Novos modelos para a previdência privada
New models for private pensions
DOI: 10.19135/revista.consinter.00020.21
Recebido/Received 13/09/2024 – Aprovado/Approved 28/02/2025
Ana Paula Oriola de Raeffray[1] – https://orcid.org/0009.0008.6492.5287
Resumo
O presente estudo promove a análise da crise dos sistemas de previdência para a proteção da crescente longevidade, indicando a insustentabilidade dos regimes oficiais de previdência quando adotadas apenas medidas para o aumento da idade para a aposentadoria e das contribuições. Tomando-se essa premissa são estudados os novos modelos para os planos de previdência privada, indicando novos arranjos que possam oferecer renda vitalícia na velhice, considerando-se o aumento da longevidade vivenciado mundialmente. Objetiva-se como o estudo analisar modalidades de planos de previdência privada já adotados por outros países como os planos de contribuição definida coletivos e as tontines, os quais visam proporcionar formas de benefícios vitalícios ou de recebimento de valores quando esgotados os recursos dos planos de contribuição definida em decorrência da elevação da longevidade das populações ao redor do mundo. Após a análise desses modelos, são indicados os meios pelos quais a regulação da previdência privada pode contribuir para o bem-estar social e oferecer mediante novos arranjos maior proteção social na velhice.
Palavras-chave: Previdência Complementar; Planos de Contribuição Definida Coletivos; Tontines; Sustentabilidade; Regulação.
Abstract
The study analyzes the crisis in pension systems to protect increasing longevity, indicating the unsustainability of official pension schemes when measures are adopted only to increase the retirement age and contributions. Based on this premise, new models for private pension plans are studied, indicating new arrangements that can offer lifelong income in old age, considering the increase in longevity experienced worldwide. The aim of this study is to analyze types of private pension plans already adopted by other countries, such as collective defined contribution plans and tontines, which aim to provide forms of lifetime benefits or the receipt of amounts when the resources of the defined contribution plans are exhausted due to the increase in the longevity of populations around the world. After analyzing these models, the means by which the regulation of private pension plans can contribute to social well-being and offer greater social protection in old age through new arrangements are indicated.
Keywords: Privite Pensions; Collective Defined Contribution Plans; Tontines; Sustainability; Regulation.
Sumário: 1. Introdução; 2. A sustentabilidade dos sistemas de previdência – o caso brasileiro; 3. A flexibilização da previdência privada – modelagem aderente às necessidades econômicas e sociais; 4. A necessidade de diversidade no financiamento da longevidade e a regulação; 5. Considerações finais; 6. Referências.
1 INTRODUÇÃO
A longevidade crescente da população tem implicações profundas nos sistemas de previdência social em todo mundo. À medida que as pessoas vivem mais tempo, os desafios de financiar aposentadorias e manter sustentabilidade financeira se tornam mais prementes.
É certo que o aumento da longevidade leva a um prolongamento do período durante o qual as pessoas recebem benefícios de aposentadoria. Em muitos países, os sistemas de previdência social são baseados no regime de repartição simples onde os trabalhadores ativos financiam as aposentadorias dos atuais beneficiários. Deste modo, quando a população de idosos cresce mais rapidamente do que a população ativa, isso resulta em um aumento significativo de custos. Diversas projeções indicam que, em muitos países, a proporção de idosos em relação à população ativa pode dobrar nas próximas décadas, colocando pressão financeira intensa sobre os sistemas de previdência.
Não se pode deixar de observar que a sustentabilidade financeira dos sistemas de previdência está diretamente ligada ao equilíbrio entre contribuintes e beneficiários. Com o aumento da expectativa de vida, a idade de aposentadoria permanece como um ponto crítico de debate. De um lado, as reformas dos sistemas de previdência focam na premissa de que se a idade de aposentadoria não for ajustada adequadamente para acompanhar o aumento de expectativa de vida, a sustentabilidade dos sistemas estará em grave risco.
No entanto, as reformas não devem se prender apenas na constante modificação da idade de aposentadoria, elas devem ser estruturais, considerando-se que muitos sistemas de previdência já enfrentam déficits significativos, exigindo a adoção de medidas cada vez mais radicais de austeridade e aumento nas contribuições.
Nesse contexto, a previdência privada emerge como um componente crucial na reforma dos sistemas previdenciários. Esse subsistema de proteção social, contudo, também enfrenta constantes desafios para se adaptar às mudanças demográficas, econômicas e sociais. A desigualdade de acesso, os riscos de mercado, os custos administrativos, a regulação e a falta de educação financeira são questões críticas que exigem especial análise e aprofundamento.
Os subsistemas de previdência privada estão evoluindo para se adaptar à essa nova realidade, visando oferecer soluções mais flexíveis, personalizadas e sustentáveis para garantir a segurança financeira na aposentadoria.
O objetivo deste trabalho é apresentar uma análise dos novos modelos de planos de previdência privada, destacando a contribuição desse subsistema para a sustentabilidade dos sistemas de previdência.
2 A SUSTENTABILIDADE DOS SISTEMAS DE PREVIDÊNCIA – O CASO BRASILEIRO
A sustentabilidade dos sistemas de previdência é uma questão crítica enfrentada por muitos países em todo mundo devido ao envelhecimento da população, mudanças demográficas e pressões econômicas. Muitas são as estratégias estudadas para a sustentabilidade, dentre as quais estão as reformas paramétricas, como os ajustes da idade de aposentadoria, das taxas de contribuição e da fórmula de benefícios; a diversificação das fontes de financiamento, aumentando a resiliência dos sistemas; a transição do modelo de repartição para o modelo de capitalização dos benefícios. Dentre essas estratégias também figura a promoção da previdência privada, dentro da estruturação de múltiplos pilares de proteção social, como reconhece Holzmann:
Pension systems are fundamentally methods of addressing and managing the risks of aging. This is approached by creating the capacity for individuals and society as a whole to maintain consumption for older populations when they are either unable or unwilling to remain economically productive. As risk management devices, their design should be based on an assessment of their capacity to manage the relevant risks efficiently on both an individual and a collective basis. Pension systems comprise elements that are essentially consumptionallocation mechanisms that either in form or in function can be viewed as assets (and liabilities) of the affected individuals and society. The principle of efficiency in the management of risks—the optimization of expected returns in relation to risks through diversification of the elements (or assets) of the system as a whole—is as important an element in the design of the overall system as it is in the management of any portfolio. In pension systems, this manifests itself in the potential advantages of a multipillar system that comprises several elements with varying characteristics that, in conjunction with each other, achieve the desired individual and societal benefits, while minimizing the relevant risks. The suggested multipillar pension system is composed of some combination of five basic elements: (a) a noncontributory or “zero pillar” (in the form of a demogrant or social pension) that provides a minimal level of protection;6 (b) a “first-pillar” contributory system that is linked to varying degrees to earnings and seeks to replace some portion of income; (c) a mandatory “second pillar” that is essentially an individual savings account; (d) voluntary “third-pillar” arrangements that can take many forms (individual, employer sponsored, defined benefit, defined contribution) but are essentially flexible and discretionary in nature; and (e) informal intrafamily or intergenerational sources of both financial and nonfinancial support to the elderly, including access to health care and housing[2].
No Brasil, a sustentabilidade do sistema de previdência social oficial, como acontece em outros países está em perene situação deficitária, sendo adotadas constantes reformas, as quais, contudo, se limitam, na maior parte das vezes, a ajustes paramétricos, sem qualquer revisão estrutural.
A previdência social brasileira enfrenta desafios complexos que ameaçam sua sustentabilidade e eficácia. O envelhecimento populacional, a cobertura insuficiente e a desigualdade são temas centrais de difícil superação pelas reformas adotadas. O Brasil está envelhecendo rapidamente como aponta o Banco Mundial:
“Além disso, embora a razão entre idade ativa e população idosa no Brasil ainda seja favorável, o país está envelhecendo muito rápido. Em comparação com os países de alta renda, que dobraram sua razão de dependência nos últimos 62 anos, o Brasil terá apenas 23 anos para fazer o mesmo (figura 2). Portanto, o Brasil terá que ajustar suas políticas e benefícios relacionados ao envelhecimento mais rapidamente em comparação com os ajustes históricos dos países agora de alta renda. Terá também de fazê-lo a um nível de renda mais baixo e, consequentemente, com uma base de receitas fiscais mais baixa. Isso não apenas colocará pressão fiscal direta sobre o governo, mas também aumentará os custos de saúde e de cuidados de longo prazo, reduzindo ainda mais o envelope de gastos do orçamento do governo. A política de cuidados ainda é uma área incipiente de políticas públicas no Brasil, mas certamente crescerá à medida que o número de idosos aumentar e o número de seus filhos de meia-idade capazes de cuidar deles diminuir. É igualmente importante ter presente que as taxas de dependência de idosos da população em geral não são as mesmas que a proporção de contribuintes em relação aos beneficiários, que também é frequentemente designada por "taxa de dependência do sistema". Como mostrado no anexo 1, o envelhecimento populacional é mais acentuado no Sul do Brasil, enquanto a "taxa de dependência do sistema" é maior no Nordeste do Brasil, que sofre com a baixa taxa de participação dos jovens no mercado formal de trabalho”[3].
As reformas da previdência social, entretanto, não podem se reduzir apenas na alteração da idade mínima para a aposentadoria. Na verdade, devem ser fortalecidas e revistas as estruturas dos diversos pilares de proteção social, inclusive dos regimes que a integram: (i) o RGPS – Regime Geral de Previdência Social; (ii) RPPS – Regime Próprio dos Servidores Públicos Federais e (iii) RPC – Regime de Previdência Complementar.
A reforma da previdência social levada à efeito no Brasil em 2019 não foi eficiente na redução do déficit, especialmente quando consideradas as diferenças de tratamento entre os beneficiários do RPPS e do RGPS, como indica o Banco Mundial:
Apesar destes esforços de reforma, as partes contributivas da aposentadoria no sistema de seguridade social, incluindo o plano principal do RGPS, continuam a gerar grandes déficits. Em 2021, o RGPS teve déficit de R$ 261 bilhões, resultado de contribuições insuficientes dos trabalhadores urbanos e de um setor rural altamente subsidiado (figura 4). A previdência arrecadou R$ 462,2 bilhões em contribuições (5,19% do PIB) e pagou R$ 709,6 bilhões em benefícios (7,97% do PIB). Os déficits do RGPS urbano e rural são semelhantes (-1,1% e -1,6% do PIB, respectivamente), com a diferença de que o regime de previdência rural arrecada muito pouca receita. De fato, um plano de previdência rural mais se assemelha ao programa de assistência social do que ao plano de previdência contributiva, já que apenas 7% dos benefícios anuais pagos aos beneficiários rurais são cobertos por impostos sobre produtos agrícolas.
(…)
Será impossível continuar a compensar o envelhecimento da população a médio e longo prazo apenas com aumentos da idade de aposentadoria e serão necessárias outras reformas. A figura 6 pergunta até quanto a idade "normal" de aposentadoria de 65 anos precisaria aumentar para manter constante a taxa de dependência da velhice. Como o Brasil é um dos países que envelhece mais rápido na América Latina, esse novo "normal" teria que passar para 72 anos em 2040 e 78 anos em 2060. Obviamente, mudanças tão drásticas seriam difíceis de se alcançar devido ao estado de saúde da população e às realidades sociopolíticas. Portanto, um conjunto mais diversificado de reformas precisa ser considerado, tendo em mente a progressividade e a equidade do sistema previdenciário[4].
Diante desse cenário, o papel da previdência privada torna-se ainda mais relevante no oferecimento da proteção social.
3 A FLEXIBILIZAÇÃO DA PREVIDÊNCIA PRIVADA – MODELAGEM ADERENTE ÀS NECESSIDADES ECONÔMICAS E SOCIAIS
Novos modelos de previdência privada podem oferecer soluções inovadoras para enfrentar os desafios das mudanças demográficas e econômicas. Cada modelo apresenta vantagens e desafios específicos. Esses desafios requerem uma abordagem multifacetada que inclua a promoção da inclusão financeira, estratégia de diversificação e gestão de riscos, aumento da transparência e eficiência, desenvolvimento de um quadro regulatório equilibrado, com a promoção da educação financeira.
Os planos de previdência privada se concentram atualmente no modelo de contribuição definida, cujas contribuições são fixas, mas os benefícios variam de acordo com os retornos dos investimentos, contabilizados em contas individuas, sob o regime de capitalização. Nesse modelo, há previsibilidade quanto às contribuições, mas os benefícios podem variar consideravelmente.
Os modelos híbridos combinam elementos dos planos de contribuição definida e benefício definido, oferecendo um benefício básico garantido, complementado por uma parcela variável baseada no desempenho dos investimentos. Muito embora ofereçam segurança e flexibilidade, no nível básico de benefícios, possuem gestão mais complexa, exigindo um quadro regulatório mais robusto, já que na parcela variável do benefício há o compartilhamento de riscos.
Os planos de benefício definido pararam de ser ofertados pelo mercado de previdência privada, especialmente pelas empresas. Nos EUA, por exemplo, em 1989, 32% dos trabalhadores possuíam um plano dessa espécie, sendo que em 2019 apenas 12% dos trabalhadores ainda estão vinculados a um plano de benefício definido.
Os planos de contribuição definida vêm paulatinamente substituindo os planos de benefício definido, muito embora tenham características positivas, como a agilidade no processo de portabilidade dos benefícios e no acompanhamento pelos participantes das contas individuais, incentivando a poupança, não se mostram eficientes na cobertura da longevidade, especialmente porque não garantem uma renda vitalícia aos participantes.
No Brasil, segundo os dados divulgados pela AON a previdência privada é um benefício oferecido por 50,5% das empresas, sendo que sua representatividade na folha de pagamento corresponde a 10% em 90% das empresas. 61,4% dos benefícios são de contribuição definida, 20,8% de contribuição variável, 10,4% híbrido ou misto e apenas 4,7% de benefício definido[5].
O fenecimento dos planos de benefício definido, reflete uma combinação de fatores econômicos, regulatórios e culturais. Para as empresas esses planos tornaram-se insustentáveis diante da volatilidade do mercado financeiro e aumento da longevidade. Já para os trabalhadores, isso representa um aumento na incerteza quanto ao valor de suas aposentadorias e na responsabilidade de gerenciar suas finanças. Embora os planos de contribuição definida ofereçam maior flexibilidade, eles trazem novos desafios, especialmente para trabalhadores que não têm experiência em investimentos.
Diante desse dilema, o futuro da previdência privada será marcado por novos arranjos visando a proteção da longevidade, por meio de uma renda vitalícia. Nesse contexto, tomam corpo em diversos países os planos na modalidade CDC – Contribuição Definida Coletivos (Collective Definded Contribution), ganhando força quando o governo do Reino Unido autorizou o funcionamento desse modelo para os empregados do Royal Mail Collective Pension Plan.
Os Planos CDC possuem riscos compartilhados e um benefício alvo que pode ou não ser alcançado pelos participantes. Os empregados e os empregadores vertem suas contribuições para um fundo coletivo para a cobertura da longevidade. É garantido um benefício básico, no formato de contribuição definida e um benefício alvo com base nos níveis de contribuição e performance dos ativos. Diversamente do que ocorre nos planos de benefício definido não é garantido nenhum pecúlio ou fluxo de renda fixos na fase de acumulação.
A principal vantagem do modelo está justamente na sua abordagem, segundo argumentam especialistas. Como as contribuições são vertidas para um fundo único, compartilha-se, assim, o risco de investimento, além de tornar o fundo mais resistente às oscilações do mercado financeiro. As empresas tendem a gostar desse tipo de arranjo, haja vista que as suas contribuições têm valor fixo. Para os participantes, além de uma renda de aposentadoria previsível básica, há a possibilidade de compartilhar riscos para maior proteção em face da longevidade.
Com a implantação do Plano CDC pelo Royal Mail no Reino Unido, foram realizados diversos estudos acerca das vantagens e das desvantagens dessa espécie de plano de previdência privada, sendo que um dos principais pontos destacados é do da dificuldade de comunicação com os participantes no que se refere a indefinição do valor do benefício alvo, que poderá ou não ser alcançado, a depender da performance dos investimentos.
Outro ponto indicado como desvantagem desse modelo é o da própria solidariedade já que há o inevitável subsídio dos participantes que contribuem menos e com maior expectativa de vida, pelos participantes que contribuem mais para o plano, podendo tal arranjo ser considerado injusto por alguns participantes.
Analisando o modelo do Royal Mail Collective Pension Plan, James Mirza-Davies lista com objetividade as vantagens e desvantagens do Plano CDC:
“The main advantages of CDC schemes are seen as:
• Retirement in a single package: Members of CDC scheme can both build up a pension (accumulation) and receive a pension (decumulation) in the same scheme. This is similar to defined benefit schemes, although the income is not guaranteed.
• An income without a risk premium: As CDC schemes do not guarantee an income, there is not an additional cost to savers or employers of securing that guarantee.
• Longevity risk sharing: In defined contribution schemes members manage their own pension pots. Because they cannot accurately predict how long they will live there is a risk that people underspend (dying with unused funds) or overspend (running out of money). CDC schemes can manage risk collectively by paying pensions based on average life expectancy across the scheme.
• Investment strategy: it is argued that CDC schemes can take a longer-term investment strategy than defined contribution schemes, because they have a mix of members in accumulation and decumulation.
• Employers: CDC schemes could be attractive to employers by allowing them to offer employees a pension scheme, with an income in retirement, but without the ongoing risk that the employer will need to continue to fund the scheme if it cannot afford to pay that income.
The main disadvantages of CDC schemes are seen as:
Falling incomes: Benefits in CDC schemes are not guaranteed which means that the pensions paid to members can fall.
• Communications: CDC schemes are often seen as more difficult to explain than defined benefit schemes (which pay a promised benefit) or defined contribution schemes (in which a saver builds up a pension pot which they can decide what to do with).
• Transfers: People who want to transfer out of a CDC scheme will receive a proportion of the collective fund. In defined benefit schemes members receive an amount based on the expected cost of providing their pension benefits. There is a risk that if members with lower life expectancies are able to transfer out of a CDC scheme with the full value of their share, then the advantages of longevity risk sharing are lost.
• Intergenerational fairness: Intergenerational unfairness may occur if an earlier generation’s funds are used to by a later one to pay higher pensions or if a later generation needs to replenish funds used by an earlier one. Due to differences in the design of CDC schemes, this is seen as less of an issue in the UK.
• Some members will be worse off: A consequence of longevity risk sharing is that some members may be worse off than if they would have been in an individual defined contribution scheme, where those who die younger subsidise the pensions of those who live longer”[6].
Os Planos CDC vem sendo adotados em diversos países, sendo que a Holanda e o Reino Unido estão na vanguarda da adoção desse modelo, enquanto outros, como o Canadá, Dinamarca e Irlanda, tem explorado ou implementado versões ajustadas desse modelo. No Brasil o modelo ainda não foi regulamentado, sendo que já existem alguns arranjos que vem possibilitando o compartilhamento de riscos para a proteção da longevidade.
Outras modalidades de planos ainda vêm sendo reavaliadas como ocorre com as Tontines que são definidas como uma estrutura financeira historicamente relevante que combina aspectos de investimento coletivo e de redistribuição de renda, sendo frequentemente descritas como uma composição híbrida entre um fundo de pensão e uma loteria.
Concebidas pelo banqueiro italiano Lorenzo de Tonti em meados do século XVII, as Tontines emergiram como uma solução para financiar o Estado, ao mesmo tempo em que ofereciam aos cidadãos uma forma de garantir uma renda na velhice. Embora tenham caído em desuso, posto que foram comparadas aos jogos de azar, continuam a ser estudadas, ganhando relevância para o encontro de soluções para o financiamento das aposentadorias, especialmente no âmbito privado.
Originalmente, as Tontines se consubstanciavam na criação de um mecanismo em que um grupo de investidores realizava contribuições para um fundo coletivo comum, cujos rendimentos seriam distribuídos entre os sobreviventes do grupo. A característica mais significativa desse modelo era a de que à medida que os participantes faleciam, os rendimentos do fundo eram distribuídos entre os sobreviventes, até que restasse apenas um participante, que receberia todos os valores restantes no fundo. Decorre daí a sua comparação com os jogos de azar, onde a morte de muitos acabava por beneficiar poucas ou uma única pessoa.
Do ponto de vista econômico, entretanto, as Tontines oferecem um mecanismo importante para lidar com o risco da longevidade, maximizando o valor esperado da renda dos participantes do fundo comum, em substituição, portanto, a um seguro (anuidade) para proteção do tempo de vida acima da expectativa média prevista nas tábuas de mortalidade vigentes, com um melhor custo-benefício. É também possível ganhar eficiência na gestão dos investimentos que se dá de forma coletiva, com a distribuição dos riscos entre os próprios participantes da Tontine.
É fato que as Tontines enfrentaram desafios éticos substanciais ao logo de sua história. O principal problema sempre foi o de conflito de interesses, uma vez que os rendimentos obtidos com a gestão do fundo comum são redistribuídos entre os sobreviventes à medida que os participantes falecem, fazendo surgir preocupações acerca de incentivos perversos, como negligência ou até práticas criminais para acelerar a morte de participantes para aumentar os rendimentos dos sobreviventes.
O conceito de Tontine, contudo, vem sendo recuperado e ajustado particularmente para a sua utilização no financiamento de aposentadorias, modernizando-se a sua modelagem de modo a eliminar os incentivos perversos. Richard Fullmer esclarece como podem funcionar as denominadas “Tontine Pensions”:
The slow decline of defined benefit pensions has been fueled in large part by a recognition of the risks and high cost of providing fixed guarantees of lifetime income. Forman and Sabin (2015) explored the concept of a tontine pension alternative that would reduce plan sponsor risks and costs by eliminating the guarantee. Indeed, a tontine pension would always be fully funded because payouts would vary depending on investment performance and mortality experience. Presumably, the investment strategy would seek to minimize payout variability. It is possible that longevity bonds could also be held in the portfolio to help mitigate systematic longevity risk should a sponsor so desire[7].
Tanto os Planos CDC quanto as Tontines voltadas para a aposentadoria são novos arranjos que em conjunto com as anuidades e outras formas de seguros poderão levar a diversidade da proteção da longevidade.
4 A NECESSIDADE DE DIVERSIDADE NO FINANCIAMENTO DA LONGEVIDADE E A REGULAÇÃO
O documento da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE intitulado “Roadmap for the Good Design of Definded Contribution Pension Plans” deixa muito claro que a proteção de longevidade não será mais possível apenas com a cobertura ofertada pelo Estado e a contratação de um único plano de previdência privada. Serão necessários outros arranjos de compartilhamento de riscos. O Comitê de Seguros e Previdência Privada da OCDE assim declara:
7. Ensure protection against longevity risk in retirement. DC pension plans should provide some level of lifetime income as a default for the pay-out phase, unless other pension arrangements already provide for sufficient lifetime pension payments. Lifetime income can be provided by annuities with guaranteed payments or by non-guaranteed arrangements where longevity risk is pooled among participants. The choice of the type of arrangement will depend on the desired balance between the cost of guarantees and the stability of retirement income. Flexibility could be provided by allowing for partial, deferred or delayed lifetime income combined with programmed withdrawals. Full lump-sums should be discouraged in general, except for low account balances or extreme circumstances[8].
Para que estes arranjos sejam possíveis, entretanto, a regulação dos planos de previdência privada terá que ser revista. No Brasil, muito embora na Lei Complementar nº 109, de 29 de maio de 2001, a qual dispõe sobre o regime de previdência complementar, esteja previsto no artigo 7º, parágrafo único que o “órgão regulador e fiscalizador normatizará plano de benefícios nas modalidades de benefício definido, contribuição definida e contribuição variável, bem como outras formas de planos de benefícios que reflitam a evolução técnica e possibilitem a flexibilidade ao regime de previdência complementar”, é fato que essa permissão normativa genérica terá que sofrer regulação mais profunda.
Os planos de benefícios que estabeleçam o mutualismo ou que ofereçam benefícios cujo valor não está claro desde o início para os participantes, como ocorre nos planos de contribuição definida coletivos, cujo benefício alvo poderá não ser alcançado, requerem normas específicas para tratamento das responsabilidades das partes do contrato de previdência privada. Esse motivo, inclusive, fez com que no Reino Unido fosse aprovada legislação específica para a implantação dessa espécie de plano de benefícios, detalhada no Pension Schemes Act 2021[9].
Tais novos arranjos para o enfrentamento do risco da longevidade passam, inclusive, pela necessidade de uma nova compreensão da solidariedade social no campo da seguridade social como um todo. Pierre Rosanvallon assim analisa a questão:
On peut passer d´une vision assurancielle à une vision solidariste selon le critère retenu. En matière de retraites, par exemple, la règle stricte de contributivité implique de lier le montant des pensions aux salaires actualisés de toute la vie. Le simple fait de choisir comme référence les dix meilleures années biaise la contributivité (les courbes de carrière étant fort différentes, certains voyant une accélération de leur rémunération à la fin de leur vie professionnelle, alors que d´outres stagnent). Le type d´aléa pris en compte – l´espérance de vie – peut par ailleurs être modifié par l´élargissement ou le rétrécissement de la population de référence. Pour l´économiste, l´assurance n´est ainsi qu´une modalité particulière de la redistribution et de la solidarité. Ce sont seulement les types de risques et les modalités de la péréquation qui distinguent « neutralité actuarielle » et « solidarité civique ». Le problème actuel n´est donc pas tant d´opposer deux techniques, como si elles caractérisant des sphères étrangères l´une à l´autre, que d´appréhender le processus général et multiforme qui conduit à modifier globalement l´exercice de la solidarité sociale[10].
É necessário, inclusive, repensar os direitos porque todo denominado Estado Providência está fundado na indenização do risco, seja no regime oficial de previdência social, seja no regime de previdência privada. No entanto, é preciso caminhar para o compartilhamento do risco entre os diversos atores envolvidos na busca da proteção social. Anne-Marie Guillemard enfrenta essa modificação de paradigma inclusive sob a ótica do mercado de trabalho:
Precisamos afirmar enfaticamente que o envelhecimento de nossa sociedade não é uma catástrofe, e não deve ser encarado de modo fatalista. Não nos esqueçamos de que a vida longa e a menor morbidade são, acima de tudo, evidências de progresso social. Não há razão alguma para que sejam catastróficas se nos anteciparmos às consequências reforçando a coesão social, a solidariedade e a equidade entre gerações. Enfrentar o desafio do envelhecimento demográfico significa que devemos administrar agora uma força de trabalho que vem envelhecendo. Essa será a questão central das décadas vindouras. Para lidarmos com ela, precisamos reverter as profundas tendências, hoje em curso por toda parte, de encurtamento da vida profissional. Isso só pode ser feito desenvolvendo políticas públicas efetivas de empregos e bem-estar social, de modo que mantenha a “empregabilidade” dos assalariados mais idosos, e estimulando as empresas a ajustarem paralelamente suas políticas de pessoal. O caminho é longo e difícil, mas constitui um dos principais desafios que seu impõem às sociedades desenvolvidas conforme estas adentram o terceiro milênio[11].
Por tais razões, o impacto da regulação da previdência privada no bem-estar social envolve questões cruciais relacionadas à proteção social, segurança econômica na aposentadoria, equidade e justiça social. A regulação, ao estabelecer normas e supervisionar o funcionamento dos regimes previdenciários privados, desempenha um papel fundamental na promoção de um sistema mais seguro e eficiente, que contribui para o bem-estar de indivíduos e da sociedade como um todo.
Um dos impactos mais diretos da regulação é a segurança econômica na velhice. A regulação bem estruturada garante que os planos de previdência privada possuam solvência e governança adequadas para cumprir suas obrigações com os participantes, impondo requisitos mínimos de capital, liquidez e diversificação de ativos, o que protege os participantes contra o risco de que os planos cumpram com o pagamento dos benefícios contratados. A existência de mecanismos de supervisão e auditoria regulares também assegura que os fundos sigam práticas financeiras responsáveis.
A regulação, não se pode perder de vista, tem o poder de influenciar diretamente a distribuição de renda na sociedade, promovendo maior equidade e justiça social. Diferentes tipos de regulação podem minimizar desigualdades e aumentar a inclusão de grupos vulneráveis nos sistemas previdenciários, inclusive no regime de previdência privada. Em muitos países, como no Brasil, a previdência privada é complementada por incentivos fiscais ou subsídios regulados pelo governo para incentivar a participação de trabalhadores. Essas medidas são importantes para garantir que esses grupos tenham acesso a planos de aposentadoria adequados, promovendo maior inclusão social.
Ao limitar as taxas de administração e os custos para a gestão dos planos de previdência privada, a regulação ajuda a garantir que os participantes não sejam excessivamente onerados. Isso pode evitar que uma parcela significativa dos retornos de seus investimentos seja corroída por custos elevados, melhorando o acúmulo de poupança para a aposentadoria.
Uma regulação eficaz, outrossim, pode também mitigar desigualdades intergeracionais, garantindo que tanto as gerações atuais quanto as futuras possam se beneficiar de um sistema previdenciário sustentável. A exigência de que os planos de previdência privada sejam geridos de forma prudente, com políticas de investimentos adequadas e testes de estresse regulares, contribui para garantir que os planos sejam capazes de pagar benefícios a longo prazo.
Por meio da regulação também é possível garantir que as contribuições e benefícios sejam equitativamente distribuídos entre gerações, evitando que os mais jovens tenham que suportar os custos das gerações mais velhas. Um exemplo disso são as reformas de modelos de previdência de benefício definido para planos de contribuição definida, que reduzem o risco de desequilíbrios intergeracionais. Em alguns contextos, a regulação pode incluir mecanismos de solidariedade, onde contribuições mais altas de grupos com maior poder aquisitivo subsidiam parcialmente os custos para trabalhadores de menor renda, promovendo maior equidade social.
A confiança no regime de previdência privada é um fator crucial para a participação dos trabalhadores nos planos de aposentadoria. A regulação desempenha um papel central ao promover a confiança do público no sistema e ao incentivar o aumento da poupança previdenciária, o que tem impacto direto no bem-estar social.
A previdência privada também tem um impacto indireto no bem-estar social ao influenciar a poupança nacional e o crescimento econômico. O acúmulo de poupança para aposentadoria através de planos de previdência privada pode ter efeitos benéficos para a economia como um todo.
A regulação que incentiva a participação nos planos de previdência privada também pode estimular a poupança doméstica, o que, por sua vez, contribui para o investimento no país. Com um maior nível de poupança disponível, há mais capital para financiar o desenvolvimento de infraestrutura e outras áreas estratégicas da economia, podendo contribuir para a resiliência econômica do país, ajudando a mitigar o impacto de crises financeiras e garantindo que os aposentados mantenham seu nível de consumo, o que é vital para a economia.
Não se deve perder de vista, entretanto, que em alguns casos, uma regulação excessivamente complexa ou burocrática pode aumentar os custos operacionais dos planos de previdência privada, que, ao fim e ao cabo, são repassados aos participantes. Além disso, sistemas regulatórios excessivamente rígidos podem desestimular a inovação e o desenvolvimento de novos produtos no segmento de previdência privada.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A sustentabilidade dos sistemas previdenciários no mundo e no Brasil depende de que novos arranjos de proteção para a velhice sejam desenvolvidos. Fica claro que cada dia mais, em diversos países, a tendência é de que os regimes oficiais de previdência ofereçam apenas coberturas básicas, posto que não é possível manter tais regimes apenas com o contínuo aumento da idade da aposentadoria e das contribuições. Esse meio de sustentabilidade é muito frágil, sendo que nessa toada as próximas gerações não alcançarão qualquer proteção contra a velhice.
A função da previdência privada para o equilíbrio da proteção contra a velhice e para que seja proporcionado bem-estar social torna-se primordial. Mas, mesmo nesse cenário, faz-se necessário que novas modalidades de plano sejam engendradas, posto que o aumento da longevidade demanda proteção vitalícia, não ofertada pelos planos de contribuição definida.
No Brasil, os planos de contribuição definida atualmente são os mais ofertados. No entanto, não se conta com um mercado de anuidades devidamente implantado, com preços acessíveis nem mesmo aos integrantes da classe média. Esse fator faz com que boa parte dos participantes dos planos de contribuição definida não estejam efetivamente protegidos na velhice, considerada a idade média atual da população.
Urge, assim, que sejam implantados novos arranjos para o contrato de previdência privada, como já ocorre em outros países, adotando-se o modelo dos planos de contribuição definida coletivos ou outras modalidades que venham a ser estudadas e viabilizadas normativamente.
Diante desse cenário, a regulação da previdência privada tem um papel fundamental na implantação dessas novas estruturas de proteção, com fito no fortalecimento do bem-estar social, proporcionando segurança econômica aos aposentados, promovendo equidade social, protegendo os grupos vulneráveis e incentivando a poupança de longo prazo. Embora existam desafios associados à implementação e manutenção de uma estrutura regulatória eficaz, o impacto geral no bem-estar social é amplamente positivo, especialmente quando equilibrado com medidas de inclusão, transparência e sustentabilidade financeira.
6 REFERÊNCIAS
HOLZMAN, Robert, Old-age income support in the 21st century: an international perspective on pension systems and reform, World Bank, p.54.
ZVINIENE, Asta; e Raquel Tsukada (2023), O Sistema Previdenciário Brasileiro sob a Ótica da Equidade, Washington, D.C.: Grupo Banco Mundial, p. 6.
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[1] Doutora e mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Membro e Diretora Científica da Academia Brasileira de Direito da Seguridade Social – ABDSS. Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Previdência Complementar e Saúde Suplementar – IPCOM. Membro Titular da Câmara de Recursos da Previdência Complementar – CRPC, ana.raeffray@rbaa.com.br, https://orcid.org/0009.0008.6492.5287.
[2] Holzman, Robert, Old-age income support in the 21st century: an international perspective on pension systems and reform, World Bank, p.54.
[3] Zviniene, Asta; e Raquel Tsukada (2023), O Sistema Previdenciário Brasileiro sob a Ótica da Equidade, Washington, D.C.: Grupo Banco Mundial, p. 6.
[4] Idem, p. 15 e 16.
[5] AON plc, Pesquisa de Benefícios 2023, A experiência do colaborador move organizações, Highlights Brasil.
[6] Mirza-Davies, James, Pensions: Collective Defined Contribution (CDC) schemes, Research Briefing, House of Commons, August 2022, p.5.
[7] Fullmer, Richard K, Tontines a Practitioner´s guide to morality-pooled investiment, CFA Institute Research Foundation, 2019, p 21.
[8] OECD, Recommendation of the Council for the Good Design of Defined Contribution Pension Plans, OECD/LEGAL/0467.
[9] Disponível em : <https://www.legislation.gov.uk/ukpga/2021/1/part/1/2022-08-01>.
[10] Rosanvallon, Pierre, La Nouvelle Question Sociale, Repenser L´Etat Providence, Seul, p.84.
[11] Guillemard, Anne-Marie, Trabalho ou aposentadoria ao fim da carreira? Uma estratégia da terceira via para uma população em envelhecimento, in o Debate global sobre a terceira via, Anthony Giddens (org), Editora Unesp, São Paulo, 2007, p.331.