Epiqueya e a dimensão social da Justiça. O Estatuto das Vítimas

Epikeia and the social dimension of Justice the Statute of Victims

DOI: 10.19135/revista.consinter.00018.05

Recebido/Received 08/07/2023 – Aprovado/Approved 15/02/2024

Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos[1] – https://orcid.org/0000-0002-1835-761X

Marilene Araujo[2] – https://orcid.org/0000-0001-5611-3184

Resumo

A atualidade da Epiqueya (Epikeia, do grego, equidade) cumpre um papel central na compreensão atual do Estado liberal e democrático de direito. Em termos gerais, a tensão das correntes positivismo-antipositivismo é vista como manifestação das preocupações contrapostas que rodeiam a atividade de interpretação jurídica, sobretudo no marco da atividade judicial. Enquanto o positivismo tende a privilegiar a seguridade jurídica, o antipositivismo favorece os argumentos de Equidade e de Justiça material. O antipositivismo, insistirá com análises refinadas e busca desmascarar os verdadeiros motivos ou interesses das dinâmicas de poder que subjacem a uma decisão jurídica. Dentro da problemática da tensão das correntes positivismo-antipositivismo, a pesquisa lança luz à questão do papel da vítima. Por meio de metodologia analítica-descritiva que envolve a pesquisa qualitativa, com investigação bibliográfica e documental, o presente artigo vale-se do método hermenêutico e da Tópica aristotélica, investigando a Justiça Restaurativa, e teve por objetivos demonstrar que, sendo equilíbrio, a Equidade viria a ser a Justiça da Justiça jurídica. A hipótese consiste em constatar os novos paradigmas para a Justiça no século XXI, dentro do contexto de proteção às vítimas. Como resultado, analisa o PL 3.890/1990, que tramita na Câmara dos Deputados e visa instituir o Estatuto das Vítimas na legislação brasileira, uma dimensão social da Justiça do Século XXI, concluindo que há uma insuficiência do sistema legislativo brasileiro para a proteção das vítimas.

Palavras-chave: Epiqueya, Aequitas, Equidade, Justiça, Justiça Restaurativa, Estatuto das Vítimas.

Abstract

The topicality of Epiqueya (Epikeia, from the Greek, equity) plays a central role in the current understanding of the liberal and democratic State of law. In general terms, the tension between the positivism-antipositivism currents is seen as a manifestation of the opposing concerns that surround the activity of legal interpretation, especially within the framework of judicial activity. While positivism tends to privilege legal certainty, anti-positivism favors the arguments of Equity and material Justice. Antipositivism insists on refined analysis and seeks to unmask the true motives or interests of the power dynamics that underlie a legal decision. Within the problematic of the tension between the positivism-antipositivism currents, the research sheds light on the question of the role of the victim.

Through an analytical-descriptive methodology that involves qualitative research, with bibliographical and documentary research, this article uses the hermeneutic method and the Aristotelian Topic, investigating Restorative Justice, and aimed to demonstrate that, being balance, Equity would become the Justice of legal Justice. The hypothesis consists of discussing new paradigms for Justice in the 21st century, within the context of protecting victims. As a result, it analyzes PL 3.890/1990, which is being discussed in the Chamber of Deputies and aims to establish the Statute of Victims in Brazilian legislation, a social dimension of Justice in the XXI century, concluding that there is an insufficiency in the Brazilian legislative system to protect victims.

Keywords: Epikeia, Aequitas, Equity, Restorative Justice, Status of Victims.

Sumário: 1. Introdução; 2. A equidade e seus desafios; 2.1. Etimologia; 2.2. Aequitas; 3. A equity inglesa e a common law como um caso especial; 4. A finalidade do jurídico; 5. Justiça restaurativa: uma justiça para o século XXI; 5.1. Múltiplos Sentidos de Justiça; 6. O estatuto das vítimas-projeto de Lei 3890/2020; 7. Considerações finais; 8. Referências.

1  INTRODUÇÃO

O conceito de Epiqueya grega (Equidade) é sem dúvida chave no Direito, como a própria Justiça que a complementa e conduz desde a Filosofia Teorética ou Especulativa (Metafísica) e a Filosofia Prática, mais apegada à realidade humana, a dos usos e dimensões sociais, da moralidade, da política, da economia e do próprio Direito. Fundamentada por Aristóteles em sua Ética a Nicômaco e depois na Aequitas romana, configura a Equidade enlaçada com a igualdade, no caso concreto, inerente à Justiça. O presente artigo, por meio de pesquisa qualitativa, com investigação bibliográfica e documental, vale-se do método hermenêutico e da Tópica aristotélica, investiga a Justiça Restaurativa e tem por objetivos demonstrar que, sendo equilíbrio, a Equidade viria a ser a Justiça da Justiça jurídica.

A Tópica parte do Corpus Aristotelicum, mais precisamente do “Órganon” (Lógica), Parte 5. Apesar de não se tratar de concepção nova, utilizada pelos juristas romanos e comentaristas medievais, assume feição atual na obra de Theodor Viehweg[3], em sua “Tópica y Jurisprudencia” (1964). O problema leva-nos à escolha do sistema correto e adequado ao caso concreto. Os tópicos são argumentos jurídicos extraídos de princípios gerais e de decisões jurisprudenciais, que expressam certo consenso enfocado na solução de problemas. Sendo um modo típico de raciocínio lógico hipotético indutivo que procede por questionamentos sucessivos.  Nela o filósofo se ocupa da antiga arte da disputa, domínio dos retóricos e dos sofistas (dialeguestai). Colocado um problema qualquer, trata-se de raciocinar corretamente ex endoxon (isto é, partindo-se de opiniões, premissas, que parecem adequadas) para atacar ou defender. A expressão topoi, em português significa “lugares comuns” (loci comunis).

A questão da Justiça, por si só, constituiu uma problemática para o Direito, surgindo no século XXI várias teorias em busca de Justiças. Nesta seara as vítimas se destacam pela ausência de legislação criadoras de direitos, proteção e práticas restaurativas. Como hipótese se tem que a Justiça na dimensão social no século XXI passa pela necessidade de legislação apta a garantir direitos e proteção para as vítimas.

Ao delimitar ambos os termos indeterminados (Epiqueya e Aequus), aplicados indistintamente em um mesmo contexto, os objetivos pautados são:

  • Analisar, em um primeiro momento, a equidade no contexto do sistema da Comonn Law, ainda que este, historicamente encerre uma luta de poder entre os Tribunais medievais do ius commune e da própria monarquia, através da jurisdição da Equity, sobretudo a Chancelaria e o Direito Canônico.
  • Em seguida, explorar a influência do sistema aristotélico-tomista, a parte da Aequitas, de raiz romanística (do latim aequus), que chegou a todo sistema jurídico através de potências e valores do espírito, no cumprimento do fim do jurídico ante a impossibilidade da Lei de contemplar todos os cenários em que os valores e bens possam ser afetados.
  • Propor caminhos para a implementação do PL 3.890/2020 – O ESTATUTO DAS VÍTIMAS: uma JUSTIÇA PARA O SÉCULO XXI.

E, como resultado esperado, concluir que há uma insuficiência no arcabouço do sistema legislativo brasileiro, atingindo e originando inúmeras vítimas, diretas ou indiretas, com grande repercussão social. Mais do nunca, o denominado Estatuto das Vítimas (PL 3.890/2020) de autoria da promotora de Justiça Celeste Leite dos Santos, vem propor a adoção das denominas práticas de Justiça Restaurativa ou transformadora, fundadas na Epiqueya , ou Aequitas.

2  A EQUIDADE E SEUS DESAFIOS

A Equidade é uma questão aberta, eminentemente prática, devendo ser ponderada sempre na aplicação das normas. Sua natureza medial é dupla: na valoração quando na aplicação de uma norma pelos Tribunais e como meio regulador de uma situação, em substituição, inexistência ou insuficiência de uma norma jurídica.

2.1 Etimologia

Sendo um conceito indeterminado, pode derivar tanto:

a) Do latim Aequitas, de aequus: igual, justo, donde reveste o sentido de igualdade, conformidade e simetria.

b) Do grego Epiqueya, de epieikes: medido.

Do ponto de vista jurídico, pode ser entendido de três diversas óticas aparentes: Direito, Lei e Justiça, e um quarto elemento, menos evidente que é a própria Equidade. Podendo ser estudado em sua natureza única de bem final- a Justiça, ou medial- a Lei e o Direito, ou ainda de uma dupla natureza medial final – a Equidade, diferenciando as instituições concretas nela criadas.

Entendidas que ambas são boas, a Equidade e a Justiça, são iguais e diferentes ao mesmo tempo. Iguais no que ambas perseguem o bom; e diferentes porque, sendo igualmente boa a Equidade é ainda melhor. Ela é uma espécie de “Justiça em ação sobre o caso concreto”. Portanto, o equitativo é também justo. Restabelece a Lei nos pontos em que esta pode ter se enganado, por causa da fórmula geral que utiliza, ensina Aristóteles, mencionando a régua de chumbo de Lesbos, usada pelos arquitetos para medir as linhas curvas, que se amolda e se acomoda a forma da pedra que mede: tratando- se de coisas indeterminadas, a Lei deve permanecer indeterminada como elas. A Equidade atua, como fator corretor do rigor da Lei, que não pode atender a todos casos que lhe são submetidos.

Tomás de Aquino (1990), dá continuidade a concepção clássica de equidade, ao tratar das Leis, por serem os atos humanos, sobre os quais recaem as Leis, singulares e contingentes, que podem oferecer ilimitadas formas, afirma que estas podem falhar nos casos concretos. A Equidade é uma virtude- meio para se obter a justiça e o bem comum, meio este que se converte enfim.

Ela considera, diferentemente da Justiça, um sentido humano que deve ter o Direito, aproximando-se da Aequitas.  Remete ao “espírito da Lei” , posto que este informa a Lei e não é a vontade do legislador . O sistema Direito-Lei-Justiça e Equidade se faz consistente e válido.

Resumindo:

Sendo o valor final a Justiça e os valores mediais o Direito e a Lei, a Equidade participa da natureza de ambos. Esses elementos se relacionam:

  • Justiça- Lei: a Lei é uma ferramenta para conseguir a Justiça.
  • Justiça- Direito: o Direito aplica a Lei.
  • Equidade-Lei: a Equidade completa ou estende a Lei ao caso concreto para conseguir seu objetivo de fazer Justiça.
  • Equidade- Direito: regulariza ou suaviza a execução do Direito de acordo com a Lei.

2.2  Aequitas

Define Cícero, em sua Tópica (1949, p.389) que o desenvolvimento de um tema se dá no interior do tema em que está inserto:

Em certas ocasiões uma definição se aplica a totalidade do tema em que está sendo considerada[...]. O Direito Civil (Jus civile) é um sistema de equidade estabelecido por membros de um mesmo estado com o propósito de assegurar, seus direitos de propriedade, o conhecimento desse sistema é útil; portanto, a ciência do Direito Civil é útil. 

Relacionada com a mesma base etimológica da palavra Aequitas, (aequus) o sistema de equidade que é o Ius civile se aplica só aos que compartilham o mesmo estado, isto é, aos considerados iguais (cidadãos). A Lei que os torna iguais é ao mesmo tempo a que cria Direitos.

A Justiça, como parte desse sistema Direito-Lei-Equidade-Justiça, perde a qualidade última de valor que tinha desde a ótica da Epiqueya, dado que está ordenada pelo valor real da igualdade. Sendo assim, o justo é o legal.

A lei natural (a de todos os homens uns com os outros), responde em estrutura à razão que deve ser comum a todos os homens; e a Lei universal natural deve fidelidade à Justiça “genuína”.

3  A EQUITY INGLESA E A COMMON LAW COMO UM CASO ESPECIAL

Em breve estudo histórico- crítico sobre as definições positivas e referencias do conceito de Equidade, observa-se curiosamente que, um sistema de equidade no sentido ciceroniano, baseado na igualdade, nasce de um sistema baseado em privilégios, configurando uma contradição nas concepções dos próprios conceitos de Justiça ou Equidade. Todavia, sendo um conceito prático que “se aplica” podem existir outros matizes distintas das aqui adotadas para a sua compreensão.

2.1 Anteriormente nas fases históricas relevantes para a formação do Direito inglês, os povos celtas dominavam a Grã-Bretanha. Por não dominarem a escrita, não há documentação sobre o direito aplicado `a época. Sabe-se que o direito celta tinha grande influência religiosa. No período de domínio do Império Romano, a região era regida pelos costumes locais, regulados e aplicados pelo County Courts, tribunais mantidos pelos administradores dos condados. O território que hoje é a Inglaterra não foi tornado província romana, tendo autonomia política e jurídica, sob a fiscalização e controle romana.

Após a queda do Império Romano (antiguidade até o século V), grande parte da Europa é ocupada por diferentes povos “bárbaros”.  A Inglaterra é ocupada pelos anglo-saxônicos. Nesse período, várias tribos foram convertidas ao catolicismo, o que levou à aplicação do Direito Canônico aos fiéis. A primeira lei escrita foi influenciada pela Igreja (Dooms of Althelberth). A jurisdição dividia-se em três: a) do Rei, aplicada `as leis escritas; b) a dos County Courts, aplicando os costumes locais; c) a Eclesiástica, que aplicava o Direito Canônico. O chanceler, confessor do rei atuava como um contrapeso ao sistema de writs, com forte base em critérios morais, Equity acts in persona.

Durante a ocupação dos normandos, surge o sistema da Common Law, tendo o Direito Canônico competência especial e o Direito laico (Law) competência residual. Manteve-se o sistema escrito no que se referia ao direito público e os costumes como fonte básica do direito privado.

O sistema Law, que consistia nas leis e costumes locais passaram a ser administrados pelo Rei, através de seus juízes. A partir deste ponto em diante, o sistema seria unificado em todo o território, tendo o nome alterado para Comonn Law , e a Justiça era administrada pela Coroa através de um direito comum por cortes nacionais[4].

Deste modo, temos: a) Comonn Law; b) as cortes itinerantes ou em Westminster presididas pelos juízes do rei; c) writs, documento escrito pelo rei emanando uma ordem. Para os assuntos ligados ao Direito Canônico, foram criadas as Courts of Chancery, posteriormente transformadas na EQUITY LAW, para as questões residuais, estas durante a dinastia Tudor, tiveram um grande desenvolvimento.

A Equity nasce como um sistema destinado a corrigir as injustiças derivadas do sistema anterior, baseado na aplicação da Lei (oral) e é um processo fundamentalmente escrito. Pela evolução política e social operada ao longo do século XIX, no conjunto de disposições que conformam a Judicatura Act , os sistemas do Comonn Law e a Equity, passaram a sustentar seus procedimentos  ante o mesmo tribunal. Na mesma sede podem ser sustentados dois tipos de processos diferentes sem se fundirem em um só. Enquanto o primeiro segue oral, o processo da Equity é fundamentalmente escrito há, por exemplo, uma divisão de matérias, unida a uma certa tendência a codificação:

  • Comonn Law: direito penal, direito contratual, responsabilidade civil;
  • Equity: novas atribuições de caráter econômico como os Trust, questões de direito societário (falências, liquidações, sucessões) real property.

A Equity inglesa aspira a Epiqueya e não significa do ponto de vista jurídico igualdade. Qualquer referência ética há de ser expressa em termos jurídicos para tanto analisa o bom no contexto jurídico, ou seja, o Bem Comum aristotélico. O que é consistente com a equidade jurídica, na visão de Santo Alberto Magno:

Por sua mesma natureza, os atos humanos são instáveis e estão sempre submetidos a mudança. Há que respeitar esta contínua variabilidade do real e não pretender compreender todas as ações humanas dentro de uma só e mesma Lei universal, o real não deve acomodar-se a regra e sim a regra ao real. (ALBERTO MAGNO. Comentario al libro de la Política, III,300)

4  A finalidade do jurídico

Desde esse ponto de vista, dadas as exigências prévias de definição que implicam a eleição de um valor concreto do bom, todo o contexto jurídico forma um contínuo entre Direito, Lei, Equidade e Justiça, que eram os quatro elementos analisados. Vimos que, independentemente do ponto de partida, todas as definições formavam um contexto com uma finalidade.

Partindo, porém, da contraposição do bom genérico com a Equidade como o bom concreto, encontra Aristóteles outro valor do bom dentro do jurídico, que é a Justiça. Assim, a Justiça se convertia em um valor final. Nela, a Equidade participa de duas pulsões distintas: a medial, como meio para conseguir a Justiça, o que faz com que o equitativo seja também justo e a final, posto que sendo equitativo se obtém o justo, se converte em aspiração final em si mesma, o equitativo e/ou ser equitativo.

Donde o Direito e a Lei, independentemente de sua manifestação ou definição concretas, são elementos estritamente mediais dentro do jurídico para a consecução do valor final que é a Justiça.

5  Justiça Restaurativa: uma Justiça para o Século XXI

A questão da Justiça constitui o problema central de toda teoria e prática social. O vocábulo Jus, do latim clássico, foi empregado pelos romanos para designar o que hoje denominamos direito. Ao termo estava associada a ideia de poder, comando, de origem divina. Jus ou Jussum, é aquilo que é ordenado por uma autoridade. No baixo latim, o vocábulo directum (acusativo directus, a, um), tem o sentido de reto, conforme a regra. A palavra inglesa law e os termos equivalentes em outras línguas (como direito, lei, recht, droit, diritto, derecho) são usados de maneiras tão diversas, que as relações entre direito e justiça tem sido causa de muita confusão na teoria do direito.[5]

Figura jurídica de renome, Hans Kelsen, na obra Das Problem der Gerechtigkeit, analisa a noção de Justiça e a doutrina do direito natural:

A justiça é uma qualidade ou atributo que pode ser afirmado de diferentes objetos. Em primeiro lugar de um indivíduo. Diz-se que um indivíduo, especialmente um legislador ou juiz é justo ou injusto. Neste sentido, a justiça é representada como uma virtude dos indivíduos. Como todas as virtudes, pertence ao domínio da moral[6].

E, em outra obra, Kelsen (1993, p. 7) prossegue:

[...] Quando falamos de um direito positivo justo ou injusto, quando afirmamos a justiça ou injustiça como qualidade de normas válidas do direito positivo, quando, como se diz, julgamos as normas de direito positivo, segundo uma norma de justiça, as valoramos como justas ou injustas tomando por padrão de medida uma norma de justiça e presumindo ao mesmo tempo, contudo, que a validade dessas normas de direito positivo não depende da relação em que se encontrem com a norma de justiça.

Hans Kelsen reconhece que a tarefa de obter-se, a partir da lei, a única sentença correta, é essencialmente a mesma que a do ato de criação do direito (1982, p. 353).

Por exteriorizar na sua conduta em face de outros indivíduos, será justa quando corresponder a uma norma que prescreva essa conduta. E injusta em caso contrário. Assim, constitui o valor justiça. Já a norma moral é uma norma de justiça, mas nem toda norma moral constitui o valor justiça. Somente são válidas as normas de direito positivo conformes ao direito natural.

O fato é que o termo Justiça (Gerechtigkeit) entre nós tem sido utilizado em diferentes sentidos. Examinaremos apenas alguns neste artigo, relativos à equidade.

5.1  Múltiplos Sentidos de Justiça

A) Justiça como equidade (Justice as fairness)

Por equidade entendemos a Justiça no caso concreto. Agir limpa ou equitativamente (fairly) requer mais do que simplesmente seguir as regras. Tem que ser sentido e percebido o dever de jogo limpo (fair play) que, ao lado de outros deveres prima facie, como o de fidelidade e gratuidade são topos da moral básica. Observa John Rawls (RAWLS, 1999) que, à primeira vista, pode parecer que os conceitos de Justiça e Equidade são idênticos e que não existe razão para distingui-los. Todavia, essa é uma concepção errônea. Para demonstrar, enuncia dois princípios que as caracterizam. Antes alerta, que considera a justiça como uma virtude das instituições sociais ou do que denomina práticas (pratice). Pelo termo técnico “práticas”, Rawls entende toda forma de atividade especificada por um sistema de regras que define cargos, papéis, jogadas, castigos e que dá a essa atividade a estrutura que tem. Não se ocupa, da justiça como virtude de ações particulares ou de pessoas. Estes significados estão certamente conectados, mas não são idênticos. Tem por objetivo combater o utilitarismo predominante no mundo anglo-saxão, sem cair no intuicionismo. Sua teoria confere prioridade ao dever (right) sobre o bem (good), capaz de fundamentar filosoficamente essa noção de justiça, ontologicamente anterior a qualquer concepção empírica ou intuitiva de bem.

A noção de Justiça como Equidade é, para Rawls, uma noção pública de justiça de uma “sociedade bem ordenada”, o que significa encontrar princípios defensáveis por um conjunto de seres espirituais, em uma situação de igualdade inicial. Apenas essa igualdade é capaz de gerar acordos e decisões imparciais. É essa imparcialidade, equidade ou fairness, o que define propriamente a justiça. Assim, os indivíduos chamados a optar por uma ideia de justiça serão seres racionais, por um lado, e mutuamente desinteressados, por outro. Capazes de se comprometer e cooperar na elaboração de seu ideal de justiça. A denominada posição original é caracterizada porque os que a ela concorrem estão cobertos por um “véu de ignorância”. Ignoram o status social, as posses, ou inteligência que possuem, inclusive o sexo. Não sabem os bens que lhes correspondem. Conhecem apenas algo vago e indefinido como as bases elementares da organização social e da psicologia humana. É uma parte da teoria da decisão racional.

Justiça deve ser entendida como representando só uma das muitas virtudes das instituições sociais: pois estas podem ser antiquadas, ineficientes, degradantes, ou qualquer outra coisa, sem serem injustas.” Não há que confundir a justiça com uma visão omni- inclusiva de uma sociedade boa; a justiça é só uma parte de qualquer concepção desse tipo. É importante, por exemplo, distinguir entre aquele sentido de igualdade que forma parte de um ideal social mais compreensivo. Pode haver desigualdades que um aceita que são justas, ou ao  menos, não injustas, porém, por outras razões por outras razões desejaria abandonar. Centrarei no sentido usual de justiça, no qual esta consiste essencialmente na eliminação de distinções arbitrárias e no estabelecimento, dentro de uma estrutura prática, de um apropriado equilíbrio entre pretensões rivais [...]. (RAWLS, 1999, p. 78)

Princípios de justiça enunciados por John Rawls

Dois são os princípios enumerados por Rawls: primeiro, cada pessoa que participa em uma prática, ou que se vê afetado por ela, tem um igual direito a mais ampla liberdade compatível com similar liberdade para todos. Segundo, as desigualdades são arbitrárias a não ser que redundem em proveito para todos, e sempre que as posições e cargos aos quais estão adstritas, ou desde que sejam acessíveis para todos. Estes princípios expressam um complexo de três ideias: liberdade, igualdade e recompensa por serviços que contribuem para o bem comum[7].

O primeiro princípio vale mediante uma justificação para o desvio da posição original de igual liberdade (definida pelo padrão de direitos e deveres, poderes e responsabilidades, estabelecidos por uma prática) e o ônus da prova cabe a quem se desvia. O segundo princípio define quais os tipos de desigualdades são permitidos. Nesse caso todas as partes devem ganhar com as diferenças entre os benefícios e encargos.

Os princípios associados ao conceito de justiça são aqueles que as pessoas racionais reconheceriam quando se lhes impõem as restrições de moralidade em circunstâncias que dão origem a questões de justiça. Questões de justiça e equidade surgem quando pessoas livres, que não possuem autoridade umas sobre as outras, participam em instituições comuns e estabelecem ou reconhecem entre si as regras que as definem e que determinam as quotas de participação nos benefícios e encargos resultantes. Uma instituição é justa ou equitativa, portanto, quando satisfaz os princípios propostos uns aos outros, desde uma posição original de igual liberdade.

Resumindo, os dois princípios, que de fato, se desdobram em três: 1. O princípio da liberdade; 2. O princípio da igualdade de oportunidades; 3. O chamado princípio da diferença, que ordena beneficiar aos membros da sociedade menos favorecidos.

Aceitar os princípios de justiça equivale a subscrever uma determinada noção de bem comum.

B) Justiça restaurativa e suas práticas: percepções e reflexões

A “Justiça Restaurativa” possui um conceito aberto complexo e fluído que vem se modificando desde seus primeiros estudos e práticas. A etimologia da palavra “restaurar”, do latim restauro, as, avi, atum,are, tem o sentido de reparar, consertar, renovar, restaurar[8].

No final da década de 1970, Howard Zehr[9] conhecido como o avô da justiça restaurativa (JR) nos Estados Unidos- começou como praticante e teórico a experimentá-la  em Indiana. Em 1996, Zehr passou a ensinar na Eastern Mennonite University. É um dos pioneiros na mediação entre vítimas e ofensores. Atualmente leciona no Programa de Transformação de Conflitos (Conflict Transformation Program) na Universidade Menonita em Harrisonburg, Virginia. Em seu livro The little book of restorative justice, publicado pela primeira vez em 1991, pergunta: “Como devemos responder como sociedade ante o delito? Qual deveria ser a resposta ante um crime ou um ato de injustiça? O que requeremos para fazermos Justiça?” Nessa época, o que se percebia é que a justiça se entrelaçava com questões da criminologia, notadamente quanto ao sistema punitivo. Hoje, a proposta mundial de justiça evoluiu expondo aspectos de distintos processos restaurativos comemora seu Jubileu de Prata (25 anos de efetiva atuação). A fundação do Instituto Zehr ocorreu no final do semestre de 2012.  Zehr foi um dos primeiros defensores a tornar centrais as necessidades das vítimas na prática de justiça restaurativa. Um tema central do seu trabalho é o respeito pela dignidade de todos os povos, a necessidade intrínseca de fé. (SANTOS, 2021, p. 67-68)

Em 1977, Albert Eglash, psicólogo americano, menciona diversas vezes o termo “justiça restaurativa” em seu artigo intitulado “Beyond Restitution – Creative Restitution”[10], mas a origem do termo parece ter provindo, segundo Christian Gade, dos membros da Igreja da Irlanda em 1834, em contextos religiosos, ou  de um teólogo alemão, o reverendo Whitehouse em seus sermões dos anos 1950. Para ele, Eglash teria recortado a expressão do texto de 1955, The biblical doctrine of justice and law.

Eglash, enuncia uma restituição criativa ou “guiada”, como foco para a justiça. Contudo não punha ênfase nas necessidades da vítima ou seu papel no processo. Em 1977, estabelece o termo “Justiça Restaurativa”, distinguindo três tipos de justiça penal: a retributiva, a distributiva e a reparadora. Nela as metodologias ou procedimentos conferem aos protagonistas do conflito o papel de artífices da solução. Os tribunais limitam-se a os aproximar, proporcionando os meios. Reconhece-se o delito como fato específico e concreto e busca-se a reconciliação e recuperação emocional.

Como pilares restaurativos índica a cura (trocando o conceito de delito pelo o de conflito)[11]; proteção integral; proporcionalidade; a compensação; a reintegração das partes ao tecido social; o encontro dialogado; a construção de boas práticas; o trabalho conjunto dos pais e/ou os referentes da vítima. A primeira Corte que ditou uma sentença de justiça restaurativa foi em Kitchener, Ontário, em 1974. A origem do conflito foi produzida por dois jovens, que vandalizaram 22 propriedades vizinhas. Os jovens realizaram um compromisso de desculpas e reparação e ao escutarem as vítimas, foram capazes de restituir o dano que haviam causado antes mesmo do prazo estipulado.

O êxito desse primeiro caso originou a formação do primeiro programa de JR, conhecido como programa de reconciliação entre vítimas e ofensores. A partir de então, começou-se a repensar o ideal de Justiça. 

O modelo foi implantado inicialmente na Nova Zelândia, no Canadá e nos Estados Unidos. No Brasil, as práticas de JR são utilizadas no sistema penal e nas escolas buscando uma forma mais simples de relacionamentos entre os alunos no ambiente escolar.

A despeito da dificuldade conceitual muitos admitem a definição proposta por Tony Marshall (MARSHALL, 1999, p.443)[12]: “a justiça restaurativa é um processo pelo qual todas as partes que têm interesse em determinada ofensa, juntam-se para resolvê-la coletivamente e para tratar suas implicações futuras”.

A posição de John Braithwaite (BRAITHWAITE, 2002, p.11)[13] considera a definição acima, de Marshall, limitada. Para ele, em uma frase, a “Justiça restaurativa versa sobre restaurar vítimas, restaurar ofensores, restaurar comunidades”.

Podemos entender a justiça restaurativa, além dos mecanismos que a integram: mediação, conciliação, conferências grupais, e círculos sentenciadores, como um novo paradigma, multidimensional que responde a:

a) superação do paradigma da justiça punitiva por um modelo de justiça penal cuja resposta à infração penal não é apenas a averiguação do culpável e a imposição da pena. A justiça restaurativa parte da necessidade das vítimas: trato digno, proteção, informação, assistência, acesso à justiça, reparação e recuperação;

b) personalização frente à formalização, isto é, a burocracia e despersonalização que impera na prática forense;

c) redescobrimento, respeito e atenção à vítima frente a neutralização;

d) participação da comunidade ou sociedade civil. A JR compreende o entorno mais próximo das partes envolvidas. Facilita os trabalhos e serviços voluntários a comunidade como conteúdo possível de acordos de reparação, dando significado coletivo e realidade reparadora à infração penal.

e) não se trata de privatização, mas de certa devolução da resposta ao delito diante do monopólio estatal;

f) ampliação dos agentes do processo;

g) ampliação de respostas ao delito frente a pena;

h) introdução da palavra e escuta em resolução de conflitos interpessoais, diálogo;

i) acordo autônomo frente a decisão heterônoma;

j) reparação, conciliação e responsabilização juntas ou ao invés de mera sanção penal.

k) A “declaração de verdade” sobre o ocorrido ao invés da subsunção dos fatos ao tipo penal e aplicação da pena correspondente, permite às partes darem matizes desejadas.

De outra perspectiva Howard Zehr (ZEHR, 2017, 9-15)[14] inicia sua concepção dizendo-nos

“O que a Justiça Restaurativa não é...

  • A justiça restaurativa não é um programa orientado principalmente até o perdão e a reconciliação”;

Algumas vítimas e pessoas que advogam por seus direitos refutam a justiça restaurativa porque imaginam que o propósito desses programas é motivá-los e inclusive obriga-los a perdoar os ofensores e se reconciliarem com eles. Como veremos, o perdão e a reconciliação não figuram como eixos centrais da JR. Certamente ela proporciona um espaço para esse processo, mas não deve haver qualquer pressão nesse sentido.

  • A justiça restaurativa não é uma mediação[15].

Como os programas de mediação, os programas de JR se organizam em torno da possível realização de um encontro dirigido entre vítimas, ofensores e outros membros da comunidade. Não obstante, as vezes essa opção não é a mais apropriada. As estratégias restaurativas são importantes inclusive quando o ofensor não se encontra detido, ou no caso de que uma das partes não quer ou não pode participar. As práticas restaurativas não se limitam a um único encontro. No conflito mediado, as partes não têm toda a culpa e ambas podem ter contribuído em parte para o conflito (culpa compartilhada), devendo compartilhar as responsabilidades. Para participar em encontros restauradores, os ofensores sempre têm que aceitar a responsabilidade pelo seu delito. Um componente importante desse programa consiste em identificar e reconhecer o mal causado. Na linguagem neutra da mediação isso pode ser enganoso e até ofensivo para a vítima. Apesar do termo “mediação” ter sido adotado nos primeiros anos de JR, foi substituído por “conferência” ou “diálogo”, pelas razões acima apontadas.

  • A justiça restaurativa não é uma estratégia desenhada principalmente para baixar as taxas de reincidência delitiva;

Existem razões para crer, que as medidas restaurativas centradas principalmente em menores de idade, tem apresentado resultados alentadores para reduzir a reincidência delitiva. Todavia, estas não são a razão de ser da JR. A redução das taxas de reincidência é um subproduto, porém, antes de mais nada ela se implementa por um imperativo moral. As necessidades da vítima devem ser atendidas, os ofensores devem ser motivados a assumir sua responsabilidade, as pessoas afetadas pelo delito devem ter participação no processo, independentemente da diminuição da frequência de seus delitos.

  • A justiça restaurativa não é nem um programa, nem um projeto específico;

Muitos programas incorporam a JR de maneira plena ou parcial. Não existe, porém, um programa modelo que seja considerado como ideal. Os modelos restaurativos estão adstritos, em alguma medida, na cultura em que surgem[16]. As comunidades devem avaliar suas necessidades e recursos através do diálogo e aplicarem os princípios restauradores a seus próprios contextos.

A Justiça Restaurativa é uma bússola, não um mapa.”

  • A justiça restaurativa não está dirigida principalmente para a atenção de delitos menores, nem de delinquentes primários;

Costuma-se ter maior apoio da comunidade para programas de JR dedicados aos “delitos menores”, de menor potencial ofensivo. Não obstante, a experiência demonstra que o maior impacto destes se dá nos casos mais graves. Dentre estes a área de violência doméstica tem recebido aplicação cautelosa.

  • A justiça restaurativa não é nova, nem de origem norte-americana.

Com o desejo de aplicar a sua fé e sua perspectiva pacifista à dura realidade da justiça penal, os Menonitas e outros trabalhadores da paz (inicialmente em Ontário, Canadá, e depois em Indiana, nos Estados Unidos) experimentaram encontros vítimas – ofensores, que deram origem a programas desenvolvidos nestas comunidades. Estes modelos, posteriormente, se espalharam pelo mundo todo. Antes disso, esse movimento deve a diversas tradições culturais e religiosas, como aos povos indígenas da Nova Zelândia (maoris) e dos Estados Unidos (navajos). Os antecedentes da Justiça Restaurativa são muito mais amplos e suas raízes mais profundas que as iniciativas promovidas pelos menonitas americanos durante os anos 70. Na realidade, são tão antigas como a história humana.

  • A justiça restaurativa não é uma panaceia, nem tampouco um substituto do sistema legal;

A JR não é a resposta para todas as situações, tampouco deve substituir o sistema legal, embora garanta os direitos humanos básicos. Como exemplo, cite-se as cortes juvenis da Nova Zelândia.

A maioria dos aplicadores da JR concorda que o crime tem dupla dimensão: pública e privada. Precisando, fala-se em uma dimensão social e uma dimensão local e pessoal. O sistema legal ocupa-se principalmente das dimensões públicas, isto é, dos interesses e responsabilidades da sociedade representados pelo Estado. Esta perspectiva, no entanto, minimiza ou ignora em grande parte os aspectos pessoais e interpessoais do crime. A JR busca trazer uma visão mais equilibrada a nossa experiência de justiça.

  • A justiça restaurativa não é necessariamente uma alternativa ao encarceramento;

Na sociedade ocidental e nos Estados Unidos em particular, se recorre ao encarceramento como resposta ao delito. A JR evita as prisões e modifica significativamente a natureza destas. Nada impede que ambas convivam de maneira conjunta ou paralela.

  • A Justiça Restaurativa não se opõe necessariamente a retribuição.

A sociedade deve contar com um sistema para esclarecer “a verdade” da melhor maneira possível, se alguém se nega a reconhecer sua responsabilidade pelos ilícitos praticados. O sistema legal representa o império da lei, o devido processo legal, um profundo respeito pelos direitos humanos e o desenvolvimento ordenado do marco legal. A justiça restaurativa deve, paralelamente, avançar até um processo que seja restaurativo. Entre os dois extremos, justiça penal e justiça restaurativa, devemos usar ambos os sistemas.”

“A Justiça Restaurativa é ...

A justiça restaurativa é um rio”. Durante muito tempo, seu arroio devia fluir subterrâneo devido aos modernos sistemas legais. Porém, no último quarto de século, essa correnteza surge na superfície, convertendo-se em rio. Como todos os rios, existe porque se alimenta de muitos afluentes que fluem de todas as partes do mundo. Diversas tradições religiosas desembocam neste rio[17].

Princípios Restaurativos

A JR se baseia em um conceito antigo e popular de delito:

  • O crime se define como um ato daninho contra as pessoas e as relações interpessoais.
  • As ofensas exigem obrigações.
  • A obrigação principal é a de reparar o dano causado.

Em suma, indagamos:

o que é Justiça? Justiça de quem? Justiça para quem? Pode a Justiça restaurar? Restaurar o que?

A justiça restaurativa é um modelo de justiça que apresenta um caráter multifacetado, universal e ao mesmo tempo singular, que não se atém a uma cronologia linear. Objetiva superar o sistema penal tradicional, lastreado na ideia de retribuição de cunho punitivo. O delito atenta contra as pessoas e relacionamentos e não apenas contra o Estado e seu ordenamento. A superação demanda medidas e políticas públicas voltadas para a Vítima, a comunidade e ofensores. Assim como o direito penal deve ser visto como a ultima ratio no tocante à proteção dos bens jurídicos mais importantes, o processo (judicial) também deve ser visto como último recurso no tocante ao conflito.

Experiência Brasileira

Desde os idos de 1999, por meio da Resolução 1999/26, as Nações Unidas, por meio de seu Conselho Econômico e Social, vêm adotando linhas de ação no sentido de implantação da justiça restaurativa. Em 2000 editou a Resolução 2000/14, consagrando princípios básicos para a utilização de programas restaurativos em matéria criminal e, em 24 de julho de 2002, aprovou a Resolução 2002/12 no mesmo sentido, explicitando os conceitos de programa e de processo restaurativo[18].

No Brasil a justiça restaurativa ganhou visibilidade a partir de 2005, com e em razão da parceria estabelecida entre o Ministério da Justiça e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), quando foi lançado o projeto “Promovendo Práticas Restaurativas.” Essa parceria promoveu seminários, publicou obras coletivas, lançou três projetos-piloto, nas cidades de São Caetano do Sul – SP, em Porto Alegre-RS, (Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania – CEJUSC) e em Brasília. Nas duas primeiras cidades, os projetos foram desenvolvidos pelas Varas da Infância e Juventude; em Brasília, por Juizados Especiais Criminais. Com a criação do Núcleo de Estudos em Justiça Restaurativa na Escola Superior da Magistratura da Associação de Juízes do Rio Grande do Sul (AJURIS), teve início o projeto Promovendo Práticas Restaurativas no Sistema de Justiça Brasileiro, na  3ª Vara da Infância e Juventude, em casos que envolviam medidas socioeducativas e protetivas.

Até 2015, o programa de justiça restaurativa era aplicado no Município de São Caetano do Sul em dois locais distintos: no Fórum e em uma escola da rede pública da cidade, chamada Padre Alexandre Grigoli. Na escola, eram realizados dois tipos diferentes de atendimento vinculados à justiça restaurativa: existia um momento em que uma professora realizava círculos restaurativos com alunos para resolver desentendimentos entre os alunos, professores ou funcionários da escola; e, ainda, aos sábados, três facilitadores atuavam em círculos restaurativos, independentemente de os casos terem efetivamente resultado em processos criminais e que, portanto, foram encaminhados pelo magistrado ou  pelo promotor do caso.

Os conflitos decorrentes do âmbito escolar e que envolviam unicamente alunos, fossem eles do ensino fundamental ou médio, não eram encaminhados para o Juízo da Vara da Infância e Juventude do Município de São Caetano do Sul, sendo resolvidos por um professor, que guardava os registros dos procedimentos restaurativos, não os enviando à Justiça para homologação. Na dinâmica dos círculos restaurativos no contexto escolar, caso eventualmente uma das partes não comparecesse ou não desejasse participar, não ocorria a dinâmica restaurativa, já que a participação é voluntária.

De outra parte, nos casos enviados pelo magistrado ao programa de justiça restaurativa, se uma das partes não comparecesse na data e horário do círculo restaurativo, sua ausência era comunicada ao Juízo, que então poderia convocar ou não a pessoa para participar do círculo novamente[19].

No momento do pré-círculo, o facilitador atendia individualmente cada uma das partes envolvidas no conflito, ocasião em que eram explicados aos “potenciais participantes” o que é a justiça restaurativa e como funcionaria o círculo. Nesse contexto, é importante ressaltar que, para o ofensor fazer parte do procedimento restaurativo, era necessário que ele se responsabilizasse pelo evento danoso.

Transcorrido o período do pré-círculo, passava-se então para a efetiva realização do círculo. Nesse momento, os participantes envolvidos na situação conflituosa eram novamente ouvidos individualmente pela facilitadora, para só depois poderem se reunir e decidir, juntos, as formas de reparação do problema. No decurso do círculo, caso as partes realizassem um acordo, finalizava-se a sessão e o pós-círculo ficava na dependência do desfecho de cada caso trabalhado na sessão, mas devendo necessariamente haver uma outra reunião com a facilitadora para que, então, pudesse haver a efetiva resolução do caso[20].

Conforme minuciosa análise dos círculos restaurativos objeto de estudo de campo, Tonche extraiu uma importante conclusão: os conflitos trazidos aos círculos restaurativos são considerados muito simples para serem levados ao Judiciário, e, portanto, a justiça restaurativa apresenta-se como uma maneira de evitar que conflitos saiam das escolas, ao passo que esses conflitos ainda continuam sob o controle do magistrado e o papel pedagógico é exercido pela facilitadora[21].

Sob o prisma colocado pela autora, sua crítica à aplicação das práticas restaurativas no sistema de justiça brasileiro evidência apenas o intuito de retirar do Poder Judiciário atos infracionais (condutas descritas como crime ou contravenções penais cometidas por menores de dezoito anos de idade) de menor potencial ofensivo, o que, de fato, retira o potencial restaurativo dos demais delitos que são diariamente levados ao Judiciário. Embora a justiça restaurativa possa ser aplicada a crimes com diferentes graus de potencial ofensivo, no contexto brasileiro há uma seleção delimitando os crimes considerados menos graves, para os quais há a recomendação de práticas restaurativas. “Nesse âmbito, a questão da utilização dos programas restaurativos para casos de menor gravidade pode se constituir num paradoxo, porque quanto menor a necessidade de reintegração social está presente, mais a justiça restaurativa é recomendada”[22].

Sobre a aplicação de práticas restaurativas em Porto Alegre, desde 2012 a justiça restaurativa estava incluída no Mapa Estratégico do Tribunal de Justiça, pela metodologia de solução de conflitos, gerenciada pelo Núcleo Permanente de Métodos Consensuais e Solução de Conflitos. Foram implantados quatro projetos-piloto no Foro, por meio do Programa Justiça Restaurativa para o Século 21.

Essas práticas são aplicadas por dois servidores técnicos e dois voluntários e são supervisionadas por um magistrado, que realiza a coordenação juntamente com o juiz titular e coordenador do Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania. O procedimento restaurativo abrangeu crimes de roubo e extorsão, crimes contra a honra, lesão corporal e contravenção penal.

Três são as etapas desenvolvidas: pré-círculo, círculo e pós-círculo. Assim sendo, após os casos terem sido distribuídos ao CEJUSC, foi realizado contato telefônico com o ofensor, para marcar um encontro para analisar a possibilidade do uso da justiça restaurativa e, com o aceite dele, deu-se início à fase do pré-círculo. Após esse procedimento, a vítima foi contatada e, com ela, realizado um novo encontro de forma separada. Portanto, na fase do pré-círculo ocorria a preparação das partes para o encontro circular. Nesse momento, conversava-se sobre o evento danoso e as necessidades advindas da situação de forma individual. Com o aceite, tanto do ofensor quanto da vítima, o círculo restaurativo era marcado. Esse encontro possui metodologia específica, em que pessoas capacitadas atuam na posição de facilitadores, orientando as atividades, para que as partes busquem compreender a dimensão do ocorrido, manifestando suas necessidades e assumindo a autorresponsabilidade, para que, ao final, assumam o protagonismo na elaboração de um acordo e na superação da situação de conflito. A fase do pós-círculo ocorre após a realização do acordo no círculo restaurativo e permite acompanhá-lo, dar significado às ações acordadas, bem como, se necessário, estabelecer novos prazos para cumprimento do acordo. A assunção da responsabilidade pelos atos acabou por aparecer na fala dos envolvidos, junto com a percepção de como sua ação teria afetado a vida da outra parte.

Esse aspecto, da justiça restaurativa e das formas de aplicação envolvendo relações comunitárias, denota-se em uma das considerações da Resolução n. 225/2016 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que menciona que não apenas os aspectos relacionais individuais devem ser considerados, mas também, os comunitários, institucionais e sociais, em face da complexidade dos fenômenos de conflito e violência.

Recentemente, em abril de 2021, foi apresentado pelo deputado João Campos, um parecer substitutivo na Comissão Especial do Código de Processo Penal, destinada a analisar o PL nº 8045, de 2010, reconhecendo e incorporando a Justiça Restaurativa Penal, no artigo 114 e ss.

6  O Estatuto das Vítimas – Projeto de Lei 3.890/2020

Na sociedade atual, alguns paradigmas se impõem, alterando de forma rápida as relações sociais. Atualmente, as revoluções tecnologias provocam, desde o final do século passado, uma generalização de símbolos. As sociedades passam a estar conectadas a uma rede de computadores que produz um espaço virtual comum e, ao mesmo tempo, fragmentado. Assim, vivenciamos a ideia de rede, de uma sociedade em rede[23].

O cenário do Direito acaba, deste modo, sendo imposto pelo contexto cultural e social. Da pirâmide à rede, com essa metáfora, o jurista François Ost traz um novo paradigma para o direito. Da mesma forma, Gunther Teubner traz a tese de hiperciclo para explicar o fenômeno atual.  Da hierarquia às redes não existem mais posições de centralidades de direitos superiores e dogmas inabaláveis. Assim, vítimas diretas e indiretas, ofensores, comunidades, todos em rede mantêm os seus direitos sem que haja em absoluta superioridade de um sobre o outro.   

A questão colocada, no meio caminho entre as ciências jurídicas fundamentais e aplicadas, leva a adoção de um processo constituído em uma rede de interações estabelecidas entre a pluralidade de atores[24] com funções definidas por lei.

Neste movimento atual, a percepção de “Justiça penal” necessita oferecer uma resposta mais ampla com mecanismos ou meios para minimização dos efeitos negativos na esfera pessoal, familiar e inclusive na própria convivência social (comunidade). 

Diante de tais constatações, se busca um modelo com um instrumento de tutela eficaz para uma sociedade cada vez mais complexa. A responsabilização do agressor combinada com sua reabilitação necessita ser completada com a compensação e reparação das vítimas. Para tanto, se faz necessário declarar o rol de direitos que as vítimas gozam. 

A figura da vítima adquire uma nova dimensão a partir da nova dimensão da Justiça, por exemplo, com a reformulação e adaptação do “princípio do acesso à justiça” que pode significar tanto o modelo de Justiça como as vias de tutela. Para além do protagonismo dos cidadãos no processo, surge um movimento que traz a visibilidade das vítimas, que durante séculos foram as grandes esquecidas do processo, mas que reclamam um papel de maior atuação e visibilidade[25].

No âmbito internacional, por exemplo, a vítima viu-se, confrontada com o silêncio (ou quase)[26] dos primeiros instrumentos legais na matéria, silêncio esse que foi paulatinamente perturbado pela pressão da sociedade civil, da opinião pública e das próprias vítimas. Com a adoção do Estatuto de Roma, em 1998, ocorre um passo decisivo no reconhecimento das vítimas pela justiça penal internacional. O Estatuto tem diversos dispositivos que conferem às vítimas o direito de participar perante o Tribunal, de ser informado sobre o andamento do processo, apresentar manifestações durante as investigações e o julgamento e ainda, o direito a obtenção de reparação.

A Declaração de Princípios Básicos de Justiça para Vítimas de Crime e Abuso de Poder adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 29 de novembro de 1985 (resolução 40/34) também constitui um dos instrumentos básicos em termos de padrões internacionais para a proteção das vítimas.  Ainda há a Resolução 60/147 que estabelece os princípios e diretrizes básicos sobre o direito ao recurso e a reparação para vítimas de violações e flagrantes das normas internacionais de direitos humanos e de violações graves do direito internacional humanitário. Tais direitos foram adotados e proclamados pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 16 de dezembro de 2005. Por último, o Parlamento Europeu e o Conselho do Parlamento Europeu adotaram, de 25 de outubro de 2012, a Diretiva 2012/29 que estabelece as normas mínimas relativas aos direitos, ao apoio e à proteção das vítimas da criminalidade.  A Diretiva declara no preâmbulo “não se pode fazer Justiça se não é permitida as vítimas explicar as circunstâncias do delito e apontar provas de forma compreensível para as autoridades competentes”.

Hans Von Henting e Benjamin Mendelson definiram a vítima como um sujeito capaz de influir significativamente no fato delitivo, em sua estrutura, dinâmica e prevenção. Essa corrente centra em três pilares básicos: a informação, os direitos das vítimas, a atenção e assistência econômica e as necessidades das vítimas[27]

Em Portugal, a Lei 130/2015, consagrou o estatuto da vítima, colocando a vítima como uma quase-sujeito ou interveniente no âmbito do processo penal, dando-lhe o direito de informação e participação. Ainda, estabelece a possibilidade de não prosseguimento da ação penal em caso de alguns crimes patrimoniais quando há reparação aos danos sofridos pela vítima[28]. Na Espanha, o estatuto jurídico da vítima, lei 4/2015, segundo Sumalla, transpõe os conteúdos da diretiva 29/2012, reconhecendo que as vítimas têm os direitos de ser informada, participar no processo, receber apoio e acolhimento independente de sua decisão de denunciar ou não o fato delitivo[29].

Diante do movimento vitimológico a nível global, o ordenamento jurídico brasileiro, busca um instrumento legislativo efetivo que incorpore as práticas restaurativas, reconhecendo a dignidade das vítimas e tutelando seus direitos e garantias.

O Projeto de Lei 3.890/2020 que prevê a inclusão no ordenamento jurídico brasileiro do Estatuto da Vítima traz um conceito amplo de vítima, incluído para além da vítima de crime, as vítimas de desastres naturais e calamidades públicas, uma vez que a vitimização não é fenômeno individual[30].

Celeste Leite dos Santos explica que a proteção da vítima “é ampliada para considerar também como vítimas as pessoas que tenham sofrido graves violações de direitos humanos ou os efeitos de catástrofes naturais, epidemias ou acidentes, sendo consideradas para os fins do Estatuto, como vítimas coletivas”[31].

François Lebigot e Philippe Bessoles explicam que os desastres naturais (terremotos, tsunamis, tempestades, avalanches, etc.) e provocados (guerras, terrorismo, tomada de reféns, genocídios, etc.), acidentais (incêndios, explosões, quedas de aviões, naufrágios, etc.) geram em pessoas (vítimas) patologias traumáticas graves e incapacitantes.

Para os autores, o psicotrauma imediato reúne polissintomatologia aguda diretamente ligada a emergências. A pessoa apresenta uma semiologia próxima aos estados psicóticos. O quadro clínico é invadido por estupefação psíquica ou fuga de pânico, episódios alucinatórios ou confusos. Ainda, existem tratamentos de emergência médico-psicológica que têm por objetivo reduzir o sofrimento psíquico, antecipar sequelas traumáticas, identificar repercussões individuais e promover a expressão de afetos[32].

Em seu artigo 3º, o projeto de lei define como vítima, “vítima: pessoa natural que tenha sofrido dano físico, psicológico, moral, material, institucional e sexual diretamente decorrente da prática de infração penal, ato infracional, calamidade pública, desastre natural ou epidemia. Há também a proteção de vítimas indiretas. As primeiras definidas como pessoas com relação com a vítima de afeto ou parentesco até o terceiro grau, desde que com a vítima convivesse, estivesse aos seus cuidados ou dela dependesse economicamente.

As vítimas de especial vulnerabilidade são as que se encontram em situação de especial fragilidade resultante de idade, sexo, raça, estado de saúde ou deficiência, bem como do fato de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições de sua integração social, tendo necessidades específicas de proteção.

O projeto também faz a prevenção da revitimização. A vitimização denominada de primária é a prática do crime e as respectivas consequências diretas na vítima. Já secundária é uma segunda vitimização (revitimização) e ocorre quando existe o contato da vítima com as instâncias formais e informais de controle e se projeta no “decurso do processo penal e nas relações que a vítima mantém com os operadores do judiciário. Isto acontece quando:

  • Não há fornecimento de informações acerca dos direitos que lhe correspondem.
  • Falta de atenção e dedicação prestada pelos profissionais judiciais.
  • Tratamento pessoal não adequado que conduz a um agravamento da situação psicológica, maximização da sua vulnerabilidade e sentimento de culpabilização resultantes do sofrimento do crime.
  • Duração excessiva dos procedimentos penais.
  • Repetidas deslocações aos órgãos envolvidos.

O projeto estabelece o direito da vítima de ser atendida individualmente, sendo vedada a prática de quaisquer atos que importem em revitimização e outras violações à sua dignidade, sendo que a vítima tem direito de ser ouvida em ambiente informal, seguro e reservado, devendo ser criadas as adequadas condições para prevenir a revitimização.

Como direitos universais, o projeto do estatuto assegura direito à comunicação, defesa, proteção, informação, apoio, assistência, a atenção, ao tratamento profissional, individualizado e não discriminatório desde o seu primeiro contato com agentes públicos, sendo garantida sua efetiva participação e acompanhamento mesmo após a cessação do tratamento de saúde ou do julgamento do processo criminal.

A vítima tem garantido o direito à informação de forma digna e não discriminatória, sendo a informação condição para o exercício dos direitos, ela deve ser fio generalizado em benefício das vítimas. 

Assim, em  seu primeiro contato com as autoridades e servidores competentes, a vítima deve ser informada sobre o acolhimento, o atendimento integrado e multidisciplinar, o tratamento digno, a não discriminação e o acesso a informações sobre: a) os serviços e órgãos públicos a que pode recorrer para obter assistência e apoio, bem como sua natureza; b) os procedimentos subsequentes à notícia-crime, à queixa e ao boletim de ocorrência; c) a forma como será realizado o seu depoimento e demais atos extraprocessuais e processuais relacionados; d)  a possibilidade de receber proteção especial e quais os procedimentos necessários para obtê-la; e)  os meios para obter acesso à assistência jurídica; f)  os direitos e procedimentos para receber indenização; g)  os direitos à interpretação e tradução das informações relativas ao caso, quando necessário; h) os mecanismos que pode utilizar no Brasil para defender os seus interesses, sendo residente em outro país; i)  as práticas restaurativas disponíveis, caso aplicáveis; j)  as medidas que poderão ser impostas ao autor do evento traumático; l) a possibilidade de ser notificada das decisões proferidas na ação penal e na execução penal; m) os dados que pode obter por meio da utilização do Portal da Vítima.

Em uma perspectiva da vitimologia, a assistência à vítima é compreendida como a aplicação de todas as medidas para conhecer, compreender e ajudar na recuperação da vítima.  O acolhimento à vítima implica respeito, credibilidade, ajuda, proteção, direito à saúde, tratamento  digno,  acesso  à  justiça,  reparação  material  e  moral devidos em razão do delito[33].

Assim, como um dos eixos da política pública estabelecida no projeto, tem-se o direito à assistência por profissionais da saúde e assistência social visando a superação do trauma e a reabilitação. Ainda, há a necessidade de perícia médica para constatação de danos psíquicos (transtornos – saúde metal).

A vítima goza ainda do direito ao tratamento individual e não discriminatório. O tratamento individual deve ser adequando a situação de cada caso particular. Já não se pode ocorrer discriminação negativa com base em categorias sociais (comunidades, posições sociais, status adquiridos). A discriminação acaba por ser naturalizada, justificada por processos de racionalizações transmitidas por gerações. A partir disso, há a exclusão de direitos ou mesmo algum tipo de ação violenta, podendo ocorrer o processo de vitimização e revitimização.

A previsão da reparação material, moral e psicológico também constitui uma forma de acolhimento prevista no projeto, ocorrendo o ressarcimento de despesas quando haja intervenção no processo, a restituição imediata de bens objeto de investigação e a indenização quando da prolação da sentença criminal danos materiais, moral e psicológico. A capacitação dos agentes públicos envolvidos no processo de acolhimento à vítima é prevista no estatuto (artigo 41) para haver aumento da sensibilização e empatia evitando tratamento discriminatório.

Com a chegada do Estatuto da Vítima há um marco legal para estabelecer políticas públicas voltadas para às vítimas, acabando com o silenciamento desses atores no âmbito do processo, trazendo políticas de desvitimização, prevenção de vitimização e de acolhimento para as vítimas individuais, coletivas e as vítimas indiretas.

7  Considerações finais

A epiqueya se estabelece como marco de compreensão do Estado de Direito Democrático, do Direito e da Justiça.  Com Aequitas romana, o justo é o legal. No sistema commom law, equity se destina a corrigir as injustiças de um sistema anterior oral, sendo o início do processo escrito, mas ela não significa basicamente igualdade.

A equidade ou simplesmente justiça no caso concreto, em Rawls não se aplica como virtude do agir de pessoas, mas uma das muitas virtudes das instituições sociais. A Justiça como Equidade serve para uma sociedade bem ordenada.

No século XXI, novas ideias de Justiça surgem, como a Justiça Global, de Thomas Pogge, Amartya Kumar Sen e Martha Nussbaum. O primeiro coloca como dever de todos inibir as injustiças mesmo que não sofram seus efeitos diretos, em razão das consequências advindas das conexões planetárias que são interdependentes. Amartya considera que as forças do mercado incentivam que os alimentos, por exemplo, sejam disponíveis nos lugares onde as pessoas estejam dispostas a pagar mais, sendo importante estabelecer base de argumentações racionais para discutir as práticas para a redução das injustiças Martha Nussbaum defende que educar para democracia hoje é pensar local e global como uma cadeia interdependente e cooperativa. A educação é chave para efetivação da justiça global, cujo pilar é desenvolver nas pessoas a empatia.

Para além da Justiça Global, a Justiça Restaurativa também é considerada uma Justiça do século XXI. O seu conceito é aberto, complexo e fluído. A justiça restaurativa tem um caráter universal e singular, ocorrendo vários tipos de práticas que objetivam superar a justiça retributiva, bem como o sistema penal tradicional. As Vítimas, os ofensores e a comunidade são atores participantes das práticas, sendo que no trato, as práticas partem da necessidade das vítimas, observando a sua proteção, o acolhimento, a reparação e recuperação.

O Direito no século XXI possui um caráter diferenciado daquele do século XIX e XX, passando a ser descrito com metáforas como a utilizada por François Ost “o Direito da pirâmide à rede”.

Neste contexto, novos protagonistas surgem e a necessidade de criação e consolidação de novos direitos. É o caso, dos direitos das vítimas cujo estabelecimento busca uma atenção à vítima., começando entendê-la melhor. O projeto de lei 3890/2020 propõe novos caminhos para além da aplicação da pena e reabilitação do ofensor. As políticas de acolhimento, proteção e restauração não apagam o passado, ou seja, o evento, mas possibilitam que as Vítimas possam olhar para o futuro, fazendo com que reencontrem a sua dignidade.

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Notas de Rodapé

[1]     Professora livre-docente em Direito Penal pela USP. Doutora em Filosofia do Direito. Professora no programa de pós-graduação da PUC/SP. Professora da graduação em Direito da PUC/SP. Doutora em Ciências da Religião pela PUC/SP ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1835-761X- e-mail: iete73@hotmail.com 

[2]     Advogada. doutora em Filosofia do Direito pela PUC/SP. Mestra em Direito Constitucional pela PUC/SP. e-mail:maraujo@aasp.org.br; ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5611-3184.

[3]     VIEHWEG, Theodor. Topica y Jurisprudencia, Madri, Taurus, 1964. FERRAZ JR., Tércio Sampaio, verbetes:  “Argumentar”, “Argumentação II” e “Argumento II”, In: Enciclopédia Saraiva do Direito, v. 7, 1997, p. 449-468. Segundo Theodor Viehweg, Aristóteles distingue os raciocínios em: uma (1) apodexis que existe quando se obtém um raciocínio partindo de proposições primeiras ou verdadeiras, ou daquelas cujo conhecimento procede por sua vez de proposições primeiras ou verdadeiras; (2)um raciocínio dialético, que é o que se obtém partindo de proposições conforme as opiniões aceitas ( Top. I.1.4.); (3)um raciocínio erístico ( ou sofístico) que se funda em proposições.

[4]     Scartezzini, Origem Histórica e Fontes Da Common Law. Temas, Emergenciais da Equity E os Impactos no Direito Comparado, in Santos, Maria Celeste Leite dos Santos et Araujo Marilene (org), Poder, Justiça e Direito: Estudos à Luz do Sistema Jurídico Inglês, 2021, p.23.

[5]     Os filólogos e juristas consideram uma palavra primitiva derivada de iussum (ordem) e iubere (ordenar, preceituar). Outros entendem que o vocábulo deriva do sânscrito yu, yug, yung, que significa liame, ligação, fechado, circunscrito e daí a assembleia em forma de circo, o tribunal. Por conseguinte, ius seria o estabelecido pelos juízes, que refletem nas suas decisões o pensar da comunidade (populus) e declaram o iustum e reprovam o iniustum (o a-normal). Modernamente, vários autores pensam que a origem sânscrita yaus (puro, bom, santo), significa algo procedente da divindade. Outros, reputam sua origem em Ioues, Iovis (donde dius, deiuos, deus), forma antiga de Iupiter (Júpiter), rigorosamente invocava Júpiter. A favor desta etimologia está a palavra iovestod, que se encontra no brasão do Forum Romanum. O ius teria em sua estrutura originária, um certo conteúdo ou sentido religioso, que jamais haveria de perder por completo, sobretudo nos seus compostos iurare (jurar) e iusiurandum (juramento).

[6]     Kelsen, Hans, Teoria Pura do Direito, 2º ed, Coimbra, Armênio Amado, Ed., 1984. p. 3; ver também kelsen, Hans, O problema da Justiça, 1ª ed. São Paulo, Martins Fontes, 1993, p.7.

[7]     Estes princípios são conhecidos, pertencem a uma “família de princípios” que geralmente aparecem em análises de justiça, inclusive por diversos autores.  Assim o princípio de liberdade, correntemente é associado ao nome de Kant, I. The Philosophy of Law, Edimburgo, Haste. 1887, p. 56; encontra-se também em mill, J. S, On Liberty. Trad. espanhola, Madri, Tecnos, 1965. Para RAWLS, J. A Theory of Justice, publicada em 1971. Livre significa autônomo, não identificados com um sistema de fins que predetermine sua forma de viver. Em uma sociedade justa cada qual deve ter a liberdade de eleger a forma de vida que mais lhe convenha. Santos, Maria Celeste Cordeiro Leite dos, Justiça Restaurativa, além da vingança e do perdão, Uma perspectiva menonita, Curitiba, CRV, 2021, p.41-44.

A Constituição brasileira, como tantas outras, estabelece em seu artigo 5º, caput, que “todos são iguais perante a lei.” Qual o alcance deste preceptivo? Devemos seguir a lição de Aristóteles, segundo a qual a igualdade consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida das respectivas desigualdades? Sem dúvida este é um excelente ponto de partida, mas não é um termo de chegada para Rawls. Com efeito, quem são os iguais ou os desiguais? Aduza-se que o próprio das leis é desigualar situações, ou seja, conferir tratamentos distintos às pessoas, inobstante todas sejam igualadas quanto ao fato de serem pessoas. O termo “pessoa” para Rawls deve ser interpretado de forma diferente, dependendo das circunstâncias. Em algumas ocasiões significará indivíduos humanos, mas em outras pode se referir a Nações, empresas, Igrejas, etc.

[8]     Grande Dicionário Houaiss. Disponível em: <https://houaiss.uol.com.br/pub/apps/www/v3-2/html/index.php#3>. Acesso em: 12/01/2020.

[9]     ZEHR, Howard. Advogado e defensor da justiça restaurativa – organizou e ajudou a facilitar a reunião de advogados que implementam a justiça restaurativa em sua prática, Harrisonburg, VA 11-13 / 1. Equipe de revisão externa, James Madison University Justice Studies Program, 4/11. Ph.D. examinador de dissertação, Anne Hayden, AUT (Instituto de Tecnologia de Auckland), Auckland, Nova Zelândia. Na Porticus Foundation, 11/2/15, encontrou-se com turma e com o grupo do corredor da morte (com Bryan Stevenson) no Instituto de Segurança Máxima da Riverbed, Nashville, TN 17/4/15. Zehr, Howard, El Pequeno Libro De La Justicia Restaurativa, Nova York, Good Books, 2006, p.3.

[10]    eglash, Albert, Beyond Restitution – Creative Restitution, in: Restitution in Criminal Justice, Lexington, MA, Lexington Books, p. 91-99.

[11]    A Justiça Restaurativa é definida pelas Nações Unidas como uma resposta evolutiva ao crime, que respeita a dignidade e a equidade de cada pessoa, constrói compreensão e promove a harmonia social mediante a “cura da vítima, o infrator e a comunidade”. O ideal é fomentar o poder de uma comunidade restaurativa que hoje temos para diminuir a violência e criar processos de cura, fomentando a participação responsável na solução dos conflitos.

[12]    marshall, Tony F, Restorative Justice: an overview. London: Home Office Research, Information & Publications Group, 1999, p.8. (Tradução livre: Restorative justice is a process whereby parties with a stake in a specific offense collectively resolve how to deal with the after math of the offence and its implications for the future”).

[13]    braithwaite, John, Restorative Justice and Reponsive Regulation, New York, Oxford University Press, 2002, p.11.

[14]    ZEHR, H. El pequeño libro de la Justicia Restaurativa, p. 9.

[15]    A mediação longe de ser contrária aos fins preventivos do Direito Penal, incrementa as possibilidades de sua consecução, introduzindo perspectivas e valores que não apenas são compatíveis com os princípios básicos e substantivos no sistema legal, mas permitem avançar na superação de muitas deficiências do jus puniendi. Trata-se de uma ferramenta positiva para uma resposta mais adequada ao delito, em cuja prática uma série de princípios próprios devem ser respeitados: voluntariedade, confidencialidade, flexibilidade, neutralidade, etc. Há que ter-se presente que o acordo das partes não substitui a sanção penal. A justiça restaurativa não deve ser colocada no mesmo nível que valores como o diálogo como ferramenta para a resolução de conflitos.

[16]    barona vilar, Silvia, “Situación de la justicia restaurativa y la mediación penal em Alemania”, in: Silvia Barona Vilar (Diretora), La mediación penal para adultos, Una realidade en los ordenamientos jurídicos, Valencia, Edt. Tirant lo Blanch: 2009, p.235. Barona Vilar, aponta o Projeto Alternativo sobre reparação ( “Alternativ- Entwurt Viedergutmachung”), aparecido em 1992 como uma proposta legislativa, realizada por um grupo de penalistas alemães, austríacos e suíços, para introdução de formas de reparação como consequência do delito.

[17]    Zehr, Howard, El Pequeño Libro De La Justicia Restaurativa, Nova York, Good Books, 2006, p.71-72.

[18]    Os processos restaurativos podem incluir a mediação, a conciliação, a reunião comunitária ou familiar (conferencing), círculos decisórios (sentencing circles). 

[19]    Tonche, Juliana, A construção de um modelo “alternativo” de gestão de conflitos: usos e representações de justiça restaurativa no Estado de São Paulo, Tese (Doutorado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015, Disponível em:  <https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8132/tde-11122015-144029/publico/2015_JulianaTonche_VOrig.pdf>. Acesso em:,18 fev, 2021.p.123

[20]    Tonche, Juliana, A construção de um modelo “alternativo” de gestão de conflitos: usos e representações de justiça restaurativa no Estado de São Paulo, Tese (Doutorado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015, cit., p. 130.

[21]    Tonche, Juliana, A construção de um modelo “alternativo” de gestão de conflitos: usos e representações de justiça restaurativa no Estado de São Paulo, Tese (Doutorado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015, cit., p. 147.

[22]    Ibidem, p.147.

[23]    Castells, Manuel, A sociedade em rede, São Paulo, Paz e Terra, 1999.

[24]    C. Guarnieri et P. Pederzoli, La puissance de juger, Michalon, Paris 1996, p. 108

[25]    barona vilar, S.: Mediación penal. Fundamento, fines y régimen jurídico, Valencia (2011), Tirant lo Blanch, pp. 95-97.

[26]    Projeto de Moynier para uma jurisdição penal internacional marca, em 1872, o primeiro desejo de levar em consideração a vítima . O texto previa a possibilidade de conceder indenização às vítimas de guerra

[27]    Larrauri, E, “Victimología”, en AA.VV: De los delitos y de las víctimas, Buenos Aires: 2011, p. 285-286.

[28]    Marques Frederico Moyano, O estatuto da vítima de crime em Portugal: uma leitura crítica,  Revista Internacional de Vitimologia e Justiça Restaurativa v. 1 n. 1, 2023, P 368-396.

[29]      sumalla, Josep M. Tamarit. La victimología como fundamento del estatuto de las víctimas de delitos. Revista internacional de vitimologia e justiça restaurativa v. 1 n. 1 (2023). P 127-140.

[30]    santos, Celeste Leite dos Santos et FALCAO, Rui. O marco legal do Estatuto da Vítima como instrumento de recomposição social, Revista Internacional de Vitimologia e Justiça Restaurativa, v. 1 n. 1, p. 16-40, 2023.

[31]    santos, Celeste Leite dos Santos et FALCAO, Rui. O marco legal do Estatuto da Vítima como instrumento de recomposição social. Revista Internacional de Vitimologia e Justiça Restaurativa v. 1 n. 1 (2023) p. 16-40

[32]      lebigot François et bessoles Philippe,  Victimologie-Criminologie. Approches cliniques Situation d’urgence – situation de crise, Clinique du psycho-traumatisme immédiat. Éditeur,  Champ social. 2005.

[33]    Marchiori, Hilda, Criminología  La víctima del delito,  Ciudad del México, Porrúa, México, 1998. P. 179-180.