Direitos Humanos e Retóricas Canibais
DOI: 10.19135/revista.consinter.00015.05
Recebido/Received 30/06/2020– Aprovado/Approved 21/10/2020
Narbal de Marsillac[1] – https://orcid.org/0000-0001-9663-9228
Resumo:
Se a universalização dos direitos humanos representa para alguns uma vitória gloriosa da cultura jurídica do século passado, para outros, entretanto, espelha o fracasso e está vinculada aos últimos suspiros de um tipo de racionalidade jurídica que buscara, ainda que de forma bem intencionada, a ampliação máxima do alcance desses direitos pela correlata busca por fundamentos últimos e definitivos. A hipótese que foi aqui levantada é que sem perceber e se deixando guiar por critérios morais supostamente universais e, portanto, arretóricos, desprestigiou-se o diálogo intercultural e se desconsiderou o que há de único e endêmico nas culturas minoritárias, legitimando a exclusão ou a inclusão subalterna. Canibalizando, assim, através de retóricas com pretensões apodíticas (retóricas arretóricas), as outras inúmeras gramáticas da dignidade que ainda vigem no mundo plural que habitamos. O objetivo aqui é, portanto, denunciar, pelo método da análise retórica, esse processo de canibalização, subsunção e menosprezo pela compreensão de mundo alheia à que subjaz por detrás das teorias universais de direitos humanos.
Palavras-Chave: Direitos Humanos; Retórica; Universalidade; Pluralismo; Exclusão.
Abstract:
If the universalization of human rights represents for some a glorious victory of the legal culture of the last century, for others, however, it mirrors failure and is linked to the last breaths of a type of legal rationality that had sought, albeit in a well-intentioned way, maximum expansion of the scope of these rights by the related search for ultimate and definitive foundations. The hypothesis that was raised here is that without realizing and allowing itself to be guided by supposedly universal and therefore arethorical moral criteria, it discredited intercultural dialogue and despised what is unique and endemic in minority cultures, legitimizing exclusion or subordinate inclusion. Cannibalizing, Thus, through rhetoric with apoditic pretensions (arhetorical rhetoric), the other countless grammars of dignity that still prevail in the plural world we inhabit. The objective here is, therefore, to denounce, using the method of rhetorical analysis, this process of cannibalization, subsumption and contempt for the understanding of a world that is extraneous to that kind of worldview that underlies the universal theories of human rights.
Keywords: Human Rights; Rhetoric; Universality; Pluralism; Exclusion
A ausência da violência é só aparente
(Michel Foucault)
Introdução
O presente texto parte daquele mesmo pressuposto que levou Burke em 1950 a reconhecer corajosamente que onde quer que haja persuasão há retórica. E onde quer que haja sentido, há persuasão[2]. Ou seja, há retórica em todo dizer dotado de sentido e as relações hoje entre a antiga arte da persuasão e a filosofia são de uma crescente indistinção que as faz se converterem paulatinamente ora numa filosofia retórica acerca dos diferentes discursos retóricos sobre o mundo ora numa retórica filosófica que toma a própria retórica como método inerente a todo pensar. Este passa a ser visto como um permanente pensar pressupostos e que, para fazê-lo, demanda pensar os pressupostos do próprio pensar. Em outras palavras, se não podemos pensar sem premissas, como também quis Aristóteles[3], o pensamento que não se reconhece retórico é sincericida[4] porque se invalida a si mesmo por não reconhecer a contingência dos próprios pressupostos de onde originalmente parte. Assim, o sincericídio se dá não pelo excesso, como em geral se pensa, mas pela falta de sinceridade do dizer alegadamente não retórico que pretende pensar sem pensar seus próprios pressupostos. Ou seja, sem colocá-los em questão. Perelman esclareceu melhor este ponto quando defendeu que: “o que é considerado gratuito num sistema é tido como demonstrado em outro”[5]. Assim, o que alguns chamam de fundamento, princípio, evidência, certeza, intuição, convicção ou simplesmente verdade e, no caso específico dos direitos humanos, dignidade humana, outros chamam de truísmos[6]. Expô-los enquanto tais passa a se configurar como tarefa precípua de todo pensar sincero e que, portanto, se reconhece, desde suas origens, retórico. Cada época tem lá suas ingenuidades, diria Nietzsche.
Essa multiplicidade de percepções do valor dos diferentes pontos de partida se agudiza quando se traz para o debate o completamente outro, o nativo exotizado[7]. Aquele que tem uma outra cultura, uma outra cosmovisão, outra religião ou fé. Outras práticas sociais, outras noções do que seja certo ou errado. Enfim, aquele que tem outra história até então não narrada nos círculos dos teóricos, dos especialistas e dos intelectuais. O que nos aproxima daquele que Richard Rorty chamou de ironista, ou seja, quem é capaz de reconhecer permanentemente o caráter sempre contingente e precário de suas próprias certezas, crenças e desejos. Diz ele:
O metafísico continua ligado ao senso comum, no sentido em que não põe em questão os truísmos que envolvem a utilização de um dado vocabulário final e, em particular, o truísmo que diz que há uma realidade permanente única a encontrar além das muitas aparências temporárias. Não redescreve, mas, em vez disso, analisa descrições antigas. O ironista, pelo contrário, é nominalista e historicista. Pensa que nada tem uma natureza intrínseca, uma essência real. Assim, pensa que a ocorrência de um termo tal como “justo”, “científico” ou “racional” no vocabulário final da época não é razão para pensar que um inquérito socrático sobre a essência da justiça, da ciência ou da racionalidade nos leve muito além dos jogos de linguagem da época de cada um[8]
O pensador estadunidense chamou de paradigma da racionalidade do metafísico, comum também aos juristas e teólogos, aquele tipo de compreensão do pensar enquanto relações inferenciais fixas e, portanto, aqui vistas como arretóricas, entre proposições e sistemas de proposições que, de alguma forma, preservam alguma estabilidade e certeza a respeito do que descrevem ou prescrevem[9] e que seriam, pela convicção que conseguem suscitar, capazes de subsumir toda eventual contingência cultural do porvir. A todos os sistemas de crenças e de práticas sociais é capaz de assujeitar a seus próprios princípios inequívocos, certos e esnobes. Como também quis Nietzsche: “as categorias da razão não representam mais do que a conveniência de uma certa raça e espécie – só uma utilidade é a sua verdade”[10]. A pergunta que fazemos aqui é: qual a utilidade da suposta verdade presente nos discursos que defendem a validade universal dos direitos humanos? A suposta universalidade desses direitos não dependeu da adoção arbitrária e acrítica daquele mesmo paradigma da racionalidade do metafísico que nos fala Rorty?
Apesar de ser reconhecido, com razão, como o principal filósofo que soube elaborar uma teoria moral centrada no valor absoluto do ser racional e de sua dignidade que inspirou tantas teorias universais de direitos humanos, Kant, em sua Crítica da Razão Pura, já havia demonstrado que para ter validade global, um princípio precisa ser necessário. Caso contrário, uma universalidade empírica seria, como sustenta o pensador prussiano, uma extensão arbitrária da validade. Diz ele:
A experiência não concede nunca aos seus juízos uma universalidade verdadeira e rigorosa, apenas universalidade suposta e comparativa (por indução), de tal modo que, em verdade, antes se deveria dizer: tanto quanto até agora nos foi dado verificar, não se encontram exceções àquela regra. Portanto, se um juízo é pensado com rigorosa universalidade, quer dizer, de tal modo que, nenhuma exceção se admite como possível, não é derivado da experiência, mas é absolutamente válido a priori[11]
Portanto, a pergunta seguinte seria: existem exceções ao respeito universal da dignidade humana? Ou perguntando de outra forma: “O conceito de direitos humanos é universal? A resposta é um sonoro não”[12]. E por que teimamos em reafirmar e considerar universais esses direitos. A resposta é bem simples, mas muito dura pra nós ocidentais: porque somos altivos e soberbos, queremos dominar e ter o monopólio da verdade, do bem e do que seja vida digna[13]. Queremos inconfessadamente impor e determinar para os demais seres do planeta como se devem comportar e agir, negando, para tal, suas idiossincrasias culturais próprias através de uma retórica canibal[14] que consiste numa sorte de violência sutil e silenciosa que reduz a insegurança própria da multiplicidade pela exclusão e produção de ausências e subalternidades porque “sob a capa de valores universais autorizados pela razão foi de fato imposta a razão de uma raça, de um sexo e de uma classe social”[15]. A isso Foucault chamaria de sono antropológico[16] que consiste justamente nessa nossa incapacidade de lidar com a natural variedade da empiria e nossa necessidade ainda mais inconfessa de reduzir o múltiplo que inclui o outro ao uno que somos e que o exclui. Como também defendeu Gadamer: “o outro se mostra a partir do que nos é próprio”[17]. Reconhecê-lo é reconhecer o mero valor de tentativa ou, como quis Kant, de tanto quanto até agora nos foi dado verificar, ou seja, de verossimilhança, de probabilidade e de eikos. Em outras palavras: reconhecer o caráter retórico do nosso dizer. Em um de seus momentos mais inspirados, Nietzsche sustentou que:
Esse algo imperioso que o povo denomina espírito, quer, em si e em torno de si, ser senhor e sentir-se como senhor: ele tem a vontade de passar da pluralidade à simplicidade, uma vontade que constringe, que doma, sequiosa de dominação e efetivamente dominadora. Suas necessidades e faculdades, aqui, são as mesmas que os fisiólogos estabelecem para tudo o que vive, cresce e se multiplica. A força do espírito em apropriar-se do que é alheio revela-se em uma forte propensão a assimilar o novo ao velho, simplificar o diverso, passar por alto o inteiramente contraditório ou descartá-lo: assim como arbitrariamente sublinha mais forte, destaca, falsifica para seu uso determinados traços e linhas no que é alheio, em cada pedaço de “mundo exterior”. Seu propósito, nisso, é a incorporação de novas “experiências”, a inserção de novas coisas em velhas séries – crescimento, portanto; mais determinantemente ainda, o sentimento de crescimento, o sentimento de força aumentada. A serviço dessa mesma vontade está um impulso do espírito, aparentemente oposto, uma decisão, que irrompe subitamente, de ignorância, de exclusão arbitrária, um fechar suas janelas, um íntimo dizer-não a esta ou aquela coisa, um não-deixar-aproximar, uma espécie de estado-de-defesa contra muito do que se poderia saber, uma satisfação com o escuro, com o horizonte exclusivo, um dizer-sim e aprovação à ignorância: tudo isso necessário segundo o grau de sua força de apropriação, de sua “força digestiva”, para falar em imagem – e efetivamente o “espírito” ainda se assemelha ao máximo a um estômago[18]
É essa força digestiva que reduz o plural ao simples, como quis o poeta e filósofo alemão, que ousamos chamar aqui de retóricas canibais e que estão por detrás de todos os discursos que pretendem defender a universalidade para os direitos humanos. Importa, pois, hoje regurgitar o outro e sua outridade, romper com aquilo em nós que quer dominar e se impor, simplificar o diverso e excluir. Despertar, enfim, de nosso sono antropológico inconfesso que nos impediu de abrir nossas janelas e de dizermos sim, deixando-nos aproximar, incluindo e respeitando aquele e aquela que são diferentes e que têm o direito humano e fundamental de sê-lo. Como sentencia Kundera: “ninguém possui a verdade e todos têm o direito de ser compreendidos”[19]. Ao fazê-lo, procura-se sobretudo e notadamente a inclusão respeitosa e a consideração do outro enquanto outro. A pós-modernidade consiste justamente nesse reconhecimento da incapacidade propriamente emancipatória e inclusiva de uma modernidade monocultural que primeiramente gestou os direitos humanos; eurocêntrica e, por isso mesmo, “psicopata” por não ter reconhecido a outridade do outro ou por tê-lo coisificado e exotizado no grande processo de colonização que, durante tanto tempo, forjou esse período histórico. Em sua arrogância intelectual, havia negado todas as possibilidades de consideração e inclusão do discurso periférico e marginal. Cabe hoje rever esse quadro, descolonizando permanentemente a reflexão e o pensamento, desexotizando o nativo[20] e denunciando o desprezo e a inferiorização que sofreram e ainda sofrem vários seres humanos em virtude de uma retórica pretensiosa e canibal, profundamente convencida da centralidade da Europa[21].
Para tal, procurar-se-á mostrar aqui, pelo método da análise retórica que consiste na explicitação da retórica oculta presente naquilo que se diz, num primeiro momento, o caráter inegavelmente retórico de nossas próprias preocupações morais e como tradicionalmente reflexões éticas se deram sob um paradigma analítico injustificadamente amplo que entende como válido exclusivamente o raciocínio formal. O que nos levou, em geral, ao desprezo pela retórica e sua inerente dialogicidade, e que, como hipótese central do texto, desdenha e desqualifica culturas minoritárias. Como hoje cada vez mais nos conscientizamos, o melhor antídoto contra a retórica e seu mau uso é a própria retórica em sua capacidade analítica que expõe e explicita as estratégias persuasivas dos discursos em geral, análogo ao soro antiofídico que vem do próprio veneno. Num segundo momento, essa mesma capacidade crítica da análise retórica se endereçará para as teorias fundacionais dos direitos humanos e, com isso, mostrar-se-á a necessidade de encontrar uma nova forma de legitimação não pela busca de alicerces seguros e objetivos, mas pelo viés de uma legitimação retórica e adaptativa. E, finalmente, o objetivo aqui é denunciar o processo de canibalização do outro por meio do que chamamos retórica canibal e de sua violência não aparente presente nos discursos que usualmente não se reconhecem a si mesmos como retóricos e, portanto, meramente prováveis e de validade sempre circunscrita.
1) A Retórica da Moral
Procurando seguir o conselho de Wittgenstein de colocar um fim a toda tagarelice sobre a ética[22], a proposta aqui é reconhecer uma obviedade: o caráter nitidamente retórico dos textos filosóficos em geral[23], mas sobretudo daqueles que tratam das teorias morais e jurídicas. E por que retórico? Ora, entende-se como retórico o discurso que não parte de premissas necessárias, que independeriam da anuência prévia dos concernidos, mas, pelo contrário, diz-se retórico o texto ou a fala que parte de premissa contingente, mas previamente aceita pelos mais sábios, pela maioria ou por todos[24]. Neste sentido, reconhecendo com Aristóteles que não se pode raciocinar sem premissas[25], delineia-se a existência de dois tipos de raciocínios possíveis: os apodíticos, que dependem de premissas necessárias; e os dialéticos, que dependem da preexistente aceitação de premissas contingentes amplamente aceitas. A pergunta que fica é: as diferentes teorias morais são expressão de raciocínios do primeiro tipo, necessários e universais, ou do segundo, tópicos e retóricos? Se se opta em qualificar essas teorias como pertencentes ao primeiro grupo, ter-se-ia formulações éticas fundadas em princípios pretensamente necessários que, como um verdadeiro cálculo matemático, poderiam ser impostos a todos e a todas do planeta, independentemente de suas opções pessoais, das diferentes culturas, das diferentes experiências históricas, dos diferentes contextos etc. Ou seja, não haveria elemento contingenciador que abrandasse o rigor da aplicação normativa ou principiológica. E mesmo que a premissa tida por necessária fosse capaz de abrigar fronematicamente contingencialidades e critérios mais plásticos, há aqui uma certa recusa metafísica do pluralismo[26] que visa neutralizar o impacto da variedade e da contingência[27] enquanto traço destinal do mundo contemporâneo[28]. Ou seja, mais do que simplesmente encontrar pontos de partida necessários, o problema da fundamentação da moral desloca-se paulatinamente para o reconhecimento da possibilidade permanente de uma discordância ética que se legitima cada vez mais, na medida mesma em que se inscreve no debate, pela globalização, o outro, o estranho, o diverso, o oposto. O que faz da flexibilidade a palavra do dia[29] que cada vez mais dilui a esperança de se ter pontos de partida universalmente comuns.
O problema da condição contemporânea de nossa civilização moderna é que ela parou de questionar-se. Questionar as premissas supostamente inquestionáveis do nosso modo de vida é provavelmente o serviço mais urgente que devemos prestar aos nossos companheiros humanos e a nós mesmos. (Questionar essa) família de verdades autoevidentes que servem para explicar o mundo sem precisarem elas mesmas de explicação[30]
Teimar em defender para as teorias morais um caráter apodítico e não retórico parece consistir no esforço em querer impor valores alheios não apenas às idiossincrasias dos discordantes, mas também alheios às outras tantas teorias morais rivais e distintas. É rejeitar o pluralismo que justamente enquanto tal poderia apurar nosso senso crítico[31].
É uma falha fundamental das éticas correntes, que elas sempre vejam como conflito moral fundamental, aquele que se dá entre quem quer se compreender moralmente e aqueles que não querem assim se compreender (o “egoísta”). O conflito moral fundamental no qual propriamente nos encontramos hoje é o que subsiste entre as diferentes concepções de moral. Fundamentar uma concepção de moral não significa apenas fundamentá-la diante do egoísta, mas sobretudo fundamentá-la diante de outras concepções de moral[32]
Ou seja, o problema do caráter supostamente apodítico de uma teoria ética qualquer seria lidar não só com o egoísta desprovido de uma mesma intuição moral, mas antes com as outras tantas concepções teóricas distintas de moralidade e de valor. O caráter normalmente absoluto dos juízos morais perdura tão somente enquanto perdura certos acordos interpessoais a respeito dos valores mais fundamentais. Mas, uma vez contestado, por alguém ou por uma outra perspectiva teórica, o que usualmente ocorre, o recurso ao que Perelman chamou de desqualificação do recalcitrante[33] parece ter sido sempre a saída possível dos imbróglios e da perplexidade das discordâncias em matéria moral. Para Tugendhat, as questões referentes ao lugar de valor dos juízos morais enfrenta o dilema de serem absolutos quando proferidos, mas, ao mesmo tempo, por serem injustificados, tendemos a considerá-los como relativos[34]. Assim, qualificamos absolutamente como má toda forma de tortura, mas desconhecemos fundamentos definitivos para chegar a afirmá-lo. Entre o caráter absoluto de um juízo moral e sua concomitante contingência, Tugendhat vê o dilema fundamental da moral. Significa dizer que ora ajuizamos moralmente de forma absoluta sem que tenhamos razões definitivas para tal, ora reconhecemos a própria impossibilidade de fazê-lo pela completa ausência de fundamentação última. O que parece ter escapado da análise do pensador alemão é o caráter de mediania próprio dos raciocínios dialéticos que não são nem necessários, porque não partem de premissas necessárias, mas também não são relativos ou arbitrários, porque partem dos topoi ou boas opiniões intersubjetivamente aferidas. Apesar de citar o tratado sobre retórica de Artistóteles, onde o Estagirita trata dessas questões, Tugendhat não demonstra ter compreendido bem a proposta aristotélica.
Para Toulmin[35] e Perelman[36] o problema está na concepção prévia que se tem de razão e a ênfase dada a um tipo específico de racionalidade idealizada. Toulmin chama de paradigma analítico[37] essa crença que chegou até nós de que raciocinar é subsumir e encontrar respostas definitivas para os problemas em geral. A preferência tradicional dada aos argumentos analíticos ou apodíticos oculta a campo-dependência das noções[38], tornando mais difícil a discordância que passa a ser considerada como irracional. Quando bem-sucedida, essa retórica que pretende-se não retórica escamoteia o caráter circunscrito das escolhas e das preferências por detrás do “cálculo” de tal forma que todos os seres de razão deveriam aderir às suas conclusões. Ocultar as campo-dependências dos argumentos é ocultar concomitantemente as assimetrias entre os interlocutores que passam a ser manipulados por monólogos pseudodialógicos[39], legitimando a exclusão daquele que pensa de forma distinta, limitando propositadamente o diálogo pela extensão a todas as áreas do saber de uma teoria não retórica da demonstração que se configuraria como autocertificadora de todo discurso. A proposta aqui é justamente inversa, consiste em abandonar o ideal analítico[40] que cisma em identificar validade exclusivamente com a validade formal e reconhecer o caráter essencialmente assimétrico das reflexões em geral. As assimetrias quando reconhecidas enquanto tais exigem uma formatação diferenciada do discurso que preserve, na medida em que se adapta, a equidade das relações entre interlocutores, como quando conversamos com crianças. O problema está na violência das assimetrias não reconhecidas que, ao não se adaptar, maquiam sub repticiamente igualdade e respeito, mas manipulam e desconsideram a realidade do outro. Contra essa possibilidade, a proposta é resgatar a tópica e a retórica aristotélicas que preocupavam-se precipuamente em adaptar-se efetivamente às premissas do interlocutor. Perelman chega a sustentar que retórica é discurso adaptado[41]. Só assim, poderíamos curar a filosofia de uma certa esquizofrenia ou delírio filosófico[42] ao indiscriminadamente pretender, de forma não inocente[43], aplicar critérios analíticos e aretóricos a todas as searas do saber e aos problemas da vida prática.
Fomos, em certa medida, domesticados, docilizados por certos hábitos de inferência que começam costumeiros e se tornam, com o tempo, mandatórios[44] e que hoje deram azo ao despotismo lógico[45] que, quando trazido para o campo ético, mais prejudica que colabora com as reflexões morais críticas. A consideração pelo outro que define a própria retoricidade nos obriga antes a nos interessarmos pelos pontos de partida daquele que nos ouve ou lê e nos obriga a adaptarmos, de forma cada vez mais precisa, os nossos discursos a essas premissas do pensar, sem pretensões universais, mas também, nem por isso, advogando em favor de arbitrariedades, como vimos, mas construindo consensos morais cada vez mais amplos, menos cogentes e mais negociais, menos verticais e muito mais horizontais.
Hoje os padrões e configurações (morais) não são mais dados e menos ainda autoevidentes; eles são muitos, chocando-se entre si e contradizendo-se em seus comandos conflitantes, de tal forma que todos e cada um foram desprovidos de boa parte de seus poderes de coercitivamente compelir e restringir. Os poderes que liquefazem passaram do sistema para a sociedade, da política para as políticas de vida, ou desceram do nível do macro para o do micro do convívio social[46]
Essa ética que nasce das considerações retóricas do pensar é genuinamente uma ética da discordância que vê no desacordo não um escândalo ou uma perplexidade e uma razão suficiente para desqualificar quem pensa diferente, mas antes a única forma de pensar em meio ao pluralismo moral de um mundo globalizado e multicultural onde o dever supremo da moralidade parece consistir agora cada vez mais na obrigação moral de efetivamente adaptar-se às premissas do interlocutor, alterando por completo o foco da especulação teórico-moral propriamente dita para as pessoas concretas a quem são dirigidos os discursos e não a princípios, consequências ou valores. Nesse sentido, uma teoria retórica da moralidade seria a mais humanizada de todas as compreensões morais porque tem por foco o utente da linguagem e seus pontos de partida específicos, tendo como seu único dever fundamental o do diálogo[47]. Não o diálogo monológico da tradição que folcloriza ou considera superstição os pontos de partida alheios, mas antes um diálogo em que se respeita previamente as perspectivas do outro, as inclui realmente, enriquecendo o debate como um todo porque o apreço pelas pessoas, suas idiossincrasias e cosmovisões, é mais caro que o mais preciso de todos os argumentos morais.
2) A Retórica dos Direitos Humanos
Naturalmente, não é nosso propósito aqui traçar os muitos aspectos que podem ser explorados na relação entre a viragem retórica (rhetorical turn) e as diferentes teorias dos direitos humanos[48]. O propósito desse tópico é apenas abandonar uma perspectiva fundacional desses direitos que deposita toda sua esperança de legitimação na busca pelos verdadeiros fundamentos da dignidade humana[49]. Nessa linha de raciocínio, vemos que, iniciando com as idéias de Rousseau, para quem todos nascem iguais, e, sobretudo com as de Kant, para quem são dignos todos os seres racionais, surge, a partir do século XVIII, algo até então inédito na história da humanidade: a aceitação, cada vez mais efetiva, da igualdade e isonomia entre os seres humanos que vai influenciar as principais constituições democráticas do mundo atual. Especialmente depois do último pós-guerra mundial, as nações, em geral, procuraram garantir e acima de tudo estabelecer quais os princípios e valores que estariam para além da capacidade legiferante dos Estados. Nesse sentido, a axiologia, antes banida das discussões jurídicas pela busca do mito da “neutralidade” e da “cientificidade” de cunho tipicamente positivista e iluminista, passa a reaparecer na pesquisa jurídica a partir da segunda metade do século XX.
Entretanto, as diversas tentativas de fundamentação dos direitos humanos estão ou devem estar direta ou indiretamente relacionadas ao respeito efetivo desses mesmos direitos. Não poderia ser diferente. Mais do que procurar encontrar fundamentação adequada para eles, há que se reconhecer a urgência e importância de se tentar construir antes estratégias argumentativas convincentes e sobretudo persuasivas que, longe de se constituírem como absolutas e definitivas, de uma forma ou de outra, contribuam para a efetivação e proteção de todos e, em especial, dos mais fragilizados. Não se trata, portanto, de um problema meramente jurídico, político ou mesmo jusfilosófico, mas retórico-discursivo. A questão, assim, deixa de ser: quais os alicerces mais basilares sobre os quais se deve ancorar o respeito ao direito de ter direitos de todo ser humano para que o tornemos mais aceitável no mundo? E sim: como fazê-lo mais persuasivo? Ou seja, a efetivação dos direitos humanos depende mais da retórica que adotamos do que da busca por fundamentos últimos e definitivos. A famosa declaração proferida por Norberto Bobbio defendendo não ser mais importante buscar fundamentos para esses direitos e sim torná-los efetivamente respeitados no mundo[50] parece ter sido muito mais um desabafo de alguém humanamente cansado de ver serem ratificados tratados e convenções internacionais sem conta sobre o assunto, da matéria ser debatida em simpósios e congressos espalhados pelo mundo, chancelados, muitas vezes, por entidades internacionais de importância indiscutível no cenário mundial e, no entanto, na prática, ainda se constatar o profundo desrespeito massivo à dignidade humana. Contudo, concordamos com Ricardo Lobo Torres[51] quando defende a importância de se perquirir uma legitimação mais apropriada para esses direitos, já que uma vez legitimados, eles não seriam religiosa e solenemente desrespeitados na prática. O problema é, entretanto, reconhecer o caráter retórico dessa legitimação. Ou dito de outra forma: não seria justamente a falta e carência de legitimidade retórica que favorece esse desrespeito? A proposta que Bobbio traz à tona é válida se entendida sob uma ótica autoritária: “Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos…mas sim o modo mais seguro para garanti-los”[52]. Ora se desconhecemos quais os direitos são propriamente humanos e se ignoramos quantos são esses direitos, como podemos aplicá-los senão mediante a força e o arbítrio?
As chamadas “obviedades axiológicas” ou truísmos, como vimos, muitas vezes escondem posturas dogmáticas que resistem como podem contra toda possibilidade de revisão de seus estatutos e de seus fundamentos últimos, o que presta um desserviço ao processo de internacionalização dos direitos humanos, necessariamente fadado a lidar com toda espécie de pluralismos: “Insisto em que a fundamentação não faz nenhuma falta. Os valores éticos básicos são tão óbvios que pertencem à semântica da própria ética”[53]. Claro está que todo recurso à obviedade configura-se hodiernamente obsoleto. Lembra um pouco as chamadas “idéias claras e distintas” cartesianas típicas da modernidade com as quais se garantiria o acesso às verdades das ciências. Dito de outra forma: a única obviedade que pode ser reclamada no contexto atual é a ingenuidade e inadequação do recurso à própria obviedade enquanto critério legitimador do pensamento que se quer a si mesmo como verdadeiro, justo, bom ou, simplesmente, melhor. Não parece razoável, muito menos eficiente, contestar alguém que promove discriminação racial, sexual ou política e, neste sentido, desrespeita os direitos fundamentais alegando para tal “obviedades éticas”. O valor singular e absoluto do ser humano precisa ser defendido a partir de um constructo retórico arrojado, metódico e, sobretudo, intersubjetivamente plausível (para não dizer objetivo), vinculando a solução do problema à necessária adaptação discursiva aos concernidos.
Assim sendo, não se trata, pois, de uma legitimação ou justificação racional que procure as razões últimas, os primeiros fundamentos etc, mas de uma justificação acima de tudo persuasiva, calcada no consenso e na plausibilidade. Como quis o próprio Bobbio num outro momento: “tentarei buscar boas razões para defender a legitimidade do direito em questão para convencer o maior número possível de pessoas”[54]. O jusfilósofo italiano parece ter aqui atrelado a legitimação dos Direitos Humanos à persuasão talis qualis. Que é exatamente o que propomos. A legitimidade retórica depende da permanente adaptação dos discursos que tratam desses direitos aos auditores e, sobretudo, às premissas próprias de cada grupo, formando o que Perelman chamou de comunidade de espíritos[55]. Para este último pensador, procurar fundamentos últimos é não só desaconselhado como arriscado. Segundo o autor do Tratado da Argumentação, corre-se o risco de termos, no âmbito desses direitos, uma nova versão de uma espécie de despotismo esclarecido que autorizaria qualquer país a impor aos outros, mesmo que de forma violenta, o respeito à dignidade das pessoas. O que se configuraria no curioso paradoxo do desrespeito em nome do respeito tão atrelado à noção recente de guerras humanitárias. Antes, defendendo o dever fundamental do diálogo, insiste Perelman na necessidade radical de se encontrar fundamentos suficientes, incontestados, mas não incontestáveis; ensina-nos ele:
A busca de um fundamento absoluto deve ceder a prioridade a uma dialética, na qual os princípios que se elaboram para sistematizar e hierarquizar os direitos humanos, tal como são concebidos, são constantemente cotejados com a experiência moral, com as reações de nossa consciência. A solução dos problemas suscitados por esse cotejo não será nem evidente nem arbitrária: será dada graças a um posicionamento do teórico, que resultará de uma decisão pessoal apresentada, porém, como válida para todas as mentes razoáveis. Essa decisão, não sendo mera conformidade à evidência e não se apresentando como infalível, não se arrisca a fornecer um fundamento a um despotismo esclarecido, que escapa a qualquer controle e a qualquer crítica[56]
3) As Retóricas Canibais e os Direitos Humanos (Universais)
Por retóricas canibais entende-se, como vimos, os discursos que, por desconhecerem ou não reconhecerem os meandros de sua própria retoricidade, pretendem-se aretóricos, incircunscritos e universais e se sentem no direito de serem os únicos a terem direitos (à verdade, ao bem, ao justo, ao mais apropriado, à dignidade etc). Desdenham das verdades do outro que tomam como crendices e superstições infundadas. Em sua arrogância estadunidense e eurocêntrica, ainda que bem intencionada, articulam ainda hoje, segundo uma razão e linguagem hegemônicas, conceitos como pluralismo razoável, universalismo mínimo, situações ideais de fala, razão comunicativa ou consensos intersubjetivos, não coercivos e transcendentais[57] que revelam a profunda crença (dogmática), no fundo, em seus próprios pressupostos. Daí Nietzsche ter tido a coragem de defender que as filosofias são confissões pessoais dos filósofos em suas próprias convicções e que há sempre filosofias por detrás das filosofias[58]. O que nos torna profundamente desconhecedores das razões e cosmovisões de culturas outras ou minoritárias, configurando-se naquilo que Dussel chamou de quase-inteligibilidade e quase-comunicação[59]. Como na imagem do estômago, também de Nietzsche, pretendemos reduzir o múltiplo, o outro, à mesmidade de nós mesmos, simplificando complexidades e, acima de tudo, desprezando diferenças.
Já Perelman sustentava que um discurso com pretensão planetária dirige-se, muitas vezes sem o saber, a um auditório universal idealizado que consistiria numa assembléia hipercrítica composta de mentes razoáveis. Mas, como o pensador polaco-belga chama a atenção, é importante ter em mente sempre que a “universalidade” do que se sustenta é uma questão de direito (quaestio juris) e não uma questão de fato (quaestio facti). Ou seja, é legítimo pretender obter a anuência de todos os seres racionais, mas, na prática, a discordância é sempre uma possibilidade[60]. Caso contrário, imaginando real o que é meramente ideal, o orador ou quem profere/escreve um discurso sentir-se-ia seguro o suficiente para, em nome de suas íntimas convicções, desqualificar os discordantes como não razoáveis.
O auditório universal é constituído por cada qual a partir do que sabe de seus semelhantes, de modo a transcender as poucas oposições de que tem consciência. Assim, cada cultura, cada indivíduo tem sua própria concepção do auditório universal e o estudo dessas variações seria muito instrutivo, pois nos faria reconhecer o que os homens consideraram, no decorrer da história, real, verdadeiro e objetivamente válido.
Se a argumentação dirigida ao auditório universal, e que deveria convencer, não convence todavia a todos, resta sempre o recurso de desqualificar o recalcitrante, considerando-o estúpido ou anormal[61]
Se essa violência já ocorre entre nós há séculos, com o completamente outro, ela se radicaliza e se intensifica pelo completo desprezo e/ou infantilização de seus pontos de partida. As retóricas canibais são, portanto, a completa desqualificação do outro cultural que sequer é considerado capaz de participar de um diálogo intercultural e se vê a si mesmo menor, desprezado e nadificado, canibalizado e já digerido no discurso monocultural do ocidente. Porque, como vimos, foi interpretado como efetivo e positivamente dado o auditório universal idealizado a partir de uma perspectiva cultural específica. A desqualificação do recalcitrante se dá atrelada a uma elitização do auditório que, na medida em que se configura como formado a partir de um saber especializado, é pretensioso, excludente e violento, porque já não dialoga a não ser com os que comungam das mesmas premissas e pressupostos[62].
No fundo, todas as retóricas são, em certa medida, canibais porque, como quis Freud, até nossas células são narcísicas[63]. E é em virtude do nosso narcisismo que canibalizamos ou ansiamos por canibalizar tudo o que não somos. “Toda cultura reivindica o direito de olhar com desdém para o resto”, defendeu o psicanalista[64]. Seja por motivo de raça, classe, origem, credo ou nacionalidade etc., sempre almejamos expandir nossas fronteiras pela fagocitose daquele que é considerado como outro. O pertencimento a um grupo que se reconhece mutuamente (pela raça, classe, origem, credo ou nacionalidade etc.) nos fascina e nos ajuda a minorar aquela ansiedade social que é a essência mesma da consciência[65]. Daí Freud deduzir, brilhantemente, que se por ideal compreendermos a soma de todas as limitações que o ego deve aquiescer[66], é por motivos narcísicos que usufruímos da satisfação própria dos ideais culturais[67]. A compreensão universal e idealizada dos direitos humanos se revela assim narcísica, desenraizada e superficial, ideológica e, desde as origens mais remotas, comprometida com a história e com a cultura de uma pequena parcela do planeta que vê o resto com desdém (the west against the rest), mas que foi arvorada, por uma retórica arretórica bem-sucedida, à representação do próprio ideal de racionalidade, humanidade e civilização encarnadas.
Desta forma, compreende-se como as retóricas canibais, pretensamente universais, são correlatas discursivas atuais das pregações do passado, em geral jesuíticas, aos nativos exotizados que, na condição de despossuídos de verdade e de práticas sociais relevantes, foram assujeitados ao processo de inculturação e homogeneização cultural, produtor de silêncios e de ausências[68]. A assimetria dada traduz a violência que se corporifica no olhar, ao mesmo tempo temeroso e deslumbrado, do nativo. Enquanto este, no passado colonial, afogava o homem branco para saber se seu corpo também apodrecia, aquele organizava comissões para discutir se os nativos também tinham alma. Esse conflito de antropologias pode ser melhor resumido: “enquanto os primeiros (europeus) perguntavam-se se os índios não seriam meros animais, os segundos (nativos) se contentavam em suspeitar que os europeus pudessem ser deuses”[69]. Os reflexos dessa desigualdade e propensão à sujeição do passado ainda ecoam hoje e se fazem ouvir. Como bem defendeu Boaventura de Sousa Santos: “todas as culturas tendem a considerar como universais seus valores fundamentais”[70], mas algumas conseguem impô-los através de retóricas canibais bem sucedidas, mas justamente por isso, violentas e excludentes. Agora excluído e coisificado, o outro cultural nada tem a dizer, nada a contribuir. Tudo que é e representa foi nulificado e subsumido, canibalizado pelo discurso imoderadamente imposto no monólogo pseudo dialógico do imperialismo cultural[71]. O outro agora é, no máximo, espécime a ser estudada, mas em nada capaz de modificar nossa compreensão ocidental e arrogante de mundo.
A ideia de completude está na origem de um excesso de sentido de que parecem enfermar todas as culturas e é por isso que a incompletude é mais facilmente perceptível do exterior, a partir da perspectiva de outra cultura. Aumentar a consciência de incompletude cultural é uma das tarefas prévias à construção de uma concepção emancipadora e multicultural de direitos humanos[72]
Conclusão
Não podemos pensar em direitos humanos sem pensar em emancipação. A imposição universal de valores, legitimada pelo discurso racional, não emancipa, mas homogeneiza culturalmente o planeta a ponto de Vattimo postular que o processo de ocidentalização do mundo está hoje consumado[73]. E, com isso, tornamo-nos menores e produzimos ausências pela permanente canibalização do outro. Como vimos, as pretensões universais dos direitos humanos são extensões grosseiras de nossos próprios pressupostos irrefletidos e de nosso profundo e inconfesso narcisismo. Na lida com o completamente outro, de uma perspectiva reconhecidamente retórica, temos mais chance de perceber a fragilidade e paroquialidade dos nossos próprios pontos de partida e, assim, assumir uma atitude mais modesta diante da dignidade da vida na multiplicidade de suas formas, suscitando diálogos interculturais e horizontais e não monólogos pseudo dialógicos verticais. Só assim podemos ter, num futuro próximo, uma postura que verdadeiramente reverencie o outro em sua outridade, a partir da adoção de um antinarcisismo das variações contínuas e de um humanismo interminável[74], sempre aberto ao novo “humanismo” que a antropologia pode trazer. Também Rorty procurou mostrar que a disputa entre filosofias é, na verdade, disputa entre vocabulários[75]. Não se está aqui disputando verdades, mas o que parece poder funcionar melhor, eliminando humilhações e crueldades. Como vimos, retóricas canibais só o são na mesma medida em que não se reconhecem retóricas. Mas, se o fazem, ou seja, se se convertem em retóricas retóricas, reconhecem, com isso, sua própria incompletude, precariedade e circunscrição, o que as habilita melhor a lidar com o outro cultural. Confessam pra si mesmas todos os dias: “O único fato transcultural é a relatividade de todas as culturas”[76], o que as impede de olhar para as outras culturas com desdém. Como também quis Rorty: “fracassar como poeta é aceitar a descrição que outra pessoa faça de nós, executar um programa previamente preparado, escrever, quando muito, variações elegantes de poemas anteriormente escritos”[77]. As teorias universais dos direitos humanos, em seu narcisismo retórico-canibal, pretendem ser para todos os seres do planeta exatamente isso: vocabulários finais, programas previamente preparados, poemas anteriormente escritos. Levando ao fracasso e ao apequenamento inúmeras perspectivas e compreensões de mundo e do humano. Importa antes, em nome dos direitos humanos, promover a crítica retórica dirigida às retóricas canibais, suscitando e favorecendo a elaboração dos próprios vocabulários, sempre locais e circunscritos, que efetivamente viabilizem permanentemente o devido respeito e a inclusão de todos e de todas.
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Notas de Rodapé
[1] Possui graduação em Direito e Ciências Sociais, mestrado e doutorado em Filosofia. Pós-Doutorado em Filosofia e em Direito. Foi Professor visitante da Université Laval, Québec, Canada e no Massachusetts Institute of Technology – MIT. É professor associado do Departamento de Filosofia da Universidade Federal da Paraíba – UFPB. Leciona na pós-graduação em Filosofia e em Ciências Jurídicas. Contato: nmfmarsillac@gmail.com
[2] BURKE, K., A Rhetoric of Motives, Berkeley, Ed. University of California, 1997, p. 172.
[3] ARISTÓTELES, RET 1359a.
[4] Entende-se aqui por sincericídio o suicídio da fala que não se reconhece condicionada por toda sorte de contingências históricas, culturais e sociais e, nesta mesma medida, pretende-se definitivamente verdadeira, justa ou boa. No fundo das teorias universalistas perdura um sincericídio ou uma retórica arretórica que, como veremos, é a base do que chamamos retóricas canibais.
[5] PERELMAN, C., Retóricas, São Paulo, Ed. Martins Fontes, 1999, Trad. Maria Ermantina Galvão, p. 289.
[6] RORTY, R., Contingência, Ironia e Solidariedade, Lisboa, Editorial Presença, 1992, Trad. Nuno Ferreira da Fonseca, p. 108, in verbis: “chama ‘truísmos’ aquilo a que o metafísico chama ‘intuições’”.
[7] CASTRO, E., Metafísicas Canibais: Elementos para uma Antropologia Pós-Estrutural, São Paulo, Ed. Ubu, 2018, p. 22, in verbis: “qualquer caracterização antropológica que não faça dele (o nativo) um espelho no qual nos reconheçamos”.
[8] RORTY, 1992, p. 105.
[9] RORTY, 1992, p. 108.
[10] NIETZSCHE, F., The Will of Power, New York, Random House, 1967, sec. 608.
[11] KANT, I., Crítica da Razão Pura, Lisboa, Ed. Fundação Calouste Gulbenkian, 1994, Trad. Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão, p. 38. Grifo nosso.
[12] PANIKKAR, R., Seria a Noção de Direitos Humanos um Conceito Ocidental?, in: BALDI, C (Org), Direitos Humanos na Sociedade Cosmopolita, Rio de Janeiro, Ed. Renovar, 2004, p. 216.
[13] Idem, p. 205.
[14] A expressão retórica canibal, aqui trabalhada no último tópico, faz referência ao brilhante livro do professor Eduardo Viveiros de Castro, Metafísicas Canibais, que justamente, na contramão das teorias idealistas e universalistas, prolifera a multiplicidade, Cf. CASTRO, 2018, p. 38 .
[15] SANTOS, B., A Crítica da Razão Indolente: Contra o Desperdício da Experiência, 8a ed., São Paulo, Ed. Cortez, 2011, p. 30.
[16] FOUCAULT, M., As Palavras e as Coisas, São Paulo, Ed. Martins Fontes, 2002, p. 470. Trad. de Salma Tannus.
[17] GADAMER, H., Verdade e Método: Traços Fundamentais de uma Hermenêutica Filosófica, Petrópolis,RJ, Ed. Vozes, 1997, Trad. Flávio Paulo Meurer, p. 397.
[18] NIETZSCHE, F., Para Além do Bem e do Mal: Prelúdio de uma Filosofia do Porvir, São Paulo, Ed. Nova Cultural, 1999, p. 329. Grifo nosso.
[19] KUNDERA, M., A Arte do Romance (apud RORTY, 1992, p. 9).
[20] CASTRO, 2018, p. 22.
[21] HOBSBAWN, E., A Era dos Extremos: O Breve Século XX: 1914-1991, São Paulo, Ed. Companhia das Letras, 1995. Trad. Marcos Santarrita, p. 16.
[22] Cf. RORTY, R., Ensaios sobre Heidegger e Outros, Lisboa, Ed. Instituto Piaget, 1991, Trad. Eugenia Antunes, p. 109.
[23] HABERMAS, J., Pensamento Pós-Metafísico, Rio de Janeiro, Ed. Tempo Brasileiro, 2002, p. 7.
[24] ARISTÓTELES, Top. 100b20.
[25] ARISTÓTELES, Ret, 1359ª.
[26] HABERMAS, 2002, p. 266.
[27] BAUMAN, Z., Globalização: As Consequências Humanas, Rio de Janeiro, Ed. Zahar, 1999, Trad. Marcus Penchel, p. 35.
[28] Idem, p. 7, in verbis: “Globalização é o destino irremediável do mundo”.
[29] BAUMAN, Z., Modernidade Líquida, Rio de Janeiro, Ed. Zahar, 2001, p. 202, Trad. Plínio Dentzien.
[30] BAUMAN, 1999, p. 13.
[31] PERELMAN, C., Império Retórico, Porto, Ed. Asa, 1993, p. 54, Trad. Fernando Trindade e Rui Alexandre Grácio.
[32] TUGENDHAT, E., Lições sobre Ética, Petrópolis, RJ, Ed. Vozes, 1997, p. 27, Trad. do Grupo de Doutorandos do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade do Rio Grande do Sul.
[33] PERELMAN, C., Tratado da Argumentação: A Nova Retórica, São Paulo, Ed. Martins Fontes, 2002, p. 37, Trad. Maria Ermantina Galvão.
[34] TUGENDHAT, 1997, p. 19.
[35] TOULMIN, S., Os Usos do Argumento, São Paulo, Ed. Martins Fontes, 2006, Trad. Reinaldo Guarany.
[36] PERELMAN, Op. Cit, 2002.
[37] TOULMIN, 2006, 225.
[38] Idem, p. 225.
[39] TOULMIN, 2006, p. 265.
[40] TOULMIN, 2006, p. 334.
[41] PERELMAN, 2002, p. 574.
[42] TOULMIN, 2006, 252.
[43] TOULMIN, 2006, p. 266.
[44] TOULMIN, 2006, p. 5.
[45] TOULMIN, 2006, p. 253.
[46] BAUMAN, 2001, p. 15.
[47] PERELMAN, 2002.
[48] MARSILLAC, N., Retórica e Direitos Humanos, Curitiba, Ed. Appris, 2020.
[49] BARRETO, V., Universalismo, Multiculturalismo e Direitos Humanos, in: PINHEIRO, p. , Direitos Humanos no Século XXI, Rio de Janeiro, Ed. IPRI, 2004, p. 383.
[50] “O problema grave de nosso século, com relação aos direitos do homem, não era mais o de fundamentá-los, e sim de protegê-los” BOBBIO, N., A Era dos Direitos, Rio de Janeiro, Ed. Campus, 1992, p. 25.
[51] TORRES, A Legitimação dos Direitos Humanos, Rio de Janeiro, Ed. Renovar, 2002, p. 3, in verbis: “Se por um lado a problemática da eficácia é importante, nem por isso pode se sobrepor ou levar ao esquecimento a da legitimação; muito pelo contrário, a resposta ao problema da justificação projeta consequências jusfundamentais na prática constitucional”.
[52] BOBBIO, 1992, p. 24.
[53] CAMPS, V., Paradojos del Individualismo, Barcelona, Ed. Crítica, 1993, p. 5, Grifo Nosso.
[54] BOBBIO, 1992, p. 15.
[55] MARSILLAC, N., Direitos Humanos e Comunidade Internacional de Espíritos, in: Revista Ethica, v. 14, n. 1, 2007, pp. 87-105.
[56] PERELMAN, C., É Possível Fundamentar os Direitos do Homem?, in: PERELMAN, C., Ética e Direito, São Paulo, Ed. Martins Fontes, 1996, p. 398-399, Trad. Maria Ermantina Galvão.
[57] Cf. RAWLS, J., O Direito dos Povos, São Paulo, Ed. Martins Fontes, 2004, trad. de Luiz Carlos Borges; HABERMAS, J., O Discurso Filosófico da Modernidade, São Paulo, Ed. Martins Fontes, 2000, Trad. Luis Sérgio Repa; APEL, K., Transformação da Filosofia 2: O A Priori da Comunidade de Comunicação, São Paulo, 2000, Trad. Paulo Astor Soethe.
[58] NIETZSCHE, 1999, p. 336, in verbis: “não cavou mais fundo e pôs de lado a enxada – há também algo de desconfiado nisso”.
[59] DUSSEL, E., Filosofia da Libertação: Crítica à Ideologia da Exclusão, São Paulo, Ed. Paulus, 1995, Trad. de Georges Marssiati, p. 55.
[60] PERELMAN, 2002, p. 35, in verbis: “O acordo do auditório universal não é, portanto, uma questão de fato, mas de direito”.
[61] Idem, p. 37. Grifo nosso..
[62] PERELMAN, 2002, p. 37.
[63] FREUD, S., Além do Princípio do Prazer, Rio de Janeiro, Ed. Imago, 1969a Trad. de Jayme Salomão, p. 70.
[64] FREUD, S., O Futuro de uma Ilusão, Rio de Janeiro, Ed. Imago, 1969b Trad. de Jayme Salomão, p. 24.
[65] FREUD, S., Psicologia de Grupo e a Análise do Eu, Rio de Janeiro, Ed. Imago, 1969c Trad. de Jayme Salomão, p. 98.
[66] Idem, p. 166.
[67] FREUD, S., O Futuro de uma Ilusão, Rio de Janeiro, Ed. Imago, 1969, Trad. de Jayme Salomão, p. 24.
[68] SANTOS, 2011, p. 30.
[69] CASTRO, 2018, p. 36.
[70] SANTOS, B., A Gramática do Tempo: Para uma Nova Cultura Política, São Paulo, Ed. Cortez, 2010, p. 443.
[71] Idem, p. 455.
[72] Ibidem, p. 446.
[73] VATTIMO, G., O Fim da Modernidade: Niilismo e Hermenêutica na Cultura Pós-Moderna, São Paulo, Ed. Martins Fontes, 2002, Trad. de Eduardo Brandão, p. 155.
[74] CASTRO, 2018, p. 28.
[75] RORTY, 1992, p. 30.
[76] SANTOS, 2010, p. 442.
[77] Idem, p. 53.