O sionismo arendtiano e a apatridia dos judeus na Shoá

Arendtian zionism and the statelessness of the jews at the Shoah

DOI: 10.19135/revista.consinter.00020.25

Recebido/Received 08/10/2024 – Aprovado/Approved 28/02/2025

Desirée Garção Puosso[1] – https://orcid.org/0000-0001-9292-7353

Carlos Roberto Husek[2]– https://orcid.org/0000-0003-2369-6349

Resumo

O povo judeu sofreu as perseguições do Reich Nazista fruto de um sentimento antissemita que já vinha de muito antes do regime Nazista. O clima de xenofobia e discriminação a tudo que era considerado diferente ascendia exponencialmente a cada dia. Muitos grupos perseguidos durante esse período tiveram seus direitos reduzidos a nada, em especial durante as Leis de Nuremberg. Esse corpo jurídico incorporava muitas das teorias raciais embasadas pelo racismo científico da ideologia nazista. A percepção de Arendt sobre esses eventos históricos é indispensável para a reflexão do tema e sua crítica ao sionismo político conservador reflete um dilema mais amplo entre nacionalismo e direitos humanos. A autora levanta reflexões fundamentais sobre o paradoxo da construção nacional em meio a estruturas excludentes e a lógica da soberania estatal. A concepção arendtiana e de outros autores igualmente importantes sobre sionismo, alinhada à ideia de um Estado binacional e de uma política de cooperação multiétnica e multicultural, confronta a lógica do nacionalismo tradicional e expõe as fragilidades dos Estados-nação na garantia universal dos direitos humanos.

Palavras-chave: Direitos. Sionismo. Multicultural.

Abstract

The Jewish people were persecuted by the Nazi Reich as a result of an anti-Semitic sentiment that existed long before the Nazi regime. The climate of xenophobia and discrimination against everything that was considered different grew exponentially every day. Many groups persecuted during this period had their rights reduced to nothing, especially during the Nuremberg Laws. This body of law incorporated many of the racial theories based on the scientific racism of Nazi ideology. Arendt's perception of these historical events is indispensable for reflection on the subject and her critique of conservative political Zionism reflects a broader dilemma between nationalism and human rights. The author raises fundamental reflections on the paradox of national construction in the midst of exclusionary structures and the logic of state sovereignty. Arendt's conception and that of other equally important authors on Zionism, aligned with the idea of a binational state and a policy of multiethnic and multicultural cooperation, confronts the logic of traditional nationalism and exposes the weaknesses of nation-states in the universal guarantee of human rights.

Keywords: Rights. Zionism. Multiculturalism.

Sumário: 1. Introdução; 2. O pária e a sociedade do descarte; 3. A importância do conceito de nação e de nacionalismo; 4. Sionismo arendtiano e o “direito a ter direitos”; 5. Considerações finais; 6. Referências.

1  INTRODUÇÃO

O presente artigo é um ensaio reflexivo sobre a posição de Hannah Arendt em relação ao sionismo, analisando de forma inovadora como seu pensamento se insere no debate sobre a apatridia dos judeus durante o Holocausto ou, conforme alguns autores preferem designar: Shoá, e as implicações do movimento sionista na configuração do Estado de Israel.

Para isso, utiliza-se a revisão bibliográfica como método, buscando compreender o movimento sionista sob a lente arendtiana e as contradições que emergem desse contexto e,  para tal, foram analisadas algumas obras de Hannah Arendt, de modo que se pôde perceber que o sionismo de Hannah Arendt é de muitas formas similar ao pensamento do sionismo “cultural” de Aham Haam[3] e distinto do modo Herzliano de pensar o sionismo, mas ela chega a isso devido a razões que, em sua visão, são altamente políticas.

Como mostram os ensaios da década de 1940 da coleção de Escritos Judaicos, a opinião de Hannah Arendt em relação à corrente herzliana do sionismo político, que moldou a perspectiva e as políticas do movimento, é elogiosa com relação a seus pontos fortes, ainda que fortemente crítica de suas deficiências e perigos potenciais.

Isto porque o movimento sionista é multifacetado, havendo diferentes correntes e autores que seguem determinadas linhas e de outra monta, que criticam outras, ou seja, existe sionismo de direita, de esquerda, religioso, cultural, sendo um movimento político muito amplo que visa o direito à autodeterminação do povo judeu e à existência de um Estado nacional judaico independente e soberano, ou seja, trata-se do nacionalismo judaico.

É realizada no presente uma reflexão acerca da visão da complexa autora em relação ao sionismo, contextualizando o histórico que levou ao surgimento do movimento sionista, vez que como se sabe o povo judeu sofreu as perseguições do Reich Nazista fruto de um sentimento antissemita que já vinha de muito antes do nazismo.

A questão central que orienta a pesquisa é no sentido de até que ponto a crítica de Arendt ao sionismo político reflete um dilema mais amplo entre nacionalismo e direitos humanos no contexto do pós-guerra? Ao considerar a condição dos judeus apátridas sob os regimes totalitários e sua posterior luta por autodeterminação, a autora levanta reflexões fundamentais sobre o paradoxo da construção nacional em meio a estruturas excludentes e a lógica da soberania estatal.

Deste modo, parte-se da hipótese de que a concepção arendtiana de sionismo, alinhada à ideia de um Estado binacional e de uma política de cooperação multiétnica e multicultural, confronta a lógica do nacionalismo tradicional e expõe as fragilidades dos Estados-nação na garantia universal dos direitos humanos. Ao passo em que Arendt reconhece a necessidade de um espaço político próprio para os judeus (um Estado-nação), sua crítica ao sionismo político conservador, segue pelo trilho de denunciar o risco de um Estado construído sob bases militarizadas e excludentes, reproduzindo a lógica de exclusão que vitimou os próprios judeus na Europa.

Para desenvolver essa análise, o artigo se estrutura da seguinte maneira: na primeira parte, são trazidos os conceitos de pária e sociedade do descarte, explorando como a apatridia dos judeus se insere nesse contexto. Em seguida, na segunda parte, examina-se a relação entre o sionismo arendtiano e o direito a ter direitos, contrapondo sua perspectiva a outras vertentes do sionismo. Por fim, na terceira parte, apresenta-se as considerações finais, avaliando as implicações do pensamento arendtiano para os debates contemporâneos sobre nacionalismo, direitos humanos e autodeterminação dos povos, temas relevantes para os dias atuais.

2  O PÁRIA E A SOCIEDADE DO DESCARTE

É premente analisar o movimento sionista na perspectiva do pensamento arendtiano, onde encontramos definidos os conceitos de pária, parvenu e a política da sociedade do descarte, conceitos esses tão conhecidos e difundidos em sua obra, o que será realizado a seguir.

A política em Arendt se centra sobre a liberdade, que a maior preocupação em suas obras. Outrossim, o nazismo retirou exatamente essa liberdade da política, chegando aos termos de negar a cidadania aos judeus, tornando-os apátridas.

Nesse sentido, na obra Origens do Totalitarismo, Arendt esclarece que a cidadania, fundação da política, era à época dos totalitarismos europeus negada seletivamente às minorias associais com base na raça.  Os judeus eram apátridas sem direitos, “lançados de volta a um peculiar estado de natureza” (ARENDT 1989, p. 388, Id. 2016, p. 100), estavam entre os primeiros que descobriram que, sem os direitos do cidadão, não existia algo como direitos fundamentais básicos.

Dentro deste contexto, importante esclarecer que à época sequer havia o conceito de “direitos humanos” tal qual o conhecemos hoje definido de maneira universal.

Muitos grupos de pessoas perseguidas durante esse período, tais como judeus, população LQBTQIAPN+, ciganos (povo Rom), pessoas com deficiência física (PCDs), tiveram seus direitos reduzidos a nada, pessoas essas classificadas por Arendt como párias numa sociedade do descarte, em especial durante as Leis de Nuremberg, visto que esse corpo jurídico incorporava muitas das teorias raciais embasadas pelo racismo científico da ideologia nazista.

Nesse momento, a pensadora reflete que se constituía uma nova classe de pessoas, os apátridas. E se olharmos para a história europeia como o desenvolvimento do Estado-nação europeu, ou como o desenvolvimento dos povos em Estados-nação, então essas pessoas, os apátridas, são o produto mais importante da história recente. “Desde 1920, quase todos os Estados europeus abrigaram grandes massas de pessoas que não têm nenhum direito de residência ou proteção consular de qualquer tipo – párias modernos” (ARENDT, 2016, p. 293).

Arendt explica que o fato dos direitos das minorias não se aplicar a essas pessoas indica o imediato fracasso de tais direitos e afirma que “eles falharam em face do mais moderno dos fenômenos” (ARENDT, 2016, p. 293).

Isto porque os ideais de nação e nacionalismo eram muito excludentes no período dos regimes totalitários no século passado. Não só excludente, como genocida, a ponto de expulsar, extraditar e assassinar pessoas/povos.

3  A IMPORTÂNCIA DO CONCEITO DE NAÇÃO E NACIONALISMO

Eric Hobsbawm (1990) nos faz refletir o que de fato é uma nação, critério que busca classificar grupos de seres humanos. Compreender a origem disso, ajuda-nos a examinar o fenômeno dos apátridas e do nacionalismo, em especial dos nacionalismos excludentes presente nos regimes totalitários ao redor do mundo.

Busca-se tentar compreender também a explicação de certos grupos terem se tornado “nações” e outros não.

O motivo disso geralmente é fundamentado com base em critérios simples como o idioma, a etnia, o território, história comum, traços culturais em comum e assim por diante.

O autor trata como nação qualquer corpo de pessoas suficientemente grande cujos membros consideram-se como integrantes de uma nação. Para ele, atualmente a palavra nação é utilizada de maneira muito ampla e que o conceito de nacionalismo fica muito esvaziado.

A visão de Hobsbawm sobre nação não é a dos governos, porta-vozes ou ativistas dos movimentos nacionalistas, mas das diversas pessoas físicas que formam essa massa de nacionais, portanto, sob essa ótica, é possível vislumbrar a importância de o movimento sionista ser respeitado e levado a cabo, assim como, qualquer reconhecimento mútuo de pertencimento nacional que quaisquer outros grupos viessem ou venham a ter.

Cumpre informar ainda que o autor é bem crítico aos historiadores que não procuram conhecer e levar em consideração o pleito dessas pessoas/povos quando da reivindicação de uma pátria.

Quanto ao sentimento de nacionalidade, tem-se que nos idos de 1860 na Europa, a língua era um indicador adequado da nacionalidade. Portanto, na Alemanha, os judeus ashkenazim eram considerados alemães, na medida em que o ídiche era um dialeto germânico derivado da Alemanha medieval, mas essa questão não era aceita pelos alemães antissemitas.

Por seu turno, os franceses, aceitavam os judeus da França como franceses, fossem ashkenazim (falavam ídiche) ou sefaradim (falavam ladino e/ou espanhol), desde que eles aceitassem as condições da cidadania francesa, o que incluía falar francês. Em suma, para o autor, a língua implicava uma escolha política, do contrário, a pessoa seria excluída daquela sociedade/nação.

Hobsbawm ainda critica o conceito de nação/nacionalismo liberal de Adam Smith, por considerar que nação seja apenas um grupo de indivíduos vivendo em um território do Estado, visto que, considerando que em cem anos essas pessoas morreriam e a “nação” tornar-se-ia inexistente.

Nessa esteira, para formar o conceito de nação, de fato, diversas questões devem ser levadas em consideração, pois muitas vezes a nação sequer tem um território definido e não deixa de ser uma nação por isso, a exemplo do que ocorreu com o povo judeu e do que ocorre atualmente com, por exemplo, os palestinos, mas não nos posicionamos assim só porque cremos que as pessoas morreriam e a nação seria inexistente, até porque a probabilidade de isso acontecer hoje é menor,  a não ser que a densidade demográfica de determinado Estado fosse muito baixa, mas assim cremos por outros motivos relacionados à autodeterminação dos povos, aos direitos humanos, às questões sociológicas e às necessidades humanas de grupos que precisam ser levadas em consideração, até por uma questão humanitária.

Nesse sentido, para Carlos Roberto Husek (2015) a doutrina no mundo jurídico sempre trouxe que os elementos constitutivos de um Estado eram: o território (um cataclismo físico, p. ex.), o povo (hipótese acadêmica) ou o poder político soberano (hipótese de possibilidades mais reais), mas afirma que esse conceito já tem mudado aos olhos de alguns juristas.

De acordo com os autores Accioly, Silva e Casella (p. 274, 2012):

Para autores, escrevendo antes da segunda guerra mundial, a existência de população e de território de proporções razoáveis era de rigor. Esses elementos, contudo, deixaram de ser exigidos no âmbito das Nações Unidas, onde a autonomia da vontade passou a vigorar, a ponto de jogar sobre a comunidade internacional o ônus de arcar com a existência de novo membro.

Voltando para Hobsbawm, o autor crê que no período clássico do nacionalismo liberal, a autodeterminação dos povos somente se ajustava para as nações consideradas viáveis, ou seja, culturalmente e economicamente predominantes naqueles momento. Foi apenas a partir dos idos de 1945 e principalmente depois da descolonização é que se abriu caminho para nações como Dominica, ilhas Maldivas ou Andorra.

Hobsbawm assevera que o nacionalismo judeu surgido no século XIX por analogia ao recém-formado nacionalismo ocidental, identifica a ligação entre os judeus e a Terra ancestral de Israel, o que deriva das peregrinações ali feitas ou da esperança da chegada de Messias, com a aspiração de juntar todos os judeus em um Estado territorial moderno situado na antiga Terra Santa, assim como foi a aspiração dos mulçumanos em peregrinar para Meca e ao fazê-lo pretendem realmente declararem-se cidadãos da Arábia Saudita.

A religião de fato sempre foi uma maneira de estabelecer uma comunhão, através de uma prática religiosa comum e do estabelecimento de uma irmandade, uma identidade de pertencimento e para o autor a religião é um cimento, como que uma base paradoxal do protonacionalismo ou até do nacionalismo moderno.

Para o autor o que não pode de forma alguma é confundir nação com nacionalidade moderna. A noção de “nação política” pode ser estendida para uma nação constituída pela massa de habitantes de um país, mas isso acontece muito depois da visão retroativa do nacionalismo, pois na nação pode até haver uma noção social e religiosa, mas nem sempre nacional, como foi na Europa central nos séculos XV e XVI.

Na obra Nações e Nacionalismo, Hobsbawm (1990) defende que não há continuidade histórica entre o protonacionalismo judaico e o sionismo moderno.

As preocupações com nação e nacionalidade nascem a partir da Revolução Francesa e segundo Hobsbawm os termos “nação” e “nacionalismo” não são mais adequados no mundo atual.

Hobsbawn (p. 215) infere que:

“nação” e “nacionalismo” não são mais termos adequados para descrever as entidades políticas descritas como tais, e muito menos para analisar sentimentos que foram descritos, uma vez, por suas palavras. Não é impossível que o nacionalismo irá declinar com o declínio do Estado-nação, sem o "ser” inglês ou irlandês ou judeu, ou uma combinação desses todos, é somente um dos modos pelos quais as pessoas descrevem suas identidades, entre muitas outras que elas usam para tal objetivo, como demandas ocasionais. Seria absurdo reivindicar que esse dia está próximo. No entanto, espero que ao menos possa ser imaginado. Apesar de tudo, o próprio fato de que historiadores estão ao menos fazendo alguns progressos no estudo e na análise das nações e do nacionalismo sugere que, como é frequente, o fenômeno já passou do seu apogeu. A coruja de Minerva que traz sabedoria, disse Hegel, voa no crepúsculo. É um bom sinal que agora está circundando ao redor das nações e do nacionalismo.

Cumpre refletir que olhar o debate sob esse prisma nos deixa um pouco mais esperançosos e certos em afirmar que identidades nacionais podem conviver e não se excluir/anular.

Recorrer a Hobsbawn, em que pese também ser um autor crítico e reflexivo, traz uma visão um pouco mais esperançosa do futuro, em contraposição a Arendt que nos retrata uma realidade mais pessimista do passado, que na verdade, cremos que seja até um reflexo dos tempos sombrios nos quais ela viveu, assim como de igual modo ocorrera outrora na obra de Franz Kafka.

Conforme dito, há uma tendência crescente ao que parece, na visão de que identidades nacionais podem conviver e não se excluir/anular e tanto deve ser assim que, historiadores, bem como sociedade civil no geral, têm começado a repensar os conceitos de nação e nacionalismo e até Estado, em espacial, em tempos de globalização e sociedade global, na qual vivemos, sendo que há uma tendência de existirem cada vez mais “cidadãos do mundo”, onde, claro que as identidades culturais devem ser respeitadas e mantidas, mas as fronteiras físicas acabam não tendo mais a mesma importância hoje em comparação ao que tiveram no século passado ou como no começo desse segundo milênio.

Nessa esteira, Motauri Ciocchetti de Souza e Wilson José Vinci Júnior (p. 96, 2019) citam o termo sociedade pós-nacional:

Hodiernamente, parece não restar mais dúvidas de que a vida se desenvolve em uma sociedade marcadamente pós-nacional, isto é, as barreiras geopolíticas já não gozam mais de tanta relevância como no passado. O espaço parece ter encurtado. As distâncias não são mais as mesmas. O tempo flui com maior rapidez. A velocidade e a complexidade das relações sociais e econômicas são outras.

Na lição de Zygmunt Bauman (p. 15, 1999), “as distâncias já não importam, ao passo que a ideia de uma fronteira geográfica é cada vez mais difícil de sustentar no ‘mundo real’”.

Em outras palavras, hoje se vive em uma sociedade global, “que relativizou o rígido conceito de soberania estatal. Esta soberania, que outrora significava que o Estado tinha plena e absoluta liberdade de atuação dentro do seu território, atualmente sofre forte e marcante influência de fatores externos a seu âmbito espacial” (SOUZA, MOTAURI CIOCCHETTI DE; VINCI JÚNIOR, WILSON, p. 96, 2019).

Fato é que no século passado não havia normativas internacionais como se tem hoje em tempos de globalização e no tocante a questão dos apátridas, infere-se que na época do Terceiro Reich não havia essas normativas em relação a imigrantes, apátridas e refugiados e a crise humanitária que foi gerada naquele período foi nefasta.

Os judeus descobriram que, uma vez que se tornassem “foras da lei”, literalmente qualquer coisa podia ser feita com e contra eles. De modo que, “um homem que não é nada além de um homem perde todas as qualidades que possibilitam aos outros tratá-lo como semelhante” (ARENDT 1989, p. 388, Id. 2016, p. 100). Expulsos de suas casas e privados até mesmo do status legal de criminoso, ninguém sabia quem eles eram ou se importava com o que acontecesse com eles.

Esse sentimento de mal-estar é muito bem retratado na obra de Franz Kafka, autor judeu, em especial, em a Metamorfose, obra que em que pese ser fictícia retrata muito bem o clima nefasto e a vivência desditosa do próprio autor à época de sua produção literária.

Nesse sentido, esse mal-estar dos judeus na Europa vêm de muito antes da Segunda Guerra Mundial e os terríveis atos que estavam por vir foram de certa forma previamente pressentidos pelo escritor Franz Kafka em sua obra literária ficcional, mas que muito tinha de crítica social. O clima de xenofobia de alguns segmentos da população ascendia exponencialmente a cada dia.

Na Alemanha o sentimento conservador ia se desenvolvendo cada vez mais no contexto da República de Weimar (democrática e liberal), criada no período em que a Alemanha estava prestes a perder a Primeira Guerra Mundial e ficava no ar o saudosismo de uma nação outrora poderosa, dos tempos do Império Alemão, em comparação com a nova realidade democrática, mas economicamente deficiente.

Nessa esteira, no tocante as políticas migratórias adotadas pelo Terceiro Reich, o apátrida se via lançado ao acaso supremo, cujo destino poderia ser os campos de concentração e internação ou a morte, consequência da sociedade do descarte que havia se instaurado à época.

Na obra de Hannah Arendt é entendido que pária é aquela pessoa ou grupo de pessoas que têm uma experiência marcada por características específicas, sobretudo pela marginalização e precarização da vida. Já os parvenus se referem a figura do pária assimilado geralmente por sua condição econômica e que alcançando tal status de reconhecimento social, toma o problema da questão judaica como superado.

Paria e parvenu eram estigmas criados em torno das pessoas. Para Erving Goffman, em Estigma (2004), a palavra estigma vem do grego e eram sinais feitos com cortes ou fogo no corpo e avisavam que o portador era um escravo, um criminoso ou traidor, ou seja, uma pessoa marcada, ritualmente poluída, que devia ser evitada; especialmente em lugares públicos.

Goffman traz a ideia de que a pessoa estigmatizada não é vista completamente como humana. Com base nisso, ela passa por vários tipos de discriminações, o que pode implicar até na redução de suas chances de vida, vez que é construída a ideologia do estigma para explicar a sua inferioridade e dar conta do perigo que ela representa, racionalizando algumas vezes uma animosidade baseada em outras diferenças, tais como as de classe social ou outras, qual seja, outras seriam questões étnicas, religiosas e assim por diante.

O autor elucida que há três tipos possíveis de lugar para as pessoas estigmatizadas. Haverá lugares proibidos ou inacessíveis, onde pessoas de seu tipo estão proibidas de ir, e onde a exposição significa expulsão. Há lugares públicos nos quais pessoas desse tipo são tratadas cuidadosamente e, às vezes, penosamente, como se não estivessem desqualificadas para uma aceitação rotineira quando, na verdade, de uma certa maneira, o estão. Finalmente, há lugares retirados onde pessoas desse tipo podem-se expor e perceber que não precisam esconder o seu estigma e nem se preocupar com tentativas feitas cooperativamente para não prestar atenção a ele.

Essa divisão do mundo do indivíduo em lugares públicos, proibidos, e lugares retirados, estabelece o preço que se paga pela revelação ou pelo ocultamento e o significado que tem o fato de o estigma ser conhecido ou não, quaisquer que sejam as estratégias de informação escolhidas.

Do que fica para a compreensão que, estigmatizados, despidos de uma nacionalidade, um corpo político, jurídico, leis e direitos (pensando em uma democracia), inevitavelmente, sem um terra natal e sem o reconhecimento do Estado Alemão através das políticas migratórias da época, os judeus tornaram-se apátridas.  Tratando-se de um povo sem um território e isolados socialmente na época da Shoá.

Embora os judeus fossem europeus nesse período, não o eram reconhecidos como tais, uma vez que os regimes totalitários, como o Alemão, por exemplo, removia a nacionalidade desses judeus, retirando o status de europeu deles, transformando-os em apátridas, onde afirma a autora até com uma certa rudeza que lhe é peculiar, que “embora sejam europeus, esses párias estão isolados de todos os interesses especificamente nacionais” (ARENDT, 2016, p. 293).

A autora ainda acrescenta que:

Nenhuma diretriz internacional foi capaz de lidar com o problema dos apátridas, um problema que é insolúvel em um mundo de nações soberanas. Os tratados de 1920 que lidavam com as minorias já eram obsoletos quando promulgados, porque nenhuma provisão foi feita para pessoas sem uma pátria.

Apátridas são o mais novo fenômeno da história recente. Nenhuma das categorias, nenhum dos mecanismos jurídicos que decorreram do espírito do século XIX se aplica a eles. Eles foram excluídos tanto da vida nacional de seus países quanto da luta de classes de suas sociedades [...]. Eles estão fora de todo o regime jurídico. Nenhuma forma de naturalização pode mais passar por cima dessa falta fundamental de direitos civis na Europa (ARENDT, 2016, p. 309).

Diante disto, a pensadora faz uma reflexão ainda mais instigante, conforme se verifica:

Historiadores futuros talvez serão capazes de notar que a soberania do Estado-nação acabou em absurdo quando este começou a decidir quem era e quem não era cidadão; quando este não mais mandava políticos individuais para o exílio, mas legava centenas de milhares de cidadãos à soberania e às decisões arbitrárias de outras nações (ARENDT, p. 309).

O argumento de Arendt é de que ao decorrer da história moderna alemã, os judeus foram peões no jogo da política do poder. Eles foram usados desde a monarquia, depois pela aristocracia e pelos liberais, sendo depois descartados por cada uma dessas facções quando sua utilidade, que para essas facções era apenas financeira, havia sido consumida ou não era mais considerada desejável socialmente.

Pode ser feita uma reflexão sobre o que Arendt classifica como sociedade do descarte, a partir da obra A Condição Humana, no sentido de que o campo de concentração instaurou a cultura do descarte, onde alguns grupos sociais praticamente inteiros foram escolhidos para serem descartados.

Desta forma, “os judeus não eram vistos então nem como indivíduos nem como um povo distinto, e menos como uma classe separada do que como uma casta dentro da sociedade alemã, uma casta que suportava o peso de um antissemitismo renovado” (ARENDT, p. 32).

Diante do exposto, cumpre firmar a posição do quanto é importante Estados-nação modernos ao redor do mundo terem o compromisso de compreender que um nacionalismo de um povo/etnia não exclui o do outro e que é premente que se respeite o multiculturalismo e as diferentes etnias que existam dentro de uma mesma nação.

4  SIONISMO ARENDTIANO E O “DIREITO A TER DIREITOS”

No capítulo “Órfãos!” da obra Escritos Judaicos de Arendt, encontra-se um trecho onde a autora se refere a diáspora judaica de dois mil anos. Importante trazer a ideia contida nesse trecho, de forma que o Reich Nazista foi só mais um dos tristes episódios da diáspora que se iniciou muito tempo antes da Segunda Guerra Mundial, tendo os judeus sofrido expulsões forçadas, dispersando-se pelo mundo, algumas vezes ao decorrer da História e já desde muito antes da ascensão dos regimes totalitários na Europa.

No trecho analisado, a autora traz que nessas andanças pelo mundo, os judeus levavam a nostalgia de uma pátria. Para as crianças, que ainda sequer compreendiam algumas coisas, perderam tudo, um lar estável, um ambiente normal, sua pátria, seus amigos e sua língua, havendo a tentativa de desenraizar o povo judeu e suas crianças, que viriam a ficar marcadas durante toda a vida.

Nessa senda, ao ler a obra Escritos Judaicos, há trechos que nos levam a crer, que não surpreenderia dizer que a partir de alguns relatos e vivências de Arendt, como esse onde ela assevera que os judeus levavam a nostalgia de uma pátria, ela torna-se “tão sionista quanto jamais seria”, em especial “durante os anos em Paris, de 1933 a 1940”, conforme se abstrai da reflexão de Jerome Kohn no prefácio dessa obra (ARENDT, 2016, p. 27).

Ainda no prefácio, Kohn informa que na França, Arendt queria fazer algo relevante e ela começou a desempenhar um trabalho na Juventude Aliyah, uma organização sionista que provia meios e treinamento que possibilitassem a adolescentes judeus alemães e do leste europeu entre treze e dezessete anos, deixarem a Europa e migrarem para a Palestina, tendo ela escrito um artigo em francês “Jovens vão embora para casa”.

Deste modo, a partir da obra Escritos judaicos, há um trecho no qual Hannah Arendt, em uma carta a Heinrich Blücher, em 1936, em uma época onde ela ainda acreditava ser a Palestina a pátria judaica, é descrito:

Não está no centro de nossas aspirações nacionais porque há dois mil anos um povo, de quem de uma forma ou de outra nós supostamente descendemos, lá viveu, mas porque por dois mil anos o mais louco dos povos teve prazer em preservar o passado no presente, visto que para eles ‘as ruínas de Jerusalém, pode-se dizer, deitam raízes no coração do tempo” (ARENDT, 2016, p. 29).

O fato de os judeus terem por mais de dois mil anos preservado o passado no presente mostra uma grande ligação histórica entre um povo e uma terra e é nesse sentido o pronunciamento na Assembleia Geral das Nações Unidas em 08 de outubro de 1968, do Ministro das Relações Exteriores de Israel, Abba Eban, que afirmou: “aqui nós temos a maior ligação histórica e tenaz entre um povo e uma terra. E um líder árabe vem falar de Israel como se fosse uma exibição internacional temporária que devesse ser derrotada e removida”[4].

Em relação a Heinrich Blücher, citado acima, cumpre informar que ele fora um estrategista para a Liga Espartaquista e membro do Partido Comunista da Alemanha e, sendo simpático à causa judaica, escreve a Arendt:

[...] os judeus devem tratar sua guerra nacional em uma escala internacional. Entretanto, a massa dessa admirável dinamite internacional deve ser protegida para que não se torne merda no penico de um Parasita Judaico Internacional...O que queremos é que [os judeus] voltem para o Leste como os portadores da chama finalmente retornando do Oeste, com a palavra final de liberdade em seus lábios, com o slogan da libertação de todos os explorados e oprimidos, juntamente com a grande luta da única classe que permanecerá revolucionária até o fim – a classe operária moderna” (BLÜCHER 2000, pp. 16-17, apud ARENDT, 2016, p. 29).

Nesse sentido, e trazendo uma expressão muito utilizada pela pensadora para descrever as mazelas sociais, podemos dizer que o povo judeu detém do “direito a ter direitos” de se tornar uma nação por meio da fundação de um Estado cujas instituições anunciam e guardam os direitos de seus cidadãos, assim como quaisquer outros povos apátridas e refugiados. 

Nesse sentido, o seguinte trecho foi extraído da nota de Jerome Kohn na obra Escritos Judaicos, onde ele mostra o apoio de Hannah Arendt na criação de um Estado:

Um “direito a ter direitos” não é um direito civil, mas político e a política é sempre para Arendt aquilo que vai entre a pluralidade de indivíduos falando conjuntamente sobre o que os interessa em comum, gerando o poder de executar o que eles determinam que pode ser feito pelo agir em conjunto [...] Arendt pensava que os judeus, seu próprio povo, tinham a oportunidade de fundar um Estado cujo poder potencial poderia ser muito grande. O povo judeu, exercendo seu “direito a ter direitos” e atento ao papel da justiça em seu passado [...] (ARENDT, 2016, pp. 38-39).

Este era o sionismo no qual Hannah Arendt acreditava nesse período em que estava na França, sendo que decidimos chamar de sionismo arendtiano e que será melhor analisado ao decorrer desse capítulo. Depois já em 1948, após a fundação do Estado judeu na Palestina, a autora faz duras críticas ao Estado de Israel, no sentido de que o país tinha potencial para se tornar um Estado militarista atrás de fronteiras fechadas, porém ameaçadas, o que de fato, acabou ocorrendo.

Desta forma, via-se a necessidade da criação de um Estado, mas precisamos ressaltar aqui que fundar um novo Estado é um empreendimento arriscado e que deve ser respeitado o direito à autodeterminação dos demais povos da região.

Nesse sentido e de certa forma o trecho abaixo de Jerome Kohn (2016, p. 39) na nota de Escritos Judaicos corrobora a reflexão feita acima:

[...] os diversos “guias” para a paz, que foram desenhados não por árabes e judeus em conjunto, mas por diplomatas de Estados e organizações externos, levaram a quase lugar nenhum. Já em 1948 Arendt previu o que agora talvez esteja acontecendo, que Israel se tornaria um Estado militarista atrás de fronteiras fechadas, porém ameaçadas;

O atual Estado de Israel guarda pouca semelhança com o Estado binacional árabe-judeu idealizado por Arendt no período de 1933 a 1940, para cuja efetivação na Palestina ela trabalhou com Judah Magnes e outros. Em sua concepção o ideal seria um sistema de governo de conselhos, um sistema que, poder-se-ia dizer, é genuinamente revolucionário. Nesse sentido, assevera a pensadora que:

governos autônomos locais e conselhos mistos judaico-árabes municipais e rurais, em uma escala pequena e tão numerosos quanto possível, são as únicas medidas políticas realistas que podem por fim conduzir à emancipação política da Palestina (ARENDT, 2016, p. 40).

Nessa estrutura, o poder seria gerado por acordos vindos de baixo, subindo a cada nível de conselhos, ascendendo dos níveis onde judeus e árabes comuns se reunissem para lidar com os problemas usuais entre eles e que os relacionavam.

No entanto, no ponto em que chegou o conflito hoje, esse desenho já não se adequaria mais e provavelmente não teria resultados positivos, outrossim, se no período prévio a fundação de Israel houvesse se cogitado implementar esse sistema de conselhos, talvez os povos da Palestina e de Israel estivessem mais representados naquele momento, mas ainda assim poderia ser que não houvesse total consentimento mútuo na aplicação desse modelo, pois estamos tratando de um conflito complexo.

As condições para o sistema de governo de conselhos não incluía amar o vizinho, mas sim firmar uma amizade política com ele. Também nesse sentido, na obra Como Curar um Fanático, Amós Oz esclarece que o contrário da guerra não é o amor e sim a paz. Assim, não há como obrigar uma pessoa/povo a amar a/o outra/o, isso seria impossível, mas pode-se ensinar a coexistência pacífica.

Ainda em relação a esse ponto, a amizade política, que Arendt depois remonta à philia politike de Aristóteles, é muito semelhante ao espírito público no qual promessas são feitas para serem cumpridas; o governo de um povo sobre outro seria descartado em um regime de diferentes povos dotados de espírito público.

De acordo com Jerome Kohn (2016), depois de 1950, quando sua grande esperança de um Estado binacional na Palestina não se concretizou, os escritos de Arendt sobre assuntos judaicos diminuíram em quantidade e ela começa a centrar seus estudos mais na direção do significado da liberdade humana, sendo que segundo nota de Jerome Kohn (2016), em julho de 1940, Arendt escapa do campo de concentração e ruma aos Estados Unidos, tendo o período de escritos de 1941 até 1950 sido no geral não dos mais produtivos.

Como mostram os ensaios da década de 1940 desta coleção de escritos judaicos, a opinião de Hannah Arendt em relação à corrente herzliana do sionismo político, que moldou a perspectiva e as políticas do movimento, é elogiosa com relação a seus pontos fortes, ainda que fortemente crítica de suas deficiências e perigos potenciais.

A reflexão que a autora faz nesse sentido ruma na toada de que o problema dos judeus em seu desejo de querer superar a experiência de carência de mundo, foi que eles se agarraram à estrutura ideológica do sionismo herzliano, sendo que o resultado foi o “famoso complexo Massadá, no qual o recém-descoberto desejo pela dignidade foi transformado em uma atitude potencialmente suicida” (ARENDT, 2016, p. 84).

Com a devida vênia, não se entende no presente estudo, a fundação do Estado de Israel como um desejo suicida, vez que um centro cultural judaico na Palestina é de certa forma um ato consciente de criação por parte do povo judeu.

É também uma resposta positiva à crise que atormentava a vida judaica desde tempos muito remotos, para não dizer desde sempre, visto que se trata de uma tentativa por parte dos judeus de criar um âmbito político, assumir o controle sobre suas vidas e reingressar na história posteriormente à Diáspora e às carências de mundo e de poder que os acompanhavam, no entanto, o que se pode quiçá afirmar é que a maneira como se deu a constituição histórica da fundação desse Estado-nação foi muito perigosa, mas evitamos no presente designar como complexo Massadá. 

Cabe inferir que a construção da pátria judaica é um ato profundamente político e no mínimo arrojado, visto que significa não só a fabricação de um mundo no qual uma vida com verdadeira humanidade pode de fato ser vivida, mas também a fabricação de um mundo especificamente judaico.

Nesse sentido, essa especificidade cultural é de grande importância, “visto que somente dentro da estrutura de um povo um homem pode viver como um homem entre homens” (ARENDT, 2016, p. 85).

No pensamento arendtiano fica claro que para preservar a pátria judaica na Palestina quando os britânicos partissem, – vez que nesse período das reflexões da autora anterior a fundação do Estado, a região da Palestina encontrava-se sob domínio britânico – os judeus teriam que escolher entre o estabelecimento de um acordo com os árabes ou a procura de proteção junto a um dos grandes poderes imperiais. Para a autora, a segunda opção foi infelizmente a vista na prática.

Por outro lado, a autora “reconhecia que as políticas árabes eram igualmente cegas em não reconhecer as necessidades e conquistas concretas dos sionistas na Palestina” (ARENDT, 2016, p. 87). Esse impasse entre a narrativa dos judeus israelenses e a narrativa dos palestinos é bem elucidado pelo escritor israelense Amós Oz:

O conflito entre Judeus Israelenses e Árabes Palestinos é uma tragédia, não um filme violento do ocidente, onde há mocinhos e vilões. É uma tragédia porque é um conflito entre o certo e o certo. Os Israelenses estão em Israel porque eles não têm mais para onde ir. Os Palestinos estão na Palestina porque eles não têm mais para onde ir. Este é um conflito entre vítimas e entre pessoas que tem uma única reivindicação sobre essa terra[5].

O resultado do mandato britânico foi que eles faziam as mediações entre as comunidades judaicas e árabes e isso fez com que judeus e árabes se desenvolvessem sem qualquer preocupação política ou responsabilidade um pelo outro e fez parecer para cada um deles que “a principal questão política era como [...] se livrar definitivamente dos britânicos, ignorando a realidade permanente da existência do outro” (ARENDT, 2016, p. 88).

Cremos, que não se pode generalizar, mas pode ter havido um comodismo por uma parte de ambas as sociedades/povos no mandato britânico e que para o domínio dos britânicos era conivente que houvesse mesmo uma espécie de dependência nessa quase intermediação que era realizada. 

A grande questão no âmago do conflito foi que os judeus queriam manter e principalmente estender a soberania nacional (anexação de territórios como se têm visto nos últimos tempos) sem considerar os interesses árabes e a determinação árabe de expulsar o que viam como os “invasores” judeus da Palestina sem considerar as conquistas e feitos judaicos naquela região e simplesmente ignorar o fato de que aquele lugar representa uma grande ligação entre aquele povo e aquela terra.

Nessa toada, as reivindicações de judeus e árabes foram enveredando cada vez mais por um caminho de pautas incompatíveis e mutuamente irrefutáveis, em especial após a efetiva fundação de Israel, resultando no mútuo desconhecimento e desejo de anulação do “outro”.

Os projetos de paz que eram traçados representavam para ambos os povos “o resultado de políticas nacionalistas elaboradas no seio da estrutura fechada de determinado povo e história” (ARENDT, 2016, p. 88). Desta maneira:

Arendt acreditava que a cooperação entre judeus e árabes no Oriente Médio podia, por meio do desenvolvimento da região, ser a base para a verdadeira soberania e independência. Mas a única forma disso ocorrer era se ambos os lados desistissem de suas perspectivas e reivindicações nacionalistas chauvinistas (ARENDT, 2016, p. 88).

5  CONSIDERAÇÕES FINAIS

No presente artigo, pretendeu-se tratar do sionismo de Hannah Arendt e refletir a partir da obra Escritos Judaicos que reúne a maior parte dos escritos da pensadora, produzidos entre 1930 e 1960, que tratam especificamente das questões relacionadas aos assuntos judaicos. A obra discorre sobre assuntos extremamente atuais como antissemitismo, acesso a direitos humanos e sionismo.

O foco do presente foi esse, tendo delineado como o pensamento de Arendt sobre a questão perpassou por diversas fases, onde primeiramente ela começa a se preocupar mais com a causa nacional judaica e a cogitar a necessidade da fundação de um país para esse povo, sendo um período muito esperançoso (no geral até a década de 1940).

Depois, quando as negociações internacionais sobre o assunto começam a se concretizar nesse campo, ela age como uma meta relevante que se estava alcançando dentro dessa luta que ela passa a integrar, mas sem prejuízo de ressaltar que esse movimento é muito heterogêneo e passa a criticar alguns autores sionistas, como as duras críticas que tece a Herzl, pois sabia as consequências que poderiam decorrer desse ato, quais sejam, violências, conflitos armados, Israel tendo que se militarizar.

Assim como, cremos importante o fato de também terem sido trazidos no presente autores que, por sua vez, pensam de maneira diversa de Arendt.

Durante a pesquisa, conclui-se que essa heterogeneidade do movimento sionista é e sempre foi muito importante, até por uma questão das várias correntes se refutarem e, cremos que com isso, através dessa autocritica do movimento, é possível aperfeiçoar o debate e refletir sobre o que realmente se quer alcançar com o sionismo e é até uma maneira de repensar o movimento na atualidade e suas várias vertentes existentes. Essa pluralidade e esse debate somente enriquecem a democracia.

Posteriormente, já do estabelecimento do Estado-nação e com as diversas revoltas que foram já inicialmente se instaurando, a autora passa a escrever cada vez menos sobre o assunto e a quedar-se cada vez mais desesperançosa e crítica no tocante a questão (a partir da década de 1950).

Nesse sentido, cumpre lembrar a proposta de Arendt de um Estado binacional para Israel e o alerta em relação ao perigo de o país ficar isolado e em permanente guerra com seus vizinhos.

Assim, ressalta-se que entre Israel e Palestina, existem dois contextos nacionais, onde usos políticos de tragédias coletivas concorrem, buscando garantir fortalecimento público e legitimação. Assim, ignorá-los ou acentuá-los passa a ser parte das principais estratégias políticas israelenses e palestinas.

Dos dois lados, tanto o bloqueio quanto a deslegitimação da dor e do sofrimento alheio são partes integrantes de importantes estratégias políticas. Nesse sentido, tanto o sofrimento palestino quanto o israelense estão embasados apenas em percepções nacionais e mutuamente excludentes.

Considerando-se a atual situação do conflito Israel-Palestina, talvez algumas propostas da autora à época, como o Estado binacional, estejam cada vez mais fora de cogitação no campo prático.

Além do que, novas propostas de outros intelectuais contemporâneos surgiram nesse ínterim, no entanto, cremos que, refletir a partir de Hannah Arendt, em especial no campo teórico, sempre é um exercício necessário quando se busca mudanças sociais, em especial, a partir de um olhar crítico e filosófico.

Ademais de que, pouco se fala e se produz dentro da temática, no sentido de abordar que Hannah Arendt teve uma posição sionista e que inclusive se desdobrou em várias fases diversas no tocante a relação dela com o tema, de modo que, na presente pesquisa foi trazida essa inovação, sendo de grande importância esse resgate, vez que quando conhecemos a História e nos autoconhecemos, fica mais viável construirmos o futuro e criticarmos o presente, ademais de evitarmos repetir os eventos trágicos do passado.

6  REFERÊNCIAS

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ARENDT, Hannah. A condição Humana. Trad. Roberto Raposo 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.

ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Trad. Mauro W. Barbosa. 7. ed. São Paulo: Perspectiva, 2014.

ARENDT, Hannah. Escritos Judaicos. Trad. Laura Degaspare Monte Mascaro, Luciana Garcia de Oliveira, Thiago Dias da Silva. Barueri-SP: Amarilys, 2016.

ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad.  António de Castro Caeiro. 1 ed. São Paulo: Atlas, 2009.

BAUMAN, Zygmunt. Globalização: As consequências humanas. Tradução Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.

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GOFFMAN, Erving. Estigma – notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4 ed. Rio de Janeiro: LTC, 2019.

HARI, Johann, Israel's voice of reason: Amos Oz on war, peace and life as an outsider. Disponível em: <http://www.independent.co.uk/news/world/middle-east/israels-voice-of-reason-amos-oz-on-war-peace-and-life-as-an-outsider-1648254.html>. Acesso em 10 set. 2017.

HOBSBAWN, Eric J. Nações e nacionalismo desde 1780: programa, mito e realidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.

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SOUZA, Motauri Ciocchetti de; VINCI, Wilson José Júnior. Globalização e direito humano cultural. São Paulo: Revista de Direito Internacional e Globalização Econômica, v. 1, n. 1, 2019.

SOUZA, Vinícios Silva de. O homo faber segundo Hannah Arendt. Dissertação de Pós-graduação em Filosofia – Universidade de Brasília. Brasília: UNB, 2013.

STEINBERG, Gabriel. O sionismo de Ahad Haam e sua relação com a língua hebraica. Belo Horizonte: Arquivo Maaravi, v. 9, n. 16, maio, 2015.

OZ, Amós. Como Curar um Fanático: Israel e Palestina: entre o certo e o certo. Tradução de Paulo Geiger. 1 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

Notas de Rodapé

[1]     Doutoranda em Direito das Relações Econômicas Internacionais (PUC/SP). São Paulo/SP, Brasil. E-mail: desigp2@gmail.com. https://orcid.org/0000-0001-9292-7353.

[2]     Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2004). Chefe D. Dir. Difusos e Rel. Intern. Fac. Dir. da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Curriculum Lattes: <http://lattes.cnpq.br/3621741019243917>. carlosrhusek@gmail.com. https://orcid.org/0000-0003-2369-6349

[3]     Ahad Haam, nascido na Ucrânia, foi influenciado pela época do Iluminismo judaico no Leste da Europa. Foi um destacado ativista e líder político que influenciou de forma marcante o movimento sionista do século XIX para o século XX. Também desempenhou papel relevante no renascimento do Hebraico. Tornou-se conhecido como o fundador do sionismo cultural ou espiritual (STEINBERG, p. 2, 2015). Ele publicou um manifesto de grande repercussão intitulado Lo ze aderech (Não é este o caminho), onde indica que deveria haver uma adaptação na imigração dos judeus para Eretz Israel, devendo os judeus manterem sua identidade, cultura e idioma ancestrais. Observemos que sua visão é completamente distinta da de Theodor Herzl, assim como da de Hannah Arendt, que se aproximou dos pensamentos de Haam e discordou em muito de Herzl.

[4]     Here we have the oldest and most tenacious link in all human history between a people and a land. And an Arab leader speaks of Israel as though it were a temporary international exhibition to be folded up and taken away (LUKACS, 1984, p. 80. tradução nossa).

[5]     "That the clash between Israeli Jew and a Palestinian Arab is a tragedy, not a wild west movie, with good guys and bad guys. It's a tragedy, because it is a clash between right and right. The Israelis are in Israel because they have nowhere else to go. The Palestinians are in Palestine because they have nowhere else to go. This is a conflict between victims, and between people who both have a just claim to the land." HARI, Johann, Israel's voice of reason: Amos Oz on war, peace and life as an outsider. Disponível em: <http://www.independent.co.uk/news/world/middle-east/israels-voice-of-reason-amos-oz-on-war-peace-and-life-as-an-outsider-1648254.html>. Acesso em 10 set. 2017.