A influência das sesmarias na estrutura fundiária do Brasil República

The influence of sesmarias on the land structure of the Republic of Brazil

DOI: 10.19135/revista.consinter.00016.04

Recebido/Received 01/09/2022 – Aprovado/Approved 12/01/2023

Aline da Cruz1 https://orcid.org/0000-0002-2329-1846

Josiane Dillor Brugnera Ghidorsi2 https://orcid.org/0000-0003-4959-9272



Resumo

O objetivo deste trabalho é analisar a legislação fundiária no Brasil desde o período colonial, bem como, os reflexos do sistema sesmarial na estrutura fundiária brasileira contemporânea, haja vista que durante o período colonial se iniciou a constituição dos latifúndios e a exclusão de pessoas das classes menos favorecidas. Assim, a hipótese de pesquisa buscou compreender as razões pelas quais a concentração de terras, a desigualdade e a exclusão social ainda assombram a realidade brasileira. No que tange ao resultado alcançado, a ineficácia governamental em demarcar o território nacional reflete a impossibilidade de entender a realidade das áreas rurais do país, e consequentemente dificulta a realização de políticas públicas capazes de efetivamente promover a reforma agrária e a regularização fundiária que tornariam o país de fato livre do sistema sesmarial que ainda persiste e influencia a estrutura fundiária no Brasil República. Adotou-se como metodologia dedutiva de analise exploratória, investigativa e pesquisa bibliográfica.

Palavras-chave: Sesmarias; Latifúndios; Imóveis Rurais; Desigualdade Social; Reforma Agrária.

Abstract

The objective of this work is to analyze the land legislation in Brazil since the colonial period, as well as the reflections of the sesmarial system in the contemporary Brazilian land structure, considering that during the colonial period the constitution of the latifundia and the exclusion of people from the social classes began. less favoured. Thus, the research hypothesis sought to understand the reasons why land concentration, inequality and social exclusion still haunt the Brazilian reality. With regard to the result achieved, the governmental ineffectiveness in demarcating the national territory reflects the impossibility of understanding the reality of the country's rural areas, and consequently makes it difficult to carry out public policies capable of effectively promoting agrarian reform and land tenure regularization that would make the country in fact free of the sesmarial system that still persists and influences the land structure in Republic Brazil. A deductive methodology of exploratory and investigative analysis and bibliographical research was adopted.

Keywords: Sesmarias; Large Estates; Rural Properties; Social Inequality; Land Reform.

Sumário: 1 Introdução; 2 A formação da estrutura fundiária em solo brasileiro e seus impactos sociojurídicos; 2.1 Formação da Estrutura Fundiária Brasileira – Brasil Colônia; 2.2 Estrutura Fundiária – Brasil Império; 2.3 Estrutura fundiária – Brasil República; 3 A herança do sistema sesmarial na estrutura fundiária contemporânea; 3.1 As políticas públicas e as desigualdades fundiária dos imóveis rurais no Brasil; 3.1.1 A estrutura fundiária dos imóveis rurais e a problematização do sistema sesmarial moderno; 4 Considerações finais; 5 Referências.

Summary: 1 Introduction; 2 The formation of the land tenure structure on Brazilian soil and its socio-legal impacts; 2.1 Formation of the Brazilian Land Structure – Colony Brazil; 2.2 Land Structure – Brazil Empire; 2.3 Land structure – Brazil República; 3 The inheritance of the sesmarial system in the contemporary land tenure structure; 3.1 Public policies and land inequalities in rural properties in Brazil; 3.1.1 The land tenure structure of rural properties and the problematization of the modern sesmarial system; 4 Final considerations; 5 References.

1 INTRODUÇÃO

A questão fundiária brasileira remonta ao descobrimento do país pelos portugueses, que definiram que a forma de acesso à terra seria através do sistema sesmarial. No entanto, adiante da legislação dúbia, da ausência de mecanismo demarcatório das sesmarias concedidas e da dificuldade em fiscalizar a produtividade, o sistema sesmarial restou extinto, porém, os impactos do insucesso resistem à passagem do tempo.

Este artigo visa a ressaltar que, apesar de todo aparato legislativo e tecnológico que surgiu com o passar dos anos, os velhos problemas coloniais, como demarcação e concentração de terras, desigualdade e exclusão social, e título aquisitivo juridicamente válido permanecem o cerne do problema da estrutura fundiária brasileira.

O problema se configura quando as políticas públicas executadas não obtêm êxito na promoção da reforma agrária, visando à diminuição da desigualdade e exclusão social no campo. Desta feita, questiona-se: precisamos de uma reforma legislativa? De um mecanismo de fiscalização da função social da propriedade? O que já foi feito? As políticas públicas implantadas reduziram a desigualdade no campo?

O presente artigo se pautou em pesquisas bibliográficas, por meio eletrônico(sites). O método utilizado é o dedutivo, a análise exploratória e investigativa.

Desse modo, a presente análise se divide em dois capítulos. O primeiro aborda o contexto histórico, com a formação da estrutura fundiária brasileira, e o segundo versa sobre os impactos do sistema sesmarial na estrutura fundiária dos imóveis rurais atualmente, bem como, a ineficiência do Estado em aplicar as políticas públicas de modo a minimamente reduzir as desigualdades sociais no campo.

2 A FORMAÇÃO DA ESTRUTURA FUNDIÁRIA EM SOLO BRASILEIRO E SEUS IMPACTOS SOCIOJURÍDICOS

A estrutura fundiária do Brasil foi formada pela colonização portuguesa, portanto, com base no sistema português, surgiu o sistema fundiário em terras brasileiras. As sesmarias concedidas pela família real portuguesa ainda afetam diretamente a aplicabilidade e eficiência das políticas públicas e a garantia dos direitos sociais estabelecidos pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, a saber: educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, segurança, seguridade social, segurança de mulheres e crianças, e alívio da pobreza3.

2.1 Formação da Estrutura Fundiária Brasileira – Brasil Colônia

No ordenamento jurídico brasileiro, a questão fundiária de acesso às terras se inicia com as capitanias hereditárias, instauradas por D. João III com o objetivo de fomentar o povoamento da colônia. O sistema de capitanias, por sua vez, regulamentado pelas Ordenações Manuelinas e, após, pelas Ordenações Filipinas, dividiu o território em glebas que foram cedidas a donatários, sendo, portanto, destes a responsabilidade de administrar as capitanias. Importante ressaltar que a divisão de terras por meio das capitanias hereditárias foi denominada de sesmaria4.

O objetivo das sesmarias se constituía no aspecto público das terras. Nesse sentido, João Octaviano de Lima Pereira sabiamente explica:

Remontando-se aos primórdios da formação da propriedade immóvel no Brasil, verifica-se que toda a terra era, de início, do domínio da nação portuguesa, isto é, do domínio público. Durante o período colonial (...) ella foi se desmembrando(...)constituindo-se assim excepções ao princípio geral da dominialidade pública sobre a terra brasileira (...)5.

Ao mesmo tempo, temos um sistema de sesmarias que encarna claramente uma forma de posse da terra, a qual chamamos de “propriedade”, que não é absoluta e está sujeita a inúmeras obrigações, aproximando-se de concessões ou privilégios. Se as condições estabelecidas na sesmaria não fossem cumpridas, as terras deveriam ser devolvidas à Coroa portuguesa, fato a priori utilizado para demonstrar o caráter da propriedade durante o período em que vigorou o sistema de sesmaria6.

Nesse sentido, leciona Paes:

A posse – e não a titulação individualizada da propriedade – era o centro dessas relações. A principal forma de reconhecimento de uma relação jurídica legítima entre uma pessoa e uma coisa era feita por meio da identificação do uso efetivo dessa coisa, mais do que por meio da existência de um título individual de concessão de propriedade. (…) Em outras palavras, o ambiente jurídico brasileiro das primeiras décadas do século XIX não era pautado pela centralidade da noção de propriedade individualizada e titulada, mas pela convicção de que direitos eram adquiridos na medida em que eram exercidos7.

Após concedida a carta de sesmarias e cumpridas as condições era necessária a confirmação dada pelo rei – confirmação régia. Somente após essa confirmação o sesmeiro teria o domínio útil da terra, de modo a possibilitar a proteção da sua posse legalmente em caso de conflitos de terras com outros sesmeiros8.

Porém, com o passar do tempo, devido à extensão territorial do Brasil, foi quase impossível delinear e demonstrar a produtividade das áreas utilizadas, de modo que em 17 de julho de 1822 o sistema sesmaria foi suspenso pela Resolução 76. Foi então instituído o regime fundiário, no qual o posseiro, para que fosse reconhecido seu direito à terra, dependia da aprovação do poder público.

2.2 Estrutura Fundiária – Brasil Império

Conforme mencionado no tópico anterior, a falta de leis hábeis a regulamentar o uso da terra e os direitos de propriedade, aliada à falta de fiscalizações das sesmarias concedidas, levaram à suspensão do regime sesmarial. Assim, a aquisição de terras por posse tornou-se efetiva.

Em 1824, o Brasil tornou-se Império; no entanto, em que pese a mudança de regime, a legislação específica pertinente ao direito de propriedade permaneceu refém da ultrapassada legislação portuguesa, que, por sua vez, já havia criado uma incontestável anarquia legislativa e jurídica9.

A Constituição Política do Império do Brazil, outorgada pelo Imperador D. Pedro I, em 25 de março de 1824, no capítulo 8º, art. 179, inc. XXII, explicitamente reconhece a plenitude do direito de propriedade, ao passo que giza o texto constitucional:

Art. 179. (...) XXII. E' garantido o Direito de Propriedade em toda a sua plenitude. Se o bem público legalmente verificado exigir o uso, e emprego da Propriedade do Cidadão, será ele previamente indemnisado do valor della. A Lei marcará os casos, em que terá logar está unica excepção, e dará as regras para se determinar a indemnização10.

Em que pese o texto constitucional reconhecesse a extensão do direito de propriedade, nada menciona a respeito da sua forma de aquisição, a qual ainda se dava através do sistema de posse.

Somente em 18 de setembro de 1850 foi aprovada a Lei 601 – Lei de Terras, que possuía como principal característica a criminalização da ocupação de terras sem a aquiescência do seu dono, podendo somente ser adquirida através da compra. É cediço salientar que a Lei de Terras foi criada no intuito de inserir no ordenamento jurídico brasileiro o conceito de propriedade privada, no entanto, poucos possuíam condições financeiras para adquirir terras “legalmente”, fato que desencadeou a grilagem11, a falsificação de documentos, e fez crescer de modo exacerbado a exclusão social12.

Nesse viés, leciona Sampaio Jr.:

O Brasil desperdiçou todas as oportunidades históricas de encaminhar uma solução construtiva para a questão agrária. No momento da independência, a liderança da aristocracia agrária acarretou na revitalização dos dois pilares fundamentais da economia colonial: o monopólio da terra pelos grandes latifundiários e a continuidade do trabalho escravo. Na abolição, as classes dominantes tiveram a preocupação explícita de preservar a assimetria da sociedade colonial, evitando, com a Lei de Terras de 1850, que os recém-libertos e os imigrantes pobres tivessem livre acesso à propriedade da terra13.

Assim, se por um lado a Lei de Terras regulamentou a aquisição de propriedade, auxiliando na fiscalização e demarcação das terras ao longo de todo o império, por outro, gerou manifesta mudança no cenário social do país, excluindo a possibilidade das classes menos favorecidas, tais como imigrantes e ex-escravos, de terem acesso à propriedade privada, ante o alto preço exigido14.

Como se percebe, a implantação da Lei de Terras no país manteve a premissa do sistema sesmarial, de favorecer a concentração de terras nas mãos da elite. Desse modo, aos menos favorecidos, que não possuíam recursos financeiros para adquirir seu pedaço de terra, não restava alternativa a não ser buscar sobreviver à margem da Lei, em face da exclusão social propiciada pela própria.

2.3 Estrutura FUNDIÁRIA – Brasil República

Conforme evidenciado anteriormente, a aquisição de imóveis durante a vigência do sistema sesmarial não se dava de forma igualitária, pois beneficiava aqueles com grande poder aquisitivo. Da mesma forma, a Lei de Terras continuou a beneficiar a elite em detrimento dos mais pobres, pois enquanto a aquisição da terra é autorizada, o valor conferido é tão alto que somente os privilegiados podem se beneficiar do texto legal15.

Em 24 de fevereiro de 1891, foi promulgada a primeira Constituição Republicana do Brasil16, que não trouxe alterações significativas no que tange ao direito de propriedade, tratando-o de forma semelhante à Constituição Imperial de 1824, tendo como alvitre a propriedade privada, da qual o proprietário poderia usar, gozar, fluir e dispor, ressalvando mediante indenização a utilização da propriedade privada pela administração pública em caso de necessidade17.

O primeiro Código Civil brasileiro adveio durante a vigência da Constituição de 1891, através da Lei 3.071, datada de 1º de janeiro de 1916. Ele possuía 1.807 artigos, e destaca-se que a propriedade privada e a liberdade contratual alcançaram uma tutela absoluta sem hipótese de reavaliação18. Clóvis Bevilaqua, quando da elaboração do Código Civil de 1916, conceituou propriedade como “o poder assegurado pelo grupo social à utilização dos bens da vida, física e moral19.

Conforme elencado acima, depreende-se que o poder atribuído ao proprietário era ilimitado no que tange à sua propriedade, haja vista que o Código Civil de 1916, em seu art. 524, confirmou o disposto no texto constitucional de 1824, assegurando ao proprietário direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possuísse.

Fato incontroverso é que a Constituição Imperial e a primeira Constituição Republicana elencaram em seus textos a propriedade como direito fundamental. Entretanto, somente na Constituição promulgada em 1934 foi atribuída ao direito de propriedade, a exigência do cumprimento de sua função social20.

Nesse contexto, Fábio Konder explica sabiamente:

Função social da propriedade não se indicam as restrições ao uso e gozo dos bens próprios. Estas últimas são negativas ao direito do proprietário. Mas a noção da função, no sentido em que é empregado o termo nessa matéria, significa um poder, mais especificamente, o poder de dar ao objeto da propriedade destino determinado, de vinculá-lo a certo objetivo. O adjetivo social mostra que esse objetivo corresponde ao interesse coletivo do próprio dominus, o que não significa que não possa haver harmonização entre um e outro. Mas, de qualquer modo, se está diante de um interesse coletivo, essa função social da propriedade corresponde a um poder-dever do proprietário, sancionável pela ordem jurídica21

É cediço salientar que durante a evolução legislativa brasileira no que concerne à estrutura fundiária, a Lei buscou harmonizar os interesses individuais e o cumprimento da função social, ou seja, o direito de propriedade não pode ser exercício contra o interesse social ou coletivo.

Durante o Regime Militar, foi editada a Lei 4.504/1964 – Estatuto da Terra, a qual introduziu uma vultuosa modificação no âmbito político e jurídico, bem como na organização fundiária.

O Estatuto da Terra seguiu admitindo o sistema de posse, no entanto, modernizou-o no intuito de exigir o registro de todos os imóveis, públicos e privados, incluindo os de posse, de forma a instigar a produtividade com a finalidade de proporcionar meios de realização da reforma agrária22.

A Constituição promulgada em 5 de outubro de 1988 institui o direito de propriedade como fundamental, desde que atenda à função social. Nesse sentido, Marmelstein explica:

Há quem defenda, a meu ver com razão, que o direito de propriedade só faz sentido se conjugado com o princípio da função social. Cumprindo a sua função social, o direito de propriedade merece proteção estatal, já que a Constituição o consagra como direito fundamental. Por outro lado, não cumprindo a função social, esse direito deixa de merecer qualquer proteção por parte do poder público, já que a Constituição exige que o uso da coisa seja condicionado ao bem-estar geral23.

A garantia expressa no texto constitucional protege as propriedades caracterizadas como privadas, assim como estende a proteção a direitos que possam vir a ser reconhecidos. Desse modo, para que a propriedade exerça sua função social, a Constituição Federal estabeleceu parâmetros que limitam o direito de propriedade; assim, o proprietário que deixar de observar as regras garantidoras da função social será punido24.

Em 10 de janeiro de 2002 foi publicada a Lei 10.406 – Código Civil, que em seu art. 1.228 definiu o direito de propriedade como o direito de usar, gozar, e dispor e reaver a propriedade, caso alguém injustamente a possua ou detenha. Ademais, reiterou no parágrafo primeiro do referido artigo a obrigatoriedade do exercício do direito de propriedade em concordância com as suas finalidades econômicas e sociais.

Nesse ínterim, leciona Orlando Gomes:

A propriedade deixou de ser o direito subjetivo do indivíduo e tende a se tornar uma função social do detentor da riqueza mobiliaria e imobiliária; a propriedade implica para todo detentor de uma riqueza a obrigação de emprega-la para o crescimento da riqueza social e para a interdependência social. Só proprietário pode executar uma certa tarefa social. Só ele pode aumentar a riqueza geral utilizando a sua própria; a propriedade não é, de modo algum, um direito intangível e sagrado, mas um direito em contínua mudança que se deve modelar sobre as necessidades sociais às quais deve responder25.

Em suma, embora a legislação vigente proteja os direitos de propriedade, é preciso destacar que desde o início houve imbróglios jurídicos e sociais por falta de regras claras, especialmente quanto à forma de aquisição, uso, titularidade e delimitação efetiva etc., que persistem e decorrem do sistema sesmarial, cujas consequências jurídicas e sociais ainda não foram contornadas.

3 A HERANÇA DO SISTEMA SESMARIAL NA ESTRUTURA FUNDIÁRIA CONTEMPORÂNEA

Conforme demonstrado no capítulo anterior, denota-se que todo o território inicialmente pertencia à Coroa portuguesa, ou seja, era considerado de domínio público em sua totalidade26. Dessa feita, a concessão das terras era feita pela Coroa, que as concedia às classes privilegiadas27, as quais, não raramente, descumpriam as exigências assumidas quando da concessão, limitando-se apenas ao pagamento de impostos28.

Em que pese as Ordenações do Reino condicionarem as doações de sesmarias limitando-as ao potencial produtivo de cada sesmeiro, tal condição não era respeitada. Assim, nos séculos XVII e XVIII as sesmarias tornaram-se o nascedouro de latifúndios29.

A exigência de que o sesmeiro deveria tornar as sesmarias produtivas não passou de utopia, pois “as sesmarias geraram terras de especulação do poder local, e originaram uma estrutura fundiária assentada no latifúndio, injusta e opressiva”, de modo a servir “de consolidação do poder dos latifundiários, porque as concessões passaram a ser uma distribuição da elite para si mesmo, como exercício do poder e sua manutenção30.

Além da problemática envolvendo a inobservância das condicionantes para doações de sesmarias, há de se mencionar ainda a complexidade em se delimitar o tamanho e a localização das terras. Os sesmeiros, por sua vez, tinham conhecimento dos limites e onde estavam localizadas às áreas. No entanto, “as autoridades cedo se viram na maior dificuldade em identificar as áreas concedidas31.

Ante a ineficiência da Coroa em identificar e delimitar as áreas concedidas, a família real portuguesa, através de Carta Régia de 1702, ordenou a cada sesmeiro que procedesse à demarcação das suas terras. Entretanto, a falta de fiscalização no processo demarcatório facilitou que fraudes fossem cometidas. Ou seja, era possível ao sesmeiro adquirir terras desconsiderando o limite imposto pela legislação32.

É imperioso ressaltar que ainda que houvessem regras e limites, “os métodos de medição e demarcação eram rudimentares e permaneceram os mesmos até o século XIX”. A título de exemplificação: “o medidor enchia o cachimbo, acendia-o e montava o cavalo, deixando que o animal marchasse a passo, quando o cachimbo se apagava, acabava o fumo, marcava uma légua33.

Desse modo, tendo em vista a impossibilidade de demarcar as sesmarias, tornou-se habitual o apossamento – mecanismo até então não reconhecido pela legislação34 – por aqueles menos favorecidos que buscavam acesso a um pedaço de terra, ou para aqueles que buscavam expandir os limites das sesmarias concedidas35.

Com a promulgação da Lei de Terras em 1850, tornou-se possível a regularização das terras de posse advindas anteriormente à edição da Lei; no entanto, restou estabelecido um prazo para que fossem concluídas pelos posseiros de boa-fé as demarcações que legitimariam as terras ocupadas36.

Nesse sentido, Smith leciona:

(...) Como a profusão de dadas de terras tem, mais que outras cousas, contribuído para a dificuldade que hoje se sente de obter trabalhadores livres é seu parecer que d’ora em diante sejam as terras vendidas sem exceção alguma. Aumentando-se, assim, o valor das terras e dificultando, conseqüentemente, a sua aquisição, é de esperar que o imigrado pobre alugue o seu trabalho efetivamente por algum tempo, antes de obter meios de se fazer proprietário37.

Desta feita, é cediço afirmar que a Lei de Terras, ao beneficiar os grandes proprietários em detrimento dos posseiros com poucas condições econômicas, indiretamente incentivou a exclusão social das classes menos privilegiadas do acesso a terras legalizadas38, favorecendo a concentração de terras no mesmo viés do sistema sesmarial.

3.1 As Políticas Públicas e as Desigualdades Fundiária dos Imóveis Rurais no Brasil

Depreende-se de todo contexto histórico e legislativo do Brasil, que a estrutura fundiária desde o seu nascedouro não obteve êxito em regulamentar o direito de propriedade, seja pelo modo como as terras eram concedidas, seja pela ausência de fiscalização eficiente, desencadeando, por fim, um aumento da desigualdade social. Em que pese a existência de legislações que buscam amenizar as discrepâncias sociais herdadas do Brasil colônia, é possível afirmar que por si só não são suficientes, haja vista a necessidade de mudanças dos paradigmas cultural, político e social.

3.1.1 A estrutura fundiária dos imóveis rurais e a problematização do sistema sesmarial moderno

Imóvel rural, nos termos do art. 4º, inc. I do Estatuto da Terra, e da Lei 8.629/199339, é definido pela sua destinação ou potencial de exploração extrativa agrícola, pecuária, vegetal, florestal ou então agroindustrial, não levando em conta a sua localização.

O Instituto Brasileiro de Pesquisas Estatísticas, para elaboração do Censo Agropecuário 2017, adotou a terminologia Estabelecimento Agropecuário40 para fins de coleta de dados acerca dos imóveis rurais, bem como a forma de obtenção das terras, segundo os seguintes conceitos:

Compra de particular – quando as terras do estabelecimento foram compradas ou adquiridas de terceiros; (...) Herança ou doação de particular – quando as terras do estabelecimento foram obtidas por estes meios; Posse não titulada (concessão sem titulação definitiva, inclusive para assentamentos da reforma agrária) – quando as terras do estabelecimento foram concedidas temporariamente por órgão fundiário, do qual ainda não havia sido concedido o título definitivo de propriedade até a data de referência, por meio de contrato de concessão de uso, título de ocupação colonial, título provisório, ou outro instrumento. O Termo de Autorização de Uso Sustentável – TAUS, regulado pela Portaria n. 89, de 15.04.2010, do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, foi admitido neste tópico somente no caso de comunidades tradicionais ribeirinhas; Posse titulada por usucapião – quando as terras do estabelecimento foram obtidas, após transcorrido algum tempo de uso pacífico e sem contestação, conforme a Lei 6.969, de 10.12.1981; Titulação via reforma agrária – quando as terras do estabelecimento foram obtidas por meio de título via reforma agrária; Titulação ou concessão de direito real de uso por regularização na Amazônia Legal (Programa Terra Legal) – quando as terras do estabelecimento foram obtidas por meio de título via Programa Terra Legal, do Ministério do Desenvolvimento Agrário, cujo objetivo é promover a regularização fundiária de ocupações em terras públicas federais situadas na Amazônia Legal; Titulação ou licença de ocupação por legitimação de posse em terra arrecadada pela União (imóvel até 100 ha – Lei 6.383, de 07.12.1976) – quando as terras do estabelecimento foram obtidas por meio de título ou licença de ocupação por legitimação de posse em terra arrecadada pela União, por meio da referida lei; (...)41.

De acordo com os critérios utilizados pelo IBGE para discriminar a condição legal das terras, é possível analisar os impactos históricos na situação fundiária atual do país em comparação ao período colonial.

Assim, o Censo Agropecuário 2017 apurou que dos 3,9 milhões de estabelecimentos pertencentes a agricultores familiares, 3,2 milhões de produtores são proprietários, representando 81% dos estabelecimentos familiares e cobrindo 88% da área nacional. Outros 219.000 produtores alegaram usar a terra “sem titulação definitiva”. No entanto, outros 466.000 produtores têm posse temporária ou precária da terra, sejam eles arrendatários (111.000), parceiros (88.000), comodatário (183.000) ou ocupantes (83.000). Dentre os estabelecimentos classificados como familiares ainda constam 5.494 produtores sem área42.

Além disso, é importante notar que os dados acima apresentam a situação real observada pelo IBGE no Censo Agropecuário 2017, porém, para melhor compreender as mudanças fundiárias no país, é necessário comparar a evolução histórica e fática fundiária.

Para os locais entre 100 e menos de 1.000 hectares, observou-se um decréscimo de 3.569 unidades e 586.494 hectares, com tamanho médio variando de 265,9 hectares a 266,8 hectares. As unidades acima de 1.000 hectares aumentaram em 3.625 unidades e 17,08 milhões de hectares em relação ao censo agropecuário de 200643.

Ao analisar os dados levantados acima, é inevitável vislumbrar os reflexos jurídicos e sócio-históricos que marcaram o país desde o seu descobrimento. A concentração de terras, devido a leis dúbias e ineficazes que regulamentavam a aquisição de propriedades durante o período colonial – Sesmarias – e a legalização dessa concentração nas mãos das elites por meio da Leis de Terras, na verdade dissuadiram as classes menos favorecidas44 da possibilidade de vir a adquirir terras de forma legal.

Considerando o histórico do Brasil de privilegiar as elites e favorecer a concentração de terras, de acordo com os dados do Censo Agropecuário 2017, a manutenção de grandes porções de terras nas mãos de poucos ainda é uma realidade brasileira.

Diante de desigualdades persistentes ao longo dos anos, o governo brasileiro não tem escolha a não ser impulsionar políticas públicas voltadas ao incentivo de pequenos produtores, bem como formas equitativas de distribuição de terras.

Desse modo, a questão da regularização fundiária de imóveis rurais, a qual está diretamente vinculada à política de reforma agrária, portanto, se trata do “ato tendente a desconcentrar a propriedade da terra quando esta representa ou cria um impasse histórico ao desenvolvimento social baseado nos interesses pactuados da sociedade45.

Assim, Laranjeira conceitua a reforma agrária como:

O processo pelo qual o Estado modifica os direitos sobre a propriedade e a posse dos bens agrícolas, a partir da transformação fundiária e da reformulação das medidas de assistência em todo o país, com vista a obter maior oferta de gêneros e a eliminar as desigualdades sociais no campo46.

Nesse contexto, foi promulgado o Estatuto da Terra, Lei 4.504/1964 de 30 de novembro de 1964, para melhorar a distribuição de terras, mudar o sistema de posse, buscar a justiça social e aumentar a produtividade. Além disso, como a alocação de terra não é suficiente, políticas efetivas são essenciais e devem fornecer as condições mínimas para que a terra se torne produtiva47.

Para atingir o objetivo do Estatuto da Terra, qual seja, a reforma agrária, o Decreto 1.110/1970 instituiu o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, autarquia Federal cujo objetivo é implementar políticas de reforma agrária e planos fundiários, contribuindo para o desenvolvimento e a sustentabilidade do meio rural48.

Em 12 de dezembro de 1972, pela Lei 5.868, foi instituído o Sistema Nacional de Cadastro Rural, que abarca: Cadastro de Imóveis Rurais; Cadastro de Proprietários e Detentores de Imóveis Rurais; Cadastro de Arrendatários e Parceiros Rurais; Cadastro de Terras Públicas; e Cadastro Nacional de Florestas Públicas49.

Em que pese todas as ações promovidas para cadastrar os imóveis rurais, a falta de planejamento e padrão técnico faz com que o cadastro tenha apenas efeitos declaratórios. A falta de articulação entre os registros de imóveis, cadastros de terras e documentos de topografia, dificulta a compreensão da real situação agrária no país50.

Nesse sentido, explica Laskos:

Esse cenário inviabiliza um gestão fundiária confiável, dando margens a fraudes diversas, como sonegação de impostos; venda de uma mesma terra a compradores diferentes; revenda de títulos de terras públicas a terceiros como se elas tivessem sido postas legalmente à venda por meio de processos licitatórios; falsificação e demarcação de terras compradas com extensão muito maior do que a originalmente adquirida; confecção ou adulteração de títulos de propriedade e certidões; anexação de terras públicas a terras particulares; venda de títulos de terras atribuídos a áreas que não correspondem aos mesmos; venda de terra pública, inclusive indígena e em áreas de conservação ambiental; remembramento de terras às margens das grandes estradas federais, (...); venda de terra pública pela internet, como se os vendedores fossem seus reais proprietários, com base em documentação forjada51.

Embora o cadastro de propriedades rurais do Brasil ainda não forneça um banco de dados confiável para demarcação, fiscalização, tributação e uso da terra, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, quando da elaboração do Censo Agropecuário 2017, buscou estabelecer um panorama dos aspectos estruturais dos estabelecimentos agropecuários, tais como a forma de acesso à terra, relações entre os proprietários e não proprietários, o uso, e análise do número de propriedades rurais, tamanho e distribuição.

A partir da base de dados estruturais obtida por meio do Censo Agropecuário 1975/2017, além de outras informações históricas, busca-se compreender as origens e os motivos da persistência da concentração fundiária, que agrava as desigualdades sociais no meio rural brasileiro.

Para averiguar a desigualdade da distribuição de terras no país, o IBGE utilizou índice desenvolvido pelo matemático italiano Conrado Gini em 1912. O índice de Gini possui a variação entre zero e um, sendo zero a mais perfeita igualdade e um desigualdade total52.

Com base nos dados quantitativos obtidos por meio do censo e analisados pelo índice de Gini, a estrutura fundiária no Brasil permaneceu significativamente inalterada entre 1985 (0,857%) e 2006 (0,856%). Porém, em comparação com o índice de concentração fundiário anterior, o censo agropecuário de 2017 registrou o nível mais alto, atingindo 0,867 pontos53.

O índice de Gini demonstra que a realidade brasileira permanece refém do passado colonial, ou seja, segue perpetuando a concentração de terras, a desigualdade e exclusão social nas áreas rurais.

Apesar das mudanças legislativas, o Censo Agropecuário 2017 trouxe à baila um vultuoso percentual de concentração de terras: os estabelecimentos com menos de 50 hectares representavam 81,4% do total, mas 12,8% da área. Por outro lado, os estabelecimentos com mais de 2.500 hectares representavam 0,3% do total e 32,8% da área de rural nacional.

Ressalte-se ainda que nas áreas com mais de 2500 hectares, os produtores são proprietários de acordo com a condição jurídica do terreno, ou seja, representam apenas 0,3% do total nacional; por outro lado, em áreas com menos de 50 hectares, 91,4% e 92,3% são assentados ou ocupantes.

Nesse viés, apesar da distribuição desigual da terra e do fato de maior quantidade de estabelecimentos agropecuários pertencerem a pequenos produtores, deve-se notar que a grande maioria deles não são proprietários. São geralmente ocupantes, assentados, arrendatários, comandatários ou parceiros, ou seja, possuem status jurídico de propriedade informal, ou ainda podem estar em processo de formalização.

A partir dos dados levantados pelo IBGE, pode-se dizer que apenas 4% das propriedades rurais representam 63% das terras agrícolas, contra 65% das instituições rurais que representam 9% das terras agrícolas com área correspondente a menos de um módulo fiscal54.

Segundo Miguel Carter, os diversos programas de reforma agrária de 1985 atuaram apenas de forma moderada para atender às necessidades imediatas, neutralizar e evitar conflitos, ou seja, nenhuma das medidas adotadas foi baseada na mudança real do sistema fundiário originado na era colonial e mantido pela política agrária brasileira, que segue convalidando a desigualdade e exclusão social, por meio de um Estado débil, patrimonialista e mentor da concentração de terras55.

Embora a promoção da reforma agrária seja explicitamente mencionada no ordenamento jurídico brasileiro, o governo até então não obteve sucesso na promoção de medidas efetivas de redistribuição de terras, como evidenciam os dados obtidos no último censo agropecuário (2017), que, sem dúvida, tem a maior pontuação para a desigualdade rural, ou seja, a maior concentração fundiária desde 1985.

Dadas as ineficiências das políticas públicas de redistribuição de terras e redução da desigualdade e exclusão social no meio rural, nas últimas décadas, para estimular a economia, houve a ampliação de recursos financeiros por meio de programas governamentais, os quais, cumpridos os requisitos, permitem que os pequenos produtores rurais tenham acesso a crédito rural, que é a principal política agrícola do país.

Acontece que, assim como a distribuição desigual da terra, os financiamentos e os programas governamentais não são acessíveis a todos, por questões burocráticas56. Apesar das diversificadas formas de acesso à principal política agrária do país – o crédito rural –, para a concessão do financiamento é necessário observar regras de elegibilidade, categorizadas por: localização geográfica, tamanho da propriedade e receita agropecuária.

Há de se destacar ainda, no que tange ao tamanho da propriedade, que é utilizada a unidade do módulo fiscal, criada pelo INCRA na década de 80, e definida como “a área mínima onde a atividade agrícola pode prover, em cada município, subsistência e progresso social e econômico para as famílias que investem sua força de trabalho na mesma”. Entretanto, deve-se ressaltar que o tamanho do módulo fiscal no país não é unanime, variando de 5 a 100 hectares de acordo com o uso predominante da terra em cada região57.

O impacto negativo do uso da medida por módulo fiscal é que, embora o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – PRONAF (que visa a apoiar assentamentos de reforma agrária e agricultores familiares) utilize a unidade de medida do módulo fiscal para conceder acesso a recursos de crédito rural, isso dificulta a distribuição equitativa dos recursos aos pequenos produtores de todo o país, pois, como o tamanho do módulo fiscal varia, é perfeitamente concebível que em uma determinada cidade o produtor seja considerado um pequeno agricultor, enquanto em outra cidade seja considerado um médio ou mesmo grande proprietário e, portanto, não será elegível para obter crédito rural por meio do PRONAF58.

Ressalte-se que 91% das propriedades rurais possuem no máximo quatro módulos fiscais, porém, isso representa apenas 29% das áreas rurais do país. Ainda, segundo dados do Sistema de Operações de Crédito Rural – SICOR, no ano agrícola 2019/20 foram assinados 1,4 milhões de contratos por meio do PRONAF, representando 73% dos contratos de crédito rural. Apesar disso, apenas 15% do total de crédito rural e 18% do total de estabelecimentos agrícola tiveram acesso ao crédito59.

Conjuntamente à análise do tamanho de propriedade através de módulos fiscais, o acesso ao crédito rural é condicionado à receita operacional/renda agropecuária anual. Os critérios mudaram significativamente no decorrer dos anos, inclusive, em 2011 foi inserida uma nova classificação, a qual possibilitou que propriedades, outrora classificadas como grande ou média, fossem reclassificadas como pequena-média, permitindo o acesso ao crédito em termos mais favoráveis60.

Os dados apresentados neste tópico evidenciam a desigualdade social e econômica no país em termos do tamanho das áreas, da condição legal das terras em relação ao produtor, e ainda da distribuição de valores através de programas governamentais de acesso ao crédito rural, contribuindo para a manutenção da exclusão social61.

Em que pese todos os ensaios de reforma agrária e a implantação de crédito rural buscando ao menos reduzir a desigualdade e exclusão social, o Brasil ainda não obteve êxito sequer na demarcação de suas terras, que se inicia com adequado cadastro de terras, bem como, restou inexitosa a distribuição e o acesso de forma igualitária ao crédito rural. Assim, o país sequer possui dados confiáveis para elaborar e executar as políticas públicas de reforma agrária e programas governamentais de fato eficazes62.

A ineficiência do Estado em demarcar as terras brasileiras perpetua a manutenção da concentração de terras que aliado a falta de critérios equânimes para concessão de crédito rural, evidenciam de forma escrachada a desigualdade consolidada entre os já desiguais.

Assim, ainda que com o passar do tempo novos institutos jurídicos e tecnológicos tenham sido criados e aprimorados, os dados censitários revelam que há um longo caminho a ser percorrido para que seja possível reduzir minimamente a desigualdade e a exclusão social no campo, garantindo que a função social da terra não seja mero adorno na legislação.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Compulsando a história brasileira, e analisando a formação de sua estrutura fundiária, seu desenvolvimento social e político, depreende-se que mesmo após o transcurso de tanto tempo, ainda não há consolidação do cenário agrário, sendo certo que persistimos buscando soluções para os mesmos imbróglios já identificados no Brasil Colônia.

A ausência de demarcação e cadastro confiável das terras brasileiras segue favorecendo latifundiários e perpetuando a desigualdade e exclusão social. Ainda que diante de um grande avanço tecnológico e da tentativa de implantação de algumas políticas públicas, é cediço afirmar que o Brasil apenas flerta com a reforma agrária.

Assim, destaca-se que a regularização fundiária é necessária para que seja exercida a função social da propriedade, preceito constitucional e pétreo, previsto em nossa constituição federal e que, lamentavelmente, vem sendo ofuscado pela herança do sistema colonial brasileiro, ou seja, concentração de terras e desigualdade.

O fato é que os dados obtidos pelo IBGE no Censo Agropecuário 2017 demonstram claramente o aumento na concentração de terras, evidenciando que embora o contexto político e histórico seja diferente, a minoria privilegiada, que possui o domínio e o monopólio das terras brasileiras, segue usufruindo de seus privilégios.

O que se conclui é que, embora antigo, o problema na estrutura fundiária brasileira não deixa de ser recente e atual, o que demanda estudos específicos dos poderes legislativo, executivo e judiciário, para que assim seja possível encontrar remédios atuais e eficazes.

Ademais, além de políticas públicas eficientes, a sociedade no geral precisa se conscientizar da necessidade de reforma da atual estrutura fundiária. É necessária uma mudança de paradigma e posicionamento, de forma a exigir do governo comprometimento para executar políticas que de fato inovem e promovam mudanças na estrutura fundiária do país.

Não se olvida das dificuldades que permeiam a regularização fundiária. Entretanto, se mostra descabido que o Brasil contemporâneo não consiga superar questões originadas de sua época colonial.

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1 Bacharel em Direito pela Unifacvest. Advogada inscrita na OAB/SC 46.264 e OAB/RS 120.874A, Pós-graduanda em Direito Imobiliário pela Pontifica Universidade Católica de Minas Gerais, PUC MG, CEP 30.140-002, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. E-mail: alinecruz93.adv@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-2329-1846

2 Doutora em Desenvolvimento e Políticas Públicas pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, UNIJUÍ, CEP 98.700-00, Ijuí, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: josibrugnera@yahoo.com.br. https://orcid.org/0000-0003-4959-9272

3 BRASIL, Leis e Decretos Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, Disponível em: http://www.planalto.gov.br, Acesso em: 21 jan. 2022.

4 ALMEIDA, Mario Júlio Costa, Ordenações Filipinas, 1ª ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1985.

5 PEREIRA, João Octaviano de Lima, Da propriedade no Brasil: estudo sobre a origem e formação da propriedade, São Paulo, Duprat, 1932, p. 5, “Como enfatiza Paulo Garcia sobre as terras desmembradas, o soberano desfazia-se tão-somente do direito de gestão; resguardava, assim, seus poderes soberanos. A proibição de cobrança de foros, pensões e tenças, exceto o dízimo, pelos donatários, evidencia, segundo Messias Junqueira, que tais poderes mantiveram-se mesmo com a instituição das capitanias hereditárias. De fato, estes capitães-mores foram os primeiros sesmeiros na colônia. Do mesmo modo, esta atribuição não lhes abria, em relação ao território da capitania colocada sob sua responsabilidade, os direitos privados de propriedade, os quais só poderiam ser havidos por título de compra”. Cf. LIMA, Ruy Cirne. “Pequena história territorial do Brasil: sesmarias e terras devolutas.” 4ª.ed, Brasília, ESAF, 1988, p. 36.

6 VARELA, Laura Beck, Das sesmarias à propriedade moderna: um estudo de história do direito brasileiro, Rio de Janeiro, Renovar, 2005.

7 PAES, Mariana Armond Dias, Das cadeias dominicais impossíveis: posse e título no Brasil Império, In: NGARETTI, Débora, COUTINHO, Diogo R., PROL, Flávio Marques; MIOLA, Iagê Zendron, LESSA, Marília Rolemberg, FERRANDO, Tomaso, Propriedades em transformação: abordagens multidisciplinares sobre a propriedade no Brasil, São Paulo, Blucher, 2018, p. 41.

8 SILVA, Leandro Ribeiro Da, Propriedade Rural, 2ª. ed, Rio de Janeiro, Lumens Juris, 2008.

9 ROCHA, ROCHA, Ibraim; TRECCANI, Girolamo Domenico, BENATTI, José Heder, HABER, Lilian Mendes, CHAVES, Rogério Arthur Friza, Manual de Direito Agrário Constitucional: lições de Direito Agroambiental, Belo Horizonte, Fórum, 2015.

10 BRASIL, Leis e Decretos, Op. cit.

11 ACS, “Grilagem”, Disponível em: https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/campanhas-e-produ tos/direito-facil/edicaosemanal/grilagem#:~:text=O%20termo%20grilagem%20surgiu%20de, Acesso em: 15 jul. 22, O termo grilagem surgiu de uma prática para dar aspectos de envelhecimento a falsos documentos, inserindo-os em uma caixa com grilos, que os deixava amarelados e com buracos, dando uma aparência “forçada” de que os documentos seriam antigos.

12 ALENTEJANO, Paulo, Terra, CALDART, Roseli, FRIGOTTO Gaudêncio, PEREIRA Isabel Brasil, Dicionário da Educação do Campo, 2ª. ed, Rio de Janeiro, São Paulo: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, 2012.

13 SAMPAIO JR., Plinio de Arruda, “Notas críticas sobre a atualidade e os desafios da questão agrária”, In: STEDILE, João Pedro, A questão agrária do Brasil: debate sobre a situação e perspectivas da reforma agrária na década de 2000, São Paulo, Expressão Popular, 2013.

14 SERRA, Carlos Alberto Teixeira, “Considerações acerca da evolução da propriedade da terra rural no Brasil”, Revista Alceu, v. 4, n. 7, jul./dez, 2003, p. 231-248.

15 FONSECA, Regina Maria d’Aquino, “Lei de Terras (1850) e a abolição da escravidão, capitalismo e força de trabalho no Brasil do século XIX”, Revista de História, n. 120, jan./jul. 1989, p. 153-162. “Lei de Terras” e o advento da propriedade moderna no Brasil, In: v. XVII. Anuário mexicano de história del derecho. p. 97-112, Cidade do México, México, “Dos seus 23 artigos, aquilo que constitui o seu ‘sumo’ foi o seguinte: diante da ausência completa de um regime legal para a propriedade desde a revogação do regime das sesmarias (o que instituiu um buraco legislativo de quase 30 anos), ficava estabelecido que o único modo de aquisição das terras devolutas (pertencentes ao Estado) seria a compra e venda, acabando-se, assim, ao menos no âmbito legislativo, com a prática secular de aquisição de terras por meio da posse (art. 1º). A ocupação dessas terras de outro modo ficava sujeita a pesadas penalidades (art. 2º). Após a definição legal de quais seriam as terras devolutas (art. 3º), foram estabelecidos os procedimentos para revalidação das sesmarias e concessões (art. 4º), bem como – e aqui um dos pontos nodais da lei – os requisitos de revalidação das posses (arts. 5º e 6º) que estabeleciam como principal exigência o fato da terra estar cultivada, não bastando os simples roçados e queimadas. Era instituída uma medição obrigatória dos terrenos, tento aqueles obtidos na época das sesmarias quanto aqueles provenientes das posses, sob pena da perda do direito sobre as terras (arts. 7º a 9º).

16 BRASIL, Leis e Decretos, Op. cit.

17 ASSIS, Luiz Gustavo Bambini, “A evolução do direito de propriedade ao longo dos textos constitucionais”, Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, vol. 103, jan. 2008, p. 781-791.

18 LIMA, Ruy Cime, Pequena história territorial do Brasil: sesmarias e terras devolutas, 4ª ed, Brasília, ESAF, 1988.

19 TARTUCE, Flávio, Direito Civil: Direito das Coisas, 9ª. ed, Rio de Janeiro, Forense, 2017.

20 BRASIL, Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1934, Disponível em: http://www.planalto.gov.br, Acesso em: 21 jun. 2022.

21 COMPARATO, Fábio Konder, “Função Social da Propriedade dos bens de produção”, Revista de Direito Mercantil Industrial e Financeiro, n. 63, jul./set, 1986, p. 76.

22 BRASIL, Leis e Decretos, Lei 4.504, de 30 de novembro de 1964, Disponível em: http://www.planalto. gov.br. Acesso em: 21 jun. 2022.

23 MARMELSTEIN, George, Curso de Direitos Fundamentais, 3ª. ed, São Paulo, Atlas, 2011.

24 CRUZ, Leila Rodrigues, A função social da propriedade e a Constituição Federal, 15 fev. 2020, Disponível em: https://www.direitonet.com.br, Acesso em: 07 jul. 2022.

25 GOMES, Orlando, A função social da propriedade, In: Anais XII Congresso Nacional de Procuradores do Estado, Salvador, 1986, p. 63.

26 PEREIRA, João Octaviano de Lima, Da propriedade no Brasil: estudo sobre a origem e formação da propriedade, São Paulo, Duprat, 1932.

27 SILVA, Ligia Osorio, Terras Devolutas e Latifúndio: Efeitos da Lei de 1850, 1ª Ed. Campinas, UNICAMP, 1996, p. 44. “Desejando a ocupação produtiva da colônia, a metrópole procurava conceder terras àqueles que tivessem condições de cultivá-las, o que significava nos marcos coloniais homens com recursos suficientes para possuírem escravos.”.

28 MARQUES, Benedito Ferreira, Direito agrário brasileiro, 10ª. ed, São Paulo, Atlas, 2012.

29 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Mares, A Função social da terra, 1ª ed., Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2003, p. 62.

30 Ibidem.

31 SILVA, Ligia Osorio, Terras Devolutas e Latifúndio: Efeitos da Lei de 1850, 1ª Ed. Campinas, UNICAMP, 1996.

32 MOTTA, Marcia Maria Menendes, Direito à terra no Brasil: a gestação do conflito:1795-1824, 2ª. ed, São Paulo, Alameda, 2012.

33 SILVA, Ligia Osorio, Terras devolutas e latifúndio: efeitos da Lei de 1850, 2. ed. Campinas: UNICAMP, 2008.

34 SILVA, Ligia Osorio Op. Cit.

35 MOTTA, Marcia Maria Menendes, Op. Cit.

36 BRASIL, Leis e Decretos, Op. Cit.

37 SMITH, Roberto, Propriedade da Terra e transição: estudos da formação da propriedade privada da terra e transição para o capitalismo no Brasil, 1ª ed., São Paulo, Brasiliense, 1990.

38 BENATTI, Heder José, Direito de propriedade e proteção ambiental no Brasil: apropriação e uso dos recursos naturais no imóvel rural, p. 344, Tese (Doutorado). Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido, Núcleo de Altos Estudos da Amazônia, Universidade Federal do Pará, Belém, 2003.

39 BRASIL, Leis e Decretos Op. cit. Art. 4º Para os efeitos desta Lei, definem-se: I –‘Imóvel Rural’, o prédio rústico, de área contínua qualquer que seja a sua localização, que se destina à exploração extrativa agrícola, pecuária ou agro-industrial, quer através de planos públicos de valorização, quer através de iniciativa privada; (...)”; Art. 4º, inc. I, Lei 8.629/1993: “Art. 4º Para os efeitos desta lei, conceituam-se: I – Imóvel rural, o prédio rústico de área contínua, qualquer que seja a sua localização, que se destine ou possa se destinar à exploração agrícola, pecuária, extrativa, vegetal, florestal ou agroindustrial.” (BRASIL, 1964, s.p)

40 IBGE, CENSO AGROPECUÁRIO 2017, Resultados Definitivos, Rio de Janeiro, IBGE, 2019, Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br, Acesso em: 14 jul. 2022.”O conceito de estabelecimento agropecuário, conforme recomendado pela FAO, é o que corresponde à unidade econômica de produção agropecuária sob administração única, incluídos os produtores sem área, os produtores que exploram áreas próximas distintas como sendo um único estabelecimento (mesma maquinaria, mesmo pessoal e mesma administração), e os produtores que exploram terras de imóveis rurais na forma de arrendamento, parceria, ou aquelas simplesmente ocupadas”.

41 Ibidem.

42 Ibidem.

43 Ibidem.

44 HOLSTON, James, Cidadania Insurgente: Disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, São Paulo, Companhia das Letras, 2013, “Podemos assim afirmar que o principal efeito prático encontrado com o advento da lei de terras e seu decreto regulamentador foi a impossibilidade dos pobres terem acesso à terra, excluindo cada vez mais estes de terem o pleno acesso à cidadania, sendo forçados a migrarem do campo para a cidade em busca da afirmação desse acesso ao direito de propriedade.”

45 MARTINS, José de Souza, Reforma Agrária: o impossível diálogo, São Paulo, EDUSP, 2004.

46 LARANJEIRA, Raymundo, Direito agrário, São Paulo, LTr, 1984. ________. Propedêutica do direito agrário, São Paulo, LTr, 1975.

47 BRASIL, Leis e Decretos, Op. cit.

48 MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, PECUÁRIA E ABASTECIMENTO, O Incra, Disponível em: https://www.gov.br, Acesso em: 21 jun. 2022.

49 BRASIL, Leis e Decretos, Op. Cit.

50 LOCH, Carlos, ERBA, Diego Alfonso, Cadastro Técnico Multifinalitário Rural e Urbano, ed. 346.81438, Cambridge, Lincoln Institut of Land Policy, 2007.

51 LASKOS, André Arruda, CAZELLA, Ademir Antônio, REBOLLAR, Paola Beatriz May, “O Sistema Nacional de Cadastro Rural: história, limitações atuais e perspectivas para a conservação ambiental e segurança fundiária”, Revista Desenvolvimento e Meio Ambiente, vol. 36, abr. 2016, p. 189-199, Disponível em: https://revistas.ufpr.br, Acesso em: 20 jul. 2022.

52 OBSERVA NIT, Índice de Gini, Disponível em: http://observa.niteroi.rj.gov.br, Acesso em: 21 jul. 2022.

53 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTÁTISTICA, Atlas do espaço rural brasileiro: IBGE, Coordenação de Geografia, 2ª. ed, Rio de Janeiro, IBGE, 2020, Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br, Acesso em: 21 jul. 2022.

54 EMBRAPA, “Módulos Fiscais”, Disponível em: https://www.embrapa.br, Acesso em: 25 jul. 2022. “Módulo fiscal é uma unidade de medida, em hectares, cujo valor é fixado pelo INCRA para cada município levando-se em conta: (a) o tipo de exploração predominante no município (hortifrutigranjeira, cultura permanente, cultura temporária, pecuária ou florestal); (b) a renda obtida no tipo de exploração predominante; (c) outras explorações existentes no município que, embora não predominantes, sejam expressivas em função da renda ou da área utilizada; (d) o conceito de ‘propriedade familiar’. A dimensão de um módulo fiscal varia de acordo com o município onde está localizada a propriedade. O valor do módulo fiscal no Brasil varia de 5 a 110 hectares”.

55 CARTER, Miguel, Combatendo a desigualdade social: o MST e a reforma agrária no Brasil, São Paulo, UNESP, 2010, p. 60-61.

56 SOUZA, Priscila, HERSCHMANN, Stela, ASSUNÇÃO, Juliano, Política de Crédito Rural no Brasil: Agropecuária, Proteção Ambiental e Desenvolvimento Econômico, Rio de Janeiro, Climate Policy Initiative, 2020.

57 Ibidem.

58 Ibidem.

59 Ibidem.

60 Ibidem.

61 BENATTI, Heder José, Cadastro territorial no Brasil: perspectivas e o seu futuro, Belém, UFPA, 2018.

62 Ibidem.