A previdência complementar como pilar da seguridade social
The private pension as a pillar of social security
DOI: 10.19135/revista.consinter.00018.32
Recebido/Received 23/01/2023 – Aprovado/Approved 19/03/2024
Ana Paula Oriola de Raeffray[1] – https://orcid.org/0009.0008.6492.5287
Resumo
O estudo promove a análise do papel da previdência complementar, de natureza privada, no sistema de seguridade social pautado pelo princípio da universalidade, a partir do modelo proposto pelo Banco Mundial, em 1994, por meio do Relatório “Aventing the Old Age Crisis”, fundado no sistema multipilares, que entrelaça o público e o privado para o oferecimento da proteção social na velhice. Objetiva-se com o estudo analisar a eficácia e atualidade do sistema multipilares, considerando-se a sustentabilidade dos sistemas de proteção previdenciária e as modificações sociais impostas pela necessidade de estabelecimento de uma economia sustentável. Para isso, passa-se pela atualização da visão do sistema multipilares, desde a sua proposição, analisando-se as características da previdência complementar, seu alcance e quais os meios para que haja a intensificação de sua cobertura. Constata-se que o sistema multipilares é imprescindível para a proteção social, devendo seu modelo original ser constantemente reavaliado pelos países, realizando-se adequações que gerem a sua aderência às necessidades sociais.
Palavras-chave: Previdência Complementar; Seguridade Social; Banco Mundial; Sistema Multipilares; Sustentabilidade. Economia da Longevidade.
Abstract
The study promotes the analysis of the role of private pensions in the social security system guided by the principle of universality, based on the model proposed by the World Bank, in 1994, through the Report “Aventing the Old Age Crisis”, based on the multi-pillar system, which intertwines the public and the private to offer social protection in old age. The aim of this study is to analyze the effectiveness and timeliness of the multi-pillar system, considering the sustainability of social security protection systems and the social changes imposed by the need to establish a sustainable economy. For this, the vision of the multi-pillar system is updated, from its proposal, analyzing the characteristics of supplementary pension, its reach and what are the means for its coverage to be intensified. It appears that the multi-pillar system is essential for social protection, and its original model must be constantly reassessed by the countries, making adjustments that manage its adherence to social needs.
Keywords: Private Pensions; Social Security; World Bank; Multipillar System; Sustainability. Longevity Economy.
Sumário: 1. Introdução; 2. A posição da previdência complementar no Relatório “Averting the Old Age Crisis” do Banco Mundial e o modelo adotado pelo Brasil; 3. Os trinta anos da proposta do Banco Mundial – o comportamento da previdência complementar; 4. A necessidade do sistema multipilares permanece inalterada; 5. Considerações finais; 6. Referências.
1 INTRODUÇÃO
O relatório “Averting the Old Age Crisis”[2] foi publicado pelo Banco Mundial em 1994 e teve um impacto significativo na discussão global acerca dos sistemas de previdência social no mundo, apresentando recomendações para a garantia da segurança financeira na velhice. Nele está muito bem destacada a preocupação crescente com o envelhecimento da população, com o aumento da expectativa de vida e com a diminuição da natalidade, demonstrando que essa alteração demográfica há quase trinta anos atrás já colocava pressão nos sistemas previdenciários existentes, ameaçando a sustentabilidade e a eficácia desses programas.
Uma das principais conclusões do relatório foi a necessidade de uma abordagem abrangente e equilibrada para a previdência social, sendo enfatizada pelo Banco Mundial, a importância de uma combinação dos três pilares de proteção social em face do risco velhice: um pilar básico de previdência social, financiado pelo próprio Estado, um pilar de previdência complementar obrigatória e um pilar de previdência complementar voluntário e individual.
Desde a publicação do relatório, as recomendações do Banco Mundial têm influenciado o debate global sobre previdência social. Muitos países adotaram medidas inspiradas nessas recomendações para reformar seus sistemas previdenciários, buscando aumentar a sustentabilidade financeira dos sistemas de proteção e garantir a segurança na aposentadoria.
Atualmente, a discussão sobre previdência social evoluiu consideravelmente. O envelhecimento da população continua sendo um desafio global, não apenas com o aumento da expectativa de vida, como também com as mudanças na estrutura familiar. Além disso, a pandemia da COVID-19 teve impactos significativos nos sistemas previdenciários em todo mundo, destacando a necessidade de resiliência e adaptação, somando-se ao avanço tecnológico e as mudanças no mercado de trabalho.
Muito embora não haja uma atualização oficial do relatório “Averting the Old Age Crisis”, é fato que atualmente os três pilares de proteção previdenciária nele recomendados já passam por reavaliações, indicando a necessidade de cinco pilares, um primeiro, anterior ao da previdência social pública, de natureza assistencial e universal e um quinto pilar, destinado ao sistema de anuidades, para proteção do aumento da longevidade, possibilitando o recebimento de uma renda fixa mesmo após a aposentadoria.
Governos, organizações nacionais e internacionais, pesquisadores e especialistas continuam trabalhando para identificar novas estratégias e soluções para enfrentar os desafios da previdência social contemporâneos e garantir um envelhecimento digno para todos. A atualização dessas discussões é fundamental para adaptar as políticas públicas da proteção social à realidade.
No sistema de seguridade social, o papel da previdência complementar privada é relevante como pilar da previdência social. No entanto, é preciso avaliar em que medida ela está cumprindo o papel que lhe foi atribuído pelo Banco Mundial em 1994, bem como quais são aspectos relevantes para o seu crescimento e para que lhe seja possível alcançar um número maior de participantes, contribuindo para a constante busca da cobertura universal do risco velhice.
O objetivo deste trabalho é apresentar uma análise acerca do papel da previdência complementar como pilar da previdência social, e, portanto, da seguridade social, e de como ela pode contribuir para o crescimento da proteção social, diante dos relevantes fatores: aumento da longevidade; características atuais do mercado de trabalho e escalada tecnológica.
2 A POSIÇÃO DA PREVIDÊNCIA COMPLEMENTAR NO RELATÓRIO “AVERTING THE OLD AGE CRISIS” DO BANCO MUNDIAL E O MODELO ADOTADO PELO BRASIL
No Relatório do Banco Mundial já estavam listadas algumas circunstâncias que não se alteraram muito nesses quase trinta anos, quais sejam: (i) em 1999, quase meio bilhão de pessoas, mais de 9% (nove) por cento da população já contaria com 60 anos de idade, prevendo-se que até 2030 esse número triplicaria para 1.4 bilhão de pessoas, com maior concentração de idosos nos países em desenvolvimento; (ii) em decorrência da difusão dos conhecimentos médicos e do declínio da fertilidade, os países em desenvolvimento já estavam experimentando um envelhecimento muito mais rápido do que aquele experimentado pelos países industrializados; (iii) um crescimento exponencial das despesas com assistência médica e com o pagamento de aposentadorias.
Para enfrentar as situações acima mencionadas, bem como outras citadas no relatório, o Banco Mundial propõe a combinação de três diferentes formas de financiamento e de administração da seguridade social para enfrentamento do risco velhice, mesclando os sistemas públicos e privados. Além da previdência pública obrigatória, a implantação ou o incentivo de planos de previdência privada ocupacionais e individuais (annuity plans), com as seguintes características:
Public pay-as-you-go plans. This is by far the most formal system, mandatory for covered Workers in all countries. Coverage is almost universal in high-income countries and widspread in middle-income countries. As its name suggest, it places the greatest responsability on government, which mandates, finances, manages, and insures public pensions. It offers definid benefits that are not actuarially tied to contributions na usually finances them out of a payroll tax (sometimes supplemented from general government revenues) on a pay-as-you-go basis. And it redistributes real income, both across within generations.
Occupational plans. These are privately managed pension offered by employers to attract and retain workers.Often facilitade by tax concessions and (increasingly) regulated by governments, these plans tended to be defined benefit and partially funded in the past. But the number of definid contribution plans (in which contributions are specified and benefits dependo n contributions plus investment returns) and the degree of funding have been increasing in recente years, and these quite diferente effects. More than 40 percent of workers are covered bay occupational schemes in Germany, Japan, the Nerthelands, Switzerland, the United Kingdom, and the United States – but far fewer in developing countries,
Personal saving and annuity plans. These are fully funded defined contribution plans. Workers save when Young to support themselves when they are old. Since benefits are not defined in advance, workers and retirees bear the investment risk on their savings. Voluntary personal saving is found in every country, often encouraged by tax incentives, but some countries have recently made it mandatory. A key distinction is between mandatory saving plans managed by government (as in Malaysia, Singapore, and several African countries) and those managed by multiple private companies on competitive basis (as in Chile and soon in Argentina, Colombia, and Peru)”[3].
Diante da insustentabilidade dos planos públicos de previdência, os planos de previdência privada ganham importância, como já indicava o Banco Mundial, já que a maior vantagem que eles apresentam é adaptabilidade as necessidades do grupo de pessoas que receberá cobertura, exigindo-se pouco envolvimento dos governos para a sua implantação, não obstante apresentem complexidades técnicas e, por vezes, intensa regulação estatal.
A previdência privada na dinâmica proposta pelo Banco Mundial ocupa posição efetivamente relevante já que dois dos pilares da previdência social estão nela ancorados, sendo que tal modelo foi adotado por diversos países. Segundo o estudo do Thinking Ahead Institute os fundos de pensão são titulares de US$48 trilhões de ativos dos US$420 trilhões de ativos mundiais mapeados no estudo, indicando, portanto, a relevância da previdência privada para a seguridade social[4].
No Brasil, o modelo proposto no Relatório “Averting the Old Age Crisis” foi adotado, com adaptações, inserindo-se a previdência complementar no sistema de seguridade social que, nos termos do disposto no artigo 194, da Constituição Federal “compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”, sendo que a organização desse sistema deve se basear nos seguintes objetivos, lançados no parágrafo único do mesmo artigo 194, da Constituição Federal, quais sejam: I – a universalidade da cobertura e do atendimento; II – uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais; III – seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços; IV – irredutibilidade do valor dos benefícios; V – equidade na forma de participação no custeio; VI – diversidade da base de financiamento e VII – caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados.
O regime de previdência complementar se moderniza no Brasil com o advento da Emenda Constitucional nº 20, de 15.12.1998 que altera o artigo 40, da Constituição Federal, inserindo os parágrafos 14, 15 e 16, e, também, o artigo 202 na Constituição Federal de 1988, veiculando uma das sucessivas reformas introduzidas no subsistema de previdência social após a promulgação da Constituição Federal de 1988, recebendo forte influência do relatório do Banco Mundial.
O modelo adotado a partir da Emenda Constitucional nº 20, de 1998, institui o pilar da previdência complementar, de caráter privado e facultativo, cujos planos podem ser administrados por entidades fechadas de previdência complementar ou por entidades abertas de previdência complementar, pilar que convive com o Regime Geral de Previdência Social – RGPS, público e obrigatório e com o pilar do Regime Próprio dos Servidores Públicos – RPPS, também público e obrigatório.
Com a incorporação das alterações introduzidas pela Emenda Constitucional nº 103 de 12 de novembro de 2019, a previdência complementar pode ser ofertada a todos os brasileiros, inclusive aos servidores públicos, tanto pelas entidades fechadas quanto pelas entidades abertas de previdência complementar.
3 OS TRINTA ANOS DA PROPOSTA DO BANCO MUNDIAL – O COMPORTAMENTO DA PREVIDÊNCIA COMPLEMENTAR
O modelo proposto pelo Banco Mundial para a previdência social recebeu aceitação em diversos países, embasando reformas estruturais, inobstante tenha sido objeto de críticas, especialmente porque intensificou a privatização dos sistemas públicos de aposentadoria em alguns países.
O caminho da privatização, total ou parcial, dos sistemas públicos de aposentadoria a partir da reforma estrutural pioneira levada a efeito pelo Chile a partir de 1981, envolveu mais de 23 países na América Latina, na Europa Central e na Europa Oriental.
Como indica CARMELO MESA-LAGO:
As reformas estruturais tiveram um objetivo social de melhorar as prestações dos benefícios de previdência; mas, com igual ou maior peso, perseguiram vários fins econômicos: (i) a manutenção do equilíbrio financeiro-atuarial dos sistemas e a estabilidade fiscal frente ao envelhecimento da população; (ii) o estabelecimento da equivalência entre as contribuições e os benefícios como incentivo à filiação e à contribuição; (iii) a substituição total ou parcial dos sistemas públicos pelo setor privado de previdência e no financiamento, assim como a separação dessas funções daquelas de regulação e supervisão, as quais ficam a cargo do Estado; (iv) o desenvolvimento de mercados de administradoras de benefícios e seguros, assim como o mercado de valores e o incremento da poupança nacional; e (v) a introdução da liberdade de escolha das administradoras pelo segurado, o fomento da concorrência e uma maior eficiência para reduzir os custos de administração[5].
A proposta do Banco Mundial para as reformas estruturais dos sistemas públicos de previdência, com o estabelecimento do sistema multipilares, está baseada na ideia de que um sistema previdenciário abrangente e bem estruturado é essencial para a estabilidade financeira dos países. Com cidadãos mais seguros financeiramente na aposentadoria, a demanda por assistência social é reduzida, liberando recursos públicos para investimentos em outros setores-chave, como educação, saúde e infraestrutura.
Além disso, por meio dessa modelagem também é fomentada a cultura da poupança e do investimento. A previdência voluntária pode incentivar as pessoas a pouparem para o futuro, promovendo o desenvolvimento de mercados de capitais e a mobilização de recursos para investimentos em projetos produtivos. No relatório “Averting the Old Age Crisis” essas premissas estão claramente identificadas:
A mandatory multipillar arrangement for old age security helps countries to:
Make clear decisions about which groups should gain and which should lose through transfers in the public mandatory pillar, both within and across generations. This should reduce perverse or capricious redistribution – and poverty.
Achieve a close relationship between incremental contributions and benefits in the private mandatory pillar. This should reduce effective tax, evasion, and labor market distortions.
Increase long-term savings, capital market deepening growth through the usse of full funding and decentralized control in the second pillar.
Diversity risk to the fullest because of the mix of public and private management, political and market determination of benefits, the use of wage growth and capital inbcome as the basis for finance, and the ability to invest in a wide variety of securities – public and private, equity and debt, domestic and foreign.
Insulate the system from potilical pressures for design features that are ineficiente as well as inquitable.
The broader economy should be better off in the long run as result. So should both the old and the youg.
(...)
Alguns países que implementaram o sistema mutipilar, especialmente aqueles que optaram pela privatização dos sistemas públicos, estabelecendo um segundo pilar privado e obrigatório se viram obrigados a fazer novas reformas parciais, como ocorreu, na Argentina, na Bolivia e Hungria, com a nacionalização dos pilares privados.
Se de um lado as reformas estruturais dos sistemas públicos de previdência tiveram êxito no fortalecimento da relação entre contribuições e o valor das aposentadorias, na melhoria da eficiência da gestão das contas individuais das reservas e do nível de informação dos segurados, levando a acumulação substancial nos sistemas privados, com retornos razoáveis ou até mesmo elevados para o capital investido, de outro lado, alguns pontos fracos foram detectados nesse modelo, verificando-se, por exemplo, nos países da América Latina que: (i) o sistema privado se dirigia a um mercado de trabalho urbano formal, excluindo da cobertura os trabalhadores rurais e os trabalhadores informais; (ii) carteiras de investimentos das reservas garantidoras dos planos de benefícios concentradas em determinados investimentos, especialmente em títulos públicos, dado um mercado de capitais incipiente; (iii) o negligenciamento do pilar da assistência social, deixando parcelas da população totalmente descobertas; (iv) a supressão ou redução de contribuições para o sistema público gerou custos fiscais de transição de um modelo para o outro muito mais longo e mais elevado dos que os previstos originalmente pelos países[6].
O Brasil não optou pela privatização do sistema público de previdência social, preferindo o sistema misto, como os pilares público e privado convivendo para alcançar o objetivo da universalidade da cobertura e do atendimento.
É fato, todavia, que os pilares privados, administrados pelas entidades fechadas e pelas entidades abertas de previdência complementar ainda possuem uma cobertura incipiente em diversos países que implantaram o sistema multipilares.
No Brasil, segundo consta do Relatório Gerencial de Previdência Complementar relativo ao primeiro trimestre de 2023[7], divulgado pelo Ministério da Previdência Social, a população total coberta pela previdência complementar é de 17 milhões de pessoas, sendo que em 2022, a população total do Brasil é de 203 milhões de pessoas. Por outro lado, o patrimônio total administrado pelas entidades de previdência privada é de 2,5 trilhões, correspondendo a 25% do PIB do Brasil. Desse patrimônio, 48% (quarenta e oito por cento) é administrado por entidades fechadas de previdência complementar (fundos de pensão – pilar voluntário) e 52% (cinquenta e dois por cento) por entidades abertas de previdência complementar e seguradoras (pilar voluntário).
4 A NECESSIDADE DO SISTEMA MULTIPILARES PERMANCE INALTERADA
Na previdência social, especialmente nos sistemas movidos pela universalidade, a constante busca pela proteção do risco velhice, sob qualquer ótica, não encontrará amparo apenas o pilar público, cujos limites financeiros já contrariam o próprio viés universal.
A questão que permeia o sistema multipilares deve sair da esfera ideológica, das discussões que envolvem o estado social e o estado liberal, a direita e a esquerda, o conservador e o progressista, partindo-se para a perspectiva do quanto tal sistema pode proporcionar maior bem-estar social, desenvolvimento e, portanto, liberdade. ANDRÉ LARA RESENDE define bem essa situação:
Será preciso superar o fosso profundo do preconceito ideológico – enraizado por um século de debate rancoroso – para encontrar a síntese destas duas vertentes críticas e achar respostas para o que me parecem duas grandes questões de nosso tempo. Primeiro como reduzir a disparidade dos padrões de vida sem aumentar a intermediação do Estado, restringir as liberdades individuais. Segundo, como reverter o consumismo, a insaciabilidade material, sem reduzir a percepção de bem-estar.
São grandes desafios, sem dúvida. A competição capitalista me parecer imprescindível para que seja possível encontrar respostas aos problemas criados por seu sucesso. Só a pluralidade de ideias, que foi capas de desmistificar todo o tipo de autoritarismo – seja o religioso, o fundamentalista ou o ideológico – e criar a cultura da autonomia do indivíduo, será capaz de fazer a revisão cultural que a circunstâncias exigem, sem sacrificar as conquistas do Iluminismo[8].
A autonomia do indivíduo, a sua liberdade são, sem dúvida, propiciadas pelo desenvolvimento, que como define Amartya Sen, pode se dar por meio de processos que permitem a liberdade de ações e decisões como as oportunidades reais que as pessoas têm, dadas as suas circunstâncias sociais:
A privação de liberdade pode surgir em razão de processos inadequados (como a violação do direito ao voto ou de outros direitos políticos ou civis), ou de oportunidade inadequadas que algumas pessoas têm para realizar o mínimo do que gostariam (incluindo a ausência de oportunidades elementares como a capacidade de escapar de morte prematura, morbidez evitável ou fome involuntária)[9].
O envelhecimento da população mundial é fato incontroverso e se, de um lado, a longevidade representa uma conquista da sociedade, de outro lado gera efeitos nos sistemas de proteção social que precisam se adaptar a essa realidade social. Essa adaptação não significa necessariamente o desmoronamento dos sistemas, mas sua revisão, admitindo-se a existência de uma economia da longevidade, como um caminho para o desenvolvimento econômico:
(...) A transversalidade da economia da longevidade, portanto, empurra o Estado a assumir outro papel face à dinâmica populacional, O Estado deve mudar o paradigma – não ata o Estado “magro” regulador e fiscalizador, acentuando o individualismo ou atuar, como citam Heinse e Naegele, guiados por uma visão economicista e fiscalista. Mas é necessária uma “mudança de paradigma” para gestores (policy-makers) construírem uma política pública no âmbito econômico que seja capaz de aproveitar todo o potencial demográfico – sem que, para isso, precise abrir mão de um papel social. (...)[10].
Em 1995, PETER DRUCKER já previa que a previdência complementar, especificamente os fundos de pensão, poderia gerar um novo realinhamento político, já que tratou da revolução que seria proporcionada pelos fundos de pensão, afirmando que o socialismo chegou aos EUA pela criação do fundo de pensão para os operários da General Motors em 1950, formando um novo “grupo de interesse”:
Vimos que o socialismo de fundos de pensão e as mudanças demográficas que o fundamentam vão criar novos problemas e exigir novas políticas. Esses fatos vão criar novos objetos de discussão e, previsivelmente, tornar irrelevantes muitas questões mais notórias da última geração. Eles afetarão fundamentalmente a disposição, o humor, os valores e o comportamento da sociedade americana e, com isso, sua política.
Também observamos que o socialismo dos fundos de pensão está em vias de criar um genuíno e novo “grupo de interesse”. E que, por intermédio dos fundos de pensão, está criando as instituições ao redor das quais esse grupo por se organizar, instituições que representam as preocupações e prioridades de novo centro de gravidade populacional e social: idosos aposentados e empregados mais antigos (com 50 anos ou mais) para os quais as provisões para aposentadoria estão se tornando cada vez mais importantes[11].
É claro que Peter Drucker estava falando de um realinhamento considerando a realidade dos fundos de pensão dos EUA em 1995, quando estavam sob gestão dos fundos de pensão planos de Benefício Definido instituídos pelas grandes corporações, o que não se verifica na atualidade, já que os planos de Benefício Definido foram amplamente substituídos pelos planos de Contribuição Definida. Mas, a visão de Drucker tem um elemento muito relevante, a mudança de visão acerca da proteção social e o surgimento de um novo “grupo de interesse” com importância para o desenvolvimento econômico sustentável.
Não se pode deixar de reconhecer o viés econômico da Seguridade Social, como expus anteriormente[12],a dicotomia artificial entre o econômico e o social faz com que as despesas com as políticas sociais engendradas pela Seguridade Social sejam consideradas apenas como custo, sem nenhuma produtividade, o que movimenta a tendência do sistema econômico capitalista à reduzi-las, pois quanto menores as despesas, maiores os lucros. Não se toma a rentabilidade social como premissa válida para o progresso social, situação analisada com profundidade por CATHERINE MILLS.
L´approche en termes d´incidence réciproque des systèmes de sécurité sociale, et des structures et des mécanismes d l´économie présente des limites: un dépassement de cette approche est nécessaire.
Elle constitue la façon plus élaborée de pérenisser la coupure économique-social. On a vu combien cette séparation était artificelle et dangereuse.
Elle conduit à traites la dépense sociale comme um coût. Les dépenses de sécutité sociale sont présentees comme non directement productives, comme un prélèvement sur les fonds qui pourraient être consacrés à l´investissement.
Elle persiste à faire de la sécurité sociale une affaire de répartition située hors du mode de production, en renvoyant au politique, au nom dúne norme de justice sociale.
Elle reste marquée par le raisonnement micro-économique, paralysée par les références au marché, à la loi de l´offre et de la demande, à une rationalité de type micro-économique dominée par le calcul coût-avantage.
De tout cela, il ressort que la sécutité sociale n´est pas restituée au coeur du mode de production capitaliste, des ses structures, des ses lois de fonctionnement, de ses contradictions entre eçes forces productives et les rapports de production.
Il apparaît que le rôle de la sécurité sociale como élément moteur dans le développement des forces productives, en particulier dans le développement de la productivité du travail n´est pa pris en compte.
Il semble nécessaire de sortir du cycle de la circulation, de la distribuition pour resituer la sécurité sociale dans le moment de production, comme élément de la reproduction de la force de travail.
Une telle approche permettrait d´étudier la sécurité sociale non en termes de coût mais comme une source d´une nouvelle rentabilité: la rentabilité sociale, comme un factuer de progrés économique et de couverture des coûts sociaux de la croissance capitaliste[13].
A rentabilidade social gerada pela Seguridade Social e seus sub-sistemas, incluída aqui a previdência complementar, geram efeitos diretos sobre a produção e sobre o consumo. No que se refere à produção, não pode ela ser tomada como uma mera despesa, mas sim como um fator de rentabilidade social, que está fundado por uma força de trabalho melhor qualificada, melhor formada e, portanto, rentável socialmente, inclusive do ponto de vista de sustentabilidade do planeta. Sob a ótica do consumo, desenvolve-se a economia da longevidade, cujo mercado é amplo e repleto de possibilidades.
O cenário atual da proteção social contra o risco idade não se sustenta se não estiver amparado no sistema multipilares cujo modelo inicial foi proposto no Relatório “Avertig Old Age Crisis”. Não há dúvida de que tal modelo precisa ser constantemente atualizado e adaptado às necessidades de políticas adotadas por cada um dos países. A previdência complementar, tanto o pilar obrigatório quanto o voluntário precisa ser constantemente avaliada no que ela tem a oferecer como cobertura, não devendo se prender apenas ao modelo ofertado aos trabalhadores e às camadas mais ricas da população.
É possível o desenvolvimento de produtos e estratégias que aumentem a possibilidade de acesso à previdência complementar, conjugados com o incentivo da educação previdenciária. MESA-LAGO reconhece de maneira objetiva tal quadro afirmando que é necessário implementar mecanismos mais inovadores e eficazes para alcançar a cobertura obrigatória dos trabalhadores autônomos e jovens[14].
Não se pode deixar de ter em vista, ainda, o desenvolvimento de planos de benefícios de previdência complementar voltados aos trabalhadores rurais, as pessoas com menor renda. Para esse objetivo, o papel das associações e sindicatos é muito relevante porque eles mesmos podem instituir esse tipo de plano de benefícios, na modalidade de Contribuição Definida, ofertando-os a uma ampla gama de associados, com contribuições moderadas.
O próprio Banco Mundial em 2001 lança o Relatório “New Ideas About Old Age Security – Toward Sustainable Pension Systems in 21st Century” listando aperfeiçoamentos do sistema multipilares que foram adotados por diversos países e outros realinhamentos possíveis. No capítulo desenvolvido por Louise Fox e Edward Palmer “New Approaches to Multipillar Pension Systems: What in the World is Going On”[15], os autores tratam de importantes medidas, especialmente três mais relevantes: (i) a construção de um primeiro pilar mais eficiente, com contas individuais, no modelo de Contribuição Definida, com objetivo de atender os trabalhadores de menor renda; (ii) manutenção do primeiro pilar como natureza assistencial e um segundo pilar de previdência complementar obrigatória, sem que haja a privatização do primeiro pilar e (iii) a diminuição dos custos de gestão da previdência complementar.
Sob qualquer ótica, a Seguridade Social, no subsistema da previdência social, depende do pilar privado, que precisa certamente ser incentivado, em conjunto com outras medidas de natureza assistencial, fortalecendo-se o mix entre iniciativas públicas e privadas.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A visão do bem-estar social vem se alterando com o tempo, refletindo as transformações sociais e econômicas pelas quais o mundo tem passado, especialmente sob a ótica do desenvolvimento sustentável. LARA RESENDE demonstra que até pouco tempo atrás o aumento da renda nacional já significava melhoria na qualidade de vida. “Se a economia crescesse e a renda aumentasse, todos os demais indicadores de bem-estar as acompanhariam”[16]. Essa visão, contudo, não mais se sustenta, diante do risco reflexivo da atividade econômica sobre o planeta, impondo uma revisão do medo de vida atual e do próprio conceito de bem-estar. O sistema econômico global terá que ser mais sustentável.
Esse panorama fez surgir no seio do Fórum Econômico Mundial em 2020, a proposta do Capitalismo Stakeholder, assim definido por KLAUS SCHWAB:
(...) Nesse sistema, os interesses de todos os stakeholders na economia e na sociedade são considerados, as empresas otimizam para mais do que apenas o lucro no curto prazo, e governos são os guardiões da igualdade de oportunidade, com um campo nivelado de jogo na competição, e uma contribuição justa e distribuição para todos os stakehorlders em relação à sustentabilidade e inclusão do sistema. (...)[17].
O bem-estar social hoje deve ser analisado sob essa ótica do encontro da sociedade com o planeta, com os diversos stakeholders assumindo suas respectivas responsabilidades sociais. O principal meio de realização do bem-estar social é a seguridade social que também deve se adequar ao cenário da sustentabilidade e para essa finalidade o sistema multipilares ainda é eficiente como modelo.
A previdência complementar é um instrumento importante para a sustentabilidade da previdência social, e, portanto, da seguridade social, não se podendo perder de vista, inclusive, que as reservas financeiras administradas por esse subsistema podem, e devem, ser direcionadas a investimentos que atendam os princípios ESG (“Environmental, Social and Governance”), relacionados aos dezessete Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) estabelecidos pelo Pacto Global proposto pela ONU – Organização das Nações Unidas, quais sejam:
1. Erradicação da Pobreza
2. Fome Zero
3. Saúde e Bem Estar
4. Educação de Qualidade
5. Igualdade de Gênero
6. Água Potável e Saneamento
7. Energia Limpa e Acessível
8. Trabalho Decente e Crescimento Econômico
9. Industria, Inovação e Infraestrutura
10. Redução das Desigualdades
11. Cidades e Comunidades Sustentáveis
12. Consumo e Produção Responsáveis
13. Ação Contra a Mudança Global do Clima
14. Vida na Água
15. Vida Terrestre
16. Paz, Justiça e Instituições Eficazes
17. Parcerias e Meios de Implementação
O alcance de uma maior cobertura pela previdência complementar, além de passar pelo fortalecimento da educação previdenciária, ampara-se na necessidade de que sejam reavaliadas as formas pelas quais ela é ofertada, ultrapassando-se o universo dos trabalhadores formais, para compreender outras formas de concessão de benefícios que tragam para dentro do sistema os trabalhadores informais, os autônomos, os rurais e pessoas com menor renda.
Como demonstrado neste trabalho, a previdência complementar desempenha um papel crucial como pilar da seguridade social, fornecendo segurança financeira individual, complementando os sistemas públicos, estimulando a economia e aliviando a pressão sobre os recursos estatais, sendo necessário que os governos promovam a sua adequação a realidade social e aos ditames da economia da longevidade.
6 REFERÊNCIAS
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WILLIS TOWERS WATSON, The asset owner of tomorrow, Business model changes for the Great Acceleration.
[1] E-mail ana.raeffray@rbaa.com.br. Doutora e mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Membro e Diretora Científica da Academia Brasileira de Direito da Seguridade Social – ABDSS. Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Previdência Complementar e Saúde Suplementar – IPCOM. Membro Titular da Câmara de Recursos da Previdência Complementar – CRPC, ana.raeffray@rbaa.com.br, https://orcid.org/0009.0008.6492.5287.
[2] THE WORLD BANK, Averting the old age crisis, 1ª ed, United States of America, Oxford University Press Inc., 1994.
[3] THE WORLD BANK, Averting the old age crisis, 1ª ed, United States of America, Oxford University Press Inc., 1994, p.8
[4] WILLIS TOWERS WATSON, The asset owner of tomorrow, Business model changes for the Great Acceleration.
[5] MESA-LAGO, Carmelo, As reformas de previdência na América Latina e seus impactos nos princípios de seguridade social, tradução da Secretaria de Políticas de Previdência Social, Brasília, Ministério da Previdência Social, 2006, p. 16.
[6] MESA-LAGO, Carmelo, Reformas estructurales y Re-reforma de pensiones, y sus efectos en el bienestar social: el caso Chile. Politica y Sociedad, V. 52, n. 3, p. 736, 2015.
[7] BRASIL, Relatório Gerencial da Previdência Complementar. Disponível em: https://www.gov.br/previdencia/pt-br/assuntos/previdencia-complementar/mais-informacoes/arquivos/rgpc_supl_2023, Acesso em: 28 jul.2023.
[8] RESENDE, André Lara, Os limites do possível: a economia além da conjuntura, 1ª ed, São Paulo, Portfolio-Penguin, 2013. p. 83.
[9] SEN, Amartya Kumar, Desenvolvimento como liberdade, tradução Laura Teixeira Motta, revisão técnica Ricardo Doniselli Mendes, São Paulo, Companhia das Letras, 2000, p.31.
[10] FÉLIX, Jorge, Economia da longevidade: o envelhecimento populacional muito além da previdência, São Paulo:106, 2019, p.142
[11] DRUKER, Peter Ferdinand, O melhor de Peter Drucker: a sociedade, tradução de Edite Sciulli, São Paulo, Nobel, 2002, p. 144.
[12] RAEFFRAY, Ana Paula Oriola de, O Bem Estar Social e o Direito de Patentes na Seguridade Social, São Paulo, Conceito Editorial, 2011.
[13] MILLS, Catherine, Traité de Sécurité Sociale. Sous la direction de Yvez Saint-Jours, Tome II, Paris, Librarie Générale de Droit et Jurisprudence, 1981 p. 55.
[14] MESA-LAGO, Carmelo, Reformas estructurales y Re-reforma de pensiones, y sus efectos en el bienestar social: el caso Chile. Politica y Sociedad, Vol.52, nº 3, 2015, p.737.
[15] THE WORLD BANK, New Ideas About Old Age Security.Towar Sustainable Pensio Systems in the 21st Century, Washington, D.C. USA, 2001
[16] RESENDE, André Lara, Os limites do possível: a economia além da conjuntura, 1ª ed, São Paulo, Portfolio-Penguin, 2013. p. 23.
[17] SCHWAB, Klaus, Capitalismo Stakeholder. uma economia global que trabalha para o progresso, as pessoas e o planeta, Rio de Janeiro, Alta Books, 2023, p. 185