Apelo ao Legislador À Calabresi”: A busca por um Supremo Tribunal Federal mais minimalista
Calabresi’s appealing to Congress”: The search for a Federal Supreme Court more minmalist
DOI: 10.19135/revista.consinter.00018.17
Recebido/Received 30/07/2023 – Aprovado/Approved 15/02/2024
Cláudio Ladeira de Oliveira[1] – https://orcid.org/0000-0003-0246-512X
Lucas Pieczarcka Guedes Pinto[2] – https://orcid.org/0009-0001-6266-8669
Resumo
Este artigo investiga a possibilidade de que a técnica decisória denominada “Apelo ao Legislador”, se utilizado pelo Supremo Tribunal Federal, possa estimular uma postura interpretativa “minimalista”, no sentido que Cass Sunstein atribui a essa expressão. Para tanto, inicia-se apresentando o Minimalismo Judicial de Cass Sunstein como uma postura jurisdicional capaz de promover a democracia deliberativa, em especial por ocasião do exercício das competências institucionais para o controle de constitucionalidade da legislação. A seguir, serão analisados casos em que o “apelo ao legislador” é aplicado pelo Tribunal Federal Constitucional alemão, como forma de extrair algumas hipóteses de trabalho. Por fim, será demonstrado como essa técnica decisória poderia ser utilizada pelo STF “minimalista”, reduzindo assim os excessos de “judiciliazão da política”. O método de abordagem utilizado foi o indutivo e o método de procedimento adotado foi o monográfico. As técnicas de pesquisa foram a bilográfica e a documental.
Palavras-chave: Supremo Tribunal Federal; Apelo ao Legislador; Minimalismo Judicial; Appelentscheidung; Ativismo Judicial; autorrestrição judicial
Abstract
This article investigates the possibility that the decision-making technique called “Appeal to Congress”, if used by the Federal Supreme Court (STF), can stimulate a “minimalist” interpretative posture, in the sense that Cass Sunstein attributes to this expression. To this end, it begins by presenting Cass Sunstein's Judicial Minimalism as a jurisdictional posture capable of promoting deliberative democracy, especially in the context of judicial review. Next, some cases will be analyzed in which the “appeal to the legislator” is applied by the German Federal Constitutional Court, as a way to extract some working hypotheses. Finally, it will be demonstrated how the “Appel to Congress” could be used by the “minimalist” STF, thus reducing the excesses of “judicialization of politics”. The method of approach used was inductive and the method of procedure adopted was monographic. The research techniques were bibliographical and documental.
Keywords: Supreme Federal Court; Appeal to Congress, Appelenstscheidung: judicial activism; judicial self-restrain
Sumário: 1.Introdução; 2. Desenvolvimento; 2.1. As Circunstâncias da Política; 2.2. O Minimalismo Judicial de Sunstein; 2.3. Minimalismo X Maximalismo; 2.4. Minimalismo (e Maximalismo) em ação; 2.5. A Appellentscheidung; 2.6. O Apelo ao Legislador no Supremo Tribunal Federal; 2.7. O Apelo ao Legislador à Calabresi; 3. Considerações finais; 4. Referências.
1 INTRODUÇÃO
Nas últimas décadas, a Suprema Corte brasileira tem se caracterizado por uma postura que pode ser classificada como deveras maximalista. Não são raros os julgamentos que trazem autoproclamações de um papel bastante ativo do Tribunal, o qual é, muitas vezes, apresentado como um elemento necessário à realização de um projeto transformador. Via de regra, tal projeto envolve matérias altamente divergentes. Essa maneira maximalista de atuar talvez não tenha sido melhor condensada do que na expressão utilizada por um de seus mais destacados membros — Ministro Luís Roberto Barroso: o papel iluminista da corte.
Não é objetivo deste trabalho analisar o mérito de tal postura. Nem se negará os elementos positivos do maximalismo. Sobretudo no que toca a processos que lidam com direitos de minorias ou com questões ligadas à participação política, é inegável que posturas maximalistas de tribunais possam ser positivas. Contudo, há que se apontar que a alternativa minimalista pode ser benéfica ao funcionamento das instituições. Cortes exercendo uma função mais contida, focando sua atuação não na resolução de questões divergentes profundas, mas em acordos teóricos incompletos específicos, pode significar um ganho institucional. E isso ocorre porque decisões minimalistas permitem uma abertura de espaço importante para que instâncias representativas absorvam e processem os dissensos mais fundamentais. Existe no minimalismo, portanto, um elemento promotor da democracia deliberativa. Com essa “vantagem minimalista” em mente, irá se explorar a seguinte hipótese: o Apelo ao Legislador, o mecanismo decisório criado pelo Tribunal Constitucional Federal alemão, pode funcionar como um indutor de uma postura mais minimalista do Supremo Tribunal Federal? Neste artigo, o método de abordagem utilizado foi o indutivo e o método de procedimento adotado foi o monográfico. As técnicas de pesquisa foram a bilográfica e a documental.
2 DESENVOLVIMENTO
2.1 Circunstâncias da Política
A divergência é um traço permanente em todo corpo social. De fato, é traço marcante da vida em sociedade o surgimento de uma diversidade de visões de mundo (religiosas, filosóficas, morais etc.) que não só se diferem entre si, como muitas vezes são incompatíveis umas com as outras. E não há razão para supor que acontecerá, em algum momento, o consenso em torno de alguma corrente de pensamento em detrimento das demais (RAWLS, 2020, p. 43). Outra constância que se apresenta em todo corpo social se trata da necessidade de as instituições desenvolverem meios capazes de obter decisões políticas sem que haja sua ruptura em decorrência dessa diversidade de concepções.
Trata-se daquilo que Jeremy Waldron denomina “as circunstâncias da política”: “a discordância entre os cidadãos quanto ao que devem fazer, como corpo político” acrescida da “necessidade sentida de agir conjuntamente, embora discordemos quanto ao que fazer” (WALDRON, 2003, p. 187). E, realmente, a divergência, por ser um traço permanente nas sociedades, levou à construção de uma série de instituições que, em última análise, servem para processar as mais variadas concepções de mundo, e, quando necessário, tomar uma decisão. Parlamentos, eleições, partidos, conselhos, etc, são algumas dessas instituições que procuram lidar com o encontro do dissenso permanente com a necessidade de tomar decisões que afetam todos os envolvidos, mesmo aqueles que discordam daquilo que foi decidido.
A divergência, portanto, por ser um traço permanente nas sociedades democráticas, levou à construção de processos decisórios que dispensam a obtenção de um consenso completo. Ora, se precisamos decidir, e o consenso é, muitas vezes, inalcançável, que decidamos sem ele. Nesse contexto, Sunstein explora os chamados acordos teóricos incompletos, formas de decidir sem que haja o fim da divergência em torno da questão a ser decidida. Tais acordos podem apelar para abstrações gerais, o que se traduz em cláusulas abertas, tais como devido processo legal ou direito à igualdade, deixando-se a definição do conteúdo concreto destes direitos para outro momento; ou buscam tratar de questões específicas, sem que haja necessidade de se resolver questões mais amplas e gerais. A primeira forma é comumente adotada pelo constitucionalismo, pois não é raro, quando da elaboração de uma constituição, a adoção de norma geral abstrata, permitindo-se, assim, a aprovação do texto constitucional, deixando questões específicas para serem posteriormente concretizadas pelos poderes constituídos (SUNSTEIN, 2018, p. 48).
Por outro lado, certos acordos incompletos podem ser obtidos não por apelo a construções gerais e abstratas, mas pelo caminho inverso. Há matérias em que, embora não se consiga encontrar um ponto abstrato aceitável a todos, pessoas razoáveis podem atingir terreno comum em uma questão mais concreta. É o que Sunstein chama de acordos teóricos incompletos quanto a um resultado específico (2018, p. XI). Ainda que nem sempre se possam compatibilizar questões fundamentais diversas, uma sociedade pode chegar a uma decisão específica sem que haja necessidade de se resolver a questão geral de fundo (por exemplo, mesmo não havendo consenso quanto ao direito ao aborto, seria possível chegar a um denominador comum quanto à possibilidade da interrupção da gravidez em caso de grave risco à saúde da mãe).
Evidentemente, nem sempre é possível – ou mesmo desejável – que dada sociedade tome decisões com base em acordos teóricos incompletos. Por vezes, questões fundamentais precisam ser enfrentadas em determinados contextos, e contorná-las, seja por meio da adoção de uma norma abstrata, seja por meio do foco em um ponto específico, não parece algo positivo. No entanto, apenas se afirma aqui que atuar por meio de acordos incompletos possui vantagens que tornam o funcionamento da sociedade possível, o que não exclui a necessidade de, de tempos em tempos, enfrentar uma questão fundamental incontornável.
Mas quais seriam as implicações das “circunstâncias da política” no que toca às Cortes? Afinal, questões controvertidas são levadas ao Judiciário, que, de uma forma ou outra, precisa entregar alguma decisão. Por vezes, as questões envolvem comandos legais abstratos que trazem em torno de si divergências profundas e sinceras. Um tribunal pode ter que decidir, por exemplo, acerca da constitucionalidade de determinada política afirmativa (questão envolvendo divergências profundas), tendo como parâmetro o princípio da isonomia (comando abstrato). Obviamente, nem toda norma constitucional é dotada de tal elasticidade. Há dispositivos de contornos precisos em todas as constituições. Um artigo que diga que cada estado-membro de uma federação terá três ou dois senadores é bastante claro e específico; no entanto, sobretudo no que toca aos direitos fundamentais, a necessidade de abstração – e de elasticidade – é maior. Talvez justamente por serem pontos atrativos de concepções fundamentais, muitas vezes opostas umas às outras, haja nos direitos constitucionais a necessidade de postergar a definição de seus conteúdos concretos:
The guarantee of constitutional rights is perhaps a paradigmatic case of the recognition and acknowledgement of the circumstances of politics in constitutional negotiations, given that citizens the world-over have tended to avoid settling too much in bills of rights. This is, after all, perhaps one of the reasons why we spend so much time talking about rights, engaging in various theories of ‘interpretation’ to uncover what they have always meant or to prescribe what they should now mean. Indeed, citizens frame and adopt constitutional rights in a manner that leaves the resolution of rights-disputes to a later day. They do so, not in the hope that these disputes will not arise or require resolution, but precisely on the understanding that answers to these disputes will be required; answers that will invite reasonable and persistent disagreement. (WEBBER, 2009, p. 7)
Poderia ser argumentado que, transferida a decisão ao Poder Judiciário, a questão da divergência pouco importaria, uma vez que na esfera judicial estaria garantida a vigência do “Direito” sobre a “Política”. Esse ideal é hoje bastante presente na teoria de direito público, segundo a qual “a consequência prática da supremacia da constituição é que matérias que são constitucionalizadas ficam além do âmbito do processo legislativo ordinário, portanto da política ordinária” (SAJÒ, ITZ, 2017, p. 24). No entanto, devemos lembrar que a afirmação de que determinada questão, ao ser transferida dos parlamentos para o fórum judicial, passa a ser um “objeto” de uma consideração por juristas profissionais “não políticos” e que estes atuam de acordo com um procedimento que não é de “decisão”, mas de “cognição”, expressa na melhor das hipóteses um desejo, mas de forma alguma um fato objetivo. A despeito dessa concepção, trata-se a atividade dos tribunais de um exercício que exige uma “decisão” sobre qual norma geral e abstrata deverá valer por sobre toda a comunidade, num ambiente em que a divergência em torno da questão permanece viva. E, portanto, tal atividade é inevitavelmente “política”, no sentido de vai muito além da mera revelação de decisões fundamentais já adotadas e expressadas em um texto legal (LADEIRA DE OLIVEIRA, 2022). Por tais razões, torna-se imperiosa a busca por posturas judiciais que levem esse aspecto – a divergência permanente e o caráter político da decisão judicial – em conta na hora de decidir.
2.2 Minimalismo Judicial de Sunstein
Nesse ponto, cabe introduzir a corrente de pensamento chamada de minimalismo judicial. Afinal, se a divergência é traço permanente nas sociedades democráticas, que precisa tomar decisões políticas sem que haja, muitas vezes, possibilidade de construção de consenso, e se a decisão sobre tais questões é sempre política – ainda que tomadas no bojo de um processo judicial -, há que se analisar o papel dos tribunais, pois, enquanto árbitros do conflito social, precisam decidir em meio ao agudo dissenso naturalmente existente em qualquer sociedade plural.
Um tribunal pode ter que decidir, por exemplo, se determinado movimento popular pode defender abertamente a instauração de uma ditadura militar (questão envolvendo divergências profundas) tendo como parâmetro a liberdade de expressão (comando abstrato). Ora, tribunais podem adotar posturas maximalistas, que tentam resolver as questões postas de uma forma ampla e definitiva, e aqui surge a necessidade do tribunal justificar-se como instância decisória adequada a definir tais questões, ou adotar uma postura mais autocontida. E, quanto a esta última forma, o minimalismo judicial tem um papel central. Sobretudo em razão do fraco pedigree democrático das cortes — em comparação às instituições representativas —, uma postura minimalista dos tribunais pode ser considerada mais adequada a um sistema constitucional funcional (SUNSTEIN, 2018, p. 46).
Mas, afinal, o que é o minimalismo judicial? Em primeiro lugar, diga-se que o conceito abarca um sem número de concepções (SCHMIDT, 2022, p. 839). No entanto, três dessas concepções se destacam e podem ser, por assim dizer, consideradas canônicas: o minimalismo de Bradley Thaeyer, o minimalismo de Alexander Bickel e, mais recentemente, o minimalismo de Cass Sunstein. Todas elas buscam, em última análise, calibrar a atuação do Poder Judiciário a fim de que haja uma abertura de espaço institucional para que os demais Poderes – representativos por essência – possam atuar. Todavia, cada uma dessas concepções prescreve um modo particular de atuação judicial. O minimalismo de Thayer aponta para a necessidade de deferência dos juízes em relação às decisões de outros poderes, ou seja, a invalidação de um ato legislativo ou proveniente do Executivo somente ocorreria em caso de patente ilegalidade/inconstitucionalidade. Bickel, por sua vez, após reconhecer como positivo o elemento contramajoritário do controle de constitucionalidade, aponta para aquilo que chama de “virtudes passivas” das cortes. Melhor explicando, ainda que o judicial review injete no governo representativo um elemento de comprometimento a princípios, as cortes devem atuar prudentemente, evitando, muitas vezes, por meio de técnicas como negação de cercionari, julgar a questão levada ao tribunal (SCHIMIDT, 2022, p. 853).
A terceira concepção canônica do minimalismo se trata daquela arquitetada por Sunstein, e será ela a referencial teórico deste artigo. Para essa concepção, o que diferencia uma corte minimalista de outras reside no modo de decidir. Enquanto o tribunal minimalista resolve seus casos sem se manifestar — privilegiando ou descartando — sobre teorias fundamentais, outras cortes, as maximalistas, as utilizam como razão de decidir. Esta diferença no atuar das cortes corresponderia ao que Sunstein aponta como julgamento raso, em oposição a uma decisão profunda da corte (shallow e deep). A corte minimalista, ao proferir julgamentos rasos, se apoiaria na forma específica dos acordos teóricos incompletos, pois resolveria o caso concreto sem se posicionar sobre alguma teoria profunda (SUNSTEIN, 2001, p. 13). Rasa seria, repita-se, a decisão que não se apoiaria em uma teoria fundamental, ao passo que a profunda tomaria partido de uma destas concepções, descartando as demais.
Por exemplo, uma decisão judicial que afirme, de maneira rasa, que determinada cláusula de barreira eleitoral é inconstitucional por ter requisitos restritivos demais é diferente de privilegiar uma concepção geral do princípio democrático, cujo conteúdo proíba a instituição de toda e qualquer barreira de desempenho. Mesmo pessoas que professam doutrinas diversas acerca da democracia — e, talvez, até incompatíveis entre si — podem discordar daquela cláusula de barreira em específico, sem que seja necessário algum consenso quanto à ideia de fundo. Deste modo, a corte abriria espaço para que os órgãos representativos, mais bem posicionados do ponto de vista da legitimidade democrática, possam se debruçar sobre questões políticas amplas e gerais.
Por outro lado, ao decidir, a corte minimalista se ateria ao caso que a ela foi levado, sem tentar estabelecer algum comando geral que possa resolver outras situações — seria a chamada atuação estreita, que se opõe a uma postura ampla da corte (narrowness e width) (SUSTEIN, 2001, p. 10). Os casos seriam resolvidos um a um, tornando a construção jurisprudencial gradual e comedida. As mudanças, portanto, não ocorreriam de forma ab-rupta, sendo necessária uma construção passo a passo por parte da corte. Tal atuar teria a grande vantagem de evitar uma postura mais arrojada do tribunal que, a partir de um caso, procuraria resolver um sem número de situações, o que incrementa risco de situações futuras não vislumbradas pela corte terem uma solução imperfeita ou até mesmo injusta. A postura estreita, portanto, não deixa de ser o exercício de humildade judicial, pois reconhece a incapacidade de alguma corte — por melhor que seja — criar comandos que resolvam os mais diferentes casos de maneira sempre correta.
2.3 Minimalismo x Maximalismo
Nesse ponto, seria interessante contrapor a postura minimalista, como concebida por Sunstein, com a maximalista. Diga-se primeiramente que o maximalismo não possui contornos teóricos bem definidos. Para Sunstein, é basicamente uma predisposição das cortes em proferir decisões profundas e amplas. São posturas que fazem os tribunais avançarem em matérias que trazem consigo profundas divergências das mais variadas (filosóficas, morais, religiosas, etc) (SUSNTEIN, 2001, p. 26). Na medida do grau de intervencionismo adotado, o tribunal procura resolver a questão escolhendo alguma doutrina geral, afastando as demais. O julgamento, assim, não se restringe apenas às questões concretas levadas à corte. Mais que isso, tenta pacificar a divergência de fundo — ainda que tal ponto não tenha sido resolvido pelos poderes representativos do Estado. Além disso, o resultado do julgado procura se traduzir em um comando geral pretensamente capaz de resolver diversas outras situações, ainda que não seja possível conceber, no momento da decisão, muitas destas questões futuras.
É preciso esclarecer que quando se fala em cortes maximalistas ou minimalistas não se está diante de uma classificação de tudo ou nada. Ou seja, não se pode classificar simplesmente uma corte como maximalista ou não. Trata-se, em verdade, de um continuum. Conforme uma série de fatores (matéria enfrentada, momento político, etc) a corte pode pender mais ou menos para um dos polos. A análise, portanto, ainda que se possa identificar certas tendências de alguns tribunais, sempre deve levar em conta a postura da corte numa decisão específica.
No contexto estadunidense, há clássicas decisões maximalistas. Dred Scott v. Sandford (1857) talvez seja o exemplo negativo mais claro. A Suprema Corte dos Estados Unidos procurou definir a questão de fundo (escravidão), que era o substrato teórico do caso concreto, em um momento em que a divergência sobre o assunto era viva e vista como existencial na sociedade americana (McPHERSON, 1988, p. 170-185). A Corte poderia ter se limitado aos estreitos contornos da questão (se a pessoa envolvida – Dred Scott – deveria ou não permanecer em escravidão), no entanto, em uma atuação maximalista, procurou definir a questão de fundo acerca da justiça ou injustiça da escravidão, bem como a possibilidade de sua expansão nos novos estados daquele país. Do mesmo modo, Roe v. Wade (1973) procurou pacificar uma questão que era altamente divergente: o aborto. Indo além do caso concreto, Roe estabeleceu, a partir de uma norma implícita da Constituição americana (intimidade), o direito ao aborto. A divergência acerca do assunto na sociedade era, e ainda é, bastante intensa (MARINONI, 2021, p. 181).
Como dito, parece claro que uma corte não possa ser sempre minimalista ou sempre maximalista. Conforme uma série de fatores (matéria que se está decidindo, momento político, etc), a forma de atuar muda. No entanto, é razoável enxergar na postura do Supremo Tribunal Federal (STF) um grau maximalista considerável. Não são raros os julgamentos profundos e amplos, os quais, inclusive, trazem autoproclamações de um papel bastante ativo do Tribunal, que é apresentado como um elemento necessário à realização de um projeto transformador. E, muitas vezes, tal projeto envolve matérias altamente divergentes. Essa maneira maximalista de atuar pode ser claramente percebida no modo como um de seus mais destacados membros — Ministro Luís Roberto Barroso — enxerga o papel da corte: “Para além do papel puramente representativo, tribunais constitucionais desempenham, ocasionalmente, o papel iluminista de empurrar a história quando ela emperra” (BARROSO, 2017, p. 60).
Não se está a afirmar que a linha maximalista é essencialmente produtora de maus resultados. Há elementos positivos no maximalismo que são claros. Uma decisão que firme um comando geral capaz de resolver processos futuros traz uma segurança jurídica muito maior do que o método de decidir caso a caso os processos que chegam à corte. Ademais, sobretudo no que toca a processos que lidam com direitos de minorias ou com questões ligadas à participação política, é inegável que posturas maximalistas de tribunais possam ser benéficas (SUNSTEIN, 2001, p.57). Decisões como a proferida pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 7277, que reconheceu a legitimidade das uniões homoafetivas, ou como a emanada pela Suprema Corte do EUA em Brown v. Board of Education (1954), que declarou inconstitucional o regime de segregação racial nas escolas americanas, são maximalistas e devem ser celebradas.
É preciso apontar, inclusive, que, para uma corrente de pensamento, a linha maximalista melhor se harmoniza com uma concepção tida como mais moderna de Democracia. Nessa visão, a Democracia não se reduziria ao governo do povo por seus representantes (aspecto formal), haveria também nela um caráter substantivo, isto é, existiriam elementos essenciais ao regime democrático sem os quais ocorreria sua descaracterização. Separação dos poderes, existência de um Judiciário independente, rule of law e, sobretudo, respeito aos direitos humanos seriam valores que devem ser protegidos pelas cortes, por vezes limitando-se a própria vontade da maioria. O papel do juiz, portanto, nessa concepção, seria a defesa do aspecto substantivo da democracia, mesmo quando haja choque com sua dimensão formal (BARAK, 2008, p. X). A análise do acerto ou equívoco desta visão foge ao escopo deste artigo, basta aqui afirmar que é uma linha deveras defendida no mundo jurídico – inclusive o brasileiro.
Contudo, há que se apontar que a alternativa minimalista pode ser benéfica ao funcionamento das instituições. Cortes exercendo uma função mais contida, focando sua atuação não na resolução de questões divergentes profundas, mas em acordos teóricos incompletos específicos, pode significar um ganho institucional. E isso ocorre porque três razões. A primeira dela diz respeito à própria democracia. Decisões minimalistas permitem uma abertura de espaço importante para que instâncias representativas absorvam e processem os dissensos mais fundamentais. Existe no minimalismo, portanto, um elemento promotor da democracia deliberativa (SUNSTEIN, 2001, 24). Ora, na forma democrática de organização estatal, o controle eleitoral é central. Assim, uma doutrina constitucional que aloque as decisões mais fundamentais justamente naquelas autoridades que são, via de regra, responsáveis eleitoralmente (sobretudo os membros do Parlamento), termina por promover a própria democracia.
E mais do que isso: o intercâmbio de razões de pessoas com diferentes perspectivas é uma força construtiva na democracia. Inibir o debate em uma sociedade plural costuma ter o efeito de retardar uma evolução que poderia ocorrer caso o curso do enfrentamento político tivesse seguido naturalmente. O dissenso, quando processado por instituições que sejam desenhadas justamente para promover o debate público e para representar a pluralidade do corpo social, reforça o caráter deliberativo da democracia, ressaltando-se assim a força propulsora da divergência. Nesse quadro, levando em conta que os tribunais não costumam ter uma composição representativa, uma decisão judicial prematura pode inibir, ou mesmo interromper, um fluxo evolutivo do assunto em questão. Veja-se o exemplo da decisão da Suprema Corte dos EUA Roe v. Wade (1973), que, com base no implícito direito constitucional à intimidade, garantiu o aborto até o 3º mês de gestação. Ainda que se possa concordar – ou discordar – do mérito do julgado, é inegável que a Corte atuou de maneira maximalista. E para a justice Ruth Bader Ginsburg a decisão foi um elemento que pode ter paralisado o momentum político pró-aborto que vinha crescendo na década de 70 (MARINONI, 2022, p. 181). Cristalizada a discussão política, não houve mais avanços no processo legislativo acerca da questão, o que contribuiu para que, anos mais tarde, devido a uma guinada conservadora na composição da Corte estadunidense, houvesse uma alteração substancial do quadro: o Tribunal, superando o estabelecido em Roe, afirmou em Dobbs v. Jackson Women's Health Organization (2022) que a Constituição americana não garante o direito ao aborto.
A segunda razão pela qual a alternativa minimalista se torna interessante trata-se da redução do fardo de decidir (SUSNTEIN, 2001. p. 4). Ao limitar-se o objeto da decisão, o custo de decidir diminui. Não só porque seja mais difícil se chegar a uma conclusão – sobretudo quando quem decide é um colegiado – acerca de uma teoria geral que fundamente uma gama enorme de questões (exemplo: quando se inicia a vida humana, quais arranjos familiares são protegidos pelo ordenamento, etc) -, mas também pelo custo político de decidir tais questões. Na linha do que foi exposto sobre os acordos teóricos incompletos quanto a um resultado específico, caso a corte penda para uma teoria fundamental, em detrimento das demais, os opositores da concepção vitoriosa se enxergariam em um ambiente que rejeita, quase completamente, seu modo de pensar quanto ao ponto. Com isso, a instituição que decidiu privilegiar determinada doutrina fundamental atrairia para si, muito provavelmente, enorme criticismo e, no limite, poderia ver uma diminuição da percepção de sua legitimidade. Por outro lado, se se decida de maneira minimalista, o custo político para a Corte será menor. Pois, quem perde apenas em uma situação particular, perde menos.
Por fim, a terceira razão que torna o minimalismo uma postura promissora diz respeito a seu caráter mitigador de erros. Erros judiciais sempre existirão. No entanto, enquanto o maximalismo amplifica os efeitos do erro judicial, o minimalismo possui um elemento de contenção da má decisão. O julgado maximalista, por definição, tende a irradiar suas razões para outros casos, mesmo os futuros. Portanto, caso uma decisão maximalista produza um comando geral ruim, o efeito será a replicação da injustiça para outras situações. Por outro lado, o minimalismo, por preferir decisões estreitas, tende a produzir um resultado restrito ao processo que se decide, permitindo que outras situações sejam resolvidas de maneira diferente no futuro. Tal ideia tem um apelo bastante grande quando se trata de áreas que estão em constante evolução. Imagine-se uma decisão acerca da liberdade de expressão no ambiente da internet. Um comando geral, pretensamente construído para ser aplicado em casos futuros, é extremamente temerário. Uma decisão maximalista ruim que envolva internet será aplicada, certamente, para uma infinidade de casos que sequer são concebidos atualmente, dado o grau de dinamismo evolutivo dessa tecnologia (SUNSTEIN, 2001, 49).
2.4 Minimalismo (e Maximalismo) em Ação
A fim de aclarar ainda mais o descrito até aqui, serão analisados dois julgados do Supremo Tribunal Federal brasileiro. Em ambos os casos foram discutidas questões que levantam profundas divergências. O primeiro caso trata da lei de biossegurança, que envolvia a discussão acerca do início da vida. Já o segundo analisou uma cláusula de barreira eleitoral tendo como pano de fundo as diversas concepções acerca da democracia. Em ambos os casos, há manifestações de juízes que seguiram a linha maximalista e, de modo contrário, há votos que trilharam um caminho mais minimalista. As diferenças nas posturas, portanto, ficam bastante evidenciadas.
A Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.510/DF discutia-se a Lei n. 11.105/05 (Lei de Biossegurança), que, em seu art. 5ª, autoriza a utilização de “células-troco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento” para “fins de pesquisa e terapia”. O processo, portanto, envolvia uma questão que desperta dissensos fundamentais em qualquer sociedade: quando começa a vida humana e a partir de quando o ordenamento deve protegê-la? A ADI foi julgada improcedente, mas aqui o que importa é destacar as manifestações de dois ministros que adotaram posturas bem diversas, ministro Ayres Britto e ministra Ellen Gracie. Enquanto o ministro Ayres proferiu um voto profundo – no sentido de que procurou responder as questões fundamentais envolvidas, privilegiando uma das concepções fundamentais apresentadas –, sua colega preferiu abordar o tema de maneira rasa, ou seja, encaminhou seu voto sem se manifestar acerca de qual teoria acerca do início da vida era a escolhida pela Corte.
O voto da ministra Ellen Gracie se restringiu a apontar que a escolha do Legislador ordinário quanto à Lei de Biossegurança não é inconstitucional. A ministra deixou, assim, de privilegiar alguma corrente de pensamento acerca do início da vida humana ou da (in)existência da proteção constitucional ao embrião:
Equivocam-se aqueles que enxergaram nesta Corte a figura de um árbitro responsável por proclamar a vitória incontestável dessa ou daquela corrente científica, filosófica, religiosa, moral ou ética sobre todas as demais. Essa seria, certamente, uma tarefa digna de Sísifo.
Conforme visto, ficou sobejamente demonstrada a existência, nas diferentes áreas do saber, de numerosos entendimentos, tão respeitáveis quanto antagônicos, no que se refere à especificação do momento exato do surgimento da pessoa humana.
Buscaram-se neste Tribunal, a meu ver, respostas que nem mesmo os constituintes originário e reformador propuseram-se a dar. Não há, por certo, uma definição constitucional do momento inicial da vida humana e não é papel desta Suprema Corte estabelecer conceitos que já não estejam explícita ou implicitamente plasmados na Constituição Federal. Não somos uma Academia de Ciências. A introdução no ordenamento jurídico pátrio de qualquer dos vários marcos propostos pela Ciência deverá ser um exclusivo exercício de opção legislativa, passível, obviamente, de controle quanto a sua conformidade com a Carta de 1988.
(…)
Assim, por verificar um significativo grau de razoabilidade e cautela no tratamento normativo dado à matéria aqui exaustivamente debatida, não vejo qualquer ofensa à dignidade humana na utilização de pré-embriões inviáveis ou congelados há mais de três anos nas pesquisas de células-tronco, que não teriam outro destino que não o descarte.
Como se percebe, a ministra evitou privilegiar alguma doutrina abrangente acerca do assunto – não houve definição acerca do início da vida ou do grau de proteção dado pelo ordenamento ao embrião. A manifestação foi rasa. E, sendo assim, tornou-se estreita, pois, não definindo a questão de fundo, o voto não poderia ser utilizado para resolver outras questões ligadas a esse tópico (aborto, direitos hereditários, etc).
Por outro lado, em seu voto, o ministro Ayres apontou que a proteção constitucional do direito à vida se refere ao nascido, e não aos embriões:
Numa primeira síntese, então, é de se concluir que a Constituição Federal não faz de todo e qualquer estádio da vida humana um autonomizado bem jurídico, mas da vida que já é própria de uma concreta pessoa, porque nativiva e, nessa condição, dotada de compostura física ou natural. É como dizer: a inviolabilidade de que trata o artigo 5° é exclusivamente reportante a um já personalizado indivíduo (o inviolável é, para o Direito, o que o sagrado é para a religião). E como se trata de uma Constituição que sobre o início da vida humana é de um silêncio de morte (permito-me o trocadilho), a questão não reside exatamente em se determinar o início da vida do homo sapiens, mas em saber que aspectos ou momentos dessa vida estão validamente protegidos pelo Direito infraconstitucional e em que medida.
E, posteriormente, complementou:
A potencialidade de algo para se tornar pessoa humana já é meritória o bastante para acobertá-lo, infraconstitucionalmente, contra tentativas esdrúxulas, levianas ou frívolas de obstar sua natural continuidade fisiológica. Mas as três realidades não se confundem: o embrião é o embrião, o feto é o feto e a pessoa humana é a pessoa humana.
Nos dois trechos do voto, percebe-se o tom maximalista do voto, pois o ministro procurou definir 1) que a proteção constitucional à vida se resume ao lapso temporal entre o nascimento e a morte, e 2) que o embrião, por ter a potencialidade de se tornar pessoa humana, pode vir a gozar de proteções infraconstitucionais. Ora, o estabelecimento dessas duas premissas torna a decisão bastante profunda, pois tanto no mundo jurídico, quanto na sociedade em geral, existe um sem números de concepções não só quanto ao início da vida, mas também quanto ao grau de proteção que deve gozar embrião em um ordenamento justo. Privilegiando uma dessas concepções, o ministro descarta as demais, aumentando os custos da decisão.
Ademais, em sendo profunda, a decisão acaba por se tornar ampla. Pois, ao estabelecer um forte comando judicial cujo conteúdo anuncia que a Constituição ampara somente a vida extrauterina, gozando o embrião apenas de proteção infraconstitucional, cria-se a tendência de que casos futuros sejam decididos da mesma forma. Imagine-se, por exemplo, que se altere o art. 2º do Código Civil a fim de se revogar a parte que coloca a salvo os direitos do nascituro, ou, ainda, que se altere o Código Penal a permitir o aborto eletivo até o dia anterior ao parto. Aplicando-se puramente as premissas estabelecidas pelo ministro Ayres – ou seja, que a proteção do embrião é apenas infraconstitucional –, não haveria nessas alterações nenhuma incompatibilidade com a Constituição.
O outro caso que sublinha os contornos do minimalismo, sobretudo sua vantagem de abrir espaço de atuação aos Poderes representativos, trata-se da ADI 1.351, julgada em 2006. Basicamente, discutia-se, no âmbito eleitoral, a cláusula de barreira instituída pela Lei dos Partidos Políticos (Lei n. 9.096/95). O artigo 133 do dispositivo apontava que somente teria “direito ao funcionamento parlamentar” o partido que satisfizesse os seguintes requisitos na eleição: a) obtenção de 5% dos votos válidos para a Câmara dos Deputados, b) distribuição desse percentual mínimo em, pelo menos, um terço dos estados brasileiros e c) conquista, em cada um dos nove Estados, da percentagem mínima de 2%. Além da impossibilidade dos candidatos assumirem o cargo para qual foram eleitos, o partido que não alcançasse a cláusula de desempenho teria significativas restrições no que toca ao fundo partidário e ao tempo disponível para a propaganda partidária.
O voto do relator, ministro Marco Aurélio, possui um tom bastante maximalista. Da sua leitura, nota-se que o ministro pretendia proferir uma decisão profunda, no sentido de que o Tribunal escolheria uma concepção de democracia tão ancorada no pluralismo político que se impediria a instauração de qualquer cláusula de desempenho. E, caso tivesse esta concepção saído vitoriosa, o julgamento, além de deep, seria amplo, pois as razões de decidir praticamente inviabilizariam o Parlamento de instituir algum outro instituto similar que buscasse uma maior racionalidade no sistema eleitoral brasileiro:
A previsão quanto à competência do legislador ordinário para tratar do funcionamento parlamentar há de ser tomada sem esvaziar-se os princípios constitucionais, destacando-se com real importância o revelador do pluripartidarismo. Vale dizer que se deixaram à disciplina legal os parâmetros do funcionamento parlamentar sem, no entanto, viabilizar que a norma estritamente legal determinasse a vida soberba de alguns políticos e a morte humilhante de outros. Verificada a existência jurídica do partido, a participação em certas eleições, o êxito quanto a mandatos políticos em disputa, não há como afastar do cenário a vontade dos cidadãos que elegeram candidatos, que vieram a preencher cadeiras em Casas Legislativas, desvinculando-os, em quase um passe de funesta mágica, do próprio partido que respaldou a candidatura. Surge incongruente assentar a necessidade de o candidato ter, em um primeiro passo, o aval de certo partido e, a seguir eleito, olvidar a agremiação na vida parlamentar. O casamento não é passível desse divórcio.
(...)
Aliás, a diversidade deve ser entendida não como ameaça mas como fator de crescimento, como vantagem adicional para qualquer comunidade que tende a enriquecer-se com essas diferenças. O desafio do Estado moderno, de organização das mais complexas, não é elidir as minorias, mas reconhecê-las e, assim o fazendo, viabilizar meios para assegurar-lhes os direitos constitucionais. Para tanto, entre outros procedimentos, há de fomentar diuturnamente o aprendizado da tolerância como valor maior, de modo a possibilitar a convivência harmônica entre desiguais. Nesse aspecto, é importante sublinhar, o Brasil se afigura como exemplo para o mundo.
Democracia que não legitima esse convívio não merece tal status, pois, na verdade, revela a face despótica da inflexibilidade, da intransigência, atributos que, normalmente afetos a regimes autoritários, acabam conduzindo à escravidão da minoria pela maioria.
Ainda que o tom maximalista tenha sido claro no voto do relator, a ideia preponderante do julgado foi outra. No lugar de se adotar uma determinada concepção de Democracia, a decisão proferida foi rasa, pois considerou inconstitucional especificamente aquela cláusula de barreira eleitoral do art. 13. Não se descartou, assim, a instituição de eventual novo dispositivo que não padecesse das características tidas pela Corte como incompatíveis com a Constituição. A razão de decidir do Supremo, portanto, não foi a escolha de uma visão do sistema democrático que seria incompatível com qualquer cláusula de barreira; em verdade, a inconstitucionalidade foi decretada por conta das peculiaridades do dispositivo legal instituído pela Lei dos Partidos Políticos – sobretudo seus requisitos rigorosos e seus efeitos restritivos quanto ao acesso da agremiação partidária ao financiamento de campanha e à propaganda eleitoral. Permaneceu, assim, aberto o espaço para que os órgãos representativos continuassem a buscar mecanismos que trouxessem uma melhora institucional no sistema parlamentar – desde que não fossem tão rigorosos quanto o dispositivo da Lei n. n. 9.096/95. A manifestação do ministro Sepúlveda Pertence foi clara nesse sentido quando apontou que o entusiasmo pelo pluralismo político não deveria levar “a uma condenação antecipada de qualquer modulação dos direitos, das prerrogativas dos partidos conforme o único sistema conhecido no Direito Comparado, o do desempenho eleitoral”. Do mesmo modo, o ministro Gilmar Mendes sublinhou que a inconstitucionalidade se dava por aspectos ligadas ao rigor da cláusula em questão, e que, portanto, não se estendia automaticamente à eventual nova cláusula de desempenho que tivesse um design diferente:
Estou certo de que se o legislador brasileiro tivesse conformado um modelo semelhante ao adotado no direito alemão, por exemplo, tal como explicado anteriormente, talvez não estaríamos aqui discutir esse tema. É possível, sim, ao legislador pátrio, o estabelecimento de uma cláusula de barreira ou de desempenho que impeça a atribuição de mandatos à agremiação que não obtiver um dado percentual de votos.
A via eleito pelo legislador brasileiro, no entanto, parece-me extremamente delicada. A regra do art. 13 da Lei dos Partidos Políticos não deixa qualquer espaço, não realiza qualquer mitigação, mas simplesmente nega o funcionamento parlamentar a agremiação partidária. Como ressaltado pelo Ministro Pertence, ‘a cláusula de barreira não mata, mas deixa morrer’. Há aqui, portanto, uma clara violação ao princípio da proporcionalidade.
Assim agindo, o STF acabou proferindo uma decisão rasa e estreita, permanecendo aberto o espaço para que os órgãos representativos do Estado, mais bem posicionados do ponto de vista da legitimidade democrática, pudessem rediscutir qual seria o ponto ótimo entre o respeito à pluralidade política e a necessidade de se construir um Parlamento funcional. E, de fato, foi o que ocorreu. Em 2015, o Congresso Nacional reanalisou a matéria e estabeleceu nova cláusula de desempenho. Desta vez, no entanto, certamente atentos ao julgamento do STF de 2006, os parlamentares arquitetaram uma barreira eleitoral com requisitos mais modestos: limite mínimo de votação individual de 10% do quociente eleitoral para preenchimento das vagas em disputa nas eleições submetidas ao sistema proporcional. Como se percebe, o Parlamento não se sentiu impedido de instituir nova cláusula de barreira – o que, seguramente, teria acontecido se a decisão do STF tivesse seguido o tom maximalista do relator. Além disso, o próprio Tribunal não teve problemas, quando da análise da ADI 5.920/DF, em referendar esta última decisão do Congresso Nacional. No julgamento em questão, ocorrido em 2020, livre de uma concepção mais profunda acerca da Democracia, a Corte apontou que cláusula em questão (10% do quociente eleitoral) “não viola o princípio democrático ou o sistema proporcional, consistindo, antes, em valorização da representatividade e do voto nominal, em consonância com o sistema de listas abertas e com o comportamento cultural do eleitor brasileiro”.
2.5 Appellentscheidung
Feitas todas as considerações acerca do minimalismo judicial de Sunstein, pode-se pisar com segurança ao apontar como seu aspecto mais significativo a autorrestrição das corte em lidar com doutrinas fundamentais gerais. O tribunal minimalista procuraria, sempre que possível, um resultado concreto sem apelar — privilegiando ou descartando — alguma das doutrinas gerais existentes. Seria um julgamento raso, em oposição a uma decisão profunda da corte (shallow e deep). Na mesma toada, ao decidir, a corte se ateria ao caso que a ela foi levado, sem tentar estabelecer algum comando geral que pretensamente capaz de resolver outras situações — seria a chamada atuação estreita, que se opõe a uma postura ampla da corte (narrowness e width).
Ainda que se vislumbrem possíveis bons resultados no maximalismo (não é objetivo deste trabalho negá-los), uma alternativa minimalista poderia trazer ganhos institucionais. E isso, como visto, ocorre por três razões: 1. decisões minimalistas permitem uma abertura de espaço importante para que instâncias representativas absorvam e processem os dissensos mais fundamentais. Existe no minimalismo, portanto, um elemento promotor da democracia deliberativa; 2. o minimalismo reduz fardo de decidir, não só porque seja mais difícil se chegar a uma conclusão acerca de uma teoria geral que fundamente uma gama enorme de questões, mas também pelo custo político de decidir tais questões; e, finalmente, 3. a postura minimalista possui um caráter mitigador de erros. Das três razões, a de maior apelo nos parece o caráter promotor da democracia deliberativa. Sem dúvida, ao abrir espaço para que os poderes representativos deliberem e decidam acerca de questões agudamente divergente, a corte minimalista desloca o eixo decisório em direção àquelas autoridades que são sensivelmente mais controláveis do ponto de vista eleitoral.
E justamente por conta dessa ideia de alocação das decisões fundamentais nos órgãos representativos – sobretudo o Parlamento – é que se mira, agora, o Tribunal Constitucional Federal alemão (no original, Bundesverfassungsgericht, de onde se extrai a abreviatura BVerfG). Não que tal Tribunal apresente uma postura claramente minimalista, mas, sim, porque a Corte, ao longo de sua existência, arquitetou um mecanismo decisório que cumpre a exata função de transferir ao Parlamento alemão a decisão acerca de uma questão que foi judicializada. Trata-se da chamada Appellentscheidung – traduzida aqui como “Apelo ao Legislador”. O Tribunal, ao se deparar com algum ato normativo de constitucionalidade duvidosa, mas cuja retirada ab-rupta do sistema legal pode gerar impactos negativos ainda piores, dá à norma uma “sobrevida legislativa”, concedendo ao Parlamento uma oportunidade para remediar, por meio do processo legislativo, o vício de constitucionalidade. Para tanto, a Corte conclama expressamente, em sua decisão, o Parlamento para que atue modificando o panorama legislativo. O estabelecimento ou não de prazo para que a Casa Legislativa atue é um aspecto que fica reservado à discricionariedade da BVerfG (MENDES, 1992, p. 36; KOMMER, MILLER, 2012, p. 36).
Tal procedimento vem sendo utilizado pela Corte Constitucional alemã desde as primeiras décadas de sua existência, entretanto o Tribunal somente fez uso do nome Appellentscheidung em 1992 (COLLINGS, 2016, p. 18). Aliás, a origem do termo “Apelo ao Legislador” (Appellentscheidung) vem do artigo acadêmico da juíza da BVerfG Wiltraut Rupp-v. Brünneck, publicado em 1970 sob o título de “Darf das Bundesverfassungsgericht an den Gesetzgeber appellieren?”[3]. Nesse artigo, a magistrada identificou uma série de julgados em que Corte, além de manter a vigência de uma lei colocada em xeque, advertia o Legislador da necessidade de agir.
No entanto, a importância do artigo vai muito além de haver nomeado o instituto. O seu ponto crucial é, sem dúvida, o fato de expressar a preocupação da juíza com a postura pouco deferente da Corte em relação aos Poderes políticos. Segundo Collings (2016, p. 479), seu objetivo, além de apontar a possibilidade desta via media, em que a Corte não invalida a legislação atacada, mas também não a referenda totalmente, foi dar uma resposta às alternativas decisórias usadas pela Corte, as quais, por vezes, disfarçavam um forte intervencionismo. O argumento era que a BVerfG travestia seu intervencionismo utilizando a técnica conhecida como “interpretação conforme a Constituição”. Considerava-se constitucional determinada norma, mas lhe era dado um sentido que muitas vezes se afastava da intenção original do Legislador.
A invalidação da norma, como é sabido, traz diversos impactos e é um sinal claro de intervenção judicial nas escolhas políticas dos demais Poderes. Por outro lado, a manutenção de um ato legal por meio da técnica conhecida como “interpretação conforme”, algo que muitas vezes é apresentado como um instrumento de autocontenção da Corte, pode ser altamente intervencionista. É o que demonstra o exemplo trazido pela própria Brünneck, qual seja, o julgamento que analisou Tratado Básico de 19721 (COLLINGS, 2016, p. 478).
Esse tratado internacional, assinado em 1972 pelas duas Alemanhas, era a peça central da Ostpolitik de Willy Brandt, e se tratava, em um contexto maior, de uma tentativa de distensionamento das relações da República Federativa da Alemanha (RFA) com os países do Leste europeu, incluindo a União Soviética. Procurava-se com o tratado normalizar a relação entre as duas Alemanhas, prescrevendo-se, entre outras coisas, respeito mútuo às fronteiras, rejeição do uso da força e estabelecimento de representações diplomáticas recíprocas (ORLOW, 2018, cap. 9). Contudo, quando do julgamento acerca da constitucionalidade do Tratado, a BVerfG, utilizando da interpretação conforme, decidiu que o Tratado Básico somente seria constitucional se fosse orientado pelo chamado “comando da reunificação” (Wiedervereinigusgsgebot), isto é, o governo Brandt – e todos os demais que o sucedessem – deveria perseguir, mesmo retoricamente, o objetivo final da união das duas Alemanhas, algo que, para dizer o mínimo, era impalatável aos países a Leste da RFA, bem como ia de encontro à política de distensionamento de Brandt. Apesar de o julgado ter expressamente invocado princípio da autocontenção como seu fundamento (afinal, não houve a invalidação de qualquer artigo do Tratado), não há dúvidas que representou uma aguda intervenção do Judiciário na política externa do governo de então (COLLINGS, 2016, p. 478). Assim, utilizando a interpretação conforme, a Corte subverteu todo o objetivo do Tratado, e, contraditoriamente, fundamentou sua decisão em um princípio que justamente orienta uma postura mais contida.
O artigo de Brünneck, portanto, é também visto como uma busca por uma postura mais deferente da Corte alemã, o que, na concepção da magistrada, poderia ser alcançado por meio de um instrumento que já era utilizado há anos pela BVerfG, qual seja, o Apelo ao Legislador. Tal arranjo decisório seria, de certo modo, uma alternativa aos métodos mais interventivos comumente utilizados pela Corte, seja a invalidação de norma, seja a interpretação conforme (COLLINGS, 2016, p. 479).
No que toca ao uso em si do Apelo ao Legislador, pode-se afirmar que o instituto está pulverizado em uma jurisprudência bastante plural, o que traz alguma dificuldade ao estudo do mecanismo decisório (MENDES, 1992, p. 46). No entanto, podemos tabelar ao menos quatro grupos de situações em que a BVerfG tem aplicado o instrumento: 1) servindo a objetivos maiores e evitando catástrofes; 2) mudanças de circunstâncias, 3) descumprimento de deveres constitucionais e 4) dever de vigiar e remediar (COLLINGS, 1992, p. 503 a 509).
1) servindo a objetivos maiores ou evitando catástrofes
O primeiro grupo de decisões diz respeito a situações em que a Corte entende que a declaração de inconstitucionalidade de determinado dispositivo terá um efeito no sistema legal pior do que sua manutenção. São casos em que o Tribunal percebe que a invalidação da lei poderá gerar uma desestabilização grave no Ordenamento, e, portanto, se opta pela permanência do ato impugnado (“evitando catástrofe”), ou, ainda, se pondera que a retirada da norma terá a consequência prática de afastar ainda mais a realidade daquilo que prescreve a Constituição (“servindo a objetivos maiores”).
A primeira decisão[4] deste grupo envolve o Tratado de Paris de 1954, celebrado entre a Alemanha (RFA) e a França. Como se extrai do julgado, tratava o acordo do status da região de Sarre, e, embora não tenha havido um chamado expresso ao Parlamento, fica evidente a preocupação da BVerfG com o impacto negativo de eventual declaração de inconstitucionalidade do Tratado. Em linhas gerias, o instrumento normativo concedia aos habitantes de Sarre – região que, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, encontrava-se na zona de ocupação francesa – a possibilidade de, por meio de consulta popular, estabelecer um regime semi-independente que ficaria sob a tutela da União da Europa Ocidental (UEO). Para aqueles que defendiam a inconstitucionalidade do Tratado, tal disposição era incompatível com o art. 23, da Lei Fundamental (redação original), que possibilitava a integração de “outras partes da Alemanha” à RFA.
No julgamento, a BVerfG apontou que, de fato, havia pontos do Tratado que eram claramente contrários ao texto da Lei Fundamental, no entanto, visto de uma maneira global, o texto atacado criava uma situação “mais próxima” daquilo que prescrevia a Constituição em comparação ao status quo ante. Tal constatação permitiu à Corte concluir que invalidar o Tratado geraria um estado ainda mais distante do espírito de integração da Lei Fundamental (COLLINGS, 2016, p. 503). E, realmente, a avaliação do Tribunal se mostrou correta, pois a região de Sarre acabou retornando à Alemanha em 1957 (WINKLER, 2005, p. 616). No entanto, não houve um chamado expresso aos demais Poderes para corrigir a situação. Seja porque não havia sido desenvolvido o arcabouço decisório para tanto, seja porque não se sentiu a necessidade de fazê-lo, o apelo expresso ao Legislador não foi lançado nesta decisão. Este passo ficou para outro momento.
E, de fato, no ano de 1963, a Corte emitiu duas decisões em que o chamado Apelo ao Legislador se apresentou por inteiro, sendo que, em ambas, o Parlamento atendeu ao chamado do Tribunal e prontamente agiu para remediar a situação (BRÜNNECK, 1972, p. 396). Trata-se a primeira delas da questão envolvendo a constitucionalidade de um ato normativo que favorecia herdeiros do sexo masculino[5]. Tal norma vinha da era da ocupação das forças aliadas na Alemanha e claramente se chocava com a garantia de igualdade de gênero da Lei Fundamental de Bonn (art. 3.2). Todavia, os tratados internacionais do pós-Guerra, que haviam restabelecido a soberania da RFA, apontavam que as normativas do período da ocupação deveriam permanecer em vigor até que o Parlamento as revogasse, independentemente de eventual incompatibilidade com a Constituição. No caso, ainda que a Corte pudesse ter declarado a inconstitucionalidade da lei a partir do momento em que o Parlamento passou a ter poder para revogar tal lei, ponderou-se que tal atitude traria consideráveis incertezas e problemas de aplicação. Deste modo, com a ideia de “evitar a catástrofe”, foi oportunizado ao Parlamento, em um prazo razoável, fosse editada nova normativa sobre o assunto (COLLINGS, 2016, p. 504).
No mesmo ano, a Corte também encontrou motivos para fazer um apelo ao Legislador, no entanto, desta vez, estabeleceu um prazo peremptório para o Parlamento agir[6]. Tratava-se dos desenhos dos distritos eleitorais relativos à eleição parlamentar de 1961. Em linhas gerais, a alegação era de que o desenho distrital utilizado não espelhava mais a distribuição demográfica alemã, a qual mudara drasticamente desde 1949, época em que os distritos foram arquitetados. E, de fato, a Corte reconheceu que, no momento da decisão (1963), a divisão dos distritos se tornara inconstitucional por não corresponder mais o status quo populacional. Contudo, os magistrados apontaram que a inconstitucionalidade não se deu ab initio. Para eles, ocorreu um processo gradual de “inconstitucionalização”, pois, assim como a evolução demográfica, a inadequação dos distritos se formara paulatinamente. Em outras palavras, como o desenho distrital permaneceu praticamente estanque ao longo do tempo, cada vez mais, os níveis de representatividade dos distritos foram se deteriorando, até que, em um dado momento, distritos populosos passaram a ser sub-representados, e, de modo contrário, distritos menos populosos ficaram super-representados. Com tal constatação, a BVerfG considerou inconstitucional o desenho dos distritos eleitorais em 1963, no entanto apontou como válida a eleição de 1961, uma vez que, naquele ano, no entendimento da Corte, ainda não se completara o processo de inconstitucionalização. Contudo, a fim de houvesse a correção do sistema eleitoral a Corte fez uso do elemento admonitório expresso, fixando um prazo certo ao Parlamento.
2. mudanças de circunstâncias
A segunda categoria de decisões (“mudança de circunstâncias”) relaciona-se a situações em que alguma alteração da conjuntura leva determinado ato legal a se chocar com a Constituição – ainda que, de início, tal norma tenha sido vista como compatível com a lei superior. Tal alteração pode ser, inclusive, uma mudança na jurisprudência do próprio Tribunal. O exemplo citado por Collings (2016, p. 506) é o julgamento[7] da BVerfG de 1972 que, abandonando seu entendimento anterior, decidiu que as limitações dos direitos dos presos somente poderiam se dar por força de lei (anteriormente, entendia-se que tais limitações poderiam ocorrer via ato infralegal). O novo entendimento, obviamente, demandaria uma massiva reforma no sistema penitenciário. Deste modo, a Corte, tendo em conta a mudança das circunstâncias – no caso, a alteração de seu próprio entendimento -, permitiu que as normativas de então permanecessem em vigor por um breve período transitório, o qual serviria para que o Parlamento compatibilizasse o sistema penitenciário à nova jurisprudência.
3. descumprimento de dever constitucional
No que toca às situações envolvendo “descumprimento de dever constitucional” – terceiro grupo -, as decisões tratam de alguma omissão do Estado frente a uma obrigação constitucional. Essas obrigações podem ser decorrentes de duas fontes: a) do próprio texto expresso da Constituição, uma vez que, a exemplo de outras constituições promulgados após a Segunda Guerra, a Lei Fundamental de Bonn traz uma série de direitos positivos; ou, b) do chamado Schutzplicht[8] (dever de proteção) – algo surgido de uma construção jurisprudencial e que, grosso modo, impõe a obrigação do Estado em proteger determinados valores/direitos. Basicamente, a Corte reconhece uma situação de omissão estatal e determina que, em determinado tempo, seja suprida por quem tem atribuição para tanto.
Mais uma vez, um exemplo ajuda a aclarar: o julgamento de 1969 tratando da igualdade jurídica entre filhos havidos dentro do casamento ou fora dele[9]. A Lei Fundamental impõe ao Estado alemão um tratamento igualitário aos filhos (art. 6.5), o que se chocava com o Código Civil de então, que claramente discriminava aqueles considerados “ilegítimos”. Contudo, os constituintes alemães, sabedores que seria preciso um tempo de maturação política para que a legislação ordinária se adequasse ao novo comando constitucional, determinaram, sem a instituição de um prazo peremptório, que o Parlamento promovesse a igualdade jurídica entre filhos não importando sua origem.
Sem a fixação de um prazo para a realização da reforma, o Parlamento permaneceu inerte por quase duas décadas, o que somente mudou com o Apelo do Legislador da BVerfG. A Corte, em 1969, ao julgar um caso envolvendo a questão, no lugar de invalidar a lei discriminatória, oportunizou o Parlamento a compatibilizar, até o fim da legislatura de então, a lei à garantia de igualdade – o que foi atendido dentro do prazo estabelecido (COLLINGS, 2016, p. 57).
4. dever de observar e remediar
Por fim, o último grupo – “dever de vigiar e remediar” – envolve situações em que a Corte não identifica problema constitucional na norma analisada, no entanto vislumbra que eventualmente alguma inconstitucionalidade possa surgir no futuro. Nesses casos, a BVerfG impõe ao Parlamento que acompanhe a questão de perto, e, caso seja necessário, atue a fim de corrigir a dificuldade constitucional. Os dois casos mais famosos tratavam de normativas envolvendo energia nuclear (1978) e de leis ligadas a relações trabalhistas (1979)[10]. Em nenhum dos casos o Tribunal vislumbrou inconstitucionalidade, no entanto ponderou que, por inexistir clareza de como se daria a implementação dos regramentos em questão, o Parlamento deveria permanecer vigilante e, se for o caso, teria a obrigação de editar novo regramento (COLLINGS, 2016, p. 508).
No caso da energia atômica, a discussão girava em torno da instalação de um reator nuclear de um tipo específico (SNR – 300 fast-breeder) na cidade de Kalkar, localizada no estado da Renânia do Norte-Vestfália. Pela lei que regulamentava a matéria, o licenciamento exigia que a autoridade concedente tomasse a precaução necessária para, à luz conhecimento científico e tecnológico disponível, evitar qualquer dano resultante da operação e instalação da usina atômica. Um morador de Kalkar, que vivia a poucos quilômetros de onde seria instalado o reator, judicializou a questão apontando que o tom vago da normativa podeira violar seus direitos à vida e à personalidade. O caso chegou à BVerfG, que o analisou sob diversos prismas: separação de poderes, delegação legislativa, etc. Contudo, para o ponto deste artigo, o destaque se dá à afirmação da Corte que a vagueza da lei não tinha em si qualquer inconstitucionalidade, contudo, conforme o futuro fosse trazendo uma concretude maior dos eventuais riscos do uso do reator em questão, isso poderia mudar (KOMMERS, MILLER, 2012, p. 179).
Do mesmo modo, o segundo julgado envolvia uma questão extremamente complexa e que despertava agudas pressões de diversos segmentos da sociedade. A norma objeto do controle de constitucionalidade era a chamada lei de co-determinação de 1976, que determinara que os conselhos de administração de empresas com mais de 2.000 funcionários contassem com uma representação igualitária entre acionistas e empregados. Quando do julgamento, a Corte afastou todas as alegações de inconstitucionalidade, entretanto apontou que se futuros desdobramentos envolvendo a co-dererminação infringissem os diretos de propriedade, de associação ou a liberdade do exercício profissional, o Parlamento seria constitucionalmente obrigado a agir, e, mais que isso, sua eventual inércia, certamente, seria submetida a escrutínio judicial (KOMMERS, MILLER, 2012, p. 665).
2.6 O Apelo ao Legislador no STF
Como se verifica do desenhado até aqui, a Appellentscheidung, no contexto alemão, é empregada, de um modo geral, ou para resolver questões atinentes à segurança jurídica, ou, em outras hipóteses, quando a BVerfG identifica um processo de inconstitucionalização da norma. Melhor explicando, ou se percebe que a declaração de nulidade do ato estatal terá efeitos piores do que sua manutenção temporária, e, assim, se concede a ele uma sobrevida até que o Legislativo atue, ou se verifica um quadro em que a norma, antes tida como plenamente constitucional, por alguma(s) circunstância(s), passa a ter sua constitucionalidade colocada em xeque, o que demanda atuação paralamentar.
Mas e no contexto brasileiro? Como o Poder Judiciário, em especial o STF, lida com situações semelhantes a essas em que o Tribunal Constitucional alemão lança mão do Apelo ao Legislador? Bom, tais situações são resolvidas com o uso de outros mecanismos – os quais fornecem um resultado semelhante. Observem-se os grupos “evitando catástrofes” e “mudanças de circunstâncias”, por exemplo. Nas duas hipóteses, a motivação da utilização do Apelo liga-se a preocupações relacionadas à segurança jurídica: no primeiro, percebe-se que a retirada do ordenamento de determinada norma terá efeitos piores do que sua manutenção temporária no ordenamento, ao passo que, no segundo, se entende que uma mudança de jurisprudência do Tribunal pode gerar um ambiente altamente disruptivo. Ambos os casos, no STF, poderiam ser resolvidos por meio da modulação dos efeitos[11].
É o que se extrai do exemplo da ADI n. 54692[12], julgada 2021. Neste processo, o STF entendeu que a nova sistemática de cobrança de ICMS, trazida pela Emenda Constitucional n. 87/15, relativa a operações interestaduais envolvendo consumidor final, carecia, para sua efetiva aplicação, de Lei Complementar, a qual inexistia quando do julgado. No caso, como os Estados já estavam cobrando o ICMS nos termos da EC87 há algum tempo, o novo entendimento geraria, se aplicado imediata e retroativamente, um ambiente deveras disruptivo no sistema tributário nacional. Mais que isso, no que toca às contas públicas de diversos entes federativos, seus efeitos seriam potencialmente “catastróficos”, para usar a expressão empregada pela BVerfG. A fim de evitar esses problemas ligados à segurança jurídica, o Supremo modulou os efeitos de sua decisão, permitindo que a nova hipótese de incidência, criada pela EC 87/15, pudesse ser exercida pelos Estados, até o fim do ano de 2021, mesmo sem a existência de Lei Complementar. Nesse período, segundo os ministros, o Congresso Nacional[13] poderia editar a necessária Lei a fim de que, após 31.12.2022, a continuidade da tributação fosse considerada válida[14]. Do mesmo modo, o emprego pela Corte alemã da Appellentscheidung nas situações que tratam de eventual omissão do Parlamento frente a uma obrigação imposta pela Constituição faria pouco sentido no contexto brasileiro. Isso porque há instrumentos processuais – inclusive de índole constitucional – especificamente desenhados para tanto, quais sejam, mandado de injunção e ação declaratória de inconstitucionalidade por omissão.
Contudo, ainda que algumas situações em que é utilizado o Apelo no contexto alemão possam ser, no Brasil, resolvidas por outros mecanimos, é possível identificar decisões do STF com clara influência da BVerfG. Em verdade, são encontrados são dois grupos de hipóteses em que a Corte brasileira faz uso do Apelo. No primeiro deles, estão os processos em que os ministros verificam que a norma analisada, antes tida como plenamente constitucional, passou ou está passando por um processo de inconstitucionalização. Assim, sobretudo por questões atinentes à segurança jurídica, o Tribunal avalia que declaração de nulidade do ato estatal terá efeitos piores do que sua manutenção temporária no ordenamento. E, assim, se conclama o Parlamento a agir. Já no segundo grupo, a Appellentscheidung brasileira é empregada quando há necessidade de profunda estruturação material para resolução da situação tida como inconstitucional, nesses casos, o Supremo exorta o Congresso para que aja em conjunto com outras instituições. Alguns exemplos podem aclarar o ponto.
As primeiras decisões em que o STF se apoiou no argumento de inconstitucionalização de determinada norma dizem respeito à Defensoria Pública, quais sejam, o Habeas Corpus n. 70.514 e o Recurso Extraordinário n. 135.328, ambos julgados em 1994. No HC, questionava-se constitucionalidade, ante a paridade de armas no processo criminal, da regra que concedia prazo em dobro, para recurso, às Defensorias Públicas (§5 do art. 1º da Lei n 1.060/50). Por sua vez, o RE tratava de um caso em que se impugnava a legitimidade do Ministério Público para propor a chamada ação “ex delicto” (art. 68, do Código de Processo Penal), uma vez que tal atribuição caberia, no atual regime constitucional, à Defensoria. Em ambos os casos, o Tribunal identificou um processo de inconstitucionalização das normas, o qual, no entanto, ainda não se perfectibilizara. Isso porque, ao tempo da decisão, a estruturação material das Defensorias Públicas ainda engatinhava. Logo, ainda que se vislumbrasse que tais normas viriam ser incompatíveis com a Constituição no futuro – mais especificamente quando ocorresse a devida consolidação das Defensorias -, elas deveriam ser, até lá, encaradas como “ainda constitucionais”. Há evidente inspiração na Appellentscheidung alemã. No entanto, como a questão envolvia a necessidade de uma estruturação material muito mais afeta ao Executivo do que ao Legislativo, não houve um chamado expresso ao Congresso Nacional.
Mais recentemente, entretanto, o STF tem proferido decisões em que há expressa conclamação para o Parlamento agir. Em geral, são casos em que se juntam as seguintes condições: vislumbra-se um processo de inconstitucionalização de determinada norma, porém se percebe que sua retirada do ordenamento terá efeitos ainda piores do que sua manutenção temporária. Vejamos um exemplo representativo dos demais: ADPF 131, julgada em 2020. Neste processo, o Conselho Brasileiro de Óptica e Optometria desafiava a constitucionalidade dos arts. 38, 39 e 41 do Decreto 20.931/32 e dos arts. 138 e 149 do Decreto 24.492/34, os quais trazem uma série de restrições profissionais aos optometristas. Para a Corte, seguindo voto do relator ministro Gilmar Mendes, os dispositivos legais em questão haviam sido recepcionados pela Constituição Federal de 1988. Contudo, ao longo dos anos, houve uma mudança paulatina de diversas circunstâncias que, potencialmente, alteraram a situação constitucional das normas (por exemplo, surgiram, no Brasil, cursos tecnológicos e bacharelares de optometria). Nesse cenário, a solução encontrado pelo STF foi a improcedência da ADPF, mas com um chamado ao Legislador ordinário para que agisse, devendo ele levar em conta todas essas mudanças fáticas. Isso porque, apesar de ter se reconhecido o processo de inconstitucionalização das normas, se verificou que eventual declaração de nulidade terminaria por ferir a segurança jurídica e criar uma situação ainda mais afastadas do escopo constitucional
Há outras decisões[15] do STF que seguem essa dinâmica: reconhece-se um processo de inconstitucionalização do ato estatal, mas se percebe que sua invalidação teria um efeito ainda pior do que sua manutenção, logo se deve dar-lhe uma sobrevida, conclamando o Parlamento para que aja. Do mesmo modo, identificam-se decisões do STF, em geral no âmbito dos processos estruturais, em que há a conclamação do Congresso Nacional para que atue acompanhado de outros órgãos estatais. Tais situações ocorrem quando os ministros entendem que há necessidade de uma grande estruturação material, a qual, para sua efetivação, precisa, dentre outras coisas, da realização de reformas legislativas. Casos como os que analisaram o Sistema Carcerário brasileiro e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura são exemplos da utilização do Apelo quando da necessidade de estruturação material[16].
2.7 O Apelo ao Legislador à Calebresi
Finalmente, chega-se a pergunta que motivou o presente artigo: o Apelo ao Legislador poderia ter algum papel na promoção de um Supremo Tribunal Federal mais minimalista? Bom, como apontado, a Corte Constitucional brasileira já faz uso do instituto em alguns julgados. Sem sombra de dúvida são decisões importantes, as quais dão claro testemunho da influência da BVerfG em nossa jurisdição constitucional. Todavia, tais julgados não promovem o minimalismo – até mesmo porque não intencionavam fazê-lo. Do mesmo modo, no contexto alemão, o Apelo não é utilizado como técnica para afastar a BVerfG do maximalismo. Em verdade, em ambos os tribunais o instituto é empregado, de um modo geral, ou para resolver questões atinentes à segurança jurídica, ou, em outras hipóteses, quando se identifica um processo de inconstitucionalização da norma analisada.
A utilização do Apelo nessas hipóteses não induzem os juízes a uma postura mais minimalista. Para que isso ocorra, o instituto necessita, antes de tudo, de uma modificação. Para funcionar como um “indutor minimalista”, a Appellentscheidung precisa deslocar o eixo decisório de questões fundamentais, isto é, precisa ser utilizada como fio condutor que transira do Judiciário ao Parlamento o trato dos dissensos sociais mais profundos.
São justamente nessas situações, em que a manifestação sobre teorias fundamentais é necessária que se propõe, como meio de se obter uma postura mais minimalista, a utilização, pelo STF, do Apelo ao Legislador. O Tribunal, ao se deparar com um processo cuja resolução dependa da escolha de uma teoria fundamental, teria dois caminhos: decidir ele próprio ou apelar ao Congresso Nacional para que o faça. O primeiro caminho é o que todos conhecem. Com suas vantagens e desvantagens, esse tipo de julgado é habitual no Supremo. No contexto brasileiro, não raro um corpo de juízes não eleitos decide questões fundamentalmente controvertidas. Um STF minimalista não descartaria tal possibilidade, uma vez que, como já apontado, o maximalismo também pode produzir bons resultados. Contudo, defende-se aqui a possibilidade do segundo caminho como uma alternativa ao STF.
Mas qual seria a vantagem de se ter como alternativa a utilização de um instituto semelhante à Appellentscheidung, a ser empregado em alguns dos casos em que há necessidade de manifestação acerca de teorias fundamentais? A vantagem da utilização do Apelo residiria no fato de que tal instituto possui um forte alinhamento com a natureza democrática do minimalismo. Melhor explicando, existe no minimalismo um elemento incentivador do caráter deliberativo da Democracia. Ora, como se sabe, nesta forma de organização estatal – a Democracia -, o controle eleitoral é central, logo uma doutrina constitucional que aloque as decisões mais fundamentais justamente naquelas autoridades que são, via de regra, responsáveis eleitoralmente (sobretudo os membros do Parlamento), termina por promover a própria Democracia. Ademais, o dissenso, quando processado por instituições que foram desenhadas justamente para qualificar o debate público e para representar a pluralidade do corpo social, reforça o caráter deliberativo da democracia, ressaltando-se assim a força propulsora da divergência (SUNSTEIN, 2001, 24).
E se uma das vantagens do minimalismo é justamente a abertura de espaço para que instâncias representativas absorvam e processem os dissensos mais profundos, por que não conceder ao STF uma ferramenta que tem por dinâmica fundamental alocar o processo decisório no próprio Parlamento? O instituto do Apelo ao Legislador, portanto, poderia ter um papel crucial em eventual guinada minimalista do STF. Isso porque no contexto brasileiro os casos envolvendo necessidade de manifestação de uma teoria fundamental são comuns, quando se compara, por exemplo, com o Judiciário americano. Colocando de uma outra forma: ante as características de nosso sistema legal, as quais permitem uma permeabilidade maior no que toca à penetração de casos evolvendo teorias fundamentais, seria interessante a possibilidade de um instrumento, à disposição do Supremo, que permitiria lidar com tais processos sem que fosse perdida a vantagem do minimalismo em promover a democracia deliberativa.
O Supremo, em vez de simplesmente substituir a decisão política dos demais Poderes pela visão de seus juízes, poderia lançar mão da Appellentscheidung. O Legislativo, instado a atuar mais incisivamente, processaria, então, melhor os dissensos sociais, lidando ele próprio com teorias fundamentais – uma vez que é nele em que se encontra a maior legitimidade democrática. Desse modo, a Corte atuaria como catalisadora do processo político, rompendo eventuais barreiras impostas a grupos subrepresentados. Empresta-se aqui a analogia de Ely (2010, p. 136): o tribunal agiria como um órgão antitruste, no sentido de que estes órgãos não participam das atividades econômicas que regulam, mas apenas garantem seu bom funcionamento. Ao utilizar do Apelo ao Legislador, o STF velaria pelo bom funcionamento do processo político, sem nele atuar ativamente tal qual uma casa revisora das decisões políticas mais fundamentais.
Mas que se repita: seja na Alemanha, seja no Brasil, o Apelo ao Legislador não tem por objetivo alocar a decisão de matérias altamente divergentes no Parlamento. Em verdade, o mecanismo serve como o um modo de resolução de casos envolvendo a chamada inconstitucionalização, ou ainda como um instrumento a lidar com questões ligadas à segurança jurídica. Portanto, a ideia da utilização pelo STF do Apelo ao Legislador como instrumento de promoção de uma postura minimalista requereria uma adaptação do instituto. A dinâmica permaneceria a mesma, mas as circunstâncias de aplicação seriam outras. Haveria a manutenção temporária do ato estatal de constitucionalidade duvidosa com a exortação do Parlamento a agir, tal qual ocorre na Alemanha. No entanto, o foco principal seriam os casos em que houvesse uma necessidade de manifestação acerca de alguma teoria fundamental, sobretudo quando os ministros avaliassem que determinada legislação demanda atualização – seja porque o ambiente social mudou, seja porque novos fatos alteraram a percepção da questão. A Corte, mantendo uma postura minimalista, funcionaria como uma catalisadora da atuação do Parlamento, o qual poderia processar o dissenso fundamental envolvido. O ponto central, portanto, seria a transferência ao Parlamento da análise das teorias fundamentais. Um exemplo ajuda a aclarar o ponto: trata-se de um caso julgado pelo Judiciário Federal dos EUA em 1995, mais especificamente pela United States Court of Appeals, Second Circuit[17].
Neste julgamento, o Tribunal Federal analisou o recurso de Manuel Then, que fora condenado, pela instância inferior, a 210 meses de prisão pela acusação de tráfico de drogas – especificamente crack e cocaína. Dentre as alegações do acusado, a que interessa a este artigo, diz respeito à impugnação a um dispositivo do Federal Sentencing Guideline[18], cujo conteúdo orientava, para fins de dosimetria da pena, uma valoração mais rigorosa ao crack em relação à cocaína. Melhor explicando, o documento legal impugnado apontava que, na aplicação da pena, os juízes deveriam considerar as quantidades em uma proporção de 100 para 1 no que toca à cocaína e ao crack, ou seja, alguém condenado por portar 1 grama de crack receberia, em sua dosimetria, um grau de reprovabilidade semelhante a um condenado por 100 gramas de cocaína. Para o acusado, a norma era inconstitucional por duas razões: 1) não havia estudos científicos apontando a maior periculosidade do crack em relação à cocaína, o que tornaria a regra irrazoável, e 2) a norma violava a isonomia, uma vez que gerava uma punição maior das minorias, pois, enquanto a cocaína afeta(va) majoritariamente segmentos sociais não minoritários, o crack, proporcionalmente, atingia mais as minorias.
O recurso foi rejeitado, no entanto o destaque aqui a ser dado são as manifestações do juiz federal Guido Calabresi. Após compilar uma série de argumentos e estudos apontando no sentido da gravidade similar entre as duas drogas, bem como da maior vulnerabilidade das comunidades minoritárias em relação ao crack, Calabresi sugeriu que a norma em questão, embora houvesse nascido constitucional, teria sofrido um processo de inconstitucionalização. E isso teria ocorrido em decorrência das maiores informações que vieram à luz mostrando que a diferença de periculosidade entre os entorpecentes não justificariam uma relação de 100:1. Do mesmo modo, as mudanças das circunstâncias sociais relacionadas aos grupos atingidos pelo crack e pela cocaína poderiam ter alterado o panorama da constitucionalidade da regra, quando analisada sob a ótica da isonomia. Contudo, reconheceu que haveria uma dificuldade grande em um tribunal apontar se esse processo de inconstitucionalização, de fato, havia se perfectibilizado, uma vez que tal conclusão demandaria um alto grau de juízo político:
It is not, however, easy for courts to step in and say that what was rational in the past has been made irrational by the passage of time, change of circumstances, or the availability of new knowledge. Nor should it be. Too many issues of line drawing make such judicial decisions hazardous. Precisely at what point does a court say that what once made sense no longer has any rational basis? What degree of legislative action, or of conscious inaction, is needed when that (uncertain) point is reached? These difficulties — and many others — counsel restraint, and do so powerfully.
Neste ponto, Calabresi sugeriu que esses juízos políticos poderiam ser tratados de maneira adequada pelo Congresso, que teria mais condições de analisar a questão. É de se notar que o juiz faz referência expressa ao uso do Apelo ao Legislador pela BverfG:
Both the Constitutional Courts of Germany and Italy have addressed the problem of laws that were rational when enacted, but which, over time, have become increasingly dubious. Rather than jumping in and striking the laws down, or leaving them undisturbed and thereby allowing legislative inertia to dominate, these Courts have found a middle ground. They have, in a few cases, announced that laws, because of changed circumstances, were heading toward unconstitutionality. In this way, the continental Courts have put their parliaments on notice that a serious and thoughtful legislative review and reconsideration was in order and that failure to undertake such a review might in time result in judicial action and perhaps even nullification of the laws.
As sugestões de Calabresi não foram adotadas por seus pares. No entanto, suas ideias, se adotadas, alterariam levemente a natureza do Apelo ao Legislador, fazendo com que o instituto possa se tornar um instrumento a contribuir para eventual guinada minimalista do tribunal que o adota – inclusive do STF. Isso porque sua utilização poderia se dar – como pontuou Calebresi – em situações que demandem a manifestação de juízos políticos relativos a teorias fundamentais. Em geral, o instituto seria utilizado quando se verificasse um processo, ao longo do tempo, de inconstiticionalização da norma analisada. Isso, porém, seria secundário, pois o que, de fato, importa, no que toca à virada minimalista, seria a utilização do Apelo ao Legislador como meio de alocação de decisões relativas a teorias profundas em um órgão representativo. O STF, portanto, poderia fazer uso da Appellentscheidung, com as leves modificações de Calabresi, a fim de calibrar sua atuação em busca de uma postura mais minimalista.
Mas em quais casos específicos a Corte poderia fazer uso da Appellentscheidung? Os casos seriam aqueles em que o Tribunal enxergaria um processo de inconstitucionalização de alguma norma, mas que, para sua resolução, haveria necessidade de posicionamento acerca de profundos dissensos sociais. Nesses casos, o Apelo poderia ser utilizado como um elemento incentivador do caráter deliberativo da democracia. E, mais que isso, auxiliaria a caminhada do Supremo rumo ao minimalismo. Para se demarcar exatamente como seria esta utilização do Apelo modificado, far-se-á um esforço hipotético utilizando-se dois casos do Supremo em que ainda não há julgamento definitivo. São eles o Recurso Extraordinário n. 635.659 e a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 442.
No RE, discute-se a constitucionalidade da criminalização de maconha para uso próprio, sendo que já há dois votos favoráveis (ministros Barroso e Fachin) à tese da inconstitucionalidade. Sobre a cannabis, é indiscutível que, ao longo dos anos, houve um processo de mudança no tratamento legislativo que diversos países têm dado ao uso deste entorpecente. Cada vez mais, encontram-se exemplos de juridições que liberaram o uso recreativo desta droga. Tais considerações apontam, portanto, para uma potencial necessidade de atualização da legislação brasileira. Contudo, se é verdadeiro que o movimento pela liberação tem se fortalecido, também é acurado dizer que a questão envolve dissensos políticos bastante intensos.
Por sua vez, a ADPF 442 discute a descriminalização do aborto voluntário até o terceiro mês de gestação. Como se sabe, a legislação que criminaliza o abortamento é da década de 40 (art. 124, do Código Penal). De lá para cá, uma série de mudanças ocorreu no que toca ao assunto (avanços na área da medicina, alteração na percepção do papel da mulher na sociedade, etc). Tais aspectos indicam que talvez seja hora de, ao menos, se avaliar o acerto da proibição do aborto. No entanto, algo não mudou desde os anos 40: a questão continua a despertar os mais agudos dissensos no corpo social.
Em ambos os casos, o uso do Apelo ao Legislador poderia ser empregado como um instrumento de transformação do STF numa corte minimalista. A dinâmica seria mesma das outras situações em que o Supremo utiliza a técnica, isto é, haveria a manutenção temporária do ato estatal, com a consequente exortação ao Congresso Nacional. Mas a alteração mais significativa seria o deslocamento do eixo decisório da questão fundamental para a instância política. Nos casos apresentados, caso os ministros identificassem um processo de inconstitucioanlização da criminalização do uso recreativo da maconha e do aborto voluntário, não decidiriam a questão eles próprios. No lugar disso, o Tribunal chamaria o Parlamento a agir. Desse modo, o trato das questões fundamentais seria alocado no Congresso Nacional. A Corte, mantendo uma postura minimalista, funcionaria como uma catalisadora do processo legislativo – uma vez que é nele em que se encontra a maior legitimidade democrática. Ambas as questões, por serem matérias altamente divergentes, poderiam ser tratadas de maneira mais abrangente pelo Parlamento, promovendo-se o caráter deliberativo de nosso sistema institucional.
Além disso, a própria complexidade das duas questões indica os poderes representativos como palco ideal para tratar do assunto. Isso porque, caso as normas proibitivas, seja do aborto, seja do uso da maconha, sejam tidas como inconstitucionais, surgirão inúmeras questões que dependem de escolhas políticas relativas ao caminho a ser seguido a partir do julgamento. Melhor explicando, caso o STF considere inconstitucional a criminalização do uso recreativo da cannabis, qual seria o melhor modelo a substituir o atual? Simplesmente tratar o uso como uma infração administrativa? Permitir a venda da droga em locais específicos? Quais seriam esses locais? Por outro lado, caso a criminalização do aborto seja tida como inconstitucional, a interrupção da gravidez poderá ocorrer até qual momento da gestação? Haverá necessidade de um período de reflexão entre a decisão de abortar e o procedimento em si? Todas essas questões precisarão ser resolvidas, e no âmbito de cada uma delas há mais de um caminho a ser seguido, ou seja, são outras decisões políticas que seriam melhores tratadas pelos Poderes representativos, o que reforça ainda mais o benefício da utilização do Apelo nessas questões.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O instrumento analítico primordial deste trabalho foi o Minimalismo Judicial de Sunstein. Não por acaso sua análise foi a primeira camada do artigo. Ele foi o fiel da balança da classificação das posturas judiciais. Com seu arcabouço teórico, verificou-se que os tribunais podem adotar posturas minimalistas ou maximalistas. Quanto à ultima, apont-se que seu traço característico é a tentativa de resolver as questões postas de uma forma a privilegiar determinada doutrina fundamental geral. O maximalismo, portanto, faz as cortes avançarem em matérias que trazem consigo profundas divergências das mais variadas (filosóficas, morais, religiosas, etc). Na medida do grau de intervencionismo adotado, o tribunal procura resolver a questão escolhendo alguma doutrina geral, afastando as demais. O julgamento, assim, não se restringe apenas às questões concretas levadas à corte. Mais que isso, tenta-se pacificar a divergência de fundo — ainda que tal ponto sequer tenha se assentado na Sociedade. Ademais, o resultado do julgado procura se traduzir em um comando geral pretensamente capaz de resolver diversas outras situações, ainda que não seja sequer possível conceber, no momento da decisão, muitas destas questões futuras.
Ainda que esta linha maximalista seja bastante difundida, é importante apontar que uma alternativa institucional pode ser benéfica ao funcionamento das instituições. Cortes exercendo uma função mais contida, focando sua atuação não na resolução de questões divergentes profundas, mas em acordos teóricos específicos, pode significar uma abertura de espaço importante para que instâncias políticas absorvam e processem os dissensos mais fundamentais. E aqui o Minimalismo é central. Como se estudou, a postura minimalista pode ser caracterizada como uma forma de autorrestrição judicial. No entanto, não são meros sinônimos, pois, embora uma corte minimalista seja, de fato, mais prudente em invalidar as escolhas políticas dos outros Poderes, há lugar para que haja, em algum grau, a revisão judicial destas decisões.
O ponto mais significativo seria a autorrestrição da corte em lidar com doutrinas fundamentais gerais. O tribunal minimalista procuraria, sempre que possível, um resultado concreto sem apelar — privilegiando ou descartando — alguma das doutrinas gerais existentes. Seria um julgamento raso, em oposição a uma decisão profunda da corte (shallow e deep). Por outro lado, ao decidir, a corte se ateria ao caso que a ela foi levado, sem tentar estabelecer algum comando geral que possa resolver outras situações — seria a chamada atuação estreita, que se opõe a uma postura ampla da corte (narrowness e width).
Obviamente, há méritos na postura maximalista. Nunca foi o objetivo deste trabalho apontar que o maximalismo produz necessariamente maus resultados. No entanto, o minimalismo se mostrou interessante do ponto de vista institucional, sobretudo porque decisões minimalistas permitem uma abertura de espaço importante para que instâncias representativas absorvam e processem os dissensos mais fundamentais. Existe no minimalismo, portanto, um elemento promotor da democracia deliberativa.
Mas o Apelo ao Legislador poderia contribuir para que o STF passasse a adorar uma postura mais minimalista? Antes de responder tal indagação, foi preciso estudar o instituto em si. Demonstrou-se que a ideia central do mecanismo se configura no reconhecimento por parte da Corte que a lei ainda não se tornou inconstitucional, mas se vislumbra que isso não tardará a acontecer, e, portanto, se exorta o legislador a que proceda à correção ou à adequação dessa situação ainda constitucional. Isto é, em vez de invalidar a lei analisada, a Corte procura estender sua vigência, concedendo ao Legislador uma oportunidade para remediar, por meio do processo legislativo, o (futuro) vício de inconstitucionalidade.
Consolidados os instrumentos analíticos do Minimalismo, bem como analisado o instituto do Apelo ao Legislador, o passo seguinte foi a sobreposição dessas duas camadas teóricas, isto é, chegou-se ao momento de verificar se a utilização da Appellentscheidung poderia contribuir para a formação de uma postura mais minimalista do Supremo Tribunal Federal. Como se verificou, as cortes constitucionais brasileira e alemã fazem usam do Apelo. Todavia, tal utilização não promove o minimalismo – até mesmo porque não se intencionava fazê-lo. Em verdade, o instituto é empregado, de um modo geral, ou para resolver questões atinentes à segurança jurídica, ou, em outras hipóteses, quando se identifica um processo de inconstitucionalização da norma analisada. A utilização do Apelo nestas hipóteses não induzem os juízes a uma postura mais minimalista. Para que isso ocorra, o instituto necessita, antes de tudo, de uma modificação. Para funcionar como um “indutor minimalista”, a Appellentscheidung precisa deslocar o eixo decisório de questões fundamentais, isto é, precisa ser utilizada como fio condutor que transira do Judiciário ao Parlamento o trato dos dissensos sociais mais profundos.
Para que isso ocorra, deve-se alterar o mecanismo do Apelo, ou melhor, a hipótese de aplicação seria diferente nas que, hoje, são aplicada o Apelo. Mostra-se necessária a adoção das ideias de Guido Calabresi, expostas no julgamento United States vs. Then. Sua utilização poderia se dar – como pontuou Calebresi – em situações que demandem a manifestação de juízos políticos relativos a teorias fundamentais. Em geral, o instituto seria utilizado quando se verificasse um processo, ao longo do tempo, de inconstiticionalização da norma analisada. Isso, porém, seria secundário, pois o que, de fato, importa, no que toca à induçaõ minimalista, seria a utilização do Apelo ao Legislador como meio de alocação de decisões relativas a teorias profundas em um órgão representativo. O STF, portanto, poderia fazer uso da Appellentscheidung, a fim de calibrar sua atuação em busca de uma postura mais minimalista. Seria a adoção do “Apelo ao Legislador à Calabresi”.
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[1] Professor de Direito Constitucional da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Doutor em Direito Constitucional pela UFSC, professor coordenador do grupo de pesquisa GCONST. claudioladeiradeoliveira@gmail.com, https://orcid.org/0000-0003-0246-512X.
[2] Juiz Federal substituto da Justiça Federal da 4ª Região, Mestre em Direito Constitucional pela UFSC lucaspgp82@gmail.com, https://orcid.org/0009-0001-6266-8669.
[3] Em tradução livre: “Pode o Tribunal Constitucional Federal apelar ao Parlamento?”
[4] BVerfG No. 7 E 4, 157 1 BvF 1/55
[5] 15 BVerfGE 337 (1963)
[6] 16 BVerfGE 130 (1963)
[7] 33 BverfGE 1 (1972).
[8] A origem do “direito de proteção” vem do caso chamado de Aborto I, julgado em 1975 (39 BVerfGE 1). O pano de fundo do julgado foi a alteração do código penal que descriminalizou os abortos eletivos nas primeiras doze semanas de gestação. Aprovada a lei, 193 membros do Bundestag, juntamente com alguns governos estaduais, todos do CDU, desafiaram a constitucionalidade o ato normativo. A Corte decidiu afirmando que, por ser uma vida, o feto deveria ser protegido pelo Estado. E, mais que isso, esta proteção não deveria ocorrer por outro meio senão pelo direito penal. O Estado possuiria o chamado dutie to protect, o que lhe impõe uma atuação ativa para promoção dos direitos constitucionais (no caso, a vida e a dignidade da pessoa humana do feto). Deste modo, não seria dado ao Parlamento retirar a proteção do direito penal no que toca ao aborto (GRIMM, 2016, p. 217).
[9] 25 BverGE 167 (1969)
[10] 49 BverfGE 89 (1978) e 50 BverfGE 290 (1979), respectivamente.
[11] Vide Lei n. 9.868/99, Art. 27 – Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.
[12] (ADI 5469, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 24/02/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-099 DIVULG 24-05-2021 PUBLIC 25-05-2021)
[13] No voto do ministro Barroso, consta a seguinte passagem: “Portanto, Presidente, como considero que ambas as interpretações têm a sua razoabilidade e os seus fundamentos, e considerando o impacto fiscal que se produziria sobre os estados, estou modulando e conferindo um prazo de 1 ano ao Congresso Nacional para editar a lei complementar que me parece necessária. Findo esse prazo, sem a edição de lei, a inconstitucionalidade se aplica e, portanto, não poderá prevalecer essa sistemática”.
[14] De fato, o Congresso Nacional aprovou o projeto de lei complementar regulamentando a EC 87 dentro do período abrangido da modulação dos efeitos, mais precisamente em 21/12/2021. Contudo, o Presidente da República somente sancionou a proposição, dando origem à Lei Complementar 190/22, no dia 5 de janeiro de 2022, inaugurando, dessa forma, nova celeuma jurídica – vide ADIs 7066, 7070 e 7078.
[15] Cite-se também a seguinte decisão: RE 607642, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 29/06/2020, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-267 DIVULG 06-11-2020 PUBLIC 09-11-2020;
[16] Respectivamente: (RE 641320, Relator(a): GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 11/05/2016, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-159 DIVULG 29-07-2016 PUBLIC 01-08-2016 RTJ VOL-00237-01 PP-00261) e (ADPF 607, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 28/03/2022, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-106 DIVULG 31-05-2022 PUBLIC 01-06-2022)
[17] United States v. Then, 56 F.3d 464 (2d Cir. 1995)
[18] A Federal Sentencig Guideline são diretrizes não vinculativas, instituídas em 1987, e atualizadas periodicamente, que buscam trazer uma uniformidade nas sentenças do Judiciário Federal americano. Vide: https://www.ussc.gov/about-page , acesso em 9.3.2023.