Análise dos Abusos Cometidos pela Portaria 624/19 da Secretaria de Administração Penitenciária do Ceará

DOI: 10.19135/revista.consinter.00015.01

Recebido/Received 13/07/2021– Aprovado/Approved 16/11/2021

Paloma Gurgel de Oliveira Cerqueira Bandeira[1] – https://orcid.org/0000-0002-6935-2261

Resumo

O presente artigo tem o objetivo de analisar a constitucionalidade e legalidade da Portaria 624 de 2019 da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado do Ceará. A norma em questão criou uma série de embaraços aos direitos dos presos, como direito à visitação, direito à visitação íntima e direito de não ser posto em isolamento por mais de 30 dias, dentre outros sob a justificativa de ajudar na “preservação da segurança e disciplina no interior das unidades”. Este artigo visa analisar a constitucionalidade e legalidade da portaria cearense, fazendo um contraponto entre as normas nela contidas e o sistema jurídico brasileiro. Para a consecução desse fim firmou-se a hipótese de que a portaria analisada fere a Carta Magna e a legislação infraconstitucional como um todo, sendo, portanto, ilegal e inconstitucional desde a sua concepção. Utilizou-se o método de revisão bibliográfica de doutrina especializada, artigos científicos e jurisprudência dos tribunais pátrios para análise da presente questão que se evidencia na discussão proposta. Foi possível concluir, pelo presente estudo, que a portaria cearense promove uma série de afrontes da citada norma aos ditames legais presentes em nosso ordenamento jurídico. Não se nega que o combate à criminalidade é importante tarefa a ser realizada pelo Estado. No entanto, não é ferindo direitos constitucionalmente assegurados que o Estado conseguirá realizar esse intento, pois se ele não oferece condições condignas mínimas ao apenado, como poderá esperar sua ressocialização durante o cumprimento da pena? São questões como essa que fazem premente a análise realizada neste estudo.

Palavras-chave: Portaria. 624; Secretaria de Administração Penitenciária do Estado do Ceará; Inconstitucionalidades; Ilegalidades.

Abstract

This article aims to analyze the constitutionality and legality of Ordinance 624 of 2019 of the Secretariat of Penitentiary Administration of the State of Ceará. The rule in question created a series of obstacles to the rights of prisoners, such as the right to visitation, the right to intimate visitation and the right not to be placed in isolation for more than 30 days, among others under the justification of helping to “preserve security and discipline within the units”. This article aims to analyze the constitutional and legality of the Ceará ordinance, making a counterpoint between the norms contained therein and the Brazilian legal system. To achieve this end, the hypothesis was established that the analyzed ordinance violates the Magna Carta and the infra-constitutional legislation as a whole, being, therefore, illegal and unconstitutional since its inception. We used the method of bibliographic review of specialized doctrine, scientific articles and jurisprudence from Brazilian courts to analyze the present issue that is evidenced in the proposed discussion. It was possible to conclude, in the present study, that the Ceará ordinance promotes a series of affronts of the aforementioned norm to the legal dictates present in our legal system. There is no denying that the fight against crime is an important task to be carried out by the State. However, it is not violating constitutionally guaranteed rights that the State will be able to carry out this attempt, because if it does not offer decent minimum conditions to the inmate, how can it expect his re-socialization while serving the sentence? It is questions like this that make the analysis carried out in this study urgent.

Keywords: Ordinance. 624; Secretariat of Penitentiary Administration of the State of Ceará; Unconstitutionalities; Illegalities.

INTRODUÇÃO

O sistema penitenciário brasileiro vive, principalmente nas últimas décadas, um caos generalizado notadamente marcado pela superlotação, falta de infraestrutura e, principalmente, pelas condições insalubres ás quais os apenados são acometidos. Rápida busca na internet revela as constantes denúncias de maus-tratos, torturas, violência física e psicológica a que os encarcerados são usualmente submetidos. É forçoso convir que, diante desse cenário, há um conjunto de violações e, principalmente, omissões dos órgãos de controle interno e externo (judiciário e ministério público) no tocante à realidade penitenciária brasileira.

No Estado do Ceará, tivemos uma onda de violência no ano de 2019 – atribuída pelas autoridades locais como resposta do crime organizado à política de tolerância zero da gestão estadual. Dezenas de ataques ocorreram no Estado, mudando a rotina dos cidadãos inclusive na capital, Fortaleza. Segundo o Secretário de Segurança à época, André Costa[2], as ondas de violência eram uma “reação de detentos ao fim de regalias nos presídios ceares”. Ao se analisar as medidas adotadas pelo governo cearense, pode-se constatar que as autoridades locais consideravam regalias, dentre outras coisas, tomadas nas celas (que foram retiradas) e o direito ao recebimento de visitas íntimas.

No âmbito das medidas adotadas pelo governo Estadual, destaca-se a edição, pela Secretaria de Administração Penitenciária, da portaria 624/2019. A referida portaria, dentre outras coisas, limitava a quantidade de visitantes por presos, os locais de acesso e comunicação e, pode-se dizer, proibia definitivamente a ocorrência de visitas íntimas – haja vista da série de condições colocadas para que ela ocorresse. Nesse tocante, importa trazer à baila a prescrição legal do art. 30 da referida norma[3].

Art. 30. A visita íntima, considerada uma regalia, poderá ser concedida ao preso (a) desde que preenchidos os requisitos de comportamento, disciplina e, ainda, a realização do cadastro de cônjuge ou companheiro (a) e ocorrerá nos moldes do §1°, art. 8º desta portaria.

Art. 8º. Para a realização de cadastro de cônjuge ou companheiro (a) serão adotados os seguintes critérios:

§ 1º Poderá haver visita íntima nas unidades prisionais, que dispuserem de local apropriado destinado para tal finalidade, onde a mesma ocorrerá a critério da administração penitenciária superior.

Como se vê, para os responsáveis pelo direcionamento das políticas públicas voltadas à segurança, direitos constitucionalmente assegurados – como o direito ao recebimento de visitas íntimas – são considerados “regalias”. A fundamentação fática para a realização de tais alterações legais, ao arrepio da Constituição e da legislação federal, foram a “preservação da segurança e disciplina no interior das unidades”, conforme se vê da sua própria exposição de motivos[4]

PORTARIA n. 624/2019.

REGULAMENTA E DISCIPLINA OS PROCEDIMENTOS DE VISITA AOS (AS) PRESOS (AS) NAS UNIDADES PRISIONAIS DO ESTADO DO CEARÁ.

O SECRETÁRIO DA ADMINISTRAÇÃO PENITENCIÁRIA, no uso de suas atribuições, conforme dispõe a Lei n. . 16.710 de 21 de dezembro de 2018, e ainda, o Processo n. . 09367564/2019; CONSIDERANDO os direitos dos (as) presos (as) receberem visitas do cônjuge, do companheiro (a), de parentes e amigos em dias determinados, conforme disposto na Lei de Execução Penal n. . 7.210 de 11 de julho de 1984; CONSIDERANDO a Instrução Normativa n. . 02/2018, de 10 de outubro de 2018 que, estabelece e padroniza os procedimentos operacionais nas Unidades Prisionais do Ceará; CONSIDERANDO a Portaria n. . 09/2019, de 22 de janeiro de 2019 que, estabelece os horários de visitas e os materiais permitidos para ingresso nas Unidades Prisionais do estado do Ceará; CONSIDERANDO que a preservação da segurança e disciplina no interior das unidades é de fundamental para que a visita transcorra em ordem, harmonia e respeito mútuo de forma a garantir a integridade física, psíquica e moral dos visitantes e das pessoas que laboram nos Estabelecimentos Prisionais.

Não é necessária qualquer uma maior digressão da norma elencada para notar que ela viola uma série de dispositivos constitucionais e legais de toda ordem. Este é justamente o objetivo do presente estudo. Analisar as inconstitucionalidades, ilegalidades e vícios da presente norma, como uma frontal violação aos direitos humanos, verificando os motivos pelos quais ela não deve subsistir em nosso ordenamento jurídico.

A hipótese sustentada no artigo é de que a portaria editada pela Secretaria de Administração Penitenciária fere de morte uma série de direitos e garantias legais e constitucionais assegurados aos apenados. Para além disso, ela se releva verdadeira prática de coerção física e psicológica “legalmente” institucionalizada contra a população carcerária daquele Estado.

O método de pesquisa utilizado foi a revisão bibliográfica de artigos científicos, obras literárias, artigos de opiniões de jurisconsultos e petições de processos que foram dado entrada na justiça cearense para tentar refrear as ilegalidades constantes do diploma legal analisado.

Ao longo da análise do material de estudo colhido foi possível chegar à inexorável conclusão de que as práticas institucionalizadas pela fatídica portaria da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado do Ceará violam uma série de normas de ordem constitucional e federal, devendo, portanto, ser rechaçada de plano. Além disso, conseguiu-se vislumbrar a ineficácia das medidas adotadas pelas autoridades estatais ao que se propunham, acabando, ironicamente, aumentando a onda de criminalidade que assolava o Estado.

É certo que o combate à criminalidade é dever estatal e garantia da sociedade. Mas tal assertiva não serve de justificativa para que o Estado possa, através de mecanismos legais, buscar ferir direitos constitucionalmente assegurados aos presos. É imperioso relembrar que aos apenados são assegurados todos os direitos previstos em nossa Carta Magna, com exceção do direito à liberdade plena. Desse modo, é notório que não pode o Estado, sob a alcunha de “buscar promover a segurança pública” ferir direitos caros à nossa própria sociedade. Definitivamente, os fins não justificam os meios.

Por último, e não menos importante, devemos lembrar que a função primordial do sistema prisional deveria ser a ressocialização do preso. É certo pensar que não existe a possibilidade da aplicação de pena perpétua em nosso país – vide proibição constitucional. Deste modo, um dia é esperado que os apenados retornem ao convívio social. Pensar que, a destempo dos maus-tratos e humilhações a que é submetida a população carcerária, tais pessoas milagrosamente vão mudar de vida apenas pelo decurso inexorável do tempo de cumprimento da pena é, em última análise, iludir-se com voos rasos de galinha. Não vão. E ao não mudarem, provavelmente a sociedade terá que – novamente – lidar com esse indivíduo, reiniciando um ciclo que já se mostrou sem fim com a adoção das medidas atuais.

PRINCIPAIS MEDIDAS ADOTADAS PELA PORTARIA 624/2019 DA SECRETARIA DE ADMINISTRAÇÃO PENITENCIÁRIA DO CEARÁ

A malgrada portaria 624/2019 da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado do Ceará implantou no âmbito do sistema carcerário cearense uma série de restrições impostas aos presos e aos visitantes destes. Dentre todas elas destacamos

  • Vedação indiscriminada à ocorrência de visitas íntimas, constante do art. 30, c/c art. 8º, §1º[5]

Art. 30. A visita íntima, considerada uma regalia, poderá ser concedida ao preso (a) desde que preenchidos os requisitos de comportamento, disciplina e, ainda, a realização do cadastro de cônjuge ou companheiro (a) e ocorrerá nos moldes do §1°, art. 8º desta portaria.

Art. 8º. Para a realização de cadastro de cônjuge ou companheiro (a) serão adotados os seguintes critérios:

§ 1º Poderá haver visita íntima nas unidades prisionais, que dispuserem de local apropriado destinado para tal finalidade, onde a mesma ocorrerá a critério da administração penitenciária superior. (sem grifos no original)

  • Período de triagem para “observação do perfil criminológico” por período superior a 30 dias[6] e aplicação de sanções coletivas

Art. 20. O Centro de Triagem e Observação Criminológica – CTOC tem como objetivo fazer a triagem observando o perfil criminológico dos presos, bem como, a individualização de todos os internos, no sentido de que sejam custodiados de forma a respeitar suas condições pessoais, sua integridade física e sua dignidade, devendo ser avaliados por uma equipe multidisciplinar que fará parte do fluxo de atendimento.

Parágrafo único. Por se tratar de estabelecimento de rotina diferenciada o (a) preso (a) só poderá receber visita após o término do período de triagem que será de no mínimo de 30 (trinta) dias. (sem grifos no original)

  • Ausência de critérios objetivos para a ocorrência da perda do direito de visitas[7]

Art. 31. O preso que cometer falta disciplinar média ou grave, poderá ter restringido ou suspenso o direito a visita.

Art. 32. Em caso de rebelião, motins, ou situações de tensão na área da segurança, o diretor do estabelecimento penal poderá suspender as visitas buscando restabelecer a ordem, segurança e disciplina da Unidade, não comprometendo sobremaneira os direitos do preso, mormente ao vínculo familiar, mais ao contrário, reduzindo os danos incididos.

Art. 33. Em caso de ocorrências deverá ser recolhida a carteira de visitante e encaminhada ao Chefe de Segurança e Disciplina, acompanhada do registro de ocorrências internas e/ou do Boletim de Ocorrência gerado na Delegacia.

Art. 34. O visitante, familiar ou não, poderá ter seu ingresso suspenso, por decisão motivada da direção da unidade, por:

I – 90 a 180 dias, quando em decorrência, da sua conduta, resultar qualquer fato danoso à segurança e disciplina da Unidade, em desrespeito às regras estabelecidas nesta Instrução Normativa;

II – 90 a 180 dias, quando tentar adentrar a Unidade com qualquer substância ou objetos, que comprometam a ordem, a disciplina e a segurança da Unidade

  • Vedação do cadastro de visitas que estejam respondendo a processos[8]

Art. 13 Não será permitida a visita de pessoa que:

VI – responda a processo criminal ou em cumprimento de pena

  • Da inclusão de presos na ala de segurança máxima sem o devido processo legal

Com a vigência da portaria os custodiados e presos definitivos cearenses foram colocados em regime de exceção, então denominado “triagem”, sem fundamentação legal para tal, e sem direito ao contraditório e ampla defesa. Não obstante a triagem, o que se viu na realidade daqueles cárceres foi a inclusão de presos na ala de segurança máxima sem o devido processo legal, com direito ao contraditório e a ampla defesa.

Dada a limitação imposta aos presos da ala de segurança máxima em seus direitos de receberem visitas, tornou-se um lugar comum colocar, a bel prazer das autoridades locais, os presos na ala de segurança máxima dos presídios. O procedimento, feito ao arrepio da lei, não confere qualquer tipo de garantia processual ou legal ao apenado, lhe sendo imposto de forma autoritária e antidemocrática. Não bastasse isso, aos presos em ala de segurança máxima, as regras de visitação são ainda mais rígidas, fazendo com que – na realidade – estes vivam em completo regime de isolamento.

Saltam aos olhos os abusos cometidos pelas autoridades constituídas na edição da medida vergastada. Além do crônico problema existente na edição de ordens de conduta que atentem contra a própria Constituição Federal e a Lei de Execuções Penais, a fatídica norma vai além e faculta à análise subjetiva da autoridade penitenciária a adoção das referidas medidas.

Pela ocorrência das diversas ilegalidades apontadas, a análise de cada uma delas far-se-á de maneira individualiza nos tópicos que seguem.

Da Arbitrariedade nas Concessões nas Visitas Íntimas

A mais flagrante ilegalidade constante da Portaria 624/2019 da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado do Ceará, é, sem sombra de dúvidas, a arbitrariedade existente na concessão de visitas íntimas aos apenados.

Ao dispor sobre o tema, a malfada portaria pontua que

Art. 30. A visita íntima, considerada uma regalia, poderá ser concedida ao preso (a) desde que preenchidos os requisitos de comportamento, disciplina e, ainda, a realização do cadastro de cônjuge ou companheiro (a) e ocorrerá nos moldes do §1°, art. 8º desta portaria.

Art. 8 (…)

§ 1º Poderá haver visita íntima nas unidades prisionais, que dispuserem de local apropriado destinado para tal finalidade, onde a mesma ocorrerá a critério da administração penitenciária superior. (sem grifos no original)

É importante observar que a prescrição normativa adotada pela Portaria tem início considerando o direito à visitação íntima como uma regalia, que poderá ser concedida ao preso. Não é o que se infere do ordenamento jurídico pátrio. Vejamos.

Constituição Federal

Art. 41 – Constituem direitos do preso:

X – visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinado;

Lei de Execuções Penais

Art. 64. Ao Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, no exercício de suas atividades, em âmbito federal ou estadual, incumbe:

I – propor diretrizes da política criminal quanto à prevenção do delito, administração da Justiça Criminal e execução das penas e das medidas de segurança;

Resolução 01/1999 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária

Art. 1º – A visita íntima é entendida como a recepção pelo preso, nacional ou estrangeiro, homem ou mulher, de cônjuge ou outro parceiro, no estabelecimento prisional em que estiver recolhido, em ambiente reservado, cuja privacidade e inviolabilidade sejam asseguradas.

Art. 2º – O direito de visita íntima, é, também, assegurado aos presos casados entre si ou em união estável.

Art. 3º – A direção do estabelecimento prisional deve assegurar ao preso visita íntima de, pelo menos, uma vez por mês.

Art. 4º – A visita íntima não deve ser proibida ou suspensa a título de sanção disciplinar, excetuados os casos em que a infração disciplinar estiver relacionada com o seu exercício.

Forçoso concluir, portanto, que o arcabouço legal existente em nosso país garante ao preso o direito ao recebimento de visitas íntimas. Não poderia ser diferente uma vez que o contato social, ab initio com a família e, principalmente, com o seu companheiro (a) conjugal é um dos pilares a permitir a ressocialização do preso. A importância da visitação íntima está diretamente relacionada com a manutenção de vínculos socioafetivos tão caros e necessários ao sadio convívio social de todas as pessoas. Com os apenados não é diferente.

O direito à visitação íntima está relacionado intrinsecamente com a dignidade da pessoa humana, não devendo, portanto, ser arbitrariamente suprimido. É sempre de bom tom relembrar que a castidade forçada não está prevista como sanção penal no código penal, sendo este outro motivo forte o suficiente a assegurar tal direito aos encarcerados. O convívio com a família e, especialmente, com o(a) companheiro (a) pode-se revestir-se ainda em uma verdadeira referência na ressocialização dos presos na medida em que desenvolvem nestes um senso de sentido e propósito para uma vida melhor pós-cárcere.

Como se vê da norma editada pela Secretaria de Administração Penitenciária do Estado do Ceará, a visita íntima foi considerada como uma regalia a ser ofertada ao preso. Como visto nos diplomas legais anteriormente ela é um direito desses. Sobre a importância do toque físico para a psique humana, Kathlenn Keating[9] (1993) afirma

O toque físico não é apenas agradável. Ele é necessário. A pesquisa científica respalda a teoria de que a estimulação pelo toque é absolutamente necessária para o nosso bem-estar tanto físico quanto emocional. (KEATING, 1993)

Estudos realizados por Geslaine (SANTOS)[10] na área médica demonstram que “os toques afetivos nas demonstrações cotidianas de afeição seja o abraço, a mão o rosto, o beijo, ou mesmo o simples ato de pegar nas mãos carinhosamente liberam endorfinas no nosso corpo”. Evidente então que o contato humano é indispensável à observância da dignidade humana, sendo certo que a ausência destes acarreta significativas alterações na saúde física e psicológica daqueles que estão privados do contato humano.

É cediço que o “regime de isolamento” proposto pela Secretaria de Administração Penitenciária do Ceará, ao colocar diversos empecilhos infligirá graves, e talvez irreparáveis, danos aos apenados. A ausência de contato com o mundo extramuros, e principalmente, a ausência do sentimento de amor e carinho existente na visitação íntima pode ser equiparada a um tratamento cruel e desumano, uma vez que não será oportunizado aos apenados outra realidade que não a solidão e o vazio existentes no cárcere. Por isso mesmo, tal regime deve ser veementemente combatido pela sociedade.

Do Isolamento Prolongado dos Apenados e da Aplicação de Sanções Coletivas

Outra ilegalidade existente na portaria ora discutida diz respeito à ocorrência da triagem em prazo de, no mínimo, 30 dias, para “avaliação do perfil psicológico”. Sobre o tema, assim está disposto na norma[11] combalida

Art. 20. O Centro de Triagem e Observação Criminológica – CTOC tem como objetivo fazer a triagem observando o perfil criminológico dos presos, bem como, a individualização de todos os internos, no sentido de que sejam custodiados de forma a respeitar suas condições pessoais, sua integridade física e sua dignidade, devendo ser avaliados por uma equipe multidisciplinar que fará parte do fluxo de atendimento.

Parágrafo único. Por se tratar de estabelecimento de rotina diferenciada o (a) preso (a) só poderá receber visita após o término do período de triagem que será de no mínimo de 30 (trinta) dias. (sem grifos no original)

Inicialmente é imperioso reconhecer que a portaria faz uma penalização indistinta e generalizada a ser aplicada aos presos, à medida que impõe uma triagem forçada, pelo prazo mínimo de 30 dias. Não há no âmbito do texto normativo qualquer imputação individual da norma. Deste modo, é fácil reconhecer que ela deverá ser indistintamente aplicada no âmbito dos presídios cearenses.

A Lei de Execuções Penais[12], por seu turno, assim dispõe

Art. 45 Não haverá falta nem sanção disciplinar sem expressa e anterior previsão legal ou regulamentar.

§1º As sanções não poderão colocar em perigo a integridade física e moral do condenado.]

(…)

§3º são vedadas as sanções coletivas.

Notório que a Lei de Execuções Penais adotou, ao estilo do que ocorre com o Código Penal, o princípio da anterioridade para aplicação das sanções. Foi além ao incorporar também o princípio da individualização da pena (no caso da sanção), não permitindo que os apenados sejam submetidos a sanções disciplinares para as quais não deram causa. A LEP também contém previsão expressa quanto ao tempo máximo de duração dos regimes excepcionais, conforme está disposto em seu art. 58[13] in verbis

Art. 58 O isolamento, a suspensão e a restrição de direitos não poderão exceder a trinta dias, ressalvada a hipótese do regime disciplinar diferenciado.

Parágrafo único. O isolamento será sempre comunicado ao Juiz da execução.

Fica fácil, observando a normal legal, questionar então qual a legitimidade da Portaria Estadual para implicar a todos os presos, indistintamente e, independente de suas condutas pessoais, a submissão ao regime de triagem pelo período mínimo de 30 dias. Além disso, a malograda portaria não faz qualquer ressalva quanto à necessária comunicação da situação excepcional de isolamento do apenado ao Juiz da Execução.

É de se indagar qual a autoridade, ou mesmo o embasamento científico-filosófico, possível de sustentar a aplicação de tão gravoso regime de encarceramento aos apenados indistintamente. Como restou demonstrado no arcabouço da LEP, o prazo máximo para a pena de isolamento seria de 30 dias. A portaria posta à discussão estabelece esse mesmo prazo de 30 dias como período mínimo. É flagrante a ilegalidade da referida norma.

Percebe-se facilmente que, nesta situação específica do isolamento dos presos para efeitos de triagem, independentemente de se levantar questões acerca da mantença da dignidade da pessoa humana ou mesmo da importância do toque e convívio social do apenado, há flagrante ilegalidade a ser imediatamente rechaçada pela sociedade. Permitir a aplicação de verdadeiro regime de exceção no sistema penitenciário estadual do Ceará é flertar com a volta do autoritarismo conhecido de outrora. Nossa Carta Magna teve início justamente após um período conturbado de nossa história recente, sendo a defesa dos encarcerados contra as arbitrariedades da tutela estatal um de seus pontos basilares.

Ausência de Critérios Objetivos para a Ocorrência da Perda do Direito de Visitas

Por fim, mas sem esgotar todo o conjunto de ilegalidades existente na malograda portaria expedida pela administração penitenciária do Ceará, temos a ausência de critérios objetivos para a ocorrência da perda do direito de visitas. Sobre o tema, assim regulamenta a fatídica norma[14]

Art. 31. O preso que cometer falta disciplinar média ou grave, poderá ter restringido ou suspenso o direito a visita.

Art. 32. Em caso de rebelião, motins, ou situações de tensão na área da segurança, o diretor do estabelecimento penal poderá suspender as visitas buscando restabelecer a ordem, segurança e disciplina da Unidade, não comprometendo sobremaneira os direitos do preso, mormente ao vínculo familiar, mais ao contrário, reduzindo os danos incididos.

Art. 33. Em caso de ocorrências deverá ser recolhida a carteira de visitante e encaminhada ao Chefe de Segurança e Disciplina, acompanhada do registro de ocorrências internas e/ou do Boletim de Ocorrência gerado na Delegacia.

Art. 34. O visitante, familiar ou não, poderá ter seu ingresso suspenso, por decisão motivada da direção da unidade, por:

I – 90 a 180 dias, quando em decorrência, da sua conduta, resultar qualquer fato danoso à segurança e disciplina da Unidade, em desrespeito às regras estabelecidas nesta Instrução Normativa;

II – 90 a 180 dias, quando tentar adentrar a Unidade com qualquer substância ou objetos, que comprometam a ordem, a disciplina e a segurança da Unidade

É incontroverso que a norma em comento institucionaliza um vácuo legal a ser discricionariamente preenchido pela autoridade penitenciária a seu bel prazer. Tem-se, por exemplo, a possibilidade de suspensão do direito de visita na ocorrência de “tensão na área de segurança”. É de se questionar: que tensão? Quais seriam os critérios legais para definir a exata medida da “tensão na área de segurança” apta a permitir à autoridade penitenciária a suspensão do direito de visita dos presos?

É perceptível que o referido estatuto legal permite uma série de arbitrariedades por parte da autoridade penitenciária, uma vez que não define as exatas medidas permissivas, à aplicação da sanção estabelecida, daquilo que seria sua fundamentação de existir. Se colocarmos duas pessoas diferentes a cargo da administração penitenciária é certo que teremos, portanto, dois critérios diferentes para utilização desse tipo de sanção. Essa realidade vai fatalmente de encontro ao espírito dos próprios fundamentos legais da sanção penal.

A priori, como já visto anteriormente, a Lei de Execuções Penais – norma balizadora de todo o sistema penitenciário nacional – adotou como pedra de toque da aplicação das sanções disciplinares o denominado princípio da anterioridade. Por esta razão, ao apenado somente podem ser atribuídas sanções por ações e/ou omissões previamente estabelecidas. Pela dicção legal da portaria emitida pela Secretaria de Administração Penitenciária do Estado do Ceará, é bastante vago o rol de condutas possíveis de aplicação da pena.

É de se questionar quais seriam os limites penais (gramaticais) para o entendimento do verbete “tensão na área de segurança”, apto a ensejar a suspensão do direito de visitas. A norma legal questionada é imprecisa em sua delimitação legal, o que por si só fere substancialmente o espírito da Lei de Execuções Penais. Sem uma limitação clara e definida quanto ao que seria essa “tensão”, o que a norma faz, em realidade, é flertar com a arbitrariedade da autoridade prisional constituída, encontrando limites tão somente na moral daquele que ocupar tal cargo. Essa situação é inimaginável no Estado Democrático de Direito em que vivemos.

Não bastasse tal fato, é necessário reconhecer outra ilegalidade constante do tópico assinalado. Assim como ocorreu no tópico anterior, há aqui um flagrante ultraje ao princípio da individualização da pena. Percebe-se na norma em epígrafe que ela não faz quaisquer distinções entre os apenados de modo que, havendo “tensão na área de segurança”, toda a população carcerária do presídio sofrerá, indistintamente, a penalidade de suspensão dos direitos de visita.

Há ainda, outro abuso existente na previsão normativa da Portaria 624, ora combalida, que diz respeito à transcendência da pena para além da pessoa do apenado. É importante dizer que não só os presos têm direito ao contato com o mundo externo – com o intuito de permitir-lhes futura ressocialização – mas também os familiares e amigos do preso possuem o direito de com ele manter contato. É que para além do delito cometido que justifiquem a imposição da reclusão do indivíduo pelo Estado, existem ali subjacentes na pessoa do preso uma série de relações interpessoais. Existe um pai (mãe), filho(a), marido (esposa), avô(ó) etc. E estes necessitam do contato com seus familiares, ainda que eles estejam cumprindo pena. Negar tais relações familiares, sem fundamento hábil a justificar tal medida, é, em último grau, negar esse direito de convivência com o apenado aos seus familiares, o que de certo vai contra os nossos anseios sociais, ferindo uma série de garantias constitucionais outorgadas à família.

Vedação do Cadastro de Visitas que Estejam Respondendo a Processos

Outro ponto que merece o devido destaque na portaria ora analisada é a proibição do cadastramento e recepção de visitas que estejam respondendo a processos criminais, constante do art. 13, VI, in verbis

Art. 13 Não será permitida a visita de pessoa que:

VI – responda a processo criminal ou em cumprimento de pena.

É sabido que todo o nosso ordenamento jurídico adota, no âmbito do processo penal, o princípio da presunção de inocência. Segundo este, é considerado inocente todo aquele que não tiver contra si condenação penal transitada em julgado, ou seja, da qual não caiba mais recurso. Um dos muitos efeitos da presunção de inocência é justamente a livre fruição e gozo de todos os direitos constitucional e legalmente assegurados aos cidadãos.

É direito de todo cidadão inocente a livre locomoção em território nacional. Considerando que a Carta Magna erige a família como instituição a ser defendida e preservada pelo Estado, é de se concluir que, não havendo condenação transitada em julgado em desfavor de uma pessoa, não pode a ela ser negada o direito de visitar pessoa presa pelo simples fato de responder a processo criminal. No entanto, é justamente tal proibição que consta prescrita na norma em epígrafe.

Desde a edição da malfadada portaria há relatos de presos que foram impedidos de ver familiares pelo simples fato destes estarem respondendo a processos criminais. O estado de exceção criado no âmbito dos presídios cearenses vai de total encontro aos fundamentos constitucionais de nosso ordenamento jurídico, fazendo transpassar inclusive os efeitos da condenação penal aos familiares dos presos, que ficam impedidos de vê-los sob a fundamentação espúria acima assinalada.

É cediço que a presunção de inocência veio a constituir eixo principal da nossa Constituição Federal em razão dos excessos cometidos durante o regime militar, principalmente no tocante ao tratamento destinado aos presos. É inconcebível que agora, em plena vigência do período democrático, se tolere a existência de regra desta estirpe em plena vigência.

Inclusão dos Apenados na Ala de Segurança Máxima sem Direito ao Contraditório e à Ampla Defesa

Com o advento da Portaria 624/2019 da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado do Ceará cresceu vertiginosamente o número de apenados que foram transferidos para a ala de segurança máxima dos presídios. O que se viu, na realidade carcerária cearense, foi uma verdadeira “caça às bruxas” em desfavor dos presos.

Um ponto interessante a se notar nessa questão é a completa ausência do devido processo legal para tal fim. Em verdade, os presos acabaram sendo (e ainda o são) colocados em regime de exceção sem que exista qualquer procedimento com oferta do contraditório e ampla defesa ao apenado. No final das contas, tudo ficava a cabo da direção penitenciária em determinar, ao seu bel prazer, quem deveria ou não ser incluso na ala de segurança máxima.

Um dos reflexos da inclusão dos detentos na ala de segurança máxima dos presídios é, em razão da fatídica portaria, a dificuldade – ainda maior – que estes têm em receber visitas. Sobre o assunto, assim dispõe o art. 19[15]

Art. 19. Aos (as) presos (as) custodiados (as) em ala de segurança máxima, a visita ocorrerá conforme o art. 2º desta portaria, no parlatório, através do interfone, sem contato físico e com duração de até duas horas.

Parágrafo único. Para os (as) presos (as) custodiados (as) nas alas de segurança máxima as visitas serão agendadas previamente, na unidade prisional que o (a) mesmo (a) estiver recolhido, podendo ser realizado o agendamento pessoalmente, por telefone ou através do endereço eletrônico da respectiva unidade prisional.

É notório observar que a portaria em comento coloca ainda mais dificuldades no convívio do preso com suas visitas, em especial a família, ao evitar, inclusive, a possibilidade do acolhimento percebido através do contato, em especial o abraço. Tal regime de exceção criado, quando somado ao fato da inexistência de procedimento sujeito ao contraditório para inclusão na ala de segurança máxima, faz surgir um verdadeiro sistema de punição paralelo ao estatal. Ora, se a direção penitenciária pode escolher ao próprio critério quais presos vão para a ala de segurança máxima, e uma vez nestas, quantas visitas, em quais dias, horários e limites de pessoas, o que se vê é o surgimento de um “novo processo criminal” regido única e exclusivamente pela vontade do diretor penitenciário.

A existência desse sistema legal “paralelo” é, sem deixar quaisquer dúvidas, um enorme afronte ao Estado Democrático de Direito, à Constituição Federal, aos pactos internacionais firmados pelos pelo Brasil em prol da dignidade da pessoa humana, e, em última razão, contra a própria consciência e moral humana.

INCONSTITUCIONALIDADE E ILEGALIDADE PATENTES DA PORTARIA

A pirâmide de Kelsen é uma teoria criada pelo jurista e filósofo Hans Kelsen que se baseia no chamado princípio da hierarquia existente entre normas legais. Semelhante à pirâmide o topo seria a norma maior, a qual todas as demais devem obediência. Conforme se descem os níveis da pirâmide, os postos inferiores devem obediência aos superiores, mantendo-se assim uma unicidade e harmonia entre os diversos regramentos existentes em uma sociedade.

No Direito contemporâneo de nossa sociedade pode-se dizer claramente que o topo da pirâmide do nosso ordenamento jurídico se faz presente em nossa Constituição Federal. Nesse contexto, no meio da pirâmide temos a legislação ordinária, produzida por nossos congressistas – legitimamente eleitos pelo povo, de quem o poder deriva. Por sua vez, na base da pirâmide, citamos as diversas legislações infralegais, aqui entendidas como aqueles que não são detentores de cargos eletivos. Ao tratar sobre o tema, Cretella Junior[16] leciona

Acima da lei, a Constituição, em posição hierárquica superior, de natureza formal. Abaixo da Lei o regulamento. Entre estes também há hierarquia de caráter formal.

Se a lei conflita com disposição expressa do texto constitucional, é lei inválida; se o regulamento ofende o texto legal regulamentado, o valor que deveria ter desaparece.

(…)

A lei é ato legislativo. O regulamento é ato executivo. E nisto se identifica com a lei.

A lei ocupa um lugar à parte, na imperatividade jurídica. Nenhum pronunciamento se fará contra texto expresso de lei.

Vê-se que a consonância com os ditames legais é o ponto fulcral da atuação do administrador público em sua atuação. Muito embora tenha este a possibilidade de atuar conforme sua conveniência e oportunidade, é certo que ele nunca pode afastar-se dos ditames legais. Foi o que ocorreu no momento da edição da fatídica Portaria ora discutida.

É certo que a portaria supramencionada deveria pautar-se e limitar-se a instrumentalizar os comandos legais, em especial o da Lei de Execuções Penais, que rege em âmbito nacional o sistema carcerário brasileiro.

Como visto alhures, a LEP[17] veda expressamente a aplicação de sanção disciplinar ao apenado sem que haja observância do princípio da anterioridade e de forma coletiva. É o que se depreende do art. 45, §3º da citada norma

Art. 45. Não haverá falta nem sanção disciplinar sem expressa e anterior previsão legal ou regulamentar.

§ 3º. São vedadas sanções coletivas.

Analisemos, a título de exemplo a questão da suspensão de visitação em razão da ocorrência de “tensão na área de segurança”. Suspender indiscriminada e invariavelmente o direito de visitação de todos os custodiados reflete verdadeira ilegalidade das medidas adotadas. Decerto, a conduta esperada da administração prisional era identificar a origem da “tensão” e aplicar as reprimendas estabelecidas na portaria tão somente ao seu agente causador.

Outra hipótese onde se verifica a ilegalidade das medidas adotadas é a adoção do isolamento em razão da triagem em prazo não inferior a 30 dias. A Lei de Execuções Penais[18] é clara ao dizer que

Art. 58. O isolamento, a suspensão e a restrição de direitos não poderão exceder a trinta dias, ressalvadas a hipótese do regime disciplinar diferenciado.

Fica clara a ilegalidade constante na malograda portaria à medida em que ela estabelece o período de isolamento para efeito de triagem pelo mínimo de 30 dias. Este é o período máximo pelo qual a LEP permite a aplicação da medida de isolamento. Não são necessárias maiores digressões ou divagações para chegar-se à inexorável conclusão de que a Portaria objeto de discussão deste artigo está eivada de ilegalidade.

Se no âmbito da legalidade podemos perceber uma série de irregularidades no texto normativo da portaria, no âmbito da constitucionalidade, a situação desta é ainda pior. Como visto ao longo do artigo, a dignidade da pessoa humana é – sem sombra de dúvidas, um dos princípios mais caros à nossa Carta Magna. A promoção da vida humana com um mínimo de dignidade está atrelada à nossa própria condição de ser social. Se assim não o fosse, o que nos diferenciaria das comunidades animais?

A dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito brasileiro, encontrando amparo legal na Carta Magna, em seu art. 1º, III. Seu objetivo é assegurar a todos os homens um conjunto mínimo de direitos que devem ser respeitados por todos (sociedade e poder público).

Ingo Sarlet[19] (2001, p. 60) leciona

Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão dos demais seres humanos.

Como é um fundamento da nossa sociedade, a dignidade humana é um valor central que serve de moldura a todo o nosso ordenamento jurídico. Não pode ser mitigado ou relativizado, pois possui caráter absoluto uma vez que é alicerce do próprio regime democrático ao qual estamos submetidos.

Sobre o tema, Flávia Piovesan[20] (2004, p. 92) ensina

A dignidade da pessoa humana, (…) está erigida como princípio matriz da Constituição, imprimindo-lhe unidade de sentido, condicionando a interpretação das suas normas e revelando-se, ao lado dos Direitos e Garantias Fundamentais, como cânone constitucional que incorpora “as exigências de justiça e dos valores éticos, conferindo suporte axiológico a todo o sistema jurídico brasileiro.

E arremata (PIOVESAN[21], 2004)

É no valor da dignidade da pessoa humana que a ordem jurídica encontra seu próprio sentido, sendo seu ponto de partida e seu ponto de chegada, na tarefa de interpretação normativa. Consagra-se, assim, dignidade da pessoa humana como verdadeiro super princípio a orientar o Direito Internacional e o Interno.

O STF[22] já se pronunciou sobre a dignidade humana como centro balizador do nosso ordenamento jurídico em diversas situações, como se vê in litteris

(…) o postulado da dignidade da pessoa humana, que representa – considerada a centralidade desse princípio essencial (CF, art. 1º, III) – significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em nosso País e que traduz, de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta, entre nós, a ordem republicana e democrática consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo (…). (HC 95464, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 03/02/2009, DJe-048 DIVULG 12-03-2009 PUBLIC 13-03-2009 EMENT VOL-02352-03 PP-00466)

Mais especificamente no âmbito do direito penal, em especial no que tange ao sistema prisional e o direito dos presos, pronunciou-se o Supremo Tribunal Federal[23]

HABEAS CORPUS. INCONSTITUCIONALIDADE DA CHAMADA “EXECUÇÃO ANTECIPADA DA PENA”. ART. 5º, LVII, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. O art. 637 do CPP estabelece que “[o] recurso extraordinário não tem efeito suspensivo, e uma vez arrazoados pelo recorrido os autos do traslado, os originais baixarão à primeira instância para a execução da sentença”. A Lei de Execução Penal condicionou a execução da pena privativa de liberdade ao trânsito em julgado da sentença condenatória. A Constituição do Brasil de 1988 definiu, em seu art. 5º, inc. LVII, que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. 2. Daí a conclusão de que os preceitos veiculados pela Lei n. 7.210/84, além de adequados à ordem constitucional vigente, sobrepõem-se, temporal e materialmente, ao disposto no art. 637 do CPP. 3. Disso resulta que a prisão antes do trânsito em julgado da condenação somente pode ser decretada a título cautelar. 4. A ampla defesa, não se a pode visualizar de modo restrito. Engloba todas as fases processuais, inclusive as recursais de natureza extraordinária. Por isso a execução da sentença após o julgamento do recurso de apelação significa, também, restrição do direito de defesa, caracterizando desequilíbrio entre a pretensão estatal de aplicar a pena e o direito, do acusado, de elidir essa pretensão. 5. A antecipação da execução penal, ademais de incompatível com o texto da Constituição, apenas poderia ser justificada em nome da conveniência dos magistrados — – não do processo penal. A prestigiar-se o princípio constitucional, dizem, os tribunais [leia-se STJ e STF] serão inundados por recursos especiais e extraordinários, e subseqüentes agravos e embargos, além do que “ninguém mais será preso”. Eis o que poderia ser apontado como incitação à “jurisprudência defensiva”, que, no extremo, reduz a amplitude ou mesmo amputa garantias constitucionais. A comodidade, a melhor operacionalidade de funcionamento do STF não pode ser lograda a esse preço. 6. Nas democracias mesmo os criminosos são sujeitos de direitos. Não perdem essa qualidade, para se transformarem em objetos processuais. São pessoas, inseridas entre aquelas beneficiadas pela afirmação constitucional da sua dignidade. É inadmissível a sua exclusão social, sem que sejam consideradas, em quaisquer circunstâncias, as singularidades de cada infração penal, o que somente se pode apurar plenamente quando transitada em julgado a condenação de cada qual Ordem concedida. STF – HC: 91232 PE, Relator: EROS GRAU, Data de Julgamento: 06/11/2007, Segunda Turma, Data de Publicação: DJe-157 DIVULG 06-12-2007 PUBLIC 07-12-2007 DJ 07-12-2007 PP-00098 EMENT VOL-02302-02 PP-00284) (sem grifos no original)

Portanto, é lógico concluir pela inconstitucionalidade e ilegalidade das medidas adotadas quando da elaboração da Portaria 624/2019 pela Secretaria de Administração Penitenciária do Estado do Ceará. Por qualquer que seja a ótica que se enfrente o problema, é flagrante o desrespeito das sanções disciplinada no texto normativo aos princípios basilares da nossa República, em especial – mas não somente – a dignidade da pessoa humana. Sendo flagrante as ofensas legais e principiológicos da citada norma, é urgente a necessidade de combate da mesma pelas autoridades constituídas, em especial judiciário e Ministério Público, enquanto guardiões da integridade do sistema legal pátrio.

Como visto, uma simples análise dos termos da portaria foi suficiente para vislumbrar as irregularidades apontadas, sendo certo que a sua existência no plano jurídico nacional não se coaduna com os demais preceitos constitucionais e legais do nosso país. A vigência da norma em questão é um acinte ao Estado Democrático de Direito brasileiro, e principalmente à nossa sociedade, que deve a todo custo evitar subterfúgios que possam embasar quaisquer condutas correlatas com as tiranias de outrora.

CONCLUSÃO

Podemos observar no desenvolvimento do trabalho como é flagrante a inconstitucionalidade e ilegalidade da Portaria 624 da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado do Ceará.

É cediço que nossa sociedade desde o advento de nossa Carta Magna atribui à dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República. Por isso mesmo, a todos são assegurados direitos individuais – e universais – mínimos que garanta uma vida digna. Muito embora uma parcela da sociedade tenha por bem considerar os apenados como pessoas de uma classe inferior e, portanto, não merecedora de direitos, a Constituição assim sabiamente não o fez.

Podemos dizer que o sistema penal brasileiro evoluiu bastante sob a égide da nossa Carta Magna, em especial no tratamento legal destinado aos presos, lhes assegurando uma série de direitos e prerrogativas. Tais garantias têm, dentre outras coisas, um forte escopo ressocializador, ao mostrar que, a despeito dos atos cometidos, os apenados ainda são humanos, e, portanto, merecedores de direitos.

Muito embora essa evolução seja nítida, principalmente no tocante à Lei de Execuções Penais, infelizmente muitas autoridades, no uso de suas prerrogativas normatizadoras, insistem em agir de forma retrógrada, elaborando normas e diretrizes que não compactuam com os preceitos constitucionais e legais. Foi o que ocorreu quando da edição da norma em comento.

As ilegalidades constantes da malograda portaria são visíveis a olho nu, não necessitando nenhuma análise detida, ou interpretação teleológica da norma. Estão lá para quem quer que se disponha a analisar a mesma. Tais regras não possuem base e nem fundamentação legal/moral que as sustentem vigentes em meio ao nosso regramento legal. Justamente por isso é de bom tom que sejam revistas.

Mas não apenas revistas, a análise e estudo destas normas levam indubitavelmente a uma questão maior: por qual razão, frente a todo o ordenamento jurídico pátrio, foi possível o surgimento da referida portaria? Onde falhamos, enquanto sociedade, para que fosse possível que determinadas pessoas acreditassem poder normatizar uma rotina de comportamento nos cárceres cearenses ao arrepio da Carta Maior e da própria Lei? Como se vê a questão vai muito além da mera elaboração de norma inconstitucional e ilegal. Ela chega invariavelmente à possibilidade de, no contexto da nossa sociedade atual, alguém ainda pensar ser válido limitar e refrear condições mínimas de dignidade e humanidade àqueles que estão cumprindo pena, colocando-os à margem da própria sociedade.

Como visto, é inegável que os presos, para muito além de pessoas que estão cumprindo sanções em razão do cometimento de ilícitos penais, são pessoas de direito, merecendo, então, nossa solidariedade e respeito. Assegurar a eles condições mínimas de dignidade e humanidade representa não uma benesse a eles, mas sim uma garantia de que nós mantemos em nós ainda aquilo que nos difere dos demais animais: nossa humanidade.

Pode-se concluir, por fim, que a citada norma objeto do presente artigo ainda que sob o paleo da argumentação da “preservação da segurança e disciplina no interior das unidades”, como foi enumerado em sua exposição de motivos, não subsiste em nosso ordenamento pois não está em consonância com o ordenamento jurídico. Em verdade, a norma combalida vai de encontro fatal a tudo o que prega a Constituição e a Lei de Execuções Penais. Mesmo ao fim que se propõe, “preservação da segurança e disciplina no interior das unidades”, podemos dizer que a norma é ineficaz. Hora, se trataremos os apenados como animais, não lhe garantindo condições humanas mínimas de existência, é óbvio que eles reagirão como animais. E animais revidam. É de bom tom, portanto, a revisão da citada norma, devendo a esta ser devidamente equalizada com o sistema constitucional e legal brasileiro, preservando a garantia de condições mínimas de dignidade aos apenados.

REFERÊNCIAS

BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil, Brasília-DF, Senado, 1988.

BRASIL, Lei n. 7.210 de julho de 1984, Lei de Execução Penal Brasília/DF, 1984.

BRASIL, Decreto lei n. 3.689, de 03 de outubro de 1941.

CRETELLA JÚNIOR, José, Tratado de Direito Administrativo, São Paulo, 2016.

Declaração Universal dos Direitos dos Homens, adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas (resolução 217 A III) em 10 de dezembro 1948.

DIÁRIO DO PODER, Ceará contabiliza 90 ataques e 94 presos, no 8º dia da onda de violência no Estado. Disponível em: https://diariodopoder.com.br/brasil-e-regioes/ceara-contabiliza-90-ataques-e-94-presos-no-8o-dia-da-onda-de-violencia-no-estado, acessado em 26.05.2021, às 17:58.

KEATHING, Kathleen. A terapia do abraço. Disponível em https://indicalivros.com/pdf/a-terapia-do-abraco-kathleen-keating, Acesso em 24 de abril de 2019.

MELO, Celso de, Habeas corpus 95464. Supremo Tribunal Federal

GRAU, Eros., Habeas corpus 91232, Supremos Tribunal Federal.

PIOVESAN, Flávia, Direitos humanos e o direito constitucional internacional, 4 ed., São Paulo, Max Limonad, 2000.

SAP, Portaria 624, Secretaria de Administração Penitenciária do Ceará, 2019.

SANTOS, Geslaine Janaina Bueno dos e SEVERIANO, Maria Izabel Rodrigues, A importância do toque terapêutico. Disponível em http://www.fiepbulletin.net/index.php/fiepbulletin/article/viewFile/447/837, consultado em 27.05.2021, às 08:25.

SARLET, Ingo Wolfgang, A eficácia dos direitos fundamentais, 2ª ed. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2001.

Notas de Rodapé

[1] Advogada, Doutoranda, Universidade Nacional de Mar Del Plata. Pós-Doutora pelas Universidades de Salamanca e Messina (Itália). Endereço eletrônico: palomagurgel_adv@hotmail.com.

[2] https://diariodopoder.com.br/brasil-e-regioes/ceara-contabiliza-90-ataques-e-94-presos-no-8o-dia-da-onda-de-violencia-no-estado, acessado em 26.05.2021, às 17:58.

[3] Portaria 624/2019, SAP/CE.

[4] Portaria 624/2019, SAP/CE.

[5] Portaria 624/2019, SAP do Estado do Ceará.

[6] Portaria 624/2019, SAP do Estado do Ceará.

[7] Portaria 624/2019, SAP do Estado do Ceará.

[8] Portaria 624/2019, SAP do Estado do Ceará.

[9] Teoria do Abraço, 1993.

[10] A importância do toque terapêutico, DOS SANTOS, Geslaine Janaina Bueno e SEVERIANO, Maria Izabel Rodrigues, Disponível em http://www.fiepbulletin.net/index.php/fiepbulletin/article/viewFile/447/837, consultado em 27.05.2021, às 08:25.

[11] Portaria 624/2019, SAP/CE.

[12] LEP.

[13] LEP.

[14] Portaria 624/2019, SAP/CE.

[15] Portaria 624/2019 SAP/CE.

[16] CRETELLA JÚNIOR, José, 2006 – Tratado de Direito Administrativo.

[17] LEP.

[18] LEP.

[19] SARLET, Ingo Wolfgang, A eficácia dos direitos fundamentais, 2ª ed. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2001.

[20] PIOVESAN, Flávia, Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 4 ed., São Paulo, Max Limonad, 2000.

[21] PIOVESAN, Flávia, Direitos Humanos, O Princípio da dignidade da pessoa humana e a Constituição de 1988, 2004.

[22] HC 95464, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO.

[23] STF HC: 91232 PE.