condução de seu tempo e destino, significando liberdade de expressão. Para Duarte (2006, p. 11) “coube a nós [do nosso tempo] a descoberta da fórmula definitiva para o melhor regime político, a democracia representativa […]”, ela procurou reedificar nova ordem, alçando a participação como valor estruturante da sociedade.
Todavia, a sensação de bem-estar gerada pelo discurso edificante da sociedade atual, repetida exaustivamente pela mídia traz, também sub-repticiamente, sensações de que esses ganhos advindos podem ter sido ou são esvoaçante cortina de fumaça encobrindo outras realidades. Tão fluidas quanto a própria modernidade e tão contraditórias quanto à própria roupagem que as cobre, essas mudanças, na verdade, são meras carta de intenções, aduz Hobsbawm (1994). Isto porque a complexidade pode se desvelar como uma bula de absoluto escárnio e violência ao homem, ao planeta, e sobretudo à ética que na verdade é envoltório dos dois elementos.
Assim a modernidade e sua complexidade trazem em si mesmo a própria ambivalência, o entrelaçamento de obscuridades com luzes que ao mesmo tempo criam novos conceitos, mas iluminam destruição justificada pela lógica falaciosa da proteção e segurança. Assim, em nome da modernidade, (ela mesma que gerou tanta esperança), foram perpetradas catástrofes ambientais, conflitos étnicos e proliferação de guerras civis.
Duarte (2006, p. 13) demarca com precisão que “a eclosão da primeira guerra mundial […] constitui a própria inauguração de nossa época”: a modernidade virulenta dos conflitos bélicos e éticos. Naquele evento se empregou segundo o autor, a mais avançada tecnologia em massa para exterminar vidas humanas, utilizando-se do falacioso argumento de proteger o mundo. Hobsbawm (1994, p.9) ao discorrer sobre acontecimentos históricos da modernidade, nomeia aquele momento como “um século de guerras religiosas [e ideológicas], que têm na intolerância sua principal característica”. E assim se desenrola a paradoxal modernidade, do início ao fim, atacando cidadãos, sua dignidade e sobretudo os princípios éticos.
No final do século XX a modernidade transporta a própria contradição interna, tornando líquidas (BAUMAN, 2001) estruturas consolidadas e em seu espaço estabelecendo difusas relações. Assim observa-se uma era de muitas contradições: se de um lado amplia velocidade das comunicações, estabelecendo longo progresso intelectual e tecnológico na ciência – de outro é relatado por Hobsbawm (1994, p. 16) como “o século mais assassino de que temos registro, tanto na escala, freqüência e extensão da guerra que o preencheu […] como também pelo volume único de catástrofes humanas que produziu, desde as maiores fomes até o genocídio sistemático”.
Quanto ao setor econômico a tecnoesfera gerada pelo progresso exacerbado absolutiza o “nexo dinheiro” (BAUMAN, 2001, p. 7) em detrimento de outros valores humanitários, continua o autor. Para ele, isso significa derreter sólidos liames sociais e deixá-los no ar, desprotegidos, impotentes para reagir ao feroz ataque que considera a economia como a esfera heterônoma que paira sobre os homens, e que em nome dela é permitido inclusive, matar.
A nova ordem econômica pós-guerra foi mais feroz ainda, na medida que o cenário sofreu profundas alterações; se por uma vertente tratou-se de afastar conflitos bélicos, por outra a modernidade econômica ocupou espaços recolonizando nações pela ajuda financeira internacional sedimentada em juros financeiros. Isso se deu de forma tão verticalizada a ponto de, na sociedade complexa não restar quaisquer escolhas que não fossem aquelas ditadas por axiomas econômicos dos países desenvolvidos. E eles produziram escalas de miséria, sobretudo nos países em subdesenvolvidos e naqueles em desenvolvimento. O resultado desse processo pode ser sentido na agudização da díade centro-periferia, uma vez que se acetuam assimetrias históricas geradas por anteriores desigualdades sociais de colonização, destaca Boaventura de Sousa Santos (2002).
Assim, a neocolonização implantou rigidez e isto implicou soltar o freio da desregulamentação, flexibilização, da mão invisível dos mercados. A divisão internacional do trabalho se configurou em outra forma de desconsiderar ética, agora pelas vias de subemprego e desemprego. Se tratou de reconstruir países de terceiro mundo, mas o fez pela produção de pobreza e junto a ela foram perpetradas, também, exclusão e violência.
A civilização complexa marcada pela racionalidade flexibiliza resquícios de liberdade e autonomia para transformar pela nova ordem econômica, solidariedade em solidão. Essa liberdade confusa junto ao conceito de flexibilização moderna foi cultivada pelo duto de competitividade, gerando muitas tendências egoísticas. É de se dizer que, diluindo potencialidades altruísticas das comunidades, se atacou com virulência as raízes humanitárias conformadoras do modelo anterior. Assim, ao tempo que se produziu autonomia tecnológica, bem-estar econômico para alguns na era moderna, isso implicou também em isolamento e distanciamento do outro.
Neste afastamento há na verdade rupturas e diluições das responsabilidades sociais, de maneira que, isolando-se os sujeitos uns dos outros pela lógica moderna econômica há na verdade séries fraturas entre indivíduos e sociedade. Desta forma se torna lugar comum a instrumentalização e exploração do outro, justificada pela lógica econômica, à medida que o outro é desfavorecido, aviltado.
Daí ser possível perceber na modernidade e sua complexidade a diluição da ética individual e o fortalecimento da ética de mercado. Essa prática na verdade aflige e desintegra comunidades tradicionais, liquefazendo conceitos como longo prazo e certeza. Para Morin (2005, p. 27) “a crise dos fundamentos da ética situa-se na crise geral dos fundamentos da certeza”. Destaca o autor que, a crise dos fundamentos éticos renuncia direitos e esgarça o tecido social, à medida que enfraquece o imperativo comunitário injetando lógicas perversas de competição social pela exclusão do outro. Neste aspecto, Santos (2002, p.6) aclara que “a economia é dessocializada, o conceito de consumidor substitui o de cidadão e o critério de inclusão deixa de ser o direito para passar a ser a solvência”. Com efeito a lógica de competição situa-se na verdade pela condição econômica de consumo de bens, gerando assim avalanches midiáticas e supervalorização de ícones de bens materiais.
Mercadorias na verdade são formas fetichistas que a sociedade moderna lança mão para produzir sensações de bem-estar; sobre este tema Bauman (2008, p. 16) destaca que elas (as mercadorias) estão “desempenhando o papel de objetos de maneira impecável e realista o bastante para convencer as pessoas de que, […] os bens de mercado suprem e reabastecem de forma perpétua, a base epistemológica e praxiológica da vida”.
O autor ressalta que, a redução dos anseios da comunidade por bens materiais, além de transformar acesso a eles em passaporte de potência social, também pode determinar escalas de valores nas quais as inserções são mensuradoras de inclusão e exclusão. Assim, consumir implica estar capacitado a competir, e agregar-se aos iguais em posses. Ao agrupar-se aos co-iguais se excluem do grupo, os outros, os diferentes, e assim “forças de separação, dispersão e aniquilamento continuam a se desencadear” (MORIN, 2005, p. 31).
Na verdade, o processo de exclusão alinha-se à negação do outro pela vertente da indiferença, Morin (2005, p. 118) destaca que esse menoscabo, esse desprezo, “é uma verdadeira calcificação”, e opera pelo alheamento ao sofrimento do outro. E mesmo estando os excluídos e os incluídos face a face, a indiferença é qual zona nebulosa que torna os indivíduos fracionados, em lados antagônicos. É como se o excluído estivesse invisível e o outro, incluído e cego. Nesta concepção, diversas são as fontes da cegueira, portanto, o autor destaca a “cegueira por indiferença, ódio ou desprezo” e ainda aquela “criada pelos turbilhões históricos que arrastam os espíritos […] e ignoram a compreensão subjetiva” (MORIN 2005, p. 120).
Na sociedade complexa a metáfora da cegueira junto à indiferença torna a ética do olhar mero ato biológico vazio, por que na verdade, o sujeito foca o outro com a mente no contexto de exclusão. Assim Morin (1999, p. 101) conclui que “[…] nós vemos com os olhos, só que mediatizados por todas as pontes que tentaram preencher a fissura […]: paradigmas, crenças, mitos, magias e teorias”. Portanto, o processo de invisibilidade contém elementos ambivalentes que são próprios da modernidade, isto por que se de um lado se reconhece a existência do outro e de sua diversidade – por outro lado se ignora essa existência.
Há que se destacar, portanto, a erosão da ética quando se focaliza intolerância às diferenças e aos diferentes; neste processo de reconhecimento e negação há uma aguda contradição, pois ao mesmo tempo que há convivência de desiguais, é como se o outro não existisse. Na sociedade moderna complexa, a ética metacomunitária em favor do outro parece ter se esgarçado a tal ponto que “se exclui a compreensão humana” (MORIN, 2005, p. 61).
Ética e moralidade são fatores presentes nas diversas culturas, elas deveriam circunscrever-se como exigência das sociedades e se destacar como elementos imperativos heterônomos que pairam soberanos sobre as esferas econômicas, culturais e sociais. Krohling (2010, p. 16) destaca que “moralidade concebida como costume, norma ou regra de conduta é parte integrante do arcabouço cultural da sociedade […] A ética seria a filosofia da moral, […] raiz ou princípio originário e diretriz da moralidade”. Segundo o mesmo autor( 2011, p. 29) a ética é sempre cuidado e alteridade, sendo a descoberta do OUTRO e através dele a redescoberta de si mesmo. Krohling, Aloisio e Beatriz Stella (p. 82-92) defendem a tese que a ética é a matriz rizomática do princípio fontal e originário da vida digna de todos os seres viventes, tendo a sua origem na metafísica como filosofia primeira e sendo o fundamento filosófico dos direitos humanos fundamentais, que seriam os princípios rizomáticos do Direito.
Morin (2005, p. 21) descreve que “todo olhar sobre a ética deve perceber que o ato moral é um ato individual de religação com o outro e com a comunidade”, daí ser possível dizer que ética importa alteridade, responsabilidade e solidariedade. Portanto, é pelo exercício ético do cuidado com o outro e por conseguinte da comunidade, que se tem harmonia social no sentido de carregar responsabilidade e amor fraterno. Não é o que se percebe na modernidade, todavia.
Nesses tempos complexos a competição nutrida pela economia projeta “um vasto e intenso campo de conflitos entre grupos sociais” (SANTOS, 2002, p. 4) sendo que amplia rivalidade entre nações, gerando individualismo e cegueiras, a ponto de aniquilar a figura do outro. A nova geografia econômica exemplifica de forma nítida a proliferação de países em blocos ligados para consecução de ações econômicas, com vistas ao desenvolvimento funcionalista com fulcro meramente econômico.
A ética metacomunitária em favor do ser humano, que deveria ser típica das sociedades complexas, foi substituída por imperativos tecnocráticos, tendo como razão última, o próprio ganho financeiro, a falsa percepção de que o sistema capitalista será capaz de prover riqueza financeira a todos, na comunidade. A lógica funcionalista opera a falácia, de que, a participação comunitária implica convivência forçada por blocos econômicos e se encerra na lógica, de que, bem-estar é sinônimo de consumir bens econômicos. Daí a privatização da ética negocial justificando suas ações.
A autonomia dos negócios liga-se à privatização utilitarista da ética relativizando conceitos seculares de sociedade e grupos. Em nome da nova ordem se enfraquece a tutela comunitária afrouxando as responsabilidades sociais. Desta forma a máscara de valores distorcidos volta-se contra a própria sociedade, pois esta é geratriz de individualismos que por sua vez erodiram a própria ética na convivência, tornando a sociedade mais violenta.
Desta forma primar individualismo em desfavor do grupo social tem gerado sofrimento e angústia, expressados pelas vias de violência tanto de excluídos quanto dos outros, os incluídos. A modernidade cindiu o social pela leitura econômica da vida, desenvolvendo visões distorcidas de direitos humanos, assim se expurga a carta ética da pauta plural, à medida que, pelas vias do distanciamento se obstaculiza acesso aos próprios bens exaltados pelo capitalismo. Nada mais contraditório e complexo que o fascismo financeiro, típico da sociedade moderna e nada mais perverso do que negar o acesso a esses bens, pela exclusão.
Santos (2002, p. 20) destaca a virulência do fascismo financeiro e seu potencial de destruição uma vez que a economia volátil tem suas bases assentadas em especulações, o que o autor denomina de “economia de cassino”. Isto porque, enquanto economia pluralista, os movimentos financeiros são produtos de investidores individuais ou institucionais espalhados pelo mundo. Os investidores globais operam capital líquido com renda também volátil e alto ganho de juros por migração em rede, isso significa não investir, não construir bens imobilizados e sobretudo produzir desemprego. Santos (2002, p. 23) ao escrever sobre as desigualdades ressalta que, “a nova pobreza globalizada não resulta de falta de recursos humanos ou materiais, mas tão só do desemprego, da destruição das economias de subsistência e da minimização dos custos salariais à escala mundial”.
Daí a face contraditória da modernidade, pois ela produz enriquecimento exponencial à pequena parcela e concede miséria em maior escala, o que Morin (2005) denomina de fratura social, promovida principalmente por uma classe social bem assentada, incluída na cena transnacional e que doravante passa a conduzir os rumos da vida.
Os bens assentados no novo mosaico internacional a partir do pensamento de Santos (2002, p. 23) representam “a burguesia nacional, uma categoria socialmente ampla que envolve a elite empresarial, os diretores de empresas, os altos funcionários do Estado, os líderes políticos e os profissionais influentes”. Só ela, esta elite cerebral, detém quase todo o poder decisório sobre os rumos da sociedade complexa e global.
Ocorre que, ao lado da elite cientificista dos chamados cérebros com Ph.D., posiciona-se outra parcela da sociedade; o grupo muscular, que nem sempre participa de decisões, tampouco de ações. São os humanos periféricos, os executores das políticas gestadas pelos bem assentados. Santos (2002, p. 25) critica a naturalidade com que na sociedade moderna a fratura é manejada como procedimento normal de exclusão “[…] é um efeito inevitável (e, por isso, justificado) do desenvolvimento assente no crescimento econômico e na competitividade no nível global”. Aniquila-se a ética e a compaixão pelo outro, excluído, diz o autor.Esse aniquilamento da ética implica impassivelmente “permanecer cego ao sujeito individual e à consciência, o que atrofia […] e ignora a moral” (MORIN, 2005, p. 61) se tornando míope para captar realidades humanas tão complexas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Desde o início do século XIX com o despontar do paradigma racional nas ciências o distanciamento preconizado pela verticalidade, já apresentava certo alheamento à figura ética das humanidades. No século XX a erupção do paradigma complexo nas ciências embora tenha inaugurado novo giro conceitual também vivenciou dificuldades em trabalhar conceitos interligados à ética. Assim, tanto no paradigma da modernidade racional quanto na era da teoria da complexidade , muito longe estamos de pensar em diálogos éticos que considerem direitos humanos. O próprio Direito, apesar dos clássicos atuais como Rawls, Dworkin e Alexy, que avançam na defesa dos direitos fundamentais, ainda permanece muito formalista e longe de priorizar a ética. Isto por que o pensamento ético concebe uma realidade aberta, liberta, integra e supera a lógica cartesiana e eurocêntrica e anglo saxônica que reduz o outro a uma relação objetal, a ética e o “pensar bem, reconhecem a multiplicidade na unidade, […] e superam o reducionismo” (MORIN, 2005, p. 62), dialogando objetiva e subjetivamente através de partes e conjuntos integrados.
O construto ético é rizomático e plural, pois a essência da palavra ética é polissêmica já que se perfaz estabelecendo diálogos com abertura prévia ao entendimento da vida digna de todos os seres viventes, e através dela emergem reflexões sobre temas concernentes como a ética ecológica e a bioética, às questões de gênero e outras temáticas atuais. Na verdade, a palavra ética cristaliza-se em afirmação de valores rizomáticos e neste transformar estabelece pluralidades interpretativas capazes de convivência harmoniosa significando construto de realidades não arbitrárias. Assim a transformação torna os horizontes de inteligibilidade possíveis de entendimento, à medida que concebe uma realidade aberta, capaz de trabalhar com as incertezas complexas das conexões sociais, tendo como pressuposto o construto ético perdido nas mazelas da modernidade.
Morin (2005, p. 194) ensina que “embora não se possa deduzir, a ética complexa possui como ingredientes indispensáveis o pensamento e a antropologia complexos”. Assim ordena que assumamos eticamente a tríade ‘indivíduo/sociedade/espécie’, pois o progresso é necessário, mas ele só poderá ganhar vigor pelo enraizamento e sinergia do cuidado com o homem e a sociedade, em uma relação humanitária que significa participação e respeito convivencial.
O pensar ético significa nutrir fontes de religação reflexiva do espírito com o cosmos, os cidadãos e a comunidade, pois a ética ela própria é complexa à medida que é una e múltipla, suas relações internas são rizomáticas. Carvalho (2006, p. 109) nos ensina que “no rizoma as conexões são cruzamentos que se fazem e se refazem a todo momento em uma genealogia sem hierarquia”. É de se destacar que eticidade como reflexão axiológica ou justificação de normas provém de Éthos ou ética em sua tradução literal e tem relação com princípios fundadores da práxis humana como preservação da vida e do cosmos circundante (KROHLING, 2010, p. 18).
Desta forma a passagem do paradigma racional ao complexo, conquanto se tenha configurado grande avanço nas ciências, só será completo quando a partir das estruturas policêntricas que o formam, seja considerado decerto o cidadão como polo irradiador de direitos que devem ser observados nas relações societais éticas. É na organicidade das relações dos cidadãos que as múltiplas intervenções se constroem de forma complexa, então há que ser observado sua diversidade, e ele próprio deve observar o outro com alteridade e respeito.
A era da incerteza, das relações complexas não pode ser avocada como argumento inconfidente para manipular, execrar a natureza do próprio homem. Assim se estaria mais uma vez negando a própria eticidade que deveria conformar e nutrir a própria sociedade em cada tempo histórico.
Se a própria sociedade constrói a ética a partir de seu tempo, ela também não pode ser manipulada, distorcida ao sabor de projetos dúbios que quase sempre alvejam a alma humana e o planeta em prol de pequenos grupos que comandam holdings econômicas. É ela, a ética, força centrípeta subjacente à conduta humana, ponto geratriz de virtudes e valores, que devem acompanhar o cidadão em suas interrelações com o mundo. Morin (2005, p. 202) ensina que “viver humanamente é assumir plenamente três dimensões da identidade humana: a identidade individual, a identidade social e a identidade antropológica”. É dela, da ética a missão soberana de regenerar o humanismo pelo respeito universal dos cidadãos e do respeito universal do planeta, com foco a deixar como legado às futuras gerações um sistema integrado de direitos vislumbrando pessoas como coiguais nos direitos e deveres.
O sistema de lateralidade de coiguais alça o homem dentro do cosmos como um dos seres viventes dotado de razão e vontade, colocando o homem como responsável pela sustentabilidade cósmica, vislumbrando a ética da esperança, provocando por assim dizer, as inter-relações dos cidadãos como o meio ambiente e com os outros seres viventes. Dessa forma se estaria impulsionando o pensamento múltiplo de respeito à dignidade e pluralidade que permeiam o sistema planetário tão complexo.
O cidadão como sujeito do cosmos traça a ética da esperança desenvolvendo resistências contra as formas de crueldade perpetradas em seu universo e no planeta. Isto implica lutar contra barbáries humanas destrutivas perpetradas pelos homens contra seus coiguais e contra outros seres viventes e a própria natureza. A provocação desmedida e devastação do planeta, a visão simplista do pensar no presente ignorando o longo prazo, serão assim substituídas pela ética da esperança, pela consciência e cidadania ecológica e pela paz mundial.
Esta nova consciência cidadã é na verdade a religação do homem uns com os outros seres vientes , que por sua vez produz repulsa à barbárie e ao mau uso da tecnologia como forma destrutiva gerando genocídio. Isso implica lutar contra todas as formas de barbárie contidas nas mentes colonizadoras que se revestem de dominação e desprezo pelo outro, em prol de seus projetos, nem sempre carregados de ética.
É ação da ética desenvolver formas protetivas contra incompreensão do outro, é nutrir esperança para conviver com incerteza e inquietude do tempo complexo, coordenando amor e racionalidade em relações de inteligência múltica e pensamento neural circular. Desta forma, é necessário emergir ética complexa que dê suporte aos vínculos sociais, pois o conceito de cidadania na modernidade pode se apresentar falacioso, à medida que deriva da própria modernidade – e ela própria é contraditória.
Pensar cidadania cosmopolitica e a planetária no mundo atual implica refletir sobre as cegueiras do pacto político de exclusão e inclusão – pois ele próprio é seletivo, alicerçado no paradigma racional formalizador e absenteísta. Assim a lógica da modernidade não conseguiu dirimir suas próprias ambiguidades.
Será dela – a ética complexa que é a matriz rizomática de todos os direitos – o papel de conscientizar a sociedade de suas barbáries perpetradas tantas vezes em nome de ideologias. É necessário pois, fazer um diálogo com culturas universais de forma respeitosa. E principalmente exercitar respeito e amor aos mais fracos, pois como diz Morin (2005, p. 202), “o mais precioso, o melhor, inclusive a consciência, a beleza e a alma, são frágeis e perecíveis”; logo eles devem estar acompanhados do agir ético.
REFERÊNCIAS
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Notas de Rodapé
[1] Doutoranda em Direito pela Faculdade de Direito de Vitória. Doutora em História Social das Relações Políticas pela UFES. Professora da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
[2] Ph.D. em Filosofia e professor permanente do programa de Mestrado e Doutorado da Faculdade de Direito de Vitória. Espírito Santo. Pós-doutor em Filosofia Política e Ciências Sociais e pesquisador de Direitos Humanos e Ética e Interculturalidade.