Afeto e convívio ou decisões compartilhadas? O estado da arte da guarda compartilhada no Brasil
Affection and cohabitation or shared decisions? The state of the art of shared custody in Brazil
DOI: 10.19135/revista.consinter.00018.40
Recebido/Received 24/07/2023 – Aprovado/Approved 08/02/2024
Dóris Ghilardi[1] – https://orcid.org/0000-0002-2605-5785
Larissa Tenfen Silva[2] – https://orcid.org/0000-0002-6618-0759
Resumo
Embasado no princípio do melhor interesse da criança e da necessária mudança de paradigma da ideia naturalizada ao longo do tempo de que à mãe cabe o dever de cuidado, e na busca de sedimentar a compreensão da importância do compartilhamento não só das decisões relacionadas aos filhos, mas também de se assegurar o efetivo convívio com ambos os pais, sob pena de esvaziamento do instituto tratado, o objetivo do artigo é investigar o tratamento da guarda compartilhada no Brasil. Com base em pesquisa preliminar, a hipótese levantada é a de que a guarda compartilhada está sendo compreendida somente como um instituto de comunhão de decisões entre os pais no que toca aos diversos aspectos relacionados aos filhos. Para tanto, por meio do método dedutivo, realizou-se uma pesquisa doutrinária e jurisprudencial, tendo como fonte as decisões do Superior Tribunal de Justiça acerca da guarda compartilhada. Após o tratamento qualitativo dos dados coletados, foi possível o apontamento e análise crítica de aspectos controvertidos envolvendo a questão da possibilidade de afastamento do compartilhamento em caso de beligerância entre os pais, assim como a discussão acerca da necessidade ou não da custódia física conjunta, além de confirmar a hipótese levantada, o que faz emergir a urgência da discussão em torno da temática.
Palavras-chave: Guarda compartilhada; Poder familiar; Custódia física.
Abstract
Based on the principle of the best interests of the child and the need to change the paradigm of the idea naturalized over time that the mother has the duty of care, and in the search to consolidate the understanding of the importance of sharing not only the decisions related to children, but also to ensure the effective coexistence with both parents, under penalty of emptying the treated institute, the objective of this article is to investigate the treatment of shared custody in Brazil. Based on preliminary research, the hypothesis is that shared custody is being understood only as an institution of shared decisions between parents regarding the various aspects related to their children. To this end, using the deductive method, a doctrinal and jurisprudential survey was conducted, using the decisions of the Superior Court of Justice on shared custody as a source. After the qualitative treatment of the data collected, it was possible to point out and critically analyze controversial aspects involving the issue of the possibility of withdrawing from sharing in the event of belligerence between the parents, as well as the discussion about the need or not for joint physical custody, in addition to confirming the hypothesis raised, which highlights the urgency of the discussion on the subject.
Keywords: Shared custody; Family power; Physical custody.
Sumário: 1. Introdução; 2. Autoridade parental e guarda compartilhada no ordenamento jurídico brasileiro: institutos que se confundem?; 3. Aspectos controvertidos na aplicação da guarda compartilhada no Brasil; 3.1 Obrigatoriedade da guarda compartilhada no sistema brasileiro: regra ou exceção?; 3.2 A previsão de divisão de tempo equilibrada entre os pais demanda custódia física conjunta?; 4.Considerações Finais; 5. Referências.
1 Introdução
A família sofre constantes modificações ao longo do tempo e exige a acomodação da lei aos novos cenários. O papel atribuído à mulher, de cuidadora do lar e dos filhos, começa a ceder lugar, na contemporaneidade, à divisão de tarefas e assunção conjunta de responsabilidades entre homens e mulheres. Essas mudanças, somadas ao aumento do número de divórcios, exigem alterações legislativas.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CFRB/1988), atenta ao novo momento, mais plural e democrático, consagrou importantes conquistas, tornando mais elástica a moldura do vocábulo “família”, outrora confundida com a noção exclusiva de casamento. Ao possibilitar novos formatos, consagrou a liberdade de planejamento familiar, assim como instituiu a igualdade entre homens e mulheres e coibiu o tratamento diferenciado em relação aos filhos.
Nessa senda, o Código Civil brasileiro (CC/2002), seguindo as premissas constitucionais, repaginou as relações parentais, deixando o pai de ser o detentor exclusivo do poder parental, agora exercido em igualdade de condições com a mãe. Por sua vez, as crianças e adolescentes passaram a gozar do status de sujeitos de direito, com especial proteção, em razão de sua condição de vulnerabilidade.
O divórcio, já permitido desde a Lei n. 6.515/1977, aos poucos foi tornando-se mais flexível; a guarda, porém, continuou prevista em seu formato unilateral. Somente em 2008 foi editada a primeira lei da guarda compartilhada, a Lei n. 11.698, alterada pela Lei n. 13.058/2014, tornando-se um desafio até os dias atuais. A ruptura de uma relação é, comprovadamente, responsável por causar efeitos traumáticos tanto ao casal quanto aos filhos. Tratando-se as crianças de sujeitos vulneráveis, o compartilhamento da guarda surge com objetivo de proteger o seu saudável desenvolvimento, além de modificar a ideia reinante de que apenas à mãe cabe o dever de cuidado.
Com efeito, a hipótese de pesquisa é de que a guarda compartilhada está sendo compreendida somente como um instituto de comunhão de decisões entre os pais no que toca à prole, sendo deixado de lado importantes aspectos relacionados à convivência.
A pretensão do presente texto, portanto, é investigar o tratamento dado à guarda compartilhada no ordenamento jurídico brasileiro. Para tanto, utilizou-se o método dedutivo, com apoio em pesquisa doutrinária e jurisprudencial, tendo como fonte qualitativa as decisões do Superior Tribunal de Justiça. A pesquisa foi realizada sem delimitação temporal, com a expressão “guarda compartilhada”, em 02 setembro de 2023, encontrando 60 acórdãos no total.
Após o tratamento dos dados coletados, na primeira fase foram utilizados apenas os julgados que discutiam as controvérsias sobre a obrigatoriedade ou não da guarda compartilhada nos casos de beligerância entre os pais, bem como as discussões envolvendo divisão equilibrada de tempo e necessidade de custódia física conjunta. Por sua vez, foram descartados todos àqueles que discutiam questões distintas da investigação. Na segunda fase, restaram os julgados considerados qualitativamente mais relevantes para a pesquisa e com mais riqueza de detalhes, caso das decisões com votos divergentes, sendo descartados os que debatiam as mesmas questões sem acrescentar muito à discussão.
Os resultados encontrados confirmaram que está havendo uma interpretação equivocada da guarda compartilhada, sendo a mesma reduzida e/ou esvaziada em seu conteúdo, o que vem contribuindo para o ensejo do desrespeito ao direito de convívio de ambos os pais com seus filhos, além de infringir o melhor interesse das crianças e adolescentes.
2 Autoridade parental e guarda compartilhada no ordenamento jurídico brasileiro: institutos que se confundem?
Diante das novas diretrizes principiológicas contidas na CFRB/1988 e chanceladas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90 – ECA), o CC/2002 (L. 10.406/2002) atribuiu uma nova versão ao instituto da autoridade parental, alterando não somente a nomenclatura – que passou de pátrio poder para poder familiar, como também o seu conteúdo e exercício.
O conceito não foi dado pela lei à autoridade parental, porém o seu conteúdo foi estabelecido pelas normas constitucional (art. 229 da CRFB/88), civil (art. 1.634 CC/2022) e estatutária (art. 22 do ECA/90) que preveem, entre outros, os deveres de assistir, criar e educar os filhos. Tais pilares precisam ser exercidos de forma funcionalizada à formação da personalidade das crianças e dos adolescentes. (Teixeira, 2018, p. 20-21).
O conteúdo previsto no Código Civil anterior (CC/1916), de caráter hierárquico, exercido exclusivamente pelo pai que impunha o seu poder e a sua vontade, foi substituído por um exercício conjunto e de caráter dialógico, devendo ambos os pais exercerem as suas funções em prol do livre e saudável desenvolvimento dos filhos menores de idade, visando ao alcance de sua autonomia responsável. (Sottomayor, 2003, p. 19).
As funções da autoridade parental consistem, na contemporaneidade, em um conjunto de prerrogativas atribuídas conjuntamente aos pais no sentido de dirigir os cuidados tanto materiais como morais e afetivos relacionados aos filhos menores, assegurando-lhes condições assistenciais, educacionais e de sustento, garantida a participação ativa das crianças e adolescentes nesse processo de desenvolvimento, respeitado o grau de desenvolvimento alcançado.
Diante dessa nova perspectiva, assumem os filhos o papel de protagonistas e não mais o de sujeitos passivos, vinculados aos poderes-deveres concedidos aos pais (Fachin, 1999, p. 223). A relação estabelecida a partir das novas diretrizes constitucionais mostra-se mais dialógica do que hierárquica, uma vez que o foco prioritário é o melhor interesse da criança e do adolescente, e não mais a supremacia da vontade do pai.
Nessa senda, a autoridade parental é delegada aos pais, independentemente da sua condição conjugal, em razão dos filhos não terem condições de se guiarem sozinhos. Isso porque a relação parental não se dissolve, mas apenas os laços de conjugalidade. Essa é a previsão do artigo 1.632 do CC/2002, que prevê que as relações parentais não se alteram com a separação judicial ou divórcio; portanto, mesmo diante da ruptura da sociedade conjugal – casamento ou união estável – nem a titularidade nem o exercício da autoridade parental sofrem modificações. (Teixeira, 2018, p. 23).
Rodrigo da Cunha Pereira (2018, p. 349) reforça esse entendimento lembrando que a autoridade parental é intransferível e decorre da menoridade dos filhos, portanto, uma consequência da parentalidade, que não sofre qualquer diminuição em seu alcance em razão da não convivência conjugal dos pais ou da ruptura da relação.
Porém, na prática, o rompimento da relação conjugal conduz, não raras vezes, a uma quebra da convivência familiar, assumindo apenas um dos pais (em maior número as mães), de forma isolada, o exercício das funções de criação e educação dos filhos. Nesse sentido, alguns autores brasileiros entendem que ainda que o divórcio ou dissolução de união estável não afetem os direitos e deveres dos filhos, há um desdobramento da guarda, em que tais funções são atribuídas apenas a um dos pais, o que acarretaria o enfraquecimento da autoridade parental do outro genitor não guardião. (Grisard Filho, 2002, p. 78).
Ana Carolina Brochado Teixeira (2018, p. 23) rebate, salientando que embora a convivência entre pais e filhos seja prejudicada com a separação dos pais, em alguns casos, não há a diminuição, segundo os mandamentos legais, do alcance da autoridade parental. Em seu entendimento, há uma “confusão conceitual e de alcance existente entre a guarda e a autoridade familiar”.
Já para Rolf Madaleno (2017, p. 421), deve ser distinguida a titularidade e o exercício dos poderes da autoridade parental, salientando que a titularidade continua sendo de ambos, enquanto o exercício é que muda a depender do tipo de guarda implementado. Dito em outras palavras, na guarda unilateral, o exercício fático passaria a ser apenas do guardião, enquanto na guarda compartilhada tanto a titularidade, quanto o exercício, permaneceriam sendo de ambos.
Ora, então tudo leva a crer não haver necessidade de compartilhamento de guarda no ordenamento jurídico brasileiro, já que a autoridade parental de ambos os pais permanece intacta, confundindo-se os dois institutos. Nesse sentido, importa investigar o alcance da autoridade parental, bem como da guarda.
A guarda é compreendida como atributo da autoridade parental e se refere à custódia dos filhos, o direito de viver com o filho, com o correlato dever de velar pelos interesses desses, segundo Rolf Madaleno (2017, p. 420).
Rodrigo da Cunha Pereira (2018, p. 349) concorda com a ideia de que a guarda é um atributo da autoridade parental, um componente da sua estrutura, mas defende que a ela não se restringe, pois, independente do fim da conjugalidade, a função parental e a guarda jurídica persistem para ambos os pais, cabendo não só ao guardião a função de executar e dar continuidade às atribuições da autoridade parental.
Nem todos concordam com esse entendimento, sendo possível encontrar diversos autores que compreendem que apenas ao genitor guardião (guarda física) cabe o exercício de direitos e deveres como a criação, proteção e educação da prole, restando ao outro apenas o direito de ‘visita’, alimentos e fiscalização. (Carbonera, 2000, p. 48).
Já para Ana Carolina Brochado Teixeira (2018, p. 24) “o poder-dever de proteção e provimento das necessidades, sejam elas materiais ou espirituais, encontra abrigo muito mais na autoridade parental do que na guarda”. Para a autora, a finalidade da autoridade parental reside tanto na proteção quanto na promoção da personalidade da criança e do adolescente. Portanto, as funções inerentes à autoridade parental são mais amplas do que as atribuições da guarda.
Gustavo Tepedino (2022, p. 23-49) destaca a peculiaridade do ordenamento brasileiro ao privilegiar a disciplina da autoridade parental no Código Civil, reservando espaço dentro do capítulo dedicado às relações de parentesco. E frisa não se tratar apenas de uma mera opção topográfica, mas da contemplação de situação jurídica subjetiva existencial, carreando um conjunto de deveres imputados aos pais, independente da atribuição da guarda, à exceção do inciso II do art. 1.632 do CC, que contempla o dever de guarda e companhia. Por sua vez, a guarda recebeu tratamento incidental, tratado no âmbito da dissolução do casamento, implicando em pequenos aspectos da autoridade familiar.
Com efeito, da maneira como foi estruturada pelo ordenamento jurídico brasileiro, a guarda compartilhada decorrente da ruptura conjugal, confunde-se com a autoridade parental, já que ambos os pais mantêm de forma íntegra todas as funções previstas pelo art. 1.632 do CC.
Ana Carolina Brochado Teixeira (2018), assim como Gustavo Tepedino (2022), avaliam de que o legislador brasileiro, ao importar a guarda compartilhada de outros países, não observou o fato de que a autoridade parental costuma findar – seja em decorrência da lei e de decisão judicial – com o divórcio ou dissolução de união estável, a exemplo do ordenamento italiano. Essa é a principal razão para a confusão entre os institutos.
Tanto que Ana Carolina Brochado Teixeira (2018, p. 27) defende a desnecessidade da guarda compartilhada, em razão da previsão legal da manutenção dos deveres parentais (art. 1.632 do CC) mesmo após a dissolução conjugal, sem ignorar que “a real importância da guarda compartilhada tem sido popularizar a discussão da coparticipação parental na vida dos filhos, além de efetivamente propiciar aos pais o exercício conjunto da autoridade parental.” (Teixeira, 2018, p. 27)
Já Marília Pedroso Xavier e Maici Colombo (2021, p. 224) diante da confusão do ordenamento jurídico brasileiro, sugerem que a guarda seja tratada apenas como direito de convivência (companhia), ou seja, ambos os pais, conforme prevê a lei, continuam sendo detentores da autoridade parental (titularidade e exercício) e o direito de convivência é que muda a depender da guarda ser compartilhada ou unilateral.
Resumindo, há muita divergência! O que vem prevalecendo, contudo, é que a guarda compartilhada tem como escopo central a responsabilidade conjunta pela tomada de decisões relacionadas aos filhos (par. 1, segunda parte do art. 1583, do CC), ou seja, pressupõe o exercício conjunto da autoridade parental. Em que pese a importância da coparticipação parental, a guarda compartilhada deve albergar também o direito de convívio de forma equilibrada (par. 2, art. 1.583 do CC) e os espaços de afeto de forma conjunta entre os pais.
3 Aspectos controvertidos na aplicação da guarda compartilhada no Brasil
A guarda compartilhada foi introduzida no ordenamento jurídico brasileiro pela Lei n. 11.698, de 2008, prevendo que “Quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, será aplicada, sempre que possível, a guarda compartilhada”.
De acordo com a redação, a guarda passaria a ser compartilhada em duas hipóteses: (1) diante da escolha consensual dos pais; (2) segundo a decisão do juiz quando entendesse possível.
A norma gerou enormes discussões e foi objeto de muitos entraves colocados pelo Poder Judiciário, de modo a não dar concretude ao compartilhamento da guarda, tanto que foi alterada pela Lei n. 13.058, de 2014, que trouxe a guarda compartilhada como ‘regra’, diante do desacordo dos pais, sempre que ambos estiverem aptos ao exercício da autoridade parental, exceto se um dos genitores manifestar ao juiz que não deseja a guarda da criança ou adolescente.
Segundo dados apresentados pela Estatística de Registro Civil – Divórcio 2020, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2020), é possível observar um aumento gradativo das guardas compartilhadas entre o período de 2014 até 2020. Em 2014, o número de divórcios com a concessão de guarda compartilhada representava apenas 7,5 % dos casos, passando para 16,9 % dos casos em 2016; 24,4% dos casos em 2018, 31,3% dos casos em 2020 e 34,5% dos casos em 2021. (IBGE, 2023).
Observa-se que o número de divórcios em que a guarda unilateral das crianças foi concedida exclusivamente para o pai oscilou muito pouco no mesmo período, representando 5,5% dos casos em 2014; 4,9% dos casos em 2016; 4,3% das situações em 2018, 4,1% dos casos em 2020 e, 3,6% dos casos em 2021. (IBGE, 2023).
Já quando se analisa o número de divórcios em que a guarda das crianças foi concedida exclusivamente para a mãe, percebe-se uma gradativa redução, permitindo uma relação direta com o aumento do número de casos das guardas compartilhadas. Em 2014, o total de divórcios em que a guarda das crianças foi deferida para a mãe representava 85,1% do total dos casos; em 2016 caiu para 74,4% dos casos; em 2018 baixou para 65,4% das situações; em 2020, baixou para 57,3% dos casos e, em 2021, baixou para 54,2 dos casos. (IBGE, 2023).
De modo geral, apesar do aumento do número de guardas compartilhadas e do decréscimo de guardas unilaterais para as mães, denota-se que o Brasil ainda se encontra longe do objetivo da efetiva coparticipação dos pais nos cuidados com os filhos, restando fortes resquícios da cultura do cuidado atribuída secularmente às mulheres e reforçada pela legislação anterior, como também pela postura do Poder Judiciário.
Em razão das infindáveis controvérsias quanto ao instituto da guarda compartilhada, passar-se-á a analisar alguns pontos dissonantes tanto na doutrina quanto no entendimento do Superior Tribunal de Justiça.
3.1 Obrigatoriedade da Guarda Compartilhada no Sistema Brasileiro: Regra ou Exceção?
A primeira controvérsia a ser abordada reside no questionamento de se a guarda compartilhada é obrigatória no sistema jurídico brasileiro. Segundo o Superior Tribunal de Justiça, a resposta é afirmativa, até porque a alteração legal promovida pela Lei n. 13.058/2014, teve como principal escopo deixar claro, em definitivo, o fato de o compartilhamento da guarda não ser mais prioritário ou preferencial, tal qual previsto na Lei n. 11.698/2008, mas sim obrigatório (par. 2, art. 1584, do CC), de maneira a afastar os entraves impostos pelo Judiciário para a não fixação de compartilhamento.
Nas palavras da Min. Nancy Andrighi (Brasil, 2021a), o “termo ‘será’ contido no § 2º, do art. 1.584, do Código Civil não deixa margem a debates periféricos, fixando a presunção relativa de que se houver interesse na guarda compartilhada por um dos ascendentes, será esse o sistema eleito”.
Segundo previsão legal (art. 1.584, § 2º, CC) e reiteradas decisões do STJ, apenas duas situações específicas podem afastar a aplicação obrigatória da guarda compartilhada, a saber: (1) a inexistência de interesse de um dos cônjuges; e (2) a incapacidade de um dos genitores de exercer a autoridade parental. Nesse último aspecto, a situação de incapacidade é verificada em procedimento judicial prévio, nos casos de suspensão ou perda do poder familiar, situações que evidenciam inaptidão para o exercício da guarda.
Contudo, além dessas duas hipóteses legais, a beligerância ou desentendimento entre os pais, embora não prevista em lei como situação de exceção da regra, tem afastado, não raras vezes, o regime de compartilhamento da guarda.
Tanto que o Conselho Nacional de Justiça – CNJ, por meio da Recomendação n. 25, recomendou aos juízes das varas de família que, ao decidirem sobre a guarda dos filhos, considerem a guarda compartilhada, tal qual previsto em lei, mesmo quando não houver acordo entre os pais. E, em caso de impossibilidade, que justifiquem o motivo, com base nos critérios legais contidos no parágrafo 2º, do art. 1.584 do Código Civil.
Entendimento já consolidado pelo STJ, desde 2014 (Brasil, 2014), é de que o afastamento do compartilhamento só é cabível de maneira eventual e excepcional, diante de hipóteses em que se constate a impossibilidade prática de execução da guarda compartilhada que, porventura, decorra diretamente de uma beligerância desenfreada e de um cenário em que não haja absolutamente nenhuma possibilidade de diálogo entre os pais. Para ilustrar, segue trecho de julgado oriundo de Minas Gerais, relatado pelo Ministro do Superior Tribunal de Justiça, João Otávio de Noronha:
A guarda compartilhada deve ser buscada no exercício do poder familiar entre pais separados, mesmo que demande deles reestruturações, concessões e adequações diversas para que os filhos possam usufruir, durante a formação, do ideal psicológico de duplo referencial (precedente). Em atenção ao melhor interesse do menor, mesmo na ausência de consenso dos pais, a guarda compartilhada deve ser aplicada, cabendo ao Judiciário a imposição das atribuições de cada um. Contudo, essa regra cede quando os desentendimentos dos pais ultrapassarem o mero dissenso, podendo resvalar, em razão da imaturidade de ambos e da atenção aos próprios interesses antes dos do menor, em prejuízo de sua formação e saudável desenvolvimento (art. 1.586 do CC/2002). Tratando o direito de família de aspectos que envolvem sentimentos profundos e muitas vezes desarmoniosos, deve-se cuidar da aplicação das teses ao caso concreto, pois não pode haver solução estanque já que as questões demandam flexibilidade e adequação à hipótese concreta apresentada para solução judicial. (BRASIL, 2016)
Apesar de bem fundamentada a decisão, com apoio no princípio do melhor interesse da criança e na excepcionalidade do caso, em razão de se tratar de uma análise quase sempre subjetiva, não é incomum observar divergências de opinião na análise de situações fáticas, conforme ocorrido em dois recentes julgados.
Uma das decisões analisadas e que merece ilustração é oriunda do Tribunal de Justiça de São Paulo, que teve como Relator no STJ o Ministro Paulo de Tarso Sanseverino. Observa-se de que no caso o que impediu o compartilhamento da guarda não foi a falta de aptidão dos pais para os cuidados com a criança, pelo contrário, foi unicamente a ausência de diálogo entre eles. Extrai-se da ementa que o caso em tela se enquadra na excepcionalidade da regra, porquanto “as animosidades e a beligerância entre os genitores evidenciam que o compartilhamento não viria para bem do desenvolvimento sadio da filha, mas como incentivo às desavenças, tornando ainda mais conturbado o ambiente em que inserida a menor. (Brasil, 2021b).
O voto divergente da Ministra Nancy Andrighi destaca questões relevantes no tocante de que certo nível de desarmonia entre os pais não impede o compartilhamento da guarda. Concorda em que o ideal é a composição voluntária de ambos os pais. Contudo, quando o consenso não é alcançado, cabe ao Poder Judiciário buscar fórmulas que assegurem a possibilidade do compartilhamento dos cuidados, uma vez que é “justamente a falta de consenso entre o par parental que justifica a provocação e interferência jurisdicional do Estado”. Destarte, a animosidade do conflito, de que resulta o desacordo sobre o exercício da guarda, “longe de representar obstáculo à fixação da guarda compartilhada, é elemento integrante do próprio suporte fático normativo” (art. 1.584, parágrafo2º, do CC). (Brasil, 2021b).
Na mesma linha de compreensão, manifesta-se Rodrigo da Cunha Pereira (2018, p. 352): “o ideal de manutenção de um bom relacionamento, muitas vezes é só um ideal, e se o casal não consegue sozinho estabelecer consensualmente a convivência compartilhada, o juiz deverá fazê-lo.” Complementa o autor, outrossim, ser muito comum surgir situações em que o consenso entre os pais se estabelece depois da imposição da obrigatoriedade da guarda compartilhada.
Outro julgado que merece destaque, sobre a divergência de interpretação, é oriundo do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, na RESP n. 1.707.499, julgada pelo STJ em 2019 (Brasil 2019), em que mais uma vez se discute a possibilidade da guarda compartilhada. O cenário peculiar, e com muito mais animosidade do que o caso anterior, revela desentendimentos sucessivos entre os pais, com elevado grau de litígio entre eles, inclusive com agressões físicas e psicológicas.
Todavia, o laudo psicossocial anexado aos autos confirma que ambos os pais possuem ótimas condições socioeconômicas para assumir os cuidados da criança. Ambos residem na mesma cidade e se mostram dedicados ao filho, mantendo estrutura e organização para o período de convivência. Assim, percebe-se que a guarda unilateral foi fixada nas instâncias superiores e mantida pelo STJ, em face do desentendimento dos pais e não pela existência ou impossibilidade prática de exercício de compartilhamento.
Segundo entendimento da maioria dos julgadores, o afastamento da guarda compartilhada ocorreu em detrimento de não dever ser imposta “quando sua adoção seja passível de gerar efeitos ainda mais negativos ao já instalado conflito, potencializando-o e colocando em risco o interesse da criança" (Brasil, 2019). Destaca-se ainda do julgado "que o alto 'stress' imputado ao menor e a urgência de que os pais busquem medidas de entendimento para evitar tamanho sofrimento são incompatíveis com a guarda compartilhada”. (Brasil, 2019).
Já o voto vencido, que defendia a manutenção do compartilhamento, foi do Ministro Marco Aurélio Bellizze, que destacou o entendimento reiterado da Terceira Turma do STJ pela prevalência da guarda compartilhada, mesmo que haja desentendimentos entre os genitores. E destacou:
[...] nos casos, em que o consenso não é espontaneamente alcançado, deve o Poder Judiciário buscar fórmulas que assegurem o contato mútuo entre cada um dos pais e seus filhos. Aliás, esta é a missão precípua do Poder Judiciário em demandas de regulamentação de guarda, uma vez que é justamente a falta de consenso entre o par parental que justifica a provocação e interferência jurisdicional do Estado. (BRASIL, 2019)
Nessa linha de compreensão propôs que, para além da já assentada prevalência da guarda compartilhada, o Poder Judiciário fixe
Um regime que, muito embora não sirva como fórmula geral, funcione como referência para a regulamentação do exercício da custódia física por ambos os pais, mesmo nos casos em que ainda não haja entendimento entre eles quanto ao exercício da guarda compartilhada. Isso porque o legislador, além de definir a prevalência pelo regime da guarda compartilhada, ainda deixou expresso na legislação vigente a divisão equilibrada do tempo como norte para a regulamentação dos períodos de convivência e estabelecimento das atribuições. (BRASIL, 2019)
Deixou claro, outrossim, que
O estado de animosidade entre o par parental somente adquirirá relevância se houver o descumprimento de cláusulas estipuladas ou embaraço no cumprimento da regulamentação judicial da guarda, conforme prevê o § 4º do art. 1.584 do CC/2002, situação em que novos ajustes deverão ser impostos como decorrência da redução de prerrogativas atribuídas àquele que der causa ao descumprimento. (BRASIL, 2019)
Waldir Grisard Filho (2009, p. 205-206) tece uma importante reflexão sobre a temática, confirmando que “não é o litígio que impede a guarda compartilhada, mas o empenho em litigar, que corrói gradativamente e impiedosamente a possibilidade de diálogo, o que deve ser impedido, pois diante dele nenhuma modalidade de guarda será adequada e conveniente.”
Por mais difícil que seja, conforme já anotado, a responsabilidade parental dos pais continua de forma integral, mesmo diante da ruptura conjugal, e, sendo a guarda compartilhada a regra, ela deve ser aplicada, sob pena de não ter efetividade prática. É nesse sentido o pensamento de Regina Beatriz Tavares da Silva (2012. p. 2366) deixa claro que a guarda compartilhada deve ser efetivamente aplicada, mesmo sem o consenso dos pais, com base nos benefícios trazidos para a criança.
Sobre esse aspecto, Rolf Madaleno (2018, p. 310) diverge, entendendo que “embora a legislação se incline por preferir a guarda compartilhada dos pais, sua escolha e, em especial, a da guarda compartilhada física da Lei 13.058/2014, só encontrará admissão na ação consensual de guarda ou de divórcio.”
A doutrina encontra-se bastante dividida quanto à imposição da guarda compartilhada nos casos litigiosos em que não haja consenso entre os pais. Já no âmbito do Poder Judiciário, é possível constatar a relutância dos juízes de primeiro grau em forçar a guarda comum nas sentenças decorrentes de processos não consensuais.
Tal posicionamento é seguido nas instâncias superiores, o que foi confirmado após análise de inúmeros julgados do STJ, com tendência bem acentuada pela adoção da exceção, ou seja, pelo afastamento da guarda comum na maioria dos casos em que se discutia a beligerância ou animosidade entre os pais.
3.2 A Previsão de Divisão de Tempo Equilibrada Entre os Pais Demanda Custódia Física Conjunta?
Uma das maiores confusões de interpretação acerca da guarda compartilhada tem se dado em torno da exigência ou não de custódia física conjunta.
Diante da Lei n. 11.698, de 2008, que introduziu legalmente a guarda compartilhada no ordenamento jurídico brasileiro, passou-se a entender de que a guarda comum, para além da corresponsabilização parental, exigia também alternância de casas. Extrai-se da obra de Maria Berenice Dias (2013, p. 456), publicada em 2013, que “guarda compartilhada significa dois lares, dupla residência, mais de um domicílio...”, ficando “o filho livre para transitar de uma residência para a outra a seu bel-prazer” (Dias, 2013, p. 456).
Também da análise de julgados do STJ da época, é possível verificar compreensão semelhante, ilustrando-se com trecho do acórdão relatado pela Ministra Nancy Andrighi:
A custódia física conjunta é o ideal a ser buscado na fixação da guarda compartilhada, porque a sua implementação quebra a monoparentalidade na criação dos filhos, fato corriqueiro na guarda unilateral, que é substituída pela implementação de condições propícias à continuidade da existência de fontes bifrontais de exercício do poder familiar. (BRASIL, 2011)
E um pouco mais adiante complementa: “A guarda compartilhada deve ser tida como regra, e a custódia física conjunta – sempre que possível – como sua efetiva expressão”. (Brasil, 2011).
Tal entendimento gerou várias críticas ao instituto, inclusive, várias expressões foram cunhadas para criticar a adoção da guarda compartilhada, como “filho mochilinha” e “filho canguru”, que vinha em prejuízo do filho, em decorrência das constantes mudanças de casa. Havia uma confusão evidente com o instituto da guarda alternada, que sequer possui previsão no ordenamento jurídico brasileiro.
Com a edição da Lei n. 13.058, de 2014, que alterou os artigos do Código Civil, o art. 1.583, parágrafo 2º, passou a prever expressamente de que a guarda compartilhada deve dividir, de forma equilibrada com a mãe e com o pai, o tempo de convívio com os filhos, tendo em vista as condições fáticas e os interesses da prole.
Tal redação suscitou inicialmente ainda mais críticas e divergências de opinião. Mas passado algum tempo, prevaleceu o entendimento de que o tempo de convívio com ambos os pais é salutar, mas que não implica em necessária alternância de casas, nem que os períodos de permanência dos pais com seus filhos sejam igualitários, em atenção aos critérios exigidos pela lei e outros critérios que levem em consideração o melhor interesse para as crianças e adolescentes.
Segundo Rolf Madaleno (2017, p. 448), a guarda compartilhada legal, assim entendido o compartilhamento da autoridade parental, não guarda nenhuma responsabilidade com a
custódia por períodos repartidos, pois compartir e repartir têm distinto conteúdo semântico, importando aos elevados interesses do filho, e não dos pais, a qualidade da convivência, e essa igualdade pode ser compartilhada em tarefas e funções a serem repartidas entre os pais, assegurada a ampla comunicação dos genitores para com seus filhos.
Resumindo, o que a lei prevê não seria uma distribuição matemática do tempo, mas uma assunção equilibrada das responsabilidades, ajustadas em benefício dos filhos. “O equilíbrio de período de convivência propugnado deve atender ao melhor interesse dos filhos e não está a serviço de contagem de tempo partilhado entre os pais.” (Levy, 2018, p. 156)
Assim também passou a ser a compreensão do Superior Tribunal de Justiça que, em vários julgados, deixa claro de que a guarda compartilhada não deve ser confundida com a guarda alternada, a saber:
A guarda compartilhada não se confunde com a guarda alternada e não demanda custódia física conjunta, tampouco tempo de convívio igualitário dos filhos com os pais, sendo certo, ademais, que, dada sua flexibilidade, esta modalidade de guarda comporta as fórmulas mais diversas para sua implementação concreta, notadamente para o regime de convivência ou de visitas, a serem fixadas pelo juiz ou por acordo entre as partes em atenção às circunstâncias fáticas de cada família individualmente considerada. (BRASIL, 2021a)
Não é outro o posicionamento da psicanalista Giselle Câmara Groeninga (2018, p. 159) que chama a atenção para as formas de prescrever as divisões de tempo. À época da fixação somente de guardas unilaterais, lembra que era comum a previsão de divisão de tempo aos pais, em finais de semana alternados que, depois, foram ampliados para o pernoite em um ou alguns dias da semana. Já na guarda compartilhada, enfatiza o cuidado com o princípio norteador da responsabilidade solidária existente entre os pais a exigir clareza de significado e a contemplação de arranjos particulares e específicos a cada família. “Com a guarda compartilhada não se trata de ir ao extremo oposto em desconsiderar a necessidade de organização da rotina” (Groeninga, 2018, p. 159). Nem se deve, segundo a autora, transferir tal responsabilidade para os filhos e para os desejos destes.
Contudo, sobre o entendimento do requisito de partilha de tempo que deveria observar a rotina e as peculiaridades de cada família, observa-se das decisões judiciais o seu descumprimento, porquanto virou praxe fixar uma residência base, com a previsão do direito de convívio ao outro genitor, em finais de semana alternados, dias festivos, como Natal, aniversário, dia dos pais/mães, e mais algum dia na semana, geralmente às quartas-feiras.
Nesse ínterim, a redação do parágrafo 3º do artigo 1.583, do CC vem sendo aplicada de forma equivocada. Consta da redação: “Na guarda compartilhada, a cidade considerada base de moradia dos filhos será aquela que melhor atender aos interesses dos filhos”. Segundo entendimento de Rodrigo da Cunha Pereira (2018, p. 358), o que a lei prevê é a fixação de cidade base e não uma residência base. Ou seja, quando os pais residirem em locais distintos, é recomendável a definição de uma referência de moradia, o que não significa que em todo e qualquer caso deverá ter residência de base e muito menos que os filhos não possam ter duas residências.
Com efeito, em razão da compreensão de que não é preciso custódia física conjunta, o STJ não vê problema de fixação de guarda compartilhada nos casos em que os pais residam em cidades, estados ou, até mesmo, países distintos. Essa flexibilidade do compartilhamento da guarda não afasta, todavia, a possibilidade de convivência da criança com ambos os genitores e a divisão de responsabilidades, especialmente porque o avanço tecnológico assim possibilita.
A Terceira Turma do STJ (Brasil, 2022) adotou recentemente essa postura ao restabelecer sentença que permitiu a mudança de uma criança, juntamente com a mãe, para a Holanda. A sentença de primeiro grau, além de fixar o regime de guarda compartilhada, estabeleceu os parâmetros de convívio com o pai, que reside no Brasil.
O Tribunal estadual havia reformado a sentença, desautorizando a mudança da criança para o exterior, determinando a convivência quinzenal de forma alternada entre os pais. Contudo, a Min. Nancy Andrighi, relatora do recurso especial, destacou que não se pode confundir guarda alternada com guarda compartilhada, frisando de que no sistema de compartilhamento não só é possível, como desejável, ser definida uma residência principal para os filhos. (Brasil, 2022). Destaca-se trecho da ementa:
A guarda compartilhada não se confunde com a guarda alternada, tampouco com o regime de visitas ou de convivência, na medida em que a guarda compartilhada impõe o compartilhamento de responsabilidades, não se confundido com a simples custódia física conjunta da prole ou com a divisão igualitária de tempo de convivência dos filhos com os pais. 6- Diferentemente do que ocorre na guarda alternada, em que há a fixação de dupla residência na qual a prole residirá com cada um dos genitores em determinado período, na guarda compartilhada é possível e desejável que se defina uma residência principal para os filhos, garantindo-lhes uma referência de lar para suas relações da vida. (BRASIL, 2022)
Com efeito, entendeu que, no caso concreto, o plano de convivência constante da sentença de primeiro grau atende ao critério de convívio com o pai, já que previsto “o retorno da criança ao Brasil em todos os períodos de férias até completar 18 anos, com utilização ampla e irrestrita de videochamadas ou outros meios tecnológicos de conversação e a convivência diária quando o recorrido estiver na Holanda". (Brasil, 2022).
Referida decisão tem gerado divergências de opinião, apontando alguns estudiosos de que a guarda compartilhada brasileira não passa de uma mera ficção jurídica. Ora, se não é necessária custódia física conjunta, esvazia-se a guarda compartilhada, já que permanece em decorrência do instituto, tão somente a tomada conjunta pelos pais de decisões relacionadas aos filhos. Contudo, a tomada conjunta de decisões é decorrência do poder familiar que se mantém íntegro, como se viu no primeiro tópico, mesmo após a dissolução da sociedade conjugal.
4 Considerações Finais
A ruptura de uma relação conjugal é responsável por causar inúmeros efeitos traumáticos tanto ao casal, quanto aos filhos. Tratando-se as crianças de sujeitos vulneráveis, o compartilhamento da guarda surge fundamentado em valores e princípios de ordem constitucional e psicológica, com vistas a proteger o seu saudável desenvolvimento, além de mudar o paradigma da ideia reinante de que apenas à mãe cabe o dever de cuidado.
O objetivo principal da guarda compartilhada é o de incentivar a manutenção dos laços parentais e afetivos, minorando os efeitos da ruptura do par conjugal, além de conferir aos pais de forma mais equilibrada a permanência do convívio e o exercício das funções parentais, superando a tradicional divisão de papeis e funções.
Com efeito, em que pese à confusão no ordenamento jurídico brasileiro entre os institutos da autoridade parental e da guarda compartilhada, que mantém íntegra as funções parentais após o divórcio ou dissolução de união estável, entende-se salutar repensar os rumos do compartilhamento, para que se assegure o direito de ambos os pais ao convívio efetivo com os filhos.
O STJ já há algum tempo compreende a guarda compartilhada como obrigatória e, embora o desentendimento entre os pais não afaste a possibilidade de sua adoção, a beligerância mais acentuada é razão suficiente para a não adoção do compartilhamento.
Seguindo a regra da obrigatoriedade, o STJ entende viável a adoção da guarda compartilhada, independente da distância geográfica. Nesse ínterim, contudo, prevalece a compreensão da desnecessidade de custódia física conjunta. Esse entendimento, de acordo com os últimos julgamentos, vem se revelando distorcido, já que não mais assegura o convívio entre pais e filhos.
Tanto parte da doutrina, como o STJ, tem compreendido a guarda compartilhada como uma divisão de poder decisório sobre os filhos, o que torna inócuo o compartilhamento, dificultando o convívio, as rotinas e os cuidados por ambos os pais, desrespeitando o melhor interesse das crianças.
E importa anotar de que o fato de as decisões estarem fundamentadas no princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, por si só, não é suficiente para assegurar o conteúdo deste importante princípio balizador. Utilizá-lo como mera retórica está longe de garantir proteção especial a estes sujeitos vulneráveis.
O melhor interesse da criança deve ser interpretado à luz dos direitos básicos que lhe são assegurados em vários instrumentos internacionais e nacionais. O preenchimento de seu conteúdo deve estar em consonância com o bem-estar da criança e servir para justificar o pedido – quase sempre egoísta – do pai ou da mãe, preocupados apenas com a sua situação.
A realidade das famílias, de modo geral, não segue o modelo idealizado de uma família afetiva e responsável, mas revela um número acentuado de famílias litigiosas em que os pais não mantem um mínimo de diálogo a viabilizar o consenso. Se os pais não conseguem compreender de que ambos importam para seus filhos e que o bem-estar dos filhos passa pelo ambiente de harmonia e compreensão, é papel do Judiciário assegurar a presença de ambos os pais na vida dos filhos, sempre que possível. Ainda que os meios tecnológicos facilitem a comunicação e o convívio virtual, nada substitui a presença física. O compartilhamento de decisões é insuficiente para assegurar afetos e cuidados.
5 Referências
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[1] E-mail: dorisghilardi@gmail.com, Mestre e Doutora em Ciências Jurídicas pela Univali-SC, Professora da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, nível de graduação e pós graduação, endereço: 88.040-900, Florianópolis, SC, Brasil, UFSC. https://orcid.org/0000-0002-2605-5785
[2] E-mail: larissatenfensilva@hotmail.com, Mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, Doutoranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, endereço: 88.040-900, Florianópolis, SC, Brasil, UFSC. https://orcid.org/0000-0002-6618-0759