Reflexões acerca das relações de poder e a guerra entre Rússia e Ucrânia: autoridade, liderança e detentor do poder. A pessoa humana versus a pessoa indivíduo

Reflections about power relations and the russian-ukrainian war: authority, leadership and possessor of power. The human person versus the individual person

DOI: 10.19135/revista.consinter.00016.24

Recebido/Received 25/04/2022– Aprovado/Approved 16/01/2023

Desirée Garção Puosso1 – https://orcid.org/0000-0001-9292-7353

Carlos Roberto Husek2 – https://orcid.org/0000-0003-2369-6349



Resumo

Vivemos uma crise de autoridade, apresentando-se alternadamente ao redor do mundo, ora em excesso, ora em ausência. A autoridade é comumente confundida com alguma forma de poder ou violência, visto que ela sempre exige obediência. O presente artigo visa elucidar essa confusão através das recentes atitudes que vem sendo tomadas na guerra entre Rússia e Ucrânia. Contudo, a autoridade exclui meios externos de coerção; onde a força ou a violência é usada, a autoridade em si mesma fracassou. A violência deve ser a ultima ratio nas relações entre nações e, das ações domésticas, a mais vergonhosa, sendo considerada sempre a característica saliente da tirania. O presente estudo demonstrará que a polarização extrema, fenômeno mundial, desdobra-se e influencia terríveis atos, dentre eles, a culminância da guerra entre Rússia e Ucrânia, o que somente comprova o quanto o sectarismo têm enfraquecido as democracias ao redor do mundo. Pode-se mesmo dizer que as numerosas oscilações na opinião pública, que há mais de cento e cinquenta anos têm balançado a intervalos regulares de um clima liberal a outro conservador, e de volta para outro mais liberal, resultaram somente em um maior solapamento de ambas, destruindo o significado político de ambas, a partir da polarização política que vivenciamos atualmente e, em especial, desse clima de nostalgia da Guerra Fria que se têm visto.

Palavras-chave: Poder. Guerra. Rússia. Ucrânia. Autoridade.



Abstract

We are living through a crisis of authority, alternately presenting itself around the world, sometimes in excess and sometimes in absence. Authority is commonly confused with some form of power or violence, since it always demands obedience. This article aims to elucidate this confusion through the recent attitudes that have been taken in the war between Russia and Ukraine. However, authority excludes external means of coercion; where force or violence is used, authority itself has failed. Violence should be the ultima ratio in relations between nations, and of domestic actions the most shameful, and is always considered the salient feature of tyranny. This study will demonstrate that extreme polarization, a worldwide phenomenon, unfolds and influences terrible acts, among them, the culmination of the war between Russia and Ukraine, which only proves how much sectarianism has weakened democracies around the world. One might even say that the numerous swings in public opinion, which for more than one hundred and fifty years have swung at regular intervals from one liberal mood to another conservative one, and back again to a more liberal one, have only resulted in a further undermining of both, blurring the distinctive lines between authority and freedom, and ultimately destroying the political significance of both, from the political polarization we are currently experiencing, and especially from this climate of Cold War nostalgia we have seen.

Keywords: Power. War. Russia. Ukraine. Authority.

Sumário: 1.Introdução; 2. Síntese da guerra entre Ucrânia e Rússia; 3. Relações de poder e o governo russo: autoridade e autoritarismo no pensamento arendtiano; 4 Sociedade sectária e a nostalgia da Guerra Fria: liberais versus conservadores; 5 Democracia e os conceitos de pessoa humana versus pessoa indivíduo: Direito contra Lei; 5.1 Conceito de dignidade da pessoa humana (complexo de direitos e deveres fundamentais e participação ativa e corresponsável); 5.2 A relação da democracia com conceitos de detentor do poder, relações de poder, dominador e dominado para Carl Schmitt; 6 Considerações finais; 7 Referências.

Summary: 1. Introduction; 2 Overview of the war between Ukraine and Russia; 3 Power relations and the Russian government: authority and authoritarianism in Arendtian thought; 4 Sectarian society and Cold War nostalgia: liberals versus conservatives; 5 Democracy and the concepts of human person versus individual person: Law versus Legislation; 5.1 Concept of human person dignity (complex of fundamental rights and duties and active and co-responsible participation); 5.2 The relation of democracy with concepts of power holder, power relations, dominator and dominated for Carl Schmitt; 6 Final considerations; 7 References.

1 INTRODUÇÃO

A priori, cumpre trazer o conceito de palavras precípuas que serão empregadas no deslinde do presente. Nesse sentido, temos no dicionário jurídico de Maria Helena Diniz (2008, p. 683) o conceito etimológico da expressão “poder legal” segundo a teoria geral do direito, que significa a “capacidade civil, jurídica ou política de uma pessoa como sujeito de direito”. Disto, abstrai-se que o conceito de poder está muito ligado à capacidade das pessoas e ao fato de deterem direitos e deveres.

Há também no dicionário jurídico o conceito etimológico da palavra “poder” tida unicamente, donde se retiram vários significados, um deles, o de Miguel Reale, que enxerga o poder como a “expressão de uma unidade social que se coloca acima dos indivíduos ou de outras unidades sociais particulares” (DINIZ, p. 680).

Curiosamente no mesmo dicionário encontramos a palavra liderança como sinônimo de poder.

Seguindo a lógica conceitual, há que se refletir principalmente sobre autoridade, objeto central de análise dessa pesquisa.

Desta feita, do ponto de vista da ciência política, autoridade é o “poder que, pela sua legitimidade ou legalidade, deve ser obedecido pelos cidadãos”. E do ponto de vista da teoria geral do direito, pode-se dizer que é “a) Pessoa ou texto científico-jurídico que se invocam para reforçar uma opinião; b) pessoa que tem renome ou prestígio intelectual; c) força obrigatória de um ato emanado pelo poder competente” (DINIZ, p. 385).

Não obstante, muito têm se notado que a palavra “autoridade” é geralmente empregada pelas pessoas leigas com uma conotação negativa, tendo-se criado um estigma de que autoridade é algo ruim. Conquanto, a partir dessa pesquisa, resta destacar que a etimologia da palavra nos conduz a crer que ela está diretamente ligada à legitimidade e legalidade, ficando evidente que o que deve ser interpretado como negativo é o abuso da autoridade ou o autoritarismo e não a autoridade em si.

Outro aspecto curioso desta conceituação é o de que a autoridade não precisa ser necessariamente exercida única e exclusivamente por um ser humano, mas também pela lei.

Retomando a questão do autoritarismo, entende-se o mesmo como “sistema político que privilegia a autoridade governamental, concentrando o poder político em uma só pessoa ou órgão, deixando as instituições representativas em plano secundário” (ARENDT, 2014, p. 387). É o que temos visto representativamente bem elucidado nas atitudes de Vladimir Putin, atual presidente da Rússia, que ocupa há dez anos o segundo mandato, questões essas que serão melhor introduzidas no próximo capítulo.

Observa-se que o autoritarismo está muito ligado a privilégios, sendo o privilégio, na grande maioria dos casos, algo extremamente negativo, assim como o excesso, haja vista o próprio excesso da autoridade.

No entanto, a ausência total de autoridade também traz aspectos negativos para a vida em sociedade e para o bem-estar social.

A partir disto, ressaltamos que para Aristóteles, a precípua finalidade da vida humana é encontrar a felicidade e para que isso aconteça, precisamos viver racionalmente, e viver racionalmente significa viver segundo as virtudes, no entanto, a virtude é encontrada no meio termo entre ações opostas, entre o excesso e a deficiência.

A virtude irá depender de um julgamento por força da reta razão, para repudiar o excesso e alcançar o meio termo. A virtude não é inata ao homem, mas é através da prática, do hábito, da educação, que é possível atingi-la, podendo, assim, o homem cumprir o ciclo da vida com ética e honra.

Segundo Aristóteles (2009, p. 49), “o excesso e o defeito são elementos da perversão e a qualidade do meio é o elemento integrante da excelência”.

Tiramos de Ética a Nicômaco – Livro II a lição de que devemos agir observando a prudência e a moderação para que não venhamos a praticar excessos. Pois, tanto a deficiência como o excesso destroem a força da sua eficácia.

O filósofo afirma que “Por isso, quem visa atingir o meio deve primeiro afastar-se mais do contrário. (...) Dos extremos, um é mais errado do que o outro. Uma vez, então, que é tão difícil encontrar o meio, diz-se que se deve escolher o menor dos males” (ARISTÓTELES, p. 55).

Sobre as ações humanas é importante ressaltar que:

1) A excelência ética é uma disposição intermédia e de que modo assim é; 2) depois, também, que a disposição intermédia está entre duas disposições perversas, uma segundo o excesso, outra segundo o defeito; 3) finalmente, que a disposição intermédia é assim por visar alcançar o meio tanto nas afecções como nas ações. É por isso que tentar encontrar o meio é uma tarefa séria. É trabalhoso encontrar o meio em qualquer coisa, tal como encontrar o meio do círculo não é para todos, mas só para quem sabe (ARISTÓTELES, p. 54).

Podemos trazer as lições de Aristóteles para a reflexão quanto a nostalgia da polarização mundial que temos vivido, representada através das ações de líderes internacionais, como Vladimir Putin, movimentos antiglobalização e a própria ideologia política levada aos extremos pelas pessoas, sejam elas conservadoras ou liberais (ressalte-se o emprego desses dois termos deve ser interpretado sob o conceito arendtiano).

Alternância de ideologias no poder faz parte de uma saudável democracia, mas é preciso balizar o que de fato seria uma democracia saudável e relembrar as lições de Aristóteles, para que se afaste dos extremos (tanto os excessos como as faltas podem conter vícios), bem como a autoridade não pode ser confundida com autoritarismo.

O presente artigo visa elucidar essa confusão através das recentes atitudes que vem sendo tomadas na guerra entre Rússia e Ucrânia, demonstrando que a polarização extrema, fenômeno mundial, desdobra-se e influencia terríveis atos, dentre eles, a culminância dessa guerra, o que somente comprova o quanto o sectarismo têm enfraquecido as democracias ao redor do mundo.

Feitas essas considerações iniciais, importante ressaltar que, com o fito de debater os temas atinentes a crise de autoridade, bem como para trazer o conceito de uma saudável democracia, indispensável para os direitos humanos, o que se encontra em crise no atual governo Russo, desembocando numa grande guerra contra a Ucrânia, será utilizado no presente artigo o método exploratório, a partir da pesquisa bibliográfica.

2 SÍNTESE DA GUERRA ENTRE UCRÂNIA E RÚSSIA

Cabe para melhor situar, primeiro trazer uma síntese acerca do conflito que se instaurou entre Rússia e Ucrânia.

Nessa toada, temos que do ponto de vista do governante Russo, Rússia e Ucrânia são uma só coisa, indissociáveis. Inclusive, Vladimir Putin, costuma citar a origem compartilhada de russos, ucranianos e bielorrussos, no Estado medieval de Kiev Rus, fundado no século IX, como prova de que esses povos são indissociáveis, mas ucranianos argumentam que a origem comum não se sobrepõe aos séculos em que a identidade ucraniana se desenvolveu de forma independente, incluindo a invasão por diferentes povos e desenvolvimento de idioma e cultura próprios.

Rússia e Ucrânia pertenciam a União das Repúblicas Soviéticas e segundo o que demonstra Putin, a Ucrânia nunca deveria ter tido autonomia, não a compreendendo como um povo diferente.

Em síntese, as principais razões apontadas para a invasão ocorrida em 24 de fevereiro de 2022 se dão devido a contestação ao direito da Ucrânia à soberania independente da Rússia e o antigo desejo de Vladimir Putin em restabelecer a zona de influência da União Soviética, bem como, a expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) pelo Leste Europeu, tendo recentemente a possibilidade de adesão da Ucrânia à essa aliança militar, o que teria sido o estopim.

A OTAN é a aliança militar de trinta países, que se expandiu pelo Leste Europeu, incluindo hoje catorze países do ex-bloco comunista.

Putin faz uma acusação muito séria, no entanto, não apresenta provas, de que o governo ucraniano teria causado um genocídio contra ucranianos de origem étnica russa que vivem nas regiões separatistas de Donetsk e Luhansk. Ao que tudo indica a alegação é apenas mais um dos subterfúgios para a invasão se concretizar.

Devido a isso, no último dia 26 de fevereiro de 2022, a Ucrânia submeteu diante da Corte Internacional de Justiça (CIJ) um application relativo à interpretação, aplicação e cumprimento da Convenção sobre a Prevenção e a Punição do Crime de Genocídio de 1948, instaurando, assim, oficialmente, diante da Corte contra a Federação Russa. Os pedidos ucranianos se baseiam no fato de que a Rússia estaria ilegalmente justificando a sua operação militar em território ucraniano nesse genocídio que in tese estaria sendo realizado por parte deste país em Luhansk e Donetsk, duas províncias que foram reconhecidas pela Rússia como Repúblicas independentes em 21 de fevereiro de 20223.

Putin de igual maneira alega que a invasão tenta desmilitarizar e expurgar movimentos neonazistas na Ucrânia, provavelmente a fim de conquistar a opinião pública.

De fato, na Ucrânia há alguns grupos de extrema direita de cunho neonazista, como o Batalhão de Azov4 e que já deveriam ter sido combatidos pelas autoridades públicas da Ucrânia, no entanto, incogitável que a Rússia infrinja a soberania da Ucrânia para tentar solucionar a questão, como tem alegado, em especial por intervenção violenta, pois conforme lições de Hannah Arendt (2014), a violência deve ser a ultima ratio nas relações entre nações e, das ações domésticas, a mais vergonhosa.

De outra monta, é sabido que na Rússia de igual maneira há células de grupos neonazistas russos, infiltrados no governo, e se o governante Russo luta contra a bandeira do nazismo, deveria se preocupar primeiro com o próprio país, concentrando seus esforços nesse sentido, o que faz com que caia por terra o argumento que é utilizado provavelmente de forma pretenciosa pelo governante Russo, que também é leniente e se utiliza quando necessário de grupos extremistas neonazistas. Inclusive muito tem se falado na mídia nacional e internacional sobre o Grupo Wagner, composto por neonazistas e mercenários russos na invasão da Ucrânia, com o aval do governo russo5.

Por outro lado, a Ucrânia e outros observadores veem na guerra uma tentativa de a Rússia restabelecer a zona de controle e influência da antiga União Soviética, algo visto como desrespeito à soberania da Ucrânia, que deveria ter o direito de decidir seu destino, sua ideologia e suas alianças, ou seja, no fundo, a guerra é movida por questão ideológica, representando cada país ideologias entendidas como antagônicas.

Em relação ao controverso líder Vladimir Putin, que atua há vinte e dois anos – em junho/julho de 2020 foi realizada uma consulta popular que admitiu a alteração da Constituição viabilizando que concorra a mais dois mandatos, permanecendo no poder até 2036 – com mão de ferro, relativo carisma, temos que, há denúncias que ele coíbe a imprensa e seus adversários, trava discursos que causa incômodo no resto do mundo, fomenta políticas homofóbicas, ou seja, confunde os conceitos de autoridade e autoritarismo em seu modus operandi e na forma de governar, no entanto, alçou altos níveis de popularidade internamente, em que pese haja grupos que há anos pedem mudanças na Rússia.

Nesse sentido, cabe uma rememoração no sentido de que com a derrocada da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) culminou em um processo de transição de regime, no qual houve a tentativa de se instaurar um regime democrático no país em antítese do que ocorria até então, no entanto, foi se consolidando um autoritarismo pós-soviético.

Desta feita, segundo Raquel Cavalcanti Ramos Machado6, Democracias não são situações consolidadas de determinados governos; requerem esforço contínuo, local e internacional/global para defesa da liberdade e da paz.

Assim, variadas e complexas causas levaram à guerra entre Ucrânia e Rússia, algumas anunciadas pelos próprios governos, outras mascaradas. Os motivos da guerra têm sido vastamente discutidos, assim como a natureza, a validade e a eficácia das sanções aplicadas à Rússia pelos países não envolvidos no conflito, no entanto, pouco se discute sobre o fato de que as razões para a guerra ultrapassam os conflitos de geopolítica e relacionam-se diretamente ao avanço antidemocrático na Rússia, bem como a crise de autoridade que vem vivenciando o mundo há muitos tempos. Assunto esse, que é tema central no presente artigo.

Assim, grave passo histórico de retrocesso foi dado pela Rússia rumo ao autoritarismo, na contramão direta do compromisso global com a democracia e liberdade, assumido inclusive através de inúmeras cartas internacionais preocupadas com a liberdade e a democracia, que passou a ser o regime de governo incentivado no âmbito das organizações internacionais, havendo após a Segunda Guerra Mundial um maior compromisso e engajamento universal com a dignidade do ser humano. A Rússia, portanto, poderia ter sido sujeita a sanções muito antes, devido ao caminho antidemocrático que vinha tomando.

Diante dos conceitos de liberdade e democracia, importante se faz trazer uma reflexão mais aprofundada sobre esses temas, o que desemboca na questão da atual crise de autoridade que se vê estampada inclusive na guerra entre Rússia e Ucrânia, que se discutirá a seguir.

3 RELAÇÕES DE PODER E O GOVERNO RUSSO: AUTORIDADE E AUTORITARISMO NO PENSAMENTO ARENDTIANO

Nesse diapasão, e tendo em vista o tema ora tradado, refletimos que em relação à autoridade, a lógica de Aristóteles pode ser muito bem utilizada, sendo que há que se ter equilíbrio, pois sua ausência é também tida como um vício e ao que nos parece cada vez mais temos presenciado essa falta de autoridade em alguns locais, seja de agentes públicos, das famílias ou das instituições, inclusive de ensino.

Essa crise de autoridade, apresentando-se alternadamente ao redor do mundo, ora em excesso, ora em ausência, é brilhantemente explicada por Hannah Arendt na obra Entre o Passado e o Futuro, conforme se verificou através da pesquisa (ARENDT, 2014).

A pensadora ressalta que o sintoma mais importante dessa crise é o fato dela ter se espalhado nas áreas pré-políticas tais como a criação dos filhos e a educação.

Para Hannah Arendt (p. 128):

(...) onde a autoridade no sentido mais lato sempre fora aceita como uma necessidade natural, requerida obviamente tanto por necessidades naturais, o desamparo da criança, como por necessidade política, a continuidade de uma civilização estabelecida que somente pode ser garantida se os que são recém-chegados por nascimento forem guiados através de um mundo preestabelecido no qual nasceram como estrangeiros.

Não é incomum atualmente termos notícias de alunos que agridem de forma física e psicológica o professor. Donde se observa uma inversão de papéis, sendo que no passado, o professor abusava da autoridade e do poder em sala de aula e atualmente se vê agredido pelo aluno, estando totalmente destituído de qualquer autoridade. E, a partir disto, recordamos novamente a lição do filósofo grego Aristóteles sobre a importância de se encontrar o meio termo entre ações opostas.

Ainda nesse sentido, Arendt (p. 129) destaca que a autoridade é muito confundida com alguma forma de poder ou violência, “visto que a autoridade sempre exige obediência, ela é comumente confundida como alguma forma de poder ou violência. Contudo, a autoridade exclui meios externos de coerção; onde a força é usada, a autoridade em si mesmo fracassou”.

A pensadora esclarece que quando a força é utilizada pelo detentor do poder (governante por exemplo) é porque a autoridade fracassou. A autoridade envolve obediência e, no entanto, exclui coerção, pois quando ocorre o emprego da força, da violência, não existe autoridade. “Por outro lado, por envolver obediência, a autoridade se situa no campo da hierarquia e, consequentemente, exclui a persuasão igualitária que anima o diálogo político” (ARENDT, 2014, p. 23).

Pelo princípio da soberania do direito internacional, o governante Russo não tem autoridade sobre o povo ucraniano e nem sobre o governo da Ucrânia, a ponto de não ter poder decisório sobre o ingresso ou não da Ucrânia na OTAN, muito menos emancipar aqueles territórios ucranianos que se identificam como nacionais russos ou tomar qualquer outra decisão relacionada aos argumentos que se têm utilizado para invadir a Ucrânia. Diante disto, utiliza-se o governo de Vladimir Putin dos meios de coerção e de matança, apelando para esses recursos proporcionados pela guerra.

Num determinado momento, o processo político, qual seja, processo eleitoral, exige uma escolha entre vários argumentos. Este momento, que é então o momento de poder (aqui no caso o poder do povo), resulta do agir em conjunto que, no entanto, requer, para ser estável, legitimidade; o que a política faz é acrescentar, através dos feitos e acontecimentos, importância à fundação da comunidade política e vida às suas instituições. “É por isso que em Roma o poder estava com o povo, mas a autoridade residia no Senado, dotado de gravitas e incumbido de zelar pela continuidade da fundação de Roma” (ARENDT, 2014, p. 23). Portanto, o poder numa democracia emana do povo, no entanto, a autoridade quem detém são os governantes.

Na Rússia, além da autoridade, que comumente pertence ao governante, vemos que Putin aparentemente quer também o poder (em excesso), infringindo os mais caros princípios do direito internacional público, para citar três que bem elucidam, o da Autodeterminação dos Povos; Igualdade soberana dos Estados e Solução pacífica de controvérsias.

A violência é, tradicionalmente, a ultima ratio nas relações entre nações e, “das ações domésticas, a mais vergonhosa, sendo considerada sempre a característica saliente da tirania” (ARENDT, p. 04). Um governante que se utiliza de violência por motivos que não sejam de segurança nacional, por exemplo, mas por razões tão somente sórdidas, são considerados como tiranos no pensamento arendtiano. Não fosse assim, não haveria os freios sociais proporcionados pela Lei e retornaríamos ao estado natural de todos contra todos citado por Hobbes. Viveríamos em plena barbárie, onde uma nação busca aniquilar a outra, vencendo os mais fortes e/ou poderosos.

Para Hannah Arendt (p. 49):

(As poucas tentativas de salvar a violência do opróbrio, principalmente por parte de Maquiavel e de Hobbes, são de grande relevância para o problema do poder e extremamente esclarecedoras para a antiga confusão de poder com violência, mas exerceram influência notavelmente diminuta sobre a tradição de pensamento político anterior à de nossa própria época). Para Marx, pelo contrário, a violência, ou antes a posse de meios de violência, é o elemento constituinte de todas as formas de governo; o Estado é o instrumento da classe dominante por meio do qual ela oprime e explora, e toda a esfera da ação política é caracterizada pelo uso da violência.

Hannah Arendt (p. 129) esclarece que se a autoridade deve ter uma definição, deve ser, então, tanto em contraposição à coerção pela força como à persuasão através de argumentos, pois destaca que “a relação de autoridade entre o que manda e o que obedece não se assenta nem na razão comum nem no poder do que manda”, isto quando se discute sobre o enfoque do campo do direito interno, pois não deve um governante querer determinar as decisões de outro Estado nação, e ainda afirma Arendt que o que eles (quem manda e quem obedece) tem em comum é a própria hierarquia, cujo direito e legitimidade ambos reconhecem e na qual ambos têm lugar estável predeterminado, sendo este um dos aspectos do seu conceito de autoridade de origem platônica.

No entanto, mais uma vez reiteramos, autoridade e hierarquia não devem ser confundidas com autoritarismo ou violência, confusão comumente feita no período da Guerra Fria e perpetrada pelos regimes ditatoriais que foram instaurados ao redor do mundo neste período, inclusive clima do qual aparentemente muitos governantes atualmente sentem nostalgia (sejam eles de extrema esquerda ou extrema direita).

4 SOCIEDADE SECTÁRIA E A NOSTALGIA DA GUERRA FRIA: LIBERAIS VERSUS CONSERVADORES

Como já trazido anteriormente, vivemos uma crise de autoridade, apresentando-se alternadamente ao redor do mundo, ora em excesso, ora em ausência (ARENDT, 2014).

Hannah Arendt discorre sobre a polarização, fato importante de ser trazido, haja vista o crescente sectarismo presente na sociedade na qual vivemos.

Pode-se mesmo dizer que as numerosas oscilações na opinião pública, que há mais de cento e cinquenta anos têm balançado a intervalos regulares de um clima liberal radical a outro conservador radical, e de volta para outro mais liberal, resultaram somente em um maior solapamento de ambas, borrando as linhas distintivas entre autoridade e liberdade e, por fim, destruindo o significado político de ambas, a partir da polarização política e, em especial, desse clima de nostalgia da Guerra Fria que se têm vivenciado (ARENDT, 2014).

Nesse sentido, tanto o liberalismo quanto o conservadorismo (expressões empregadas no contexto da obra de Arendt) não nos ajudam quando tentamos aplicar suas teorias às formas e instituições políticas factualmente existentes, dificilmente se pode duvidar de que essas asserções gerais comportam grande plausibilidade (ARENDT, 2014).

Diante disto, Arendt (p. 137) esclarece que: “O liberalismo, dissemos, mede um processo de refluxo da liberdade, enquanto o conservadorismo mede um processo de refluxo da autoridade; ambos denominam de totalitarismo o resultado final esperado e vêem tendências totalitárias onde quer que um ou outro esteja presente”.

A partir desta reflexão, tiramos a ideia de que a opinião pública têm balançado entre intervalos de um extremo a outro, ora com excesso de liberdade, ora com excesso de autoridade, o que claramente seriam considerados dois vícios opostos pela ética aristotélica, no entanto, dois lados da mesma moeda; onde não se tem encontrado o equilíbrio entre essas duas forças.

Vejamos a Ucrânia que tem uma parte da sua população civil alinhada com a extrema direita, inclusive a grupos neonazistas, ao passo em que a Rússia tenta retornar aos moldes da União das Repúblicas Soviéticas, no entanto, ambas as situações movidas pelo excesso de conservadorismo e liberdade em escassez.

Essa polarização extrema, fenômeno mundial, desdobra-se e influencia terríveis atos, dentre eles, a culminância da guerra entre Rússia e Ucrânia, o que somente comprova o quanto o sectarismo têm enfraquecido as democracias ao redor do mundo.

Além disto, patente que o governante russo aparenta nunca ter se conformado com o fato de a Ucrânia não ser mais uma das Repúblicas Soviéticas, detendo agora de autonomia e, principalmente, soberania, com idioma própria, corpo político apartado etc. Vemos que ele não entende os ucranianos como um povo diferente.

Na visão do governante russo, Rússia e Ucrânia constituem uma coisa só, tanto é que costuma citar a origem compartilhada de russos, ucranianos e bielorrussos, no Estado medieval de Kiev Rus, fundado no século IX, como prova de que esses povos são indissociáveis, mas ucranianos argumentam que a origem comum não se sobrepõe aos séculos em que a identidade ucraniana se desenvolveu de forma independente, incluindo a invasão por diferentes povos e desenvolvimento de idioma próprio.

Ainda quanto a guerra ideológica posta a partir da Guerra Fria e ao que tudo indica presente até os dias atuais, tanto o liberalismo quanto o conservadorismo nasceram nesse clima de opinião pública violentamente oscilante, e ligando-se um ao outro, não apenas porque um deles perderia sua própria essência sem a presença de oponente no campo da teoria e da ideologia, mas também “por se preocuparem ambos fundamentalmente com a restauração, seja da liberdade, da autoridade ou do relacionamento entre ambas, à sua posição tradicional” (ARENDT, p. 138).

Ainda segundo Hannah Arendt (p. 138):

E nesse sentido que eles formam as duas faces da mesma moeda, exatamente como suas ideologias progresso-ou-decadência correspondem às duas direções possíveis do processo histórico como tal; caso admitamos, como ambos o fazem, que existe algo de semelhante a um processo histórico com uma direção definível e um fim predizível, obviamente ele nos pode conduzir somente ao paraíso ou ao inferno.

Se olharmos as afirmações conflitantes de conservadores e liberais com olhos imparciais veremos com mais facilidade que estamos de fato em confronto com um simultâneo retrocesso tanto da liberdade como da autoridade no mundo moderno (ARENDT, 2014).

No que diz respeito a esses processos:

Pode-se mesmo dizer que as numerosas oscilações na opinião pública, que há mais de cento e cinquenta anos têm balançado a intervalos regulares de um extremo ao outro, de um clima liberal a outro conservado, e de volta para outro mais liberal, tentado em certas ocasiões reafirmar a autoridade e, em outras, reafirmar a liberdade, resultaram somente em um maior solapamento de ambas, confundindo os problemas, borrando as linhas distintivas entre autoridade e liberdade e, por fim, destruindo o significado político de ambas (ARENDT, p. 138).

Seguindo com a questão atinente a liberdade, destacamos que o pensamento arendtiano entende que o objetivo da política é a liberdade e a meta é a paz, ao contrário do que se têm visto na política internacional adotada por muitos países, inclusive pela Rússia, objeto de estudos do presente.

Nesse toada, a autora explica que o fenômeno da liberdade não surge absolutamente na esfera do pensamento, que nem a liberdade nem o seu contrário são vivenciados no diálogo comigo mesmo no decurso do qual emergem as grandes questões filosóficas e metafísicas, destorceu, em vez de esclarecer, a própria ideia de liberdade, tal como ela é dada na experiência humana, ao transpô-la de seu campo original, o âmbito da Política e dos problemas humanos em geral, para um domínio interno, a vontade, onde ela seria aberta à autoinspeção (ARENDT, 2014).

Para a autora (p. 192) “o campo em que a liberdade sempre foi conhecida, não como um problema, é claro, mas como um fato da vida cotidiana, é o âmbito da política”.

Ainda nesse sentido:

A liberdade, além disso não é apenas um dos inúmeros problemas e fenômenos da esfera política propriamente dita, tais como a justiça, o poder ou a igualdade; a liberdade e, que só raramente – em épocas de crise ou de revolução – se torna o alvo direto da ação política, é na verdade o motivo por que os homens convivem politicamente organizados. Sem ela, a vida política como tal seria destituída de significado. A raison d’être da política é a liberdade, e seu domínio de experiência é a ação (ARENDT, p. 192).

A liberdade necessita, além da mera liberação, da companhia de outros homens que estejam no mesmo estado, e “também de um espaço público comum para encontrá-los – um mundo politicamente organizado, em outras palavras, no qual cada homem livre poderia inserir-se por palavras e feitos” (ARENDT, p. 194).

Esse mesmo raciocínio, quando levado ao âmbito internacional, leva-nos a conclusão de que seriam os fóruns internacionais e a Organização das Nações Unidas (ONU) os melhores ambientes enquanto espaços públicos para a discussão do direito, das ideias, formando, assim, um mundo um pouco mais politicamente organizado e menos hostil, buscando-se, com isto, atender as normativas de direito internacional público e, principalmente, a multipolaridade do mundo, visto que o fenômeno da globalização pós queda do Muro de Berlim é irreversível, sendo no mínimo reacionário se insurgir contra isto.

Esse exercício de democracia e espaços políticos ativos são precípuos até por uma questão de sobrevivência, visto que o fanatismo, através de poderosas armas nucleares de domínio das grandes potências globais são capazes de destruir toda a humanidade.

5 DEMOCRACIA E OS CONCEITOS DE PESSOA HUMANA VERSUS PESSOA INDIVÍDUO: DIREITO CONTRA LEI

Direito e lei são conceitos que podem ser por vezes confundidos. Portanto, trouxemos as palavras de Thomas Hobbes:

Apesar da confusão feita entre Jus e Lex, o Direito e a Lei, pelos que trataram desse assunto é preciso fazer distinção entre esses enunciados. Assim, o DIREITO é a liberdade de agir ou de omitir, enquanto a Lei obriga a agir ou omitir. Portanto, entre a Lei e o Direito há a mesma diferença que entre a Obrigação e a Liberdade, que são incompatíveis quando dizem respeito à mesma matéria (HOBBES, 2008, p. 99).

Carl Schmitt não teve uma vida pessoal tão condizente com muitas das questões que dispôs em suas obras, não obstante, delineia conceitos extremamente intrínsecos, inclusive relativos a democracia e a lei, ideias essas que foram trazidas ao presente para complementar as explanações arendtianas relativas à liberdade na política e a importância de uma democracia participativa, onde o detentor do poder não pode confundir autoridade com autoritarismo, e é também por esse lastro que segue o pensamento schmittiano.

Para Schmitt (1927, p. 171, tradução nossa), lei “é uma norma jurídica, ou seja, um preceito, no qual o Estado se dirige aos seus súditos para estabelecer entre eles e si próprio os limites do permitido e o que pode se realizar”.

Schmitt ensina que:

Para a concepção do Estado de Direito, a Lei é, em essência, norma, e uma norma com certas qualidades: regulamentação jurídica (reta, razoável), de caráter geral. Lei, no conceito jurídico de Lei, é vontade e mandato concretos e um ato de soberania. Lei num Estado de princípio monárquico é, por isso, a vontade do Rei; Lei, em uma democracia, é a vontade do povo: lex et quod populis jussit (SCHMITT, 1927, p. 171. tradução nossa).

Schmitt, ao citar Kant relata que o Estado de Direito com a divisão dos Poderes é uma contraposição ao absolutismo, seja monárquico ou democrático (SCHMITT, 1927).

A partir disto, o autor passa a fazer uma reflexão sobre democracia, que corresponde em muito com o tema ora tratado, uma vez que a democracia tem total relação com conceitos de detentor do poder, relações de poder, bem como dominador e dominado e, destaca-se a importância desses conceitos não serem mal interpretados, podendo resultar no abuso deles por parte do detentor do poder, conforme tem-se verificado na Rússia.

5.1 Conceito de Dignidade da Pessoa Humana (Complexo de Direitos e Deveres Fundamentais e Participação Ativa e Corresponsável)

No tocante ao conceito de pessoa, observamos que tanto na tradução para a língua espanhola, como para a inglesa, a obra de Carl Schmitt faz uso das palavras “pessoa” e “povo” e atualmente há uma preocupação cada vez mais presente em se utilizar a palavra “pessoa” em detrimento da palavra “indivíduo” ou de qualquer outro termo que poderia a substituir.

Digamos que o emprego da palavra pessoa humana foi fruto de uma construção semântica, pois as palavras são artefatos sociais, mas também de uma construção jurídica, sendo que os conceitos jurídicos são produtores de sentidos sociais.

Na atualidade, o termo “pessoa” é, tanto na linguagem popular, como no vocabulário técnico, tão imediatamente associado, na cultura ocidental, ao ser humano que a locução “pessoa humana” chega a soar, prima facie, pleonasmo. Termo recorrente em matéria de direitos humanos e em muitos países (persona humana, em espanhol; human person, em inglês; personne humaine, em francês; menschliche person, em alemão; etc).

Não obstante, a suposta redundância tem emprego legítimo, visto que, além do termo “pessoa” significar outras coisas que nem sempre se reportam diretamente ao ser humano em si, a justaposição confere ao elemento humano a visibilidade e o vigor compatíveis com o substrato conceitual residente na expressão “pessoa humana”, assim como lhe assegura um sentido e alcance específicos que a singularizam no plano terminológico e conceitual.

Nessa toada, pode-se inferir que o vocábulo “pessoa” nem sempre foi empregado para designar o ser humano (TABOSA, 2007, p. 131). Mesmo quando evoluiu e passou a se referir ao homem, nem sempre foi adotado numa escala semântica que o contemplasse em sua totalidade material e espiritual, bem como alcançasse, de modo universal e sem discriminações, todo e qualquer ser humano pelo só fato de sua humanidade inerente.

A primeira organização internacional a empregar o termo foi a Organização das Nações Unidas (ONU), que proclamou, na abertura da Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH), em 1948, que “Todo ser humano tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei” (Art. VI). A partir disto, a expressão tornou-se muito recorrente em matéria de direitos humanos.

No entanto, ainda muitos governantes não enxergam os seres humanos aos quais querem dominar e tornar seus súditos, como pessoas, prova disto é o expressivo número de mortos na Ucrânia, nos idos do quadragésimo segundo dia de guerra, ao tempo em que escrevemos o presente.

Sobre o art. VI da DUDH, Alceu Amoroso Lima observa que

Embora subentendido desde o primeiro artigo, nunca é demais que se relembre essa condição predeterminante de cada membro da sociedade, em qualquer sítio ou condição em que se encontre, seja nacional seja estrangeiro, seja inocente seja culpado, seja um membro útil ou inútil da coletividade, como pessoa humana, isto é, como uma entidade em si e não apenas como um elemento passivo ou uma parte apenas de um todo social (LIMA, 1974, p. 40).

Desta feita, entende-se dignidade da pessoa humana como a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte dos Estados e da comunidade internacional, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos (SARLET, 2004).

5.2 A Relação da Democracia com Conceitos de Detentor do Poder, Relações de Poder, Dominador e Dominado para Carl Schmitt

Nesse sentido, Schmitt esclarece que a maior parte das definições de democracia falam de um “império da maioria”. Essa maioria é a dos chamados cidadãos ativos, ou seja, com direito a voto (SCHMITT, 1927).

Para o autor a democracia tem o seguinte sentido

(...) a palavra Democracia pode indicar um método para o exercício de certas atividades estatais. Desta feita, designa uma forma de Governo ou de Legislação, e significa que no sistema da divisão de poderes, um ou vários destes, por exemplo, a Legislação ou Governo, se organizam segundo princípios democráticos com uma participação da mais ampla possível de cidadãos (SCHMITT, p. 259. tradução nossa).

Ainda há outras definições de democracia que são: governo do povo pelo povo, império da opinião pública ou uma forma política em que o sufrágio universal é o fundamento de tudo, mas para o Schmitt, todas essas definições e caracterizações expõe apenas os diversos momentos ou efeito do princípio democrático de igualdade, sendo que é preciso deduzir o significado próprio de cada um desses aspectos de umas discussão sistemática do conceito democrático fundamental: a igualdade.

Ainda sobre democracia relata que Aristóteles considera que “a melhor forma de governo, a “Policial”, está muito próxima da forma que hoje costuma-se denominar de Democracia: um Estado em que todos participam como dominadores e como dominados” (SCHMITT, p. 265. tradução nossa).

Para Schmitt a definição de democracia resulta de uma substancial igualdade, que é pressuposto essencial da democracia, conforme se verifica abaixo

Evitando que a distinção dentro do Estado democrático entre dominantes e dominados, governantes e governados expresse ou produza uma diferença qualitativa. Dominação ou governo em uma democracia não podem nascer de uma desigualdade, de uma superioridade dos dominadores ou governantes, no sentido de que os governantes sejam de algum modo qualitativamente melhor que os governados. Segundo sua essência, têm que permanecer na igualdade e na homogeneidade democrática. Somente porque alguém domina ou governa, não quer dizer que possa escapar da identidade e homogeneidade do povo. Desta feita, a força ou a autoridade dos que dominam ou governam não há que se apoiar em quaisquer altas qualidades que sejam inacessíveis ao povo, senão somente voluntariamente, com mandato e com confiança dos que hão de ser dominados ou governados, que, desta forma, se governam na verdade a si próprios. Dessa maneira, recebe seu sentido ideológico a expressão que diz que a Democracia é uma dominação do povo sobre si próprio (SCHMITT, p. 272).

Na sequência, define que o poder do Estado e do Governo emanam do povo na democracia. E passa a discorrer que:

O problema do governo dentro da Democracia consiste no fato dos governantes e governados terem que ser diferenciados, mas dentro da homogeneidade inalterável do povo. Uma vez que a diferença entre governantes e governados, dos que mandam e dos que obedecem, consiste tanto no que governa e manda, quanto no fato do Estado democrático ser um Estado. Por isso não pode desaparecer uma distinção entre governantes e governados (SCHMITT, 1927, p. 273).

Desta feita, Schmitt delineia que:

(...) em uma democracia, a inevitável diferença prática entre governantes e governados não pode passar a ser uma distinção e singularização qualitativas das pessoas governantes. Quem governa em uma democracia não o faz porque possui uma condição de uma capa superior qualitativamente melhor, em relação a uma capa inferior menos valiosa. Isso suprimiria, naturalmente, a homogeneidade e identidade democrática (SCHMITT, 1927, p. 274-275).

E ainda destaca que:

Se o povo elege somente os melhores e mais virtuosos, melhor ainda; essa espécie de eleição e seleção dos mais virtuosos não pode levar nunca a consequência, dentro da democracia, de que formam uma capa especial que coloca em perigo a igualdade substancial de todos, ou seja, o total pressuposto de toda democracia (SCHMITT, 1927, p. 275).

Nesse sentido, o autor ressalta que “numa democracia o Poder estatal deve emanar do povo e não de outra pessoa ou órgão exterior ao povo e nem colocado sobre ele. Tampouco emana de Deus” (SCHMITT, p. 275. tradução nossa).

O conceito conjuga com o entendimento de Arendt (2014) quanto a democracia na obra Entre o passado e o Futuro, vez que a autora entende que o poder é do povo e a autoridade reside no Estado, sendo que o que a política faz é acrescentar, através dos feitos e acontecimentos, importância à fundação da comunidade política e vida às suas instituições, sempre com liberdade.

E temos visto cada vez mais crescente na atualidade, líderes mundiais que lançam mão desses princípios tão precisamente defendidos pelos mais nobres autores, bem como ignorando direitos arduamente conquistados com muita luta no campo dos direitos humanos, confundindo as noções entre autoridade e autoritarismo, o que pode, infortunadamente, desembocar em drásticas guerras, como essa recente que temos vivenciado entre Rússia e Ucrânia.

Ademais de que o clima de nostalgia da Guerra Fria que se têm vivenciado somente prejudica a democracia, de forma a tornar a sociedade sectária, e, assim, formando perigosa polarização no seio social, o que tem culminado em atos de vandalismo ao redor de todo o mundo, conflitos e, até guerra.

Numa democracia no contexto dos dias atuais, onde é posta uma sociedade globalizada e pós-moderna, intrínseco se faz respeitar a soberania dos demais Estados, bem como os princípios do direito internacional público como um todo, até por uma questão básica de existência/sobrevivência humana.

Diante de todo o exposto, cumpre destacar que todo poder estatal que se exerce contra a vontade do(s) povo(s) e na contramão das normativas de direito internacional dos direitos humanos, nesta acepção, contradiz o real conceito de democracia.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Vivemos uma crise de autoridade, apresentando-se alternadamente ao redor do mundo, ora em excesso, ora em ausência, onde observamos um movimento pendular ao decorrer da História Mundial. Esses movimentos se disseminam ao redor do mundo nos tempos atuais com muita rapidez, haja vista a capacidade de divulgação imediata das ideias nas redes sociais – onde inclusive a maioria dos próprios líderes mundiais detém dessas redes sociais e as utilizam – promovida pelo desenvolvimento tecnológico, bem como pela globalização.

O sintoma mais latente de que vivemos essa crise é o fato dela ter se espalhado nas áreas pré-políticas tais como a criação dos filhos e a educação. Prova disto são os crescentes casos relatados de alunos que agridem de forma física e psicológica o professor ou os pais.

A opinião pública tem balançado entre intervalos de um extremo a outro, ora com excesso de liberdade, ora com excesso de autoridade, o que poderiam claramente ser considerados dois vícios opostos pela ética aristotélica, no entanto, dois lados da mesma moeda; onde não se tem encontrado o equilíbrio entre essas duas forças.

Tanto o liberalismo quanto o conservadorismo nasceram nesse clima de opinião pública violentamente oscilante e polarizada, no entanto, formam as duas faces da mesma moeda.

Se olharmos as afirmações conflitantes de conservadores e liberais com olhos imparciais veremos com mais facilidade que estamos de fato em confronto com um simultâneo retrocesso tanto da liberdade como da autoridade no mundo moderno.

A liberdade é um dos inúmeros problemas e fenômenos da esfera política. A liberdade é na verdade o motivo por que os homens convivem politicamente organizados. Sem ela, a vida política como tal seria destituída de significado. A razão da política é a liberdade, e seu domínio de experiência é a ação, outrossim, vemos o povo russo destituído de liberdade, bem como os outros povos que se encontram na mira desse governo, como é o caso da Ucrânia.

No tocante a poder e a relação entre dominantes e dominados, governantes e governados, tema precípuo do presente, pode-se dizer que a dominação ou o governo em uma democracia não podem nascer de uma desigualdade, de uma superioridade dos dominadores ou governantes, no sentido de que os governantes sejam de algum modo considerados melhores do que os governados. Nem pode um governante querer se sobrepor a outro governante.

Uma democracia exige atitude ativa e a ausência desta atitude pode ser extremamente prejudicial ao cidadão, que por vezes acomodado, prefere aguardar que as mãos do Estado tomem atitudes por ele em todas as situações, permitindo, conforme se têm visto na Rússia, que um governante se perpetue por muitos e muitos anos no poder, como é o caso de Vladimir Putin. Isto solavanca o ideal da democracia e, consequentemente, o bem-estar da pessoa humana.

7 REFERÊNCIAS

ARENDT, Hannah, A condição Humana, 10. ed., Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2007.

ARENDT, Hannah, Entre o passado e o futuro, 7. ed., São Paulo, Perspectiva, 2014.

ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, Tradução António de Castro Caeiro, São Paulo, Atlas, 2009.

BBC. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60823639> Acesso em: 13 abril 2022.

CNN. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/entenda-o-que-e-o-batalhao-de-azov-grupo-de-extrema-direita-que-luta-na-ucrania/>. Acesso em: 13 de abril de 2022.

COMPARATO, Fábio Konder, A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos, São Paulo, Saraiva, 2017.

DINIZ, Maria Helena, Dicionário Jurídico, 3 ed., São Paulo, Saraiva, 2008.

HUSEK, Carlos Roberto, Curso de Direito Internacional Púbico, 13. ed., São Paulo, LTr, 2015.

ICJ. Disponível em: <https://www.icj-cij.org/en/basis-of-jurisdiction>. Acesso em: 13 abril 2022.

LIMA, Alceu Amoroso, Os direitos do homem e o homem sem direitos, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1974.

MARQUES DA SILVA, Marco Antonio, (Coord.), Processo Penal e Garantias Constitucionais, São Paulo, Quartier Latin do Brasil, 2006.

Migalhas. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/362138/votacoes-legitimas-democracia-e-paz. Acesso em: 13 abril 2022.

SARLET, Ingo Wolfgang, Dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988, Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2004.

SCHMITT, Carl, Teoria de la constitucion, Madrid, Revista de Derecho Privado, 1927.

SCHMITT, Carl, Constitutional Theory, London, Duke University Press, 2008.

TABOSA, Agerson, Direito romano, 3 ed., Fortaleza, FA7, 2007.

1 Doutoranda em Direito das Relações Econômicas Internacionais Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, Brasil (PUC/SP). Mestre em Direitos Humanos (PUC/SP, 2021). Curriculum Lattes: http://lattes.cnpq.br/5163600336109427. E-mail: desigp2@uol.com.br. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9292-7353

2 Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2004). Chefe D. Dir. Difusos e Rel. Intern. Fac. Dir. da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, SÃO Paulo, Brasil – (USP). Curriculum Lattes: http://lattes.cnpq.br/3621741019243917. E-mail: carlosrhusek@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/ 0000-0003-2369-6349

3 ICJ. Disponível em: < https://www.icj-cij.org/en/basis-of-jurisdiction>. Acesso em: 13 abril 2022.

4 O Batalhão Azov começou como uma milícia voluntária ligada a ideologias de extrema-direita antes de ser incorporado a uma unidade da Guarda Nacional em 2014, no contexto da anexação da Crimeia pela Rússia e a subsequente guerra civil entre forças ucranianas e rebeldes em ascensão em Donbass, onde lutam por Kiev. De acordo com o Centro de Segurança e Cooperação Internacional da Universidade de Stanford (CISAC), este grupo armado “promove o nacionalismo e o neonazismo ucraniano por meio de sua organização paramilitar Milícia Nacional e sua ala política Corpo Nacional”, liderada pelo fundador do grupo, Andriy Biletsky.

5 BBC. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60823639> Acesso em: 13 abril 2022.

6 Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/362138/votacoes-legitimas-democracia-e-paz. Acesso em: 13 abril 2022.