A (RE)Invenção do Estado do Século XXI: O Regresso ao Liberalismo como Suporte do Sistema Democrático

Fabiano Dolenc Del Masso[1]

Rubén Miranda Gonçalves[2]

Rui Miguel Zeferino Ferreira[3]

Resumo: O presente artigo resulta do pensamento de três investigadores oriundos de realidades económicas, sociais, geográficas e políticas diversas, na tentativa de contribuir com soluções para o principal desafio da próxima década – a reforma do Estado. Nesse sentido, em primeiro lugar, entende-se que o custo de nada fazer face a uma nova realidade é elevado, pois o atual Estado-providência irá definhar em poucos anos devido à sua dimensão excessiva. Em segundo, julga-se que a atual crise social, mas também económico-finan- ceira, representa uma oportunidade. Por fim, este é o momento histórico de ser encetado um movimento de reinvenção do Estado, que tenha como seu centro gravitacional a completa liberdade individual dos cidadãos, como elemento decisivo para ressuscitar o espírito democrático, por via da diminuição do peso do Estado na economia e na sociedade.

Palavras-chave: Estado. Democracia. Liberdade individual. Liberalismo económico

Abstract: This paper results from the thought of three researchers coming from diverse economic, social, geographic and political realities, in an attempt to contribute with solutions for the main challenge of the next decade – the reform of the state. As such, in the first place, it is understood that the cost of doing nothing in the face of a new reality is high, since the current welfare state will go into decline in a few years due to its excessive dimension. Secondly, it is believed that the present social crisis, as well as the economic-financial one, represents an opportunity. Finally, that this is the historic moment to undertake a movement of state reinvention, with the complete individual freedom of its citizens has its gravitational centre, as a decisive element to revive the democratic spirit through the reduction of the state’s weight in the economy and society.

Keywords: State. Democracy. Individual freedom. Economic liberalism.

Vivemos num tempo em que há a propensão a pensar que o governo devia fazer isto e aquilo e que o governo tem de fazer tudo. (GLADSTONE, 1889)

1 Introdução

Os autores do presente artigo provêm de diferentes países – Brasil, Espanha e Portugal –, de modo que se encontram inseridos em países com diferentes dimensões geográficas, com diferentes estruturas organizativas do Estado, fruto de estarmos perante um Estado unitário e pequeno do ponto vista geográfico, como sucede com Portugal, um Estado de média dimensão e com regiões autonómicas, como sucede com Espanha e, por fim, o Brasil como uma confederação de Estados e de dimensão continental. Além disso, Espanha apresenta a particularidade de ser uma monarquia parlamentar e o Brasil de estar inserido no continente americano, onde é patente a existência de diferenças culturais, sociais e económicas face aos países europeus.

Apesar das diferenças, que serão mais ou menos óbvias entre as diversas realidades destes países, a concepção de Estado que está no âmago do presente artigo é transversal às preocupações de todos, existindo convergência quanto à teoria de Estado que nos propomos a apresentar, com vista à sua adoção para o século XXI. Na realidade, o que se pretende é reinventar o Estado, tendo em conta os novos elementos da sociedade moderna, nomeadamente, a globalização, a tecnologia e a existência de indivíduos informados e livres.

Em primeiro lugar, partimos da ideia de que o custo de nada fazer face a uma nova realidade é elevado, pois o atual Estado Social (Estado-providência) irá definhar em poucos anos, devido à sua dimensão excessiva, o que propomos demonstrar como sendo insustentável. Em segundo, o momento atual de crise social, mas, também, de crise económico-financeira, representa uma oportunidade de países audazes darem um passo decisivo na criação de uma vantagem competitiva face a outros que não procedam à reinvenção da organização e funcionamento das suas estruturas. Por fim, este é o momento histórico de ser encetado um movimento – não de revolução, porque se pretende afastar ao máximo conotações ideológicas – pela liberdade e pelos direitos dos indivíduos, através da reinvenção do Estado, com a ideia de liberdade no centro da sua reconstrução.

Como afirmam Micklethwait e Wooldridge (2015, p. 15), “o principal desafio da próxima década será o de reformar o Estado”, uma vez que a existência de um Estado moderno sempre foi em todas as épocas históricas uma das vantagens do ocidente, mas o modelo adotado após a Segunda Guerra Mundial encontra-se esgotado, não representado mais aquilo que poderíamos chamar de “bom governo”. O século XXI trouxe novos fatores que devem inculcar uma mudança no Estado, sendo que nos referimos à escassez de recursos, à concorrência entre Estados e à existência de um desejo de mudança, no sentido de se fazer mais e melhor. Muitos autores continuam a defender que, por razões económicas, demográficas e políticas o Estado continuará a crescer, designadamente neste último parâmetro, por via da dependência e da influência eleitoral dos subsídio-dependentes, que exigem continuamente mais serviços sociais. Paradoxalmente, apesar do agigantar do Estado os cidadãos-eleitores não estão satisfeitos com a forma como estão a ser governados, o que tem levado a uma espiral de irresponsabilidade e de corrupção nos países ocidentais. Este problema começa também a surgir nos países das economias emergentes, nomeadamente, na China, India, Rússia e Brasil, que sentem a necessidade global de melhorar o seu Estado. Em particular, no Brasil um dos problemas mais graves do Estado centra-se na corrupção governativa, pelo que temos de concluir que o Estado terá de mudar no século XXI.

Em suma, o Estado terá de mudar por várias circunstâncias, com especial ênfase no elevado risco de “falência”, pela concorrência com outras formas mais expeditas (os governos orientais) e pela oportunidade em que se insere o presente momento histórico. Mais que mudar, urge conseguir dominar o Estado – o leviatã. A “falência” do Estado resulta de muitos fatores, mas podemos dar uma particular atenção ao problema de a população ativa ser cada vez menor face ao crescimento exponencial da população reformada e à questão de ser cada vez mais óbvia a necessidade de reduzir os benefícios sociais[4], capturados por grupos de interesses especiais.

É neste contexto que a China coloca em causa dois dos principais valores do mundo ocidental, o sufrágio universal e a generosidade social de cima para baixo. Enquanto isso, o Brasil vive a crise das pensões, procurando encontrar formas alternativas ao Estado Social europeu. Em resumo, questiona-se qual o papel do Estado, questão cuja apreciação deve ser escorada no pragmatismo e em princípios políticos sólidos, ínsitos na compreensão e aceitação de que hoje estamos perante um mundo tecnologicamente diferente, que permitiu alterar as relações laborais, mas que não conseguiu melhorar a gestão do Estado, nem aumentar a produtividade e a eficiência do sector público.

A compreensão do que se pretende para a reinvenção do Estado implica conhecer a sua evolução histórica nos últimos 300 anos, reconhecer os defeitos de que padece o Estado do século XX, para em seguida pesquisar-se qual deve ser o papel do mesmo, as soluções alternativas pelas quais se deve pautar a mudança do atual paradigma de Estado e os valores que devem presidir a essa mudança.

2 A evolução histórica do Estado

No processo de reinvenção do Estado importa saber que modelo deverá ser adotado para o século XXI. Portanto, mostra-se fundamental perceber a sua evolução ao longo dos últimos 300 anos, o que podemos resumir nas conceções de segurança de Hobbes (século XVII), de liberdade individual dos cidadãos de John Stuart Mill (século XVIII e XIX) e, por fim, na conceção do Estado de bem-estar da humanidade de Beatrice Webb.

O Estado não deve ser entendido como um mal necessário, uma vez que as coisas não terão de ser necessariamente dessa forma, tendo em conta que a história e a atualidade mostram que é mais perigoso a existência de Estado a mais, do que Estado a menos.

Como referem Micklethwait e Wooldridge (2015, p. 33), “o Estado pode ser um instrumento de civilização”, cujo aumento da despesa no curto prazo pode até ser justificável, mas no futuro impõe-se a necessidade de controlar o seu agigantar descontrolado. Este fenómeno de crescimento desmesurado do Estado, ao contrário de ser uma consequência natural do sistema democrático, pode ter um efeito perverso, em resultado do seu mau desempenho, do descontentamento popular e pela exigência constante de ajudas e benefícios sociais para compensar o descontentamento do eleitorado. O resultado é uma ameaça às liberdades dos indivíduos, que ficam condicionados nas suas opções, uma vez que mais de metade do seu rendimento será alocada ao pagamento de impostos, bem como condicionados por via de licenciamentos e regulamentações de toda espécie e natureza.

2.1 O Estado Centralizador

O moderno conceito de Estado-nação terá nascido em Maio de 1651, com a publicação do Leviatã, de Hobbes, em que surge a ideia de contrato social entre governados e governadores. No âmbito dessa construção, o Estado tinha como funções a Lei e a Ordem, através do qual existia um soberano artificial, que detinha o poder legitimado pela eficiência da sua governação. Nesse contrato social o cidadão procedia à alienação da sua liberdade, com exceção do direito último à vida.

Em resultado das mencionadas funções o Estado tinha como poderes especiais o de legislar e o de criar um Estado-providência, no qual o monarca não era o Estado, mas antes a primeira pessoa do Estado a velar pela Ordem e pela Lei. Neste sentido, John Locke na construção filosófica de Estado do século XVII entendia que os cidadãos delegavam o poder num soberano por motivos de conveniência e por medo, com vista a preservar o seu direito de propriedade.

Com este modelo surge igualmente o pensamento económico de Adam Smith, segundo o qual o mercado era o verdadeiro motor do progresso, do qual o Estado devia manter-se afastado, pois a intervenção do Estado, ainda que necessária, era vista como nefasta e como uma forma de extorquir impostos à sociedade e usá-los para sustentar os gastos desproporcionados dos ricos (PAINE, 1776).

Em O Contrato Social Jean Jacques Rousseau referia que “o homem nasce livre; E por todo lado está acorrentado” (MICKLETHWAIT; WOOLDRIDGE, 2015, p. 55), pelo que se entendia que o Estado tinha de ser controlado pela vontade geral da população.

2.2 O Estado “Guarda-Noturno

Nas palavras de John Stuart Mill o “Estado guarda-noturno” nasceu em resposta ao Estado centralizador, por via das revoluções americana e francesa do século XVIII. A preocupação deste autor não era criar ordem a partir do caos, mas assegurar aos beneficiários dessa ordem a possibilidade de desenvolverem ao máximo as suas capacidades e de alcançarem a felicidade pessoal. Nesse sentido, defende-se a existência de um Estado mínimo – Estado guarda-noturno – de natureza liberal e de pequena dimensão. Portanto, influenciado pelas teorias utilitaristas, a função do Estado seria promover a máxima felicidade, pelo que o êxito estava em libertar a iniciativa privada do jugo do Estado e dar lugar ao espirito de mercado livre. Logo, as funções do Estado deviam ser reduzidas ao mínimo, com o mercado a assumir uma função de relevância na parte não assumida pelo Estado – “não devia ser feito pelo Estado nada que pudesse igualmente ou mais bem feito pelo esforço voluntário” (MICKLETHWAIT; WOOLDRIDGE, 2015, p. 64).

O pensamento de John Stuart Mill era apologista de uma “revolução moral” do Estado, baseada no mérito e não no favor, pois era entendimento que a situação de desemprego era consequência do fracasso moral e não do fracasso do mercado (MILL, 1859). A intervenção do Estado apenas seria justificada para evitar que os cidadãos causassem danos, ainda que o mesmo implicitamente reconhecesse que os objetivos do Estado sendo ampliados enquanto “civilizador” das grandes massas populacionais, por via do alargamento do sistema de ensino.

Já no século XIX, Hegel vem defender que o Estado devia ter um papel mais relevante, afirmando que o Estado era a “marcha de Deus na terra”, como consequência de se começar a olhar para as condições sociais das populações. Nos Estados Unidos da América, Lincoln (1854) entende que “é finalidade legítima do governo fazer por uma comunidade de pessoas tudo o que necessitam que se faça mas não podem, de todo, ou não podem tão bem, fazer por si mesmos, pelas suas separadas e individuais capacidades”.

2.3 O Estado Social (ou Estado-Providência)

No século XIX, o Estado-providência surge como resposta ao questionamento da existência de efetiva liberdade sem direitos sociais, tendo tido como grande mentora Beatrice Webb, que vem defender a ideia de “um mínimo garantido para uma vida civilizada” (MICKLETHWAIT; WOOLDRIDGE, 2015, p. 79), como resultado da existência de diferentes oportunidades para pessoas com condições de vida diversas. Nesse sentido, defendeu e afirmou que “vimos que só ao Estado podia ser confiada a provisão para as futuras gerações”, isto é, defende-se uma ideia de um mínimo nacional, consubstanciada na tributação de toda a população como forma de proporcionar benefícios sociais aos mais desfavorecidos, que passaram a ser vistos como vítimas da sociedade e do mercado capitalista.

Esta “nova” ideia de liberdade das carências e de igualdade de oportunidades vem implicar uma conceção de um Estado intervencionista (TAWNEY, 1931), bem como críticas ao laissez-faire (KEYNES, 1936), onde se defende que a salvaguarda do capitalismo devia ser conseguida através da realização de despesa pública, o que está na origem da construção de um Estado grande (agigantado). O Estado a partir da Segunda Guerra Mundial começa uma fase de crescimento, com sacrifício do bem individual em favor do bem coletivo, com base na crença da fraternidade.

Nesta época a despesa com os direitos sociais cresce de forma exponencial, aproveitando o facto de nessa época o PIB ter crescido como nunca havia ocorrido (1950-1973), apenas interrompido com a crise petrolífera. Os efeitos da Segunda Guerra Mundial, da guerra fria, bem como das teorias económicas de Keynes promoveram a implementação de um Estado de dimensões gigantescas, o que teve como consequência o aumento dos impostos e a consequente diminuição do rendimento disponível. No plano da justiça, o conceito de igualdade passou das oportunidades iguais para a igualdade de resultados.

2.4 A Contrarreação Liberal dos Anos 80

A teoria do Estado Social (ou Estado-providência) ainda hoje se mantém implementada na sociedade, apesar de nos anos 80 se ter tentado proceder à primeira tentativa de reinvenção do Estado. Nesse período estavam em voga as teorias económicas e de Estado “mínimo” de Friedman e Friedman (2012), que alguns países tentaram implementar. Essa tentativa ocorreu com especial intensidade nos Estados Unidos da América e na Inglaterra, respetivamente nos governos de Ronald Reagan e Margaret Thatcher, em que se entendeu encetar um conjunto alargado de privatizações, com o intuito de reduzir a dimensão agigantada do Estado, o que apenas foi conseguido parcialmente.

O pensamento de Friedman e Friedman (2012) entendia, ao que nos parece com absoluta razão, que o Estado sofria de um problema de tamanho, em que se impunha a sua redução, de modo a torná-lo um mero parceiro ocasional, ou, na expressão de John Stuart Mill, um “guarda-noturno”, diferentemente da omnipresença defendida no Estado Social. Por seu turno, Hayek (1944) mencionou nas suas obras que o agigantar do Estado implicava o perigo da sua insustentabilidade, o que levaria ao esmagamento da sociedade e da liberdade dos cidadãos.

Consequentemente, na europa foi fundada a Escola Austríaca, onde predominava o pensamento liberal de Mises (1951), Hayek (1960) e Popper. Por outro lado, nos Estados Unidos da América, a Escola de Chicago defendia que os reguladores eram muitas vezes capturados pelos regulados, e foi onde Friedman (1962) teve poderes de adivinhação na correlação que fez entre o intervencionismo estatal e o declínio nacional. Na europa, Hayek e, nos Estados Unidos, Milton Friedman reinventam as velhas ideias do liberalismo do século XVIII e XIX adaptadas aos anos 80.

3 A crise do Estado no final do século XX e início do século XXI

A crise dos finais do século XX e inícios do século XXI foi a consequência normal e esperada dos exageros cometidos, como havia advertido Milton Friedman, acentuado por, a partir dos anos 70, o Estado ter começado a falhar nas suas funções nucleares. Acresce ainda que a intervenção com objetivos de justiça de resultados, e não justiça de oportunidades, estava a produzir resultados muito pouco igualitários, designadamente os pagamentos da assistência social tornaram-se perversos, minando a responsabilidade individual e “amarrando” as pessoas à pobreza.

Esta é uma época histórica em que uma grande parte da população passou a viver à custa do Estado, através de subsídios, isenções e benefícios de toda a espécie, e onde um terço da população ativa trabalhava no setor público. Consequentemente, o crescimento do tamanho do Estado promoveu fenómenos de complexidade e inflexibilidade, o que gerou uma excessiva pressão sobre a economia, cujo crescimento deixou de conseguir acompanhar o crescimento dos direitos e dos benefícios sociais.

Neste contexto, Margaret Thatcher influenciada pelas ideias de Hayek (1960), afirmou com razão que era necessária “uma revolta mundial contra o Estado grande, o excesso de impostos e a burocracia” e, em consonância, promoveu a redução da despesa pública. Esta política teve como consequência o aumento do desemprego, a redução da inflação, a redução do número de dias de greve, a redução da taxa máxima do imposto e, por fim, deu início a um processo de privatizações que acabou por não concluir.

Os acontecimentos dos últimos séculos mostram de forma clara e evidente que os Estados e os seus governos ter-se-ão de concentrar apenas em providenciar bens públicos como a Lei e a Ordem. São conhecidos alguns esforços no sentido de mudar o funcionamento e a dimensão do Estado, como sucedeu no Brasil de Fernando Henrique Cardoso, em que se promoveu a introdução de um programa de privatizações de “modelo-Thatcher”. Por seu lado, no mundo anglo-saxónico Tony Blair e Bill Clinton defenderam nos seus governos que a globalização era incompatível com o Estado grande. Ainda assim, o panorama no final do século XX é de crescimento contínuo do Estado-providência, com a introdução de regras e regulamentos que governam tudo e todos, com a diminuição da liberdade dos cidadãos. Na europa, a despesa cresce continuamente, bem como o peso do Estado no PIB. Concretamente, na Europa do sul, depois de medidas restritivas com vista ao cumprimento dos requisitos de acesso à moeda única, fruto de taxas de juros muito baixas, iniciaram um processo vicioso de endividamento[5]/[6].

O princípio que deve presidir à reinvenção do Estado, nos termos defendidos pelos liberais John Stuart Mill e Milton Friedman, é o princípio da liberdade, o qual na atualidade tem sido sistematicamente colocado em causa, fruto da acumulação de responsabilidades e da imposição à sociedade de cada vez mais custos “escondidos”. Deste modo, podemos adiantar que os principais defeitos do atual Estado são: (i) o desajustamento face à globalização; (ii) a influência dos grupos de interesse; (iii) a fraca produtividade do Estado; (iv) a complexidade legislativa; (v) o desconhecimento da realidade; (vi) a falha da progressividade; (vii) o funcionamento do sistema político; (viii) os cidadãos-eleitores.

O primeiro defeito é resultado do desajustamento do Estado face às novas condições demográficas, bastante distintas daquelas que serviram de base à atual conceção de Estado. No caso da União Europeia é notória a existência de uma estrutura política e organizativa extra, que adiciona novas regras e regulamentações, criando uma confusão de responsabilidades sobrepostas. Este desajustamento face à globalização é ainda notório na incapacidade de o Estado tornar o setor público eficiente.

O segundo defeito resulta da teoria de Baumol (MICKLETHWAIT; WOOLDRIDGE, 2015), que defende que a produtividade nasce muito mais lentamente nos indivíduos de trabalho intensivo. Segundo esta teoria explica-se que os Estados tornam-se maiores porque se dedicam a áreas da economia de trabalho intensivo. Assim, enquanto a indústria se torna cada dia mais eficiente, tal não sucede com os serviços da educação e da saúde, o que se fica a dever à fraca introdução tecnológica que o Estado não tem promovido, bem como devido à pressão de grupos de interesse em que tal não ocorra.

O terceiro defeito resulta da teoria de Olson (1971), que demonstrou que os grupos de interesse têm uma enorme vantagem nas democracias – “quanto maior o grupo, menos promoverá os seus interesses comuns”. A regulamentação é o “braço” armado dos grupos de interesse, constituindo um entrave a novos concorrentes e permitindo a existência de subsídios para todos. Ou seja, o que acontece segundo esta teoria é que um pequeno grupo (lobby) determinado consegue impedir um interesse público mais vasto, o que sucede por exemplo com sindicatos de professores que tenham ligações estreitas a partidos do centro-esquerda. Este defeito tem, nomeadamente, como consequência a acrescida dificuldade de despedir no setor público e de controlar ou minorar os elevados benefícios que obtém.

O quarto defeito resulta da complexidade legislativa, decorrente da proliferação de normas que o Estado produz, designadamente na área tributária, onde são evidentes os enormes custos administrativos para os cidadãos e para o Estado. No que se refere a este defeito a solução poderia ser encontrada em regulamentações com prazo de validade, pois um dos mais graves problemas está na dificuldade de remoção a posteriori dessas leis.

O quinto defeito relativo ao desconhecimento da realidade resulta da existência de contabilidade “mascarada” e de desorçamentação de custos, através de outras circunscrições administrativas. Nos Estados ocidentais a imprecisão dos números no setor público é um problema grave, a que acresce a dificuldade em obter números fiáveis. Por outro lado, existe ainda a ocultação do lado das receitas, tornando numa primeira análise o sistema fiscal muito complexo, com poucas exceções, como é o caso da Eslovénia, que adota um sistema de taxa única. A consequência desses sistemas fiscais é a óbvia injustiça fruto de isenções, subsídios e compensações que favorecem as classes mais abastadas, a que acresce o problema da evasão fiscal.

O sexto defeito relativo à falha da progressividade resulta da conclusão de que o Estado não se está a concentrar naqueles que mais precisam – os pobres –, mas antes concentra o seu apoio aos idosos e às classes mais abastadas. Na realidade, apesar de se dizer progressivo, o Estado grande não é muito progressivo, pois os impostos sobre o consumo afetam mais os pobres, bem como existe a subsídio-dependência que beneficia acima de tudo a classe média. No que concerne aos idosos, estes são claramente priveligiados em relação aos jovens, que herdam a responsabilidade de sustentar as pesadas reformas das gerações anteriores. Como referem Micklethwait e Wooldridge (2015) “a democracia é um voto pelo passado. Porque é um voto pelos votos instalados do presente”.

O sétimo defeito é consequência do funcionamento do sistema político, o qual é disfuncional, o que vem motivando uma paralisia politica, em resultado das lutas políticas entre as competências da esfera nacional e europeia. Por outro lado, os países anglo-saxónicos e nórdicos pretendem manter o Estado fora do setor privado, enquanto os Estados continentais entendem ser papel do Estado intervir na economia. Estas divergências têm tido como resultado o afastamento de gente talentosa do setor público, que mantém os salários baixos e uma hierarquia rígida.

Por fim, o oitavo defeito corresponde aos cidadãos-eleitores, que reúnem os anteriores defeitos, decorrente do facto da natureza humana ter levado a que o poder fosse transferido em demasia para grupos de interesses especiais. Por outro lado, como referem com propósito Micklethwait e Wooldridge (2015), “a democracia está a ser desfigurada por expectativas irrealistas e exigências contraditórias”, tendo em conta que o cidadão-eleitor deseja impostos mais baixos e menos burocracia, mas que ao mesmo tempo pretende um Estado grande.

Porém, o final do século XX e início do século XXI veio mostrar que os governantes têm consciência do problema, o que levou a que alguns países da zona Euro, que estavam a ser mal-administrados (Irlanda, Portugal, Espanha, Itália e Grécia), empreendessem mudanças e encetassem reformas estruturais. Também, a Inglaterra de James Cameron conseguiu diminuir a despesa pública para menos de 40% do PIB, invertendo o despesismo para os níveis dos governos de Margaret Thatcher.

4 As soluções Orientais e Ocidentais

4.1 A Solução Asiática

Em pleno século XXI é entendimento que já não basta a desregulação da economia, é necessário reinventar o Estado por via do afastamento de um Estado de dimensões gigantescas. A solução asiática tem várias “caras” e particularidades, mas o caso de Singapura é sintomático daquilo que é possível fazer, uma vez que este país de pequena dimensão geográfica conseguiu que a despesa pública atingisse somente 17% do PIB e, ainda assim, tem um dos melhores sistemas de educação e saúde. Na realidade, estamos perante um Estado de inspiração liberal (Hobbes e John Stuart Mill) e com algo de muito particular. Por um lado, partindo do pensamento de Hobbes, entende-se que os seres humanos são por natureza maus, tal maldade tem de ser controlada e, por isso, adotam um regime autoritário e elitista. Por outro, seguindo o pensamento de John Stuart Mill, erigiram um diminuto Estado vigilante, que proporciona aos seus cidadãos as oportunidades (e não os resultados) e depois deixa-os tratar do seu próprio bem-estar.

Esta solução levanta duas questões ou dúvidas, isto é, se deve o Estado ser democrático e até que ponto deve ser generoso para com os cidadãos. A solução encontrada por Singapura dá preferência à responsabilização dos cidadãos e à eficiência, o que é sintomático no pensamento de Lee Kuan Yew – “não acredito que a democracia conduza necessariamente ao desenvolvimento” (MICKLETHWAIT; WOOLDRIDGE, 2015). Ao invés, defende que esse desenvolvimento está na disciplina e num bom governo assente na meritocracia.

Com a ideia de Estado-vigilante pretende-se mantê-lo com uma dimensão pequena e tornar as pessoas responsáveis pelo seu próprio bem-estar, de modo a combater os exageros do Estado-providência (MICKLETHWAIT; WOOLDRIDGE, 2015). Por exemplo, no que se refere à assistência social, Singapura adotou um seguro social, no qual os cidadãos pagam para o fundo central de previdência, enquanto nos Estados ocidentais os subsídios são baseados na condição social de cada um. Assim, no sistema de Singapura aquilo que é recebido provém em 90% do que se descontou e, por isso, compensa trabalhar, existindo ainda assim uma pequena rede de protecção para os pobres ou muito pobres.

Em suma, Lee Kuan Yew resume o problema da democracia nos seguintes termos: “quando se tem democracia popular para ganhar votos tem de se dar mais. E para se bater o adversário nas eleições seguintes tem de se prometer ainda mais” (MICKLETHWAIT; WOOLDRIDGE, 2015), o que corresponderá àquilo que poderemos designar por leilão a ser pago pelas futuras gerações.

Por seu turno, a China também entende que o sistema ocidental não é eficiente, argumentando que tanto a economia como a sociedade necessitam ser dirigidos, pelo que aceitar a governação de alguns será a chave para o sucesso da governação. Portanto, neste país de dimensões continentais, cuja dimensão corresponde a um problema que o próprio Brasil enfrenta, vigora a ideia de capitalismo de Estado, em que a diplomacia e a economia estão a cargo do Estado. Por isso, não foi por acaso que o Brasil de Dilma Roussef tem destinado muitos recursos a um conjunto de grandes empresas, para produzir um modelo de política industrial, nas quais adquire muitas vezes pequenas participações (O Leviatã como accionista minoritário).

O capitalismo de Estado não está isento de problemas, sendo que o maior deles resulta da corrupção, mas também se verifica uma menor valorização bolsista das empresas do setor público em confronto com as empresas do setor privado, a redução de produtividade e o facto de os resultados serem obtidos por via de subsídios escondidos. O capitalismo de Estado, ancorado no autoritarismo e na meritocracia, levou Friedman (2009) a afirmar que “A autocracia de partido único tem decerto os seus inconvenientes. Mas quando é chefiada por um grupo de pessoas razoavelmente esclarecidas, como na China de hoje, pode ter também grandes vantagens”.

4.2 A solução Nórdica

A Suécia nos anos 60, seguindo o pensamento igualitário, adotou uma solução de Estado-providência, o que levou este país a atingir em 1993 uma despesa pública correspondente a 67% do PIB. Porém, fruto da reinvenção do seu Estado foi possível reduzir a dimensão gigantesca do Estado para uma despesa pública correspondente a 49% do PIB, bem como cortar a taxa marginal máxima de imposto em 27% para 57%, e eliminar o imposto sobre a propriedade, as doações, a riqueza e as heranças. Além disso, a política de rigor financeiro, consubstanciada na obrigação de excedente orçamental (MICKLETHWAIT; WOOLDRIDGE, 2015), permitiu passar sem grandes sobressaltos pela crise económico-financeira, ao contrário do que sucedeu em outros países europeus.

No que se refere a um dos assuntos mais sensíveis, as pensões passaram a ser vistas não como um benefício, mas como contribuições, com ajustamentos indexados à alteração da esperança média de vida. No ensino adotou o conceito de escolas independentes e cheques-ensino. A área da saúde foi aberta à gestão dos privados, numa ótica de produtividade tendencialmente gratuita, com apenas o pagamento de um pequeno valor residual.

Por seu lado, a Dinamarca erigiu um dos mais avançados sistemas de e-governament, salvaguardando o melhor que podia ser retirado do Estado-providência e estudando formas alternativas de prestar os principais serviços sociais.

O sistema nórdico tem o indivíduo como seu objeto e não o crescimento do Estado, com base nas ideias de liberdade, de responsabilidade financeira e de concorrência, afastando-se de qualquer ideia de paternalismo e de planificação. Em consequência deste modelo, os países nórdicos têm vindo a dominar os índices de inclusão social, de competitividade e de bem-estar, bem como têm uma das mais elevadas percentagens de participação das mulheres na vida ativa e uma forte mobilidade social, conseguindo manter um Estado-providência generoso.

Em suma, estes países conseguiram demonstrar que o Estado pode ser dominado, abrindo caminho a uma das soluções de futuro para a reinvenção do Estado, isto é, o papel da tecnologia através do e-governament. Porém, a solução nórdica representa um princípio, não uma solução que possa ser utilizada de igual modo em todos os países; mas dessa solução resulta o papel da tecnologia para a redução da dimensão do Estado e para a construção de um Estado mais eficiente. A melhoria do Estado pela via tecnológica é apenas uma das faces da reinvenção do Estado, pois é também necessário encontrar uma solução para os grupos de interesse, grupos de pressão e para os lobbies instalados.

O problema colocado pela teoria de Baumol, no sentido de que os mecanismos que estimulam a produtividade do setor privado não seriam aplicáveis no setor público, poderá hoje encontrar a sua resolução através da inovação tecnológica (revolução tecnológica). São exemplos desta revolução as aulas online, os instrumentos tecnológicos que permitem fazer a correção de exames e as novas tecnologias que tornam os métodos de ensino mais eficientes. A revolução tecnológica também tem permitido melhorar a eficiência numa das áreas nucleares para Hobbes, a segurança (Ordem), visível pela redução da taxa de criminalidade.

A solução nórdica encontrou igualmente solução para o problema da demografia, consubstanciado nos custos elevados com pensões e saúde, através da introdução da tecnologia nos cuidados de saúde[7]. No que se refere aos custos na saúde introduziram a cobrança de uma pequena taxa como forma de financiar e de desincentivar o recurso sistemático aos hospitais. O sistema de pensões foi reedificado com base nas contribuições e não tanto nos benefícios, através da introdução de um mecanismo que leva a que parte da pensão seja transferida para o setor privado (seguros), com a indexação da pensão ao crescimento económico ou à recessão e com o aumento da idade da reforma.

5 A reinvenção do Estado

Após a introdução de “novas” soluções em alguns países, fica demonstrado que o dogma do Estado grande é possível de ser ultrapassado, pelo que chega o momento de precisarmos que Estado deverá existir no século XXI. Saliente-se que as soluções têm vindo a ser condicionadas por questões práticas e ideológicas, mas fatores externos levarão obrigatoriamente à reinvenção do Estado. Estamos a referir-nos em particular à revolução tecnológica e à globalização.

O problema está ao que nos parece no facto de que o Estado não se atualizou, continuando a funcionar de modo semelhante ao que sucedia há 100 anos, assente em premissas que estão hoje deslocadas do tempo histórico. A primeira premissa errada é que o Estado devia fazer o mais que pudesse internamente, isto é, devia ter o monopólio de tudo o que implicasse qualquer interesse público, o que veio a ter como consequência a institucionalização dos grupos de interesse. A segunda premissa errada foi que a tomada de decisões pelo Estado devia estar centralizada, o que é uma lógica que não funciona, em particular na saúde e na educação. A terceira premissa errada é a uniformidade, a qual resultou de um “culto” pela igualdade, segundo o qual seria dever do Estado assegurar que ninguém recebia menos do que aquilo que tinha direito, devido ao azar ou preconceito de classe, o que é totalmente desconexo com um mundo flexível. Por fim, a última premissa errada funda-se no pensamento de que a mudança é sempre para pior, no qual a inovação é diabolizada.

Da evolução histórica dos últimos 300 anos e, em particular, das tentativas de introduzir alterações ao Estado nos anos 80 resulta a conclusão da extrema dificuldade em introduzir reformas, as quais não ocorrem em muitos casos por egoísmo do próprio gestor público, mais preocupado em salvaguardar os seus interesses económicos. Porém, a crise financeira que vem originando a falta de liquidez dos Estados, a consciência de que a governação poderia ser mais eficiente e de melhor qualidade, levam a acreditar que estão reunidas as condições necessárias para a reinvenção do Estado.

Na realidade, a globalização e a revolução tecnológica que mudaram o setor privado estão igualmente a começar a introduzir-se no setor público, através do aparecimento de formas mais eficientes de governação[8]. Porém, as primeiras fases de introdução tecnológica demonstraram que é necessário que esse processo seja acompanhado por uma alteração do modo de trabalhar[9]. Por um lado, numa época de globalização a centralização fundada na escassez de informação não faz hoje sentido, sendo preferível a existência de um Estado em rede como forma de gerar uma maior participação da sociedade e, consequentemente, incentivar a existência de comportamentos mais responsáveis. Por outro, a globalização exige cada vez mais transparência e concorrência, bem como a existência de um Estado pequeno.

Neste sentido, Tony Blair defendeu a existência de “um Estado pós-burocrático”, com um centro de decisão pequeno e uma multiplicidade de fornecedores públicos e privados de serviços.

Em suma, a reinvenção do Estado passa pela introdução do pluralismo, da diversidade, do localismo e da transparência e concorrência. O pluralismo é essencial para a existência de transparência e concorrência, devendo-se abrir as prestações de serviços públicos aos privados, como são exemplos os hospitais privados e as escolas independentes (Suécia). Esta pluralidade deve ser adequadamente alvo de supervisão, de modo a evitar-se os abusos e a corrupção[10], o que poderá ser minimizado pela introdução de sistemas de informação e avaliação públicos, ao dispor dos cidadãos. A diversidade deve implicar a existência de diferentes tipos de organizações dentro do setor público, o que teria efeitos sobre a aplicação de novos métodos de melhoria dos resultados, a atração de pessoas fora do funcionalismo público, bem como incentivaria a existência de grupos de trabalho voluntários. O localismo é fundamental, pois resulta que as melhores ideias têm surgido da administração local e não da administração central, as quais são os laboratórios para as reformas dos governos centrais. A isto acresce o facto de os cidadãos estarem mais interessados nas ideias que são defendidas pelos responsáveis locais. Esta é uma solução que os países com dimensões continentais, como o Brasil, não podem deixar de adotar.

A mudança é hoje algo que está começando a enraizar-se na sociedade, pois existe a perceção da necessidade de mudar o Estado fazedor, central e uniforme, mas ao contrário do que sucedeu nos últimos séculos a mudança está a surgir de baixo para cima.

Percebida a vontade e as condições necessárias à mudança da conceção de Estado em que temos vivido, importa responder à questão sobre a utilidade do Estado e que incumbências lhe devem ser atribuídas no âmbito do Estado digital e globalizado. Será hoje consensual que não bastam reformas pragmáticas em face dos interesses e grupos instalados, pois vive-se numa época em que impera a crise de ideias e a dificuldade em adaptar o Estado a um “novo” mundo. Com efeito, urge admitir que a igualdade tal como a vemos hoje em dia e o que tradicionalmente resulta da cidadania foi demasiado longe, levando à construção de um Estado gigantesco, que paradoxalmente tornou-se um inimigo da liberdade individual dos cidadãos.

O Estado tem necessidade de ser reinventado, através do regresso aos grandes princípios dos liberais do século XVIII e XIX, corporizados por John Stuart Mill e Tocqueville, da revisão da amplitude dos direitos adquiridos, que se encontram em desarmonia com a revolução tecnológica e a globalização. Logo, mostra-se premente que o Estado não esgote os poucos recursos que tem à sua disposição, que proceda à utilização da tecnologia de modo a tornar-se mais produtivo e eficiente, e que volte a colocar liberdade no centro da ideia de Estado.

O indivíduo deve se beneficiar da máxima liberdade, por isso o enfoque do Estado não deve estar na igualdade e na fraternidade. O núcleo das liberdades a serem salvaguardadas deve consistir na liberdade de opinião, da vida privada, de expressão e de propriedade, com base no argumento moral de que as pessoas têm direito a viver as suas vidas de acordo com as suas próprias vontades, pois como afirmava Kant “o paternalismo é o maior despotismo imaginável” (BERLIN, 1981).

A limitação da liberdade vem sendo fundamentada com um argumento prático, mas trata-se de uma falsa troca entre a liberdade e o bem-estar comum, pois o bem-estar não pode justificar a mitigação das liberdades dos cidadãos. A liberdade de iniciativa económica e o desenvolvimento económico não são incompatíveis com a harmonia e o bem-estar social. Por exemplo, a tributação do rendimento através de taxas progressivas[11], pelo qual se tributa mais gravosamente os cidadãos mais abastados, é um ataque à liberdade, que sendo um pequeno ataque irá gerar um grande ataque.

Hoje a margem de autonomia dos cidadãos é reduzida, tendo o conceito de liberdade sido subvertido, através da redução gradual da importância da liberdade. Para os liberais do século XVIII e XIX era preocupante o nexo entre a existência de um Estado grande e a democracia de massas, pois no seu pensamento não seria muito diferente passar da tirania de poucos para a tirania de muitos. Ora, o que temiam veio a acontecer durante o século XX, uma vez que o cidadão-eleitor vota em favor que o Estado dê e faça cada vez mais, o que tem influência sobre a sua liberdade, mas nem por isso se obteve um Estado e uma Democracia melhores.

Porém, paradoxalmente o governo aprovado pela vontade geral democrática, que nunca foi tão grande e sobrecarregado como agora, é severamente criticado pela sua ineficiência pelos mesmos cidadãos. Importa ter presente que a limitação de determinadas liberdades, designadamente a económica, não teve uma contrapartida adequada ao nível do bem-estar social. Pelo contrário, é crescente o declínio da confiança no Estado e o desprezo dos cidadãos-eleitores pelos seus governantes, bem como a paralisia do Estado resultante da existência de muitos governos de coligação.

O Estado está igualmente a falhar porque lhe estão a dar aquilo que ele mais deseja, poder e obrigações excessivas, o que resulta de uma questão ideológica, centrada no facto dos governos de esquerda terem colocado como questão central a igualdade e a fraternidade. O que devia ser igualdade de oportunidades tornou-se igualdade de resultados, e a fraternidade passou a ser uma questão de direito adquiridos, os quais seriam devidos a todos, para além de qualquer princípio de responsabilidade, o que levou a subverter a ideia de liberdade.

Se analisarmos em que objetivos e funções o Estado tem falhado, seremos levados a concluir que muitas das coisas em que o Estado falha não passam de sonhos impossíveis (utopias sociais). Por outro lado, como afirmava Ronald Coase “uma razão importante pode ser que o Estado é tão grande no momento presente que atingiu o estádio de produtividade marginal negativa, pelo que qualquer nova incumbência fará mais mal, do que bem” (MICKLETHWAIT; WOOLDRIDGE, 2015). Portanto, cada novo programa social torna mais difícil ao Estado prosseguir as suas funções nucleares, o que implica uma dificuldade fatal em implementar economias de escala, devido a inegáveis problemas de coordenação e excesso de burocracia. Outra das vertentes da dimensão excessiva do Estado tem origem nas exigências dos cidadãos-eleitores, que pretendem cada vez mais serviços do Estado, mas que em contrapartida não estão dispostos a pagar por eles, voltando a exigir em compensação outros serviços adicionais e, deste modo, criando-se um círculo vicioso. Neste sentido, os governos de direita também têm responsabilidades no crescimento do Estado, por via da implementação do securitismo, o que cria mais uma limitação à liberdade.

Por outro lado, cada novo programa ou departamento governamental torna mais difícil a capacidade dos cidadãos e dos seus representantes de fiscalizar os comportamentos do governo e de corrigir as suas falhas e abusos, levando a que as próprias estruturas superiores de governação sejam incapazes de controlar ou supervisionar as decisões que são tomadas nos níveis inferiores. Este facto é notório no elevado endividamento local para satisfazer interesses especiais. Em consequência, face ao não funcionamento do Estado, a reinvenção do Estado deve ser fundada na liberdade e numa dimensão organizativa e funcional menor.

O facto de se defender uma visão liberal do Estado e da sociedade não significa ser-se libertário, pois pensamos que o Estado-providência conseguiu algumas conquistas importantes, bem como determinadas funções vitais devem manter-se sob controlo privativo do Estado, numa lógica de guarda-nocturno e de fornecedor de infraestruturas. Pelo que a redução da dimensão do Estado deve ser temperada por uma visão pragmática da realidade, assumindo-se como adequada a visão de Alfred Marshall: “que não seja posto a trabalhar naquilo que não está especialmente qualificado” (MICKLETHWAIT; WOOLDRIDGE, 2015).

A reinvenção do Estado deve tomar em consideração a necessidade de adequar-se a uma dimensão que seja sustentável, como forma de conseguir controlar, por um lado, o descontentamento popular e a desilusão pelas promessas incumpridas e, por outro, evitar a sucumbência do Estado pelo seu peso excessivo na economia e na sociedade, uma vez que é preferível um Estado pequeno e forte a um Estado grande e fraco, em que se respeite a liberdade dos cidadãos, se inculque a responsabilidade dos mesmos, que seja eficiente e produtivo nas suas funções nucleares.

O processo de reinvenção do Estado passará assim na posição que assumimos pela redução da dimensão do Estado, através da diminuição das suas funções, o que constitui um fator que irá melhorar a gestão, em conjunto com a introdução do elemento tecnológico. Esse objetivo deverá ser concretizado por um “novo” processo de privatizações que ficou incompleto nos anos 80, pelo corte nos subsídios, que beneficiam indiretamente mais as classes abastadas e os grupos de interesse e, por fim, pela reforma da atribuição de direitos sociais, assegurando que estes visam os mais pobres e que são sustentáveis a longo prazo.

Apesar do movimento de privatizações dos anos 80, o Estado mantém a titularidade sobre muitas empresas, imóveis e terrenos. As privatizações constituem uma forma adequada de reduzir a dívida pública e de melhorar a administração desses mesmos bens, sendo que a regulação consiste na melhor forma de salvaguardar os interesses públicos nos setores dos transportes, eletricidade, telecomunicações, que até hoje têm sido vistos como setores estratégicos para o Estado.

O desmantelamento dos interesses e dos subsídios que favorecem os mais ricos e influentes consiste numa forma de evitar a subida dos impostos, pelo que se mostra mais adequado que o Estado se concentre na eliminação da rede de benefícios (Estado-providência dos ricos), isto é, no desmantelamento do capitalismo de compadrio, corporizado por subsídios a indústrias politicamente bem relacionadas. Essa actuação deve ser também extensível ao sistema de impostos sobre o rendimento individual, que se encontra distorcido pela ajuda às classes mais abastadas, uma vez que transforma bens públicos em ganhos privados, minando a competitividade da economia e desviando recursos escassos. O Estado deve concentrar-se na luta contra a corrupção, bem como contra um sistema fiscal cheio de subterfúgios, isenções, benefícios fiscais, que devem ser abolidos ou reduzidos de forma faseada, de modo a permitir a descida das taxas de impostos e a simplificação do sistema fiscal.

A explosão dos direitos sociais constitui o principal problema do Estado, os quais vêm crescendo de forma continua desde a Segunda Guerra Mundial, o que se agrava com o envelhecimento progressivo da população. Paradoxalmente, o Estado em vez de cuidar dos mais desfavorecidos vem esbanjando recursos financeiros com o estado-providência das classes mais abastadas. Por outro lado, os custos crescentes com a saúde têm levado ao agravamento dos custos sociais, pelo que importa encontrar soluções, que deverão passar pelo aumento da idade da reforma[12], pela indexação da pensão à esperança média de vida e à evolução da economia, o que melhoraria, segundo se julga, o PIB em 1%, uma vez que haveria mais gente a trabalhar. Ademais, os benefícios deveriam estar indexados à inflação e não aos rendimentos do trabalho, em que uma parte deveria estar abrangida por um seguro social, em vez da pura assistência social.

Quanto aos custos clínicos, a solução deverá passar pela organização dos hospitais, na qual algum dos trabalhos médicos passasse a ser efetuado por pessoal não médico, bem como pela utilização mais intensa de máquinas e tecnologia. A utilização das unidades hospitalares deverá estar sujeita ao pagamento de pequenas taxas, de modo a evitar a sua utilização excessiva. Por fim, os outros benefícios fiscais deverão sujeitar-se a um pagamento maior por parte dos seus efetivos beneficiários, de modo a não se subsidiar a ociosidade e a evitar abusos.

Efetivamente, Beveridge (1942) defendia a limitação temporal da assistência social, bem como a verificação dos rendimentos para impedir que os ricos acedessem a benefícios destinados aos pobres. Além disso, o Estado tem a obrigação moral de impedir o empobrecimento das gerações futuras em favor das gerações atuais, a que acresce a criação de uma dívida implícita para o futuro. Como referido, hoje estão reunidas as condições necessárias para a reinvenção do Estado, designadamente através da revolução tecnológica nas áreas identificadas como nucleares – lei, ordem, saúde e educação –, e por via da concorrência das novas conceções de Estado provenientes do Oriente.

6 Conclusão

O segredo de um bom Estado (ou governo) reside em controlar as paixões humanas, não em as desencadear, o que deverá ser obtido através de cargos políticos de duração mais longa. Importa recordar que John Stuart Mill tinha razão quando receava que a maioria das massas predominasse, coagindo as minorias ao conformismo, por pressão moral e regulamentação legal – “todos escravos (iguais) de um Estado todo-poderoso (tirano)” (MICKLETHWAIT; WOOLDRIDGE, 2015).

O cidadão-eleitor está cada vez mais afastado dos governos e dos políticos, não vota, detesta os políticos, odeia os corruptos e ineficientes, mas não coloca a ideia de democracia em causa. As falhas da democracia estão a ser reveladas, porque os governos estão a fazer o que os eleitores querem, atrofiando o seu funcionamento e promovendo o crescimento incontrolável do Estado.

O acentuar de questões ideológicas tem prejudicado o funcionamento da democracia, o que é acentuado pela manipulação de círculos eleitorais, os quais estão cada vez mais alheados da ideia de liberdade, com o consequente regresso à velha corrupção. Na União Europeia é patente a falta de democracia desde a sua génese, visto que se tratou de um projeto de elites, de modo a controlar paixões, mas onde tem existido pouca vontade política na eliminação desse défice democrático. Tal é evidente no processo que conduziu à introdução do euro, sem qualquer consulta democrática, ou com as “novas” pretensões de controlar e vetar os orçamentos nacionais.

Por um lado, existe o problema profundo da democracia participativa, ameaçada pela globalização, o qual está a promover a mudança das políticas nacionais, fruto de se reconhecer que se cedeu em demasia poderes relacionados com o comércio e o mundo financeiro. Por outro lado, há os grandes desafios que surgem da sociedade, como as nações que desejam a separação. A estes fatores juntam-se os micropoderes das ONGs e dos lobistas, que estão a intermediar a política tradicional, no âmbito do qual a internet veio derrubar barreiras, facilitando a organização e a agitação social.

Neste novo contexto social e político, os partidos tradicionais não conseguem atrair novos militantes, nem estabelecer maiorias estáveis, onde é cada vez mais notório o cinismo eleitoral do cidadão-eleitor, em que continua a exigir tudo do Estado, apesar das críticas cada vez mais severas que são apresentadas. Assim, se por um lado exigem que o Estado lhes dê todos os serviços imagináveis, por outro, têm uma atitude de desdém para com o Estado e os seus governos.

A democracia tem vivido erradamente assente em dois dogmas, isto é, que existe um credo universal a favor da democracia e que não pode existir capitalismo sem democracia, mas como se viu tais dogmas estão ultrapassados. Aliás, muitas das preocupações dos liberais clássicos vieram a concretizar-se, como o expresso por Buchanan e Musgrave (2000): “temiam que os políticos democráticos atendessem sempre aos seus eleitorados – e por conseguinte fizessem crescer os défices e subinvestissem em infra-estruturas”.

Somos levados a pensar que a democracia não estará em colapso a favor do autoritarismo, porque a democracia é bastante adaptável às diferentes épocas históricas, mas ainda assim é preciso que seja preservada. Como deixamos enunciado existem várias questões que urge solucionar, nomeadamente, como obter um Estado menor e limitado, bem como resolver o problema das elevadas expectativas que recaem sobre a democracia, mas que não podem ser cumpridas. Além disso, importa encontrar uma solução para o facto de os cidadãos-eleitores desejarem a sua satisfação no curto prazo e não a sustentabilidade do Estado a longo prazo.

Na realidade, um Estado menor, que se autolimite, seria mais sustentável, pois é essencial que o Estado controle a si próprio, através de um sistema de freios e contrapesos, em face dos perigos apontados à sobrevivência do Estado e da própria democracia, nomeadamente, o crescimento desmesurado do Estado em prejuízo das liberdades, a continuação da atribuição de mais poderes aos grupos de interesses, a possibilidade do Estado continuar a fazer promessas que não pode cumprir, a atribuição de direitos sociais que não pode pagar e a proclamação de objetivos que não são alcançáveis.

As soluções a adotar face a esses problemas e questionamentos terão de ser adaptadas a cada país, mas passam ao que julgamos pelo mencionado autodomínio do próprio Estado, através da proclamação de limites que não poderão ser ultrapassados, bem como a introdução de cláusulas “pôr do sol”, isto é, a imposição de que as leis caduquem decorrido um determinado período temporal. Além disso, os desejos dos cidadãos-eleitores terão de ser necessariamente equilibrados com a globalização e com as limitações financeiras do Estado, em que determinadas funções deverão ser entregues a tecnocratas, sob a supervisão adequada.

Em suma, é nosso entendimento que importa ressuscitar alguns ideais liberais do século XVIII e XIX no âmbito do processo que designamos de reinvenção do Estado, designadamente o regresso do espírito de liberdade, realçando-se mais os direitos individuais e menos os direitos sociais, e ressuscitar o espírito democrático, diminuindo o peso do Estado na economia e na sociedade.

REFERÊNCIAS

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Notas de Rodapé

[1] Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUCSP. Professor Adjunto e Coordenador do Curso de Graduação em Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo. Advogado.

[2] Mestre em Direito das Administrações e Instituições Públicas pela Universidade de Santiago de Compostela. Doutorando em Direito Administrativo na Universidade de Santiago de Compostela.

[3] Mestre em Direito de Ciências Jurídico-Económicas, pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Candidato a programa de Doutoramento na Universidade de Santiago de Compostela. Advogado.

[4] A União Europeia representa, respectivamente, 7% e 25% da população e do PIB Mundial, mas em contrapartida é responsável por 50% das despesas sociais do mundo (MICKLETHWAIT; WOOLDRIDGE, 2015).

[5] Friedman (1997), antevendo, o futuro avisou que a moeda única levaria à desunião política, e afirmou que o Euro poderia desfazer-se, o que de certa forma se vem verificando com o processo de resolução do de endividamento e ajuda à Grécia.

[6] A Grécia, em quatro anos (2004-2008), fez crescer a despesa primária para 87%, enquanto a receita fiscal cresceu apenas 31%. Portugal ainda que de forma mais moderada fez também crescer a despesa pública de 41,6% para 46,9% do PIB (2000 – 2012) (MICKLETHWAIT; WOOLDRIDGE, 2015).

[7] A Suécia adotou um sistema de registos hospitalares, que mostram como se comporta o seu sistema no tratamento das diferentes doenças, a eficiência de médicos e hospitais, bem como a taxa de sucesso de cada um, introduzindo incentivos quanto à produtividade do setor (MICKLETHWAIT; WOOLDRIDGE, 2015).

[8] Na Índia com a produção em série de cuidados de saúde (economia de escala) e a atribuição de responsabilidades médicas a não médicos. Na Inglaterra com o sistema de pagador único, em que o Estado se oferece para cobrir o custo de toda a gente. No Brasil com a bolsa-família, que consiste num sistema de transferência condicional de dinheiro para os cidadãos que tenham determinadas atitudes sociais, como forma de incentivar a mudança comportamental (MICKLETHWAIT; WOOLDRIDGE, 2015).

[9] A mudança da atual forma de trabalhar pode ser exemplificada com a monitorização médica à distância e o sistema de registos estatísticos da Suécia (MICKLETHWAIT; WOOLDRIDGE, 2015).

[10] Os problemas que vêm sendo denunciados nas parcerias público-privadas não decorrem do modelo de abertura aos privados, mas dos erros de negociação dos contratos e da inadequada supervisão face aos abusos cometidos.

[11] Friedman (1995) refere que “There is a widespread misconception about the function of income taxes. It is generally simply taken for granted that their major function is to raise revenue to finance government spending. They do indeed serve that function, but that is not their most important political function. As already noted, a flat-rate tax would perform the function of raising revenue far better. The political function of the income taxes, which is served by their being complex, is to provide a means whereby the members of Congress who have anything whatsoever to do with taxation can raise campaign funds. That is what supports the army of lobbyists in Washington who are seeking to produce changes in the income tax, to introduce special privileges or exemptions for their clients, or to have what they regard as special burdens on their clients removed. A strict flat-rate tax would offer nothing that any lobbyist could hope to achieve since the structure of the tax is so simple and straightforward”.

[12] Alguns países estão a adotar a idade de 67 anos, mas que a breve prazo julga-se que terá de ser fixada nos 70 anos.