A insuficiência dos mecanismos de emergência constitucional para lidar com atentados terroristas

The insufficiency of emergency constitutional prescription to face terrorist attacks

DOI: 10.19135/revista.consinter.00017.24

Recebido/Received 30/04/2023 – Aprovado/Approved 27/07/2023

Diogo de Myron Cardoso Ponzi[1] – https://orcid.org/0000-0002-9359-5052

José Levi Mello do Amaral Júnior[2] – https://orcid.org/0000-0001-6394-8307

Resumo

Trata-se de artigo elaborado com o objetivo de verificar, com base na legislação constitucional e infraconstitucional, a insuficiência, ou até mesmo a inexistência, dos mecanismos de emergência constitucional presentes na Constituição para o trato do problema advindo do terrorismo moderno. A problematização que motivou a pesquisa é o questionamento acerca da suficiência dos mecanismos existentes para enfrentar os atentados terroristas, principalmente os concomitantes ou sucessivos. A hipótese é de que os atuais mecanismos, ordinários e constitucionais, são insuficientes. Para desenvolver o trabalho, abordam-se, de início, o estado de sítio e o estado de defesa, os quais se encontram inscritos no título V da Carta Política. Em seguida, apresenta-se uma breve análise da legislação ordinária voltada para a repressão ao terrorismo, com destaque para a Lei n° 13.260/2016. Por fim, realiza-se um cotejo entre as normas apreciadas e modelo de emergência constitucional proposto por Bruce Ackerman. Tal cotejo se desenvolve, inicialmente, pela constatação do terrorismo como fenômeno que transcende a criminalidade comum, para, em um segundo momento, apreciar se os mecanismos constitucionais existentes se prestam, ou não, para defrontar o problema. A metodologia de pesquisa jurídica adotada para o trabalho foi a dogmática, por meio de pesquisa documental e bibliográfica.

Palavras-chave: Terrorismo. Direito Constitucional. Emergência Constitucional. Direito Penal. Direito Processual Penal.

Abstract

This is an article prepared with the aim of verifying, based on constitutional and infraconstitutional legislation, the insufficiency, or even the non-existence, of the emergency constitutional prescriptions presents in the Constitution to face the problem from arising modern terrorism. The question that motivated the research is the doubt about the sufficiency of the existing mechanisms to face terrorist attacks, mainly the concomitant or successive ones. The hypothesis is that the current mechanisms, ordinary and constitutional, are insuficiente. To develop the work, approaches, at first, the state of siege and the state of defense, which are inscribed in Part V of the Constitucion. Next, a brief analysis of federal law aimed at repressing terrorism is presented, with emphasis on Law 13.260/2016. Finally, a comparison is made between the law and the constitutional emergency model proposed by Bruce Ackerman. Initially this comparison  develops through the verification of terrorism as a phenomenon that transcends common criminality, to check, in a second moment, existing emergency constitutional prescription lend themselves, or not, to confront that problem. The legal research methodology adopted for article was dogmatic, through documentary and bibliographical research.

Keywords: Terrorismo. Constitutional Law. Constitutional Emergency. Criminal Law. Criminal Procedural Law.

Sumário: 1. Introdução; 2. Os mecanismos de emergência constitucional presentes na constituição de 1988; 2.1. Estado de defesa; 2.2. Estado de sítio; 2.3. Intervenção federal; 3. O tratamento dado pela atual legislação infraconstitucional brasileira ao terrorismo; 3.1. A lei de segurança nacional e a Lei n° 14.197/2021; 3.2. A lei que trata das organizações criminosas; 3.3. A lei antiterror; 4. A inexistência de um mecanismo de emergência constitucional para enfrentar um ataque terrorista; 4.1. Terrorismo: guerrilheiro moderno?; 4.2. O mecanismo de emergência constitucional como o melhor instrumento para lidar com o terrorismo; 4.3. A inexistência de um mecanismo na constituição de 1988 apto a lidar com sucessivos ataques terroristas; 5. Considerações finais; 6. Referências.

1  INTRODUÇÃO

No dia 11 de setembro de 2001, aviões lotados de passageiros foram tomados e utilizados como armas por indivíduos pertencentes ao grupo Al-Qaeda. A ação resultou na derrubada de duas torres do complexo do World Trade Center, em Nova Iorque, e na destruição de parte do Pentágono, em Washington. Um quarto avião apenas não atingiu o seu alvo, pois foi ao solo após uma luta entre os agressores e os passageiros, os quais já tinham sido avisados do destino dos outros três aviões. Assim, apesar da ocorrência pretérita de outros atentados, o Ocidente por inteiro se viu defronte ao advento do terrorismo.

Os referidos ataques constituíram, invariavelmente, um acontecimento, que exerceu nos indivíduos pertencentes à sociedade ocidental genuíno temor, e assim obrigou o Estado a produzir um novo padrão de coercibilidade e, consequentemente, um novo arcabouço jurídico, notadamente na esfera penal (Feliciano, 2001).

Nos Estados Unidos, essa necessidade de normatização traduziu-se no USA Patriot Act. Já no Brasil, observou-se, em data próxima à realização dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, a aprovação da Lei n° 13.260/2016, legislação infraconstitucional destinada ao enfrentamento ao terrorismo.

Ainda tratando da problematização da questão, convém rememorar que os recentes acontecimentos ocorridos nos Estados Unidos e no Brasil, em que centenas de pessoas invadiram, de forma concomitante, no caso do primeiro, o famoso edifício do Capitólio, e no segundo, as respectivas sedes dos três poderes da República, perpetrando condutas que muitos entendem como enquadráveis no terrorismo moderno. 

Diante de tal quadro, questiona-se se a atual legislação, constitucional e ordinária, seria suficiente para lidar com a complexidade que envolve o tema terrorismo. De forma mais específica, se é capaz de lidar com ataques terroristas concomitantes ou simultâneos. Tais questionamentos indicam para a seguinte possível resposta (hipótese): um mecanismo expressamente previsto na Constituição seria mais apto a lidar com ataques que, para serem impedidos, ou ter minimizados os seus efeitos, podem exigir restrições momentâneas e muito específicas, sem prejuízo dos Direitos Fundamentais.

Tais questões auxiliaram na definição do objetivo do presente artigo: responder ao questionamento acerca da suficiência, ou não, da legislação infraconstitucional pertinente ao terrorismo, bem como dos chamados mecanismos de emergência constitucional, para o enfrentamento de atentados terroristas, principalmente os concomitantes ou sucessivos.

Para se atingir tal objetivo, abordam-se, no item 2, o estado de sítio e o estado de defesa, os quais se encontram inscritos no título V da Constituição de 1988. Em seguida, apresenta-se uma breve análise da legislação ordinária voltada para a repressão ao terrorismo, com destaque para a Lei n° 13.260/2016. Por fim, realiza-se um cotejo entre as normas apreciadas e modelo de emergência constitucional proposto por Bruce Ackerman. Tal cotejo se desenvolve, inicialmente, pela constatação do terrorismo como fenômeno que transcende a criminalidade comum, para, em um segundo momento, apreciar se os mecanismos constitucionais existentes se prestam, ou não, para defrontar o problema.

Por oportuno, esclarece-se que a metodologia que será adotada para o desenvolvimento do presente trabalho é a dogmática, a ser realizada por meio de pesquisa bibliográfica e legislativa, envolvendo ainda o exame de livros, artigos doutrinários, e a legislação relacionada ao tema suscitado.

2  OS MECANISMOS DE EMERGÊNCIA CONSTITUCIONAL PRESENTES NA CONSTITUIÇÃO DE 1988

A Constituição Federal de 1988 apresenta, por meio de seu Título V (Brasil, 1988), disciplina voltada à defesa do Estado e de suas instituições, no qual se encontram elencados dois instrumentos de utilização excepcional, ambos direcionados à manutenção da ordem democrática vigente: o estado de defesa e o estado de sítio. Acerca desses mecanismos, Mendes, Coelho e Gonet (2009) entendem tratar-se de uma tentativa de manter vivo o Estado Democrático de Direito e as garantias fundamentais das pessoas, mesmo quando defrontadas com uma grave crise política-institucional:

Intimamente relacionada com a estabilidade e a defesa do Estado de Direito é a chamada organização constitucional dos períodos de crise, que outra coisa não é senão uma tentativa, até certo ponto utópica ou, talvez, desesperada dos regimes democráticos para conjurar os seus abalos políticos com um mínimo de sacrifício (sic) direitos e garantias constitucionais. Por isso todos reconheceram que, ao fim e ao cabo, essa legalidade excepcional, em que pesem os seus custos, mais ou menos elevados, vem a se constituir em importante instrumento de preservação do Estado de Direito e das suas instituições (Mendes et al, 2009, p. 1383).

O contexto de abalos políticos citado pelos referidos autores é denominado por Oscar Dias Corrêa como o de emergência constitucional, ocasião em que a crise capaz de abalar os alicerces do país demanda o exercício, por parte do Estado, de poderes excepcionais (1980). Tal raciocínio reverbera com o defendido por Ackerman: para preservar a liberdade, deve-se considerar a utilização de medidas emergenciais e de curta duração, as quais se destinam a evitar restrições permanentes aos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos (2004).

Essa salvaguarda constitucional, acaba por ser característica geral do Estado Moderno, afirmando Gomes Canotilho que “a constitucionalização do direito de necessidade considera-se a solução mais conforme com a ideia constitucional, porque é preferível ser a Constituição a consagrar e definir os pressupostos do estado de excepção” (2005, p. 1086). Não por outro raciocínio que se verifica a presença de tais mecanismos em todas as cartas políticas pátrias, desde o momento da independência, constatação que corrobora a ideia de que “o Estado não pode prescindir de normas legais que protejam as suas instituições” (Bicudo, 1986, p. 19).

Compreendido o contexto político e normativo em que se inserem e pelo qual os dois mecanismos justificam a sua existência, passa-se a analisar cada um deles, inserindo-se ainda em tal rol de análise o instituto da intervenção federal.

2.1 Estado de Defesa

O primeiro mecanismo de emergência constitucional previsto na Carta Política de 1988 é o estado de defesa, o qual é possível afirmar tratar-se de versão atualizada do estado de emergência previsto no texto constitucional anterior, recebendo a novel nomenclatura mais por uma opção política de distanciamento do regime autoritário inaugurado em 1964 do que pela aplicação da técnica jurídica (Mendes et al, 2009). Já na compreensão de Alexandre de Moraes, seria “o estado de defesa uma modalidade mais branda de estado de sítio” (2006, p. 750).

Por se tratar de medida mais branda do que o estado de sítio, não exige deliberação prévia do Congresso para ser aprovada, bastando, para tanto, a decretação por parte do Presidente da República, a qual deve ser precedida de consulta aos Conselhos da República e de Defesa Nacional. Além disso, tem escopo distinto do outro mecanismo de emergência constitucional, prestando-se a debelar situação de desordem grave, gerada por instabilidade institucional em vias de ocorrer, bem como aquela resultante de uma catástrofe natural de proporções consideráveis. Tem ainda a sua abrangência restrita a localidades determinadas (Brasil, 1988).

O estado de defesa dá ao Estado a possibilidade de aplicar algumas medidas coercitivas que restrinjam certos direitos individuais, no caso, o de reunião, o sigilo de correspondência, de comunicação telegráfica e telefônica, permitindo ainda a ocupação e utilização temporária de bens e serviços públicos (Brasil, 1988). Já com relação ao aspecto temporal, observa-se do texto que a medida não poderá ultrapassar o período de trinta dias, prorrogável por uma única vez e apenas se perdurarem as razões que motivaram o decreto original (Brasil, 1988).

Apesar de não mencionar qualquer espécie de prisão cautelar, traz algumas condições que deverão ser cumpridas pelas autoridades no caso de prisão advinda de crime contra o Estado, como a comunicação do ato ao juiz competente, vedação de incomunicabilidade e prazo máximo de duração (Brasil, 1988)

Por fim, ressalta-se que o instrumento emergencial descrito no artigo 136 da Constituição não detém qualquer menção aos termos terrorismo ou ato terrorista, tampouco qualquer remição aos dois artigos constitucionais que tratam do assunto.

2.2 Estado de Sítio

Previsto no artigo 137 da Constituição, o estado de sítio é o segundo mecanismo de emergência constitucional enumerado no Título V da Carta Política (Brasil, 1988), sendo definido por Alexandre de Moraes da seguinte maneira:

O estado de sítio corresponde a suspensão temporária e localizada de garantias constitucionais, apresentando maior gravidade do que o estado de defesa e obrigatoriamente o Presidente da República deverá solicitar autorização da maioria absoluta dos membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal para decretá-lo. (Moraes, 2006, p. 647)

Devido a características que serão verificadas nos parágrafos subsequentes, acaba por configurar um instrumento mais enérgico do que o estado de defesa e, não por outra razão exige a prévia autorização das duas casas que compõem o Congresso Nacional para ser decretado pelo Presidente da República (Brasil, 1988).

Encontra-se expressamente previsto desde a Constituição de 1891, mas na redação da Carta anterior podia ser implantado apenas nos casos em que surgiam “fatores de subversão” (Brasil, 1967). No entanto, a Constituição de 1988 eliminou tal denominação, passando a justificar sua utilização em duas situações distintas: no caso de comoção grave de repercussão nacional ou na ineficácia comprovada de medida tomada durante o estado de defesa; e na situação de guerra declarada ou resposta a agressão armada estrangeira (Brasil, 1988).

O aspecto de limitação temporal encontra-se previsto no artigo 138 e, no caso de a decretação basear-se na comoção nacional grave ou na comprovada ineficácia do estado de defesa, poderá perdurar por trinta dias, comportando prorrogações que não superem o referido patamar; já na segunda hipótese, não há limite de tempo para a duração da medida, devendo o seu tempo de duração basear-se na continuidade da guerra ou outra espécie de agressão estrangeira (Brasil, 1988).

Após aprovado, permite impor um rol de medidas coercitivas superior ao previsto no estado de defesa, o qual pode restringir a liberdade de locomoção, reunião, de imprensa, sigilo da correspondência e comunicações, inviolabilidade de domicílio e propriedade. Destaca-se ainda, dentre as restrições elencadas pelo constituinte, a prevista no inciso II, que estabelece uma espécie de detenção cautelar, mas que não poderá redundar no aprisionamento dos detidos em centros de detenções provisórias ou presídios comuns, devendo a autoridade executora providenciar edificação específica para instituir tal medida (Brasil, 1988). No entanto, o decreto que instituir o estado de sítio deve delimitar quais dessas garantias e direitos serão restringidos, bem como quem deverá ser o executor de tal constrição (Brasil, 1988).

Por fim, deve-se observar que, assim como no caso do estado de defesa, o constituinte originário não correlacionou o mecanismo de emergência em questão com o terrorismo, fenômeno o qual já se encontrava previsto no texto original da Constituição de 1988.

2.3  Intervenção Federal

A intervenção federal não se encontra prevista no Título V da Constituição, mas sim no Título III, o qual se destina à organização do Estado. Presume-se, pela interpretação literal do artigo 34, que se destina exatamente a manter tal organização, por meio de ingerência em ente federativo que, em situação normal, teria preservada certa autonomia em relação à União (Brasil, 1988).

Apesar de não ser um instrumento a ombrear com os outros dois mecanismos já vistos no presente trabalho, porque não implica nenhum poder extraordinário nas mãos do interventor, nenhuma previsão de qualquer cerceamento de garantias fundamentais, pode ser considerado como um meio análogo aos utilizados para se debelar uma emergência constitucional (no caso, de natureza federativa), tal qual se depreende da sua recente utilização no Distrito Federal, a saber, para controlar situação de “grave comprometimento da ordem pública” que assolou a localidade em janeiro do presente ano (Brasil, Decreto n° 11.377, 2023).

3  O TRATAMENTO DADO PELA ATUAL LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL BRASILEIRA AO TERRORISMO

No item anterior procurou-se abordar, de forma sintética, os mecanismos de emergência constitucional que se encontram presentes na Constituição brasileira vigente, a qual, como visto, dedica um Título inteiro à enumeração de tais ferramentas de utilização excepcional, estabelecendo ainda os limites para as respectivas utilizações.

Entretanto, observou-se que o terrorismo não foi elencado como motivo específico justificador para a evocação de quaisquer das medidas previstas. Aliás, o tema não recebeu do constituinte um tratamento exaustivo, existindo apenas duas menções, em todo o texto constitucional, ao referido termo, inseridas, respectivamente, nos artigos 4º, VIII, e 5º, XLIII (Brasil, 1988). Além disso, observa-se que nas duas menções inexiste qualquer espécie de conceituação acerca do que seria um ato terrorista. 

Restou à legislação ordinária o trato do assunto, trato este que restringiu o tema à esfera penal e processual penal, cingindo-se o legislador basicamente à tipificação de condutas e a estipulação de penas, além de uma conceituação, do que seria um ato terrorista, feita pela Lei nº 13.260/2016. Nesse sentido, observar-se-á, além da chamada Lei Antiterror, a Lei n° 12.850/2013 e a controversa Lei n° 7.170/83, bem como a sua substituta, a Lei n° 14.197/2021.

3.1 A Lei de Segurança Nacional e a Lei n° 14.197/2021

Trata-se de uma norma que esteve por longo período presente na legislação infraconstitucional, e que abordou expressamente o tema terrorismo. [ ] Foi redigida e aprovada no final do período de regime militar que presidiu o país por cerca de vinte anos, já no contexto de redemocratização e de abandono da até então predominante doutrina de segurança nacional, tal que se observa da análise de Heleno Fragoso:

A nosso ver, está bem claro o abandono da doutrina da segurança nacional desde a epígrafe da lei. E, muito particularmente, pela supressão do conceito de segurança nacional, que constava de todas as leis desde 1967, e sua substituição pela expressa referência a bens-interesses políticos como objeto da tutela jurídica. (Fragoso, 1983, p. 61)

No entanto, exatamente por ter sido elaborada ainda no período de exceção, foi recebida com compreensível desconfiança por juristas como Hélio Bicudo, que viu a norma como mais uma manifestação de proteção do sistema político vigente e não como um verdadeiro mecanismo de proteção da Nação Brasileira (1986). Além disso, Bicudo entendeu que outras legislações, como o Código Penal e o Código Penal Militar, seriam suficientes para lidar com as condutas típicas elencadas, de forma específica, bem como com a segurança do Estado de forma geral (1986).

Apesar da desconfiança do referido jurista, exteriorizada ainda na década de 80, a Lei de Segurança Nacional perdurou por muitos anos após o advento da Constituição de 1988, tendo sido utilizada, inclusive, por exemplo: (i)  no contexto de ataque físico feito contra um candidato à Presidência de República, para fins de enquadramento legal da conduta do agressor (Portal Ebc, 2023); bem assim (ii) na condenação de parlamentar porque incurso no art. 18 da antiga Lei de Segurança Nacional: “Tentar impedir, com emprego de violência ou grave ameaça, o livre exercício de qualquer dos Poderes da União ou dos Estados.” (Brasil, 2022).

Estando ou não em conformidade com a ideia de defesa do país, ou até mesmo encampando-se a concepção de que a norma em questão foi redigida apenas como um instrumento de dominação política, não se pode olvidar que a lei de segurança nacional não teve como escopo a prevenção ou lida imediata e específica com um ataque terrorista, não tendo também nenhuma espécie de reverberação nos mecanismos de emergência constitucional. Confirma-se tal raciocínio não só pelo contexto em que a norma foi feita, mas pela interpretação literal do texto normativo, em que se observa apenas uma menção ao termo terrorismo, dentro da descrição do tipo penal previsto em seu artigo 20, sem, no entanto, apresentar qualquer conceituação do que seriam os denominados atos de terrorismo:

Art. 20. Devastar, saquear, extorquir, roubar, seqüestrar, manter em cárcere privado, incendiar, depredar, provocar explosão, praticar atentado pessoal ou atos de terrorismo, por inconformismo político ou para obtenção de fundos destinados à manutenção de organizações políticas clandestinas ou subversivas.

Pena: reclusão, de 3 a 10 anos. (Brasil, 1983)

Além disso, a própria Ementa da Lei n° 7.170/1983, somado ao contexto histórico vigente no momento de sua elaboração, auxilia na intepretação teleológica da norma, a qual não indica a prevenção ou a minoração de atentados terroristas como sendo um dos objetivos centrais e específicos da correlata tutela estatal (Brasil, 1983).

Após anos de sobrevida em um contexto democrático, bastante distinto daquele autoritário que imperava no momento de sua criação, a controversa Lei de Segurança Nacional foi finalmente revogada por uma norma posterior ao advento da Constituição de 1988, a Lei n° 14.197/2021, que elencou quais seriam os crimes contra o Estado Democrático de Direito. Contudo, tal norma apenas introduziu novos tipos penais incriminadores no Código Penal, não apresentando qualquer menção ao termo terrorismo.

3.2 A Lei que Trata das Organizações Criminosas

A Lei n° 12.850, de agosto de 2013, tem como função primária a definição legal do conceito de organização criminosa, além de estipular mecanismos investigatórios capazes de auxiliar as autoridades públicas na produção de elementos de prova (Nucci, 2015). Ou seja, concentrou-se o legislador na disponibilização de mecanismos penais e processuais penais voltados à apuração e repressão desse tipo de delito.

Apesar de ser uma norma direcionada para lidar com o crime organizado de natureza ordinária, trouxe, em sua redação original, o indicativo de que poderia ser utilizada para a repressão de outras ações criminosas, tais quais as de cunho terrorista, apresentando o inciso II do artigo 2º a seguinte redação:

II – às organizações terroristas internacionais, reconhecidas segundo as normas de direito internacional, por foro do qual o Brasil faça parte, cujos atos de suporte ao terrorismo, bem como os atos preparatórios ou de execução de atos terroristas, ocorram ou possam ocorrer em território nacional. (Brasil, 2013)

[ ] Talvez por não se tratar de uma legislação elaborada para lidar de forma específica com o terrorismo, verifica-se que a norma em questão não trouxe qualquer definição do que seria um ato dessa espécie. Por conseguinte, ao menos em relação a um contexto de repressão ao terror, entendeu-se que a utilização de normas de direito internacional para a aplicação da Lei nº 12.850 seria imprescindível (Nucci, 2015).

A lacuna apontada no parágrafo anterior foi superada com o advento da Lei nº 13.260/2016, objeto do próximo item, a qual alterou o teor do já mencionado artigo 2º, inciso II, passando o mesmo a ter a seguinte redação: “II – às organizações terroristas, entendidas como aquelas voltadas para a prática dos atos de terrorismo legalmente definidos” (Brasil, 2016).

3.3 A Lei Antiterror

Observou-se nos parágrafos anteriores que tanto a legislação infraconstitucional quanto o texto constitucional apenas tangenciaram o tema terrorismo, sem, no entanto, apresentar qualquer conceituação acerca do que seria uma conduta da espécie, restando às normas elaboradas para outras finalidades abordarem o problema, situação tal que perdurou até o ano de 2016.

Foi só o advento da Lei nº 13.260/2016 que alterou o referido panorama de vácuo normativo, norma que demonstra, desde o início de sua redação, o intuito de tratar do termo previsto na Constituição de 1988, mas que, até então carecia de qualquer espécie de regulamentação infraconstitucional. Mais ainda, apresentou um conceito legal de terrorismo, fenômeno definido em seu artigo 2º da seguinte maneira:

O terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos neste artigo, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública. (Brasil, 2016)

A conceituação elaborada pelo legislador remete ao denominado por Cretella Neto como terrorismo moderno, aquele colocado em evidência por meio dos atentados perpetuados pela organização Al Qaeda no dia 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos da América, e que ataca sem respeitar fronteiras, objetivando atingir, de forma indiscriminada, o máximo de pessoas possíveis (Brasil, 2014). Assim, no intuito de lidar com essa imprevisível e diluída forma de violência, trouxe a norma em questão, além da necessária conceituação, definição de condutas típicas, inclusive algumas que remetem aos atos preparatórios para uma atentado, além de estipular mecanismos cautelares capazes de incidir sobre os bens do investigado (Brasil, 2016).

No entanto, apesar do seu escopo normativo ser o trato legal com o terrorismo mencionado na Constituição, observa-se da leitura completa da Lei nº 13.26/2016 que não há qualquer menção do legislador os mecanismos de emergência previstos no Título V da Constituição, cingindo-se a norma, de forma expressa, apenas à remissão ao previsto no artigo 5º, XLIII, do texto constitucional (Brasil, 1988).

4  A INEXISTÊNCIA DE UM MECANISMO DE EMERGÊNCIA CONSTITUCIONAL PARA ENFRENTAR UM ATAQUE TERRORISTA

No primeiro item do presente trabalho foram apreciados os mecanismos de emergência constitucional presentes na Constituição, o estado de defesa e o estado de sítio, bem como o instituto da intervenção federal. Ainda dentro dessa análise, verificou-se também que nenhum dos referidos institutos foi correlacionado pelo constituinte originário, direta e especificamente, ao tema terrorismo. Aliás, acerca do terrorismo, como já mencionado, trata-se de termo expressamente previsto no texto constitucional de 1988, sendo clara a opção do constituinte em repudiá-lo. Contudo, o mesmo constituinte deixou ao legislador ordinário a tarefa, árdua da perspectiva política, de apresentar um conceito acerta do termo.

Também acabou sendo da alçada do legislador ordinário a formulação de uma legislação para conceituar o terrorismo, processo que, pelo menos de forma aparente, foi resolvido com a Lei nº 13.260/2016. Com relação a tal norma, bem como as outras que a antecederam, observou-se que tal trato se baseou na enumeração de condutas típicas e a apresentação de algumas inovações processuais, ambas no âmbito penal.

Eis o cerne da questão, que será tratado no presente tópico: as normas voltadas para a lida com o terrorismo cingiram-se apenas ao âmbito infraconstitucional, sem, no entanto, correlacionar-se com instrumentos de emergência constitucional. Resta a pergunta: esse conjunto normativo é suficiente para lidar com o terrorismo moderno, principalmente diante da possiblidade de ataques concomitantes ou sucessivos?  

4.1 Terrorismo: Guerrilheiro Moderno?

A aprovação da Lei n° 13.260/2016, legislação elaborada para tratar precipuamente do terrorismo, trouxe ao contexto normativo brasileiro, pela primeira vez, uma definição do que seria uma conduta terrorista, a qual merece uma nova transcrição literal:

O terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos neste artigo, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública. (Brasil, 2016)

No entanto, tal conceituação legal ainda é insuficiente para a compreensão da dificuldade em se lidar com o problema, porquanto o terrorismo transcende fronteiras e relaciona-se, hoje, com o incremento da interdependência entre países, a qual pode também estar correlacionada a uma maior vulnerabilidade da segurança coletiva e das relações sociais em geral (Netto, 2021).

Além disso, a forma de atuação do terrorista aproxima-se daquela empreendida pela combatente irregular denominado como guerrilheiro. Nesse sentido, Carl Schmitt sustentou que o guerrilheiro é um indivíduo que luta descaracterizado, além de possuir uma forte motivação política (2018). O conflito empreendido por tal tipo de combatente encontra-se fora dos limites da guerra tradicional, porquanto se eleva o patamar da inimizade ao cenário de terror e contraterror, o qual, por sua vez, objetiva a aniquilação total do adversário (Schmitt, 2018). Portanto, um horror, inclusive porque implica negação da humanidade do outro.

A Doutrina Militar de Defesa, documento elaborado pelo Ministério da Defesa do Brasil – ressalta-se tratar-se de documento anterior ao advento da Lei Antiterror –  traz, por sua vez, a compreensão das forças armadas sobre o tema: o terrorismo se utiliza de algumas premissas familiares às atribuídas aos guerrilheiros, o que se observa do trecho abaixo colacionado:

6.6.2 As redes terroristas são compostas por grupos extremistas, aglutinados por compartilharem valores políticos, ideológicos, religiosos, étnicos e culturais, integrados por profissionais determinados em suas ações. O propósito dos ataques terroristas é quebrar ou alterar a vontade do país ou dos países-alvo por meio da manipulação do terror. (Brasil, Ministério da Defesa, 2007, p. 45)

A definição empregada pelo Ministério da Defesa ao terrorismo se aproxima em muito da atuação guerrilheira definida por Schmitt, a qual, segundo o jurista alemão, também se diferencia da criminalidade comum:

Como outra característica adicional se nos impõe hoje o intenso compromisso político que distingue o guerrilheiro de outros combatentes. Não há que perder de vista este carácter intensamente político do guerrilheiro ainda mais porque há que diferenciá-lo do delinquente e do criminoso violento comum cujos motivos estão orientados a um enriquecimento privado. (Schmitt, 2018, p. 11/12)

Como já observado no capítulo anterior, a Lei n° 13.260 excluiu, por meio de seu artigo 2º, a política como motivação ao ato terrorista, inserindo ainda, no mesmo artigo, uma ressalva com relação à referida espécie de atuação:

§ 2o O disposto neste artigo não se aplica à conduta individual ou coletiva de pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional, direcionados por propósitos sociais ou reivindicatórios, visando a contestar, criticar, protestar ou apoiar, com o objetivo de defender direitos, garantias e liberdades constitucionais, sem prejuízo da tipificação penal contida em lei. (Brasil, 2016)

No entanto, o intenso comprometimento político mencionado por Schmitt pode ser transposto, sem grandes digressões, para o fanatismo, seja ideológico, seja religioso, que caracteriza o terrorismo moderno, não impedindo que as considerações feitas pelo autor alemão possam ser aplicáveis ao terror do século XXI. E ainda com relação à distinção do criminoso comum quando comparado ao terrorista, Ackerman traduz, com eloquência, a distância que existe entre essas duas espécies de conduta, utilizando, inclusive, a máfia italiana como exemplo:

Mesmo as mais bem-sucedidas operações do crime organizado carecem das pretensões arrogantes da mais humilde célula terrorista. Os mafiosos geralmente se contentam em permitir que os funcionários do governo exibam seus símbolos de legitimidade, desde que os gângsteres controlem o submundo. Aconteça o que acontecer em Palermo, o cargo de prefeito é ocupado pelo representante devidamente eleito da República Italiana. Mas o objetivo de uma bomba terrorista é lançar um desafio claramente político ao governo. (Ackerman, 2004, p. 1035/1036)

Tampouco é possível considerar o terrorismo uma questão puramente militar, eis que a já mencionada dificuldade em se identificar um inimigo misturado à população faz de qualquer cidadão um alvo para o aparato castrense. Além disso, guerras entre países acabam; já contra o terrorismo, não, na medida em que a eliminação de um líder, ou até mesmo de uma célula inteira, não significa, de forma automática, a extinção de outros possivelmente existentes (Ackerman, 2004).

Apesar de todos os questionamentos acima colocados, o que se verifica, hoje, na legislação brasileira, é a utilização apenas do direito penal e processual penal para lidar com uma situação que transcende a criminalidade comum, defrontando-se o Estado, no caso do terrorismo, com grupos e indivíduos que desejam a sua destruição.

4.2 O Mecanismo de Emergência Constitucional como o Melhor Instrumento para Lidar com o Terrorismo

Conforme já demonstrado nos parágrafos anteriores, a legislação infraconstitucional, em especial aquela determinada pela Lei nº 13.260/2016, trata do tema terrorismo apenas com um regramento penal e processual penal, ou seja, aborda o problema tal qual se lida com a criminalidade comum. E não poderia ser de outra forma, já que os congressistas, quando atuam apenas como legisladores ordinários, têm limitações em adentrar na esfera de direitos e garantias individuais insculpidas na Constituição.

Observou-se também que tal tratamento legislativo é falho: assim como o guerrilheiro, o terrorista não é um criminoso comum, mas um indivíduo altamente motivado e que atua precipuamente para destruir o Estado de Direito. Assim, repete-se a pergunta feita por Ackerman quando do contexto existente após os atentados de 11 de setembro de 2001, ocorridos nos Estados Unidos da América: “o que podemos aprender que nos permitirá responder de modo mais inteligente na próxima vez?” (Ackerman, 2004, p. 1029).

De início, referindo-se à possibilidade de ataques sucessivos, o autor afirma não ser possível proteger todos os direitos individuais por todo o tempo, eis que nenhum governo democrático irá manter-se estável sem atuar de forma efetiva para prevenir um possível segundo ataque, problema que, na sua acepção, deve ser enfrentado por todas as democracias liberais (Ackerman, 2004). Assim, considerando-se que um ataque terrorista pode gerar graves abalos às instituições democráticas, percebe-se que o ideário de Ackerman não difere muito daquele defendido por Mendes, Coelho e Gonet quando tratam dos mecanismos de emergência constitucional (2009).

Aliás, a forma que Ackerman entende ser a mais adequada para lidar com a ameaça representada pelo terrorismo é uma espécie de mecanismo de emergência constitucional, mas um pouco distinto dos meios tradicionais adotados pelos estados modernos (Ackerman, 2004).

4.3  A Inexistência de um Mecanismo na Constituição de 1988 Apto a Lidar Com Sucessivos Ataques Terroristas

A Constituição de 1988 dispõe de dois mecanismos de emergência constitucional, os quais permitem a flexibilização momentânea de liberdades civis. Tal qual se observou no primeiro capítulo do presente trabalho, o estado de sítio prevê até mesmo uma espécie de prisão, mas que exigirá das autoridades a colocação dos detidos, no contexto da emergência constitucional, em separado dos criminosos comuns (Brasil, art. 1988).

Nesse sentido, pode-se afirmar que o estado de sítio detém algo similar à “reassurance function” preconizada por Ackerman, ou seja, a função que atribui ao governo a capacidade de realizar prisões sem o tipo de prova normalmente requerido por constituições liberais, mas apenas durante a utilização da estrutura de um temporário estado de emergência (Ackerman, 2004). No entanto, diferentemente da ideia preconizada pelo autor norte-americano, na Constituição não há qualquer menção expressa à possível indenização àqueles que porventura sejam presos injustamente, o que, na sua visão, é algo que inevitavelmente irá ocorrer (Ackerman, 2004).

Da mesma forma, tanto o estado de sítio quanto o estado de defesa detêm limites temporais para suas respectivas utilizações, ainda que esses limites não sejam idênticos ao “supermajoritarian escalator” de Ackerman (2004), que pode ser traduzido como “mecanismo de supermaiorias progressivas” (Amaral Júnior, 2020), em que a manutenção do estado de emergência por tempo indeterminado poderia ocorrer, mas sob a égide da salvaguarda configurada na necessidade de maiorias parlamentares cada vez mais qualificadas para a eventual renovação (Ackerman, 2004).

No entanto, o maior problema com os mecanismos de emergência constitucional previstos na Constituição é a imprecisão das hipóteses de cabimento. No caso do estado de defesa, aduz o texto do artigo 136 que este somente será utilizado para debelar “grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza” (Brasil, 1988). Já o estado de sítio poderá ser decretado em duas hipóteses:

I – comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa;

II – declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira. (BRASIL, Constituição Federal, 1988, art. 137)

Nenhuma das hipóteses refere-se expressamente ao terrorismo, o que abre espaço para um cenário de perigosa insegurança jurídica, a qual, como preconiza Ackerman, pode, além de atrasar a pronta resposta necessária para coibir a possiblidade de um segundo ataque, gerar más decisões judiciais, perigosas para a preservação de liberdades individuais, ou até mesmo levar os agentes do Estado para a atuação na ilegalidade (Ackerman, 2004).

Além disso, há que cuidar da proporcionalidade da medida, já que mesmo medidas de emergência, ainda mais quando se tratam de possíveis restrições a direitos fundamentais, também devem obedecer a critérios de adequação e necessidade, sendo legítimas tão e somente se forem decretadas pelos poderes constituídos (Santos et al, 2022).

Trata-se, por evidente, de situação indesejada à manutenção do Estado de Direito, o qual, além de possivelmente não ser capaz de lidar com ataques terroristas, principalmente os sucessivos e concomitantes, pode gerar sérios gravames à estabilidade política e aos direitos individuais das pessoas.

5  CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo permitiu verificar, inicialmente, que o ordenamento jurídico pátrio detém mecanismos de emergência constitucional, bem como uma série de legislações infraconstitucionais que tangenciam o tema terrorismo, culminando com o advento da Lei n° 13.260/2016, voltada precipuamente para a definição e embate ao referido fenômeno.

Nesse contexto, observou-se que o estado de sítio e o estado de defesa apresentam alguns itens similares aos preconizados por Ackerman em seu estudo acerca da emergência constitucional, como o limite temporal e a possiblidade de restrição momentânea de alguns direitos individuais, até mesmo da liberdade de locomoção. Porém, verificou-se também que nenhum desses mecanismos faz correlação direta do seu âmbito de decretação com o terrorismo.

Já a mencionada legislação ordinária reteve o trato com a matéria apenas na esfera penal e processual penal, ou seja, apresenta somente mecanismos voltados à repressão da criminalidade ordinária, a qual, como visto, distingue-se profundamente da atuação terrorista. Nesse sentido, observou-se que o terrorista comporta-se de forma análoga ao do guerrilheiro descrito por Schmitt, o que faz com que até mesmo o enfrentamento militar seja dificultoso.

Por fim, diante da existência de uma legislação ordinária para o enfrentamento ao problema, a qual, como argumentado, mostra-se insuficientes para evitar ataques terroristas, principalmente os sucessivos ou concomitantes; e da inexistência de mecanismos de emergência constitucional na Constituição de 1988 específico para o enfrentamento do terrorismo, porquanto ausente a correlação direta entre o problema e os fatores aptos a deflagrar o estado de sítio ou de defesa; conclui-se que o arcabouço existente é insuficiente, tornando o Estado e a sociedade particularmente vulneráveis quando da ocorrência de um eventual ataque. 

Por outro lado, importa afirmar e reafirmar, mecanismos extraordinários, quando previstos em um regime democrático de governo, devem permanecer o mais possível em potência, ou seja, devem permanecer, sobretudo, como meios apenas dissuasórios. Se e quando utilizados, devem conhecer uso estrita e absolutamente vinculado à solução da anormalidade e, superada a anormalidade, o emprego deve ser de pronto cessado. O regime democrático de governo e os Direitos Fundamentais a ele inerentes demandam atitude persistente, inquebrantável mesmo, de tolerância, ou seja, de genuína aceitação do outro. Apenas esse modo de proceder, mormente nas situações mais extremas, é capaz de fazer valer a cultura democrática com efetiva promoção dos Direitos Fundamentais (Amaral Júnior, 2020).

6  REFERÊNCIAS

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Amaral Júnior, José Levi Mello do, Estado de defesa e estado de sítio, Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD), Unisinos, São Leopoldo, n. 12(3), setembro-dezembro, p. 428-438, 2020.

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Notas de Rodapé

[1]     Mestrando em Direito pelo Centro de Ensino Unificado de Brasília – CEUB, Brasília/DF, Brasil, código postal 70.790-075, e-mail diogoponzi@gmail.com. https://orcid.org/0000-0002-9359-5052

[2]     Livre-Docente (USP), Doutor (USP) e Mestre (UFRGS) em Direito do Estado, Professor Associado da Faculdade de Direito da USP, Professor do Mestrado e Doutorado em Direito do CEUB, Procurador da Fazenda Nacional, e-mail jose.levi@usp.br. https://orcid.org/0000-0001-6394-8307