A Tutela do Patrimônio Cultural Brasileiro sob a Perspectiva da Proteção do Conhecimento Tradicional Associado ao Patrimônio Genético: os Desafios do Novo Marco Normativo Brasileiro Estabelecidos pela Lei 13.123, de 20.05.2015

Angela Cassia Costaldello[1]

Karin Kässmayer[2]

Resumo: O presente texto analisa o novo marco normativo sobre o acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional associado: a Lei 13.123, de 20 de maio de 2015. Ao regulamentar o artigo 225 da Constituição Federal e dispositivos da Convenção sobre Diversidade Biológica, além de revogar a Medida Provisória 2.186-16, de 23 de agosto de 2001, avança ao instituir regramento relevante à conservação da diversidade biológica do País e à tutela do patrimônio cultural imaterial. Os objetivos específicos são comprovar a interface existente entre a proteção do meio ambiente natural e do patrimônio cultural, garantidas nos arts. 225 e 216 da Constituição, respectivamente, e analisar as medidas protetivas do conhecimento tradicional associado, sob a perspectiva de sua natureza jurídica de bem cultural imaterial e, portanto, patrimônio cultural brasileiro. Para tanto, analisam-se aspectos do novo marco regulatório sobre o uso da diversidade biológica e dispositivos concernentes à proteção do conhecimento tradicional associado, sua natureza jurídica e, a partir da concepção de bem cultural, constata-se a importância da evolução de tal conceito para a ampla proteção do patrimônio cultural imaterial.

Palavras-chave: Patrimônio cultural imaterial. Bens ambientais culturais. Proteção do conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético. Lei 13.123, de 20 de maio de 2015.

Abstract: This paper analyzes the new legal framework on access to genetic heritage and associated traditional knowledge: the Federal Law 13.123, dated May, 20, 2015. Its regulate the Article 225 of the Federal Constitution and the Convention on Biological Diversity, and reverse the Provisional Act 2.186-16, dated August, 23, 2001. It is an relevant Act that aims to protect the biological diversity and intangible cultural heritage. The specific goals are: to demonstrate the important relation between the protection of the natural environment and cultural heritage, both guaranteed, respectively, in articles 225 and 216 of the Constitution, and to analyze the associated traditional knowledge’s protective legal measures. Therefore, we analyze aspects of the new regulatory framework concerning the protection of traditional knowledge associated and its legal status. Considering the definition of cultural property, we emphasises the importance of the evolution of this concept to intangible cultural heritage.

Keywords: Intangible cultural heritage. Cultural property. Associated traditional knowledge to genetic heritage. Federal Law 13.123, dated May, 20, 2015.

1 INTRODUÇÃO

O meio ambiente ecologicamente equilibrado, garantido no art. 225 da Constituição Federal brasileira (CF), impõe ao Poder Público e à coletividade o dever solidário de defendê-lo e preservá-lo às presentes e futuras gerações. Trata-se de direito fundamental, bem como de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida[3]. As referências ecológicas transpassam o texto constitucional e, apenas para citar algumas, a ordem econômica possui como princípio a defesa do meio ambiente (art. 170, VI); a propriedade urbana e rural devem cumprir sua função social e ambiental (arts. 182 e 186, II); e constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, inclusive aqueles com valor paisagístico e ecológico (art. 216, V).

O art. 225 consagra, portanto, tanto um direito quanto um dever fundamental, este materializado sob as premissas dos deveres de cautela, proteção integral e agir precaucional diante dos riscos. Interessa ao presente artigo, no entanto, a regulamentação dos §§ 1o, inciso II, e 4o deste dispositivo. Inicialmente, o § 4o estabelece que os grandes biomas brasileiros (Floresta Amazônica, Mata Atlântica, Serra do Mar, Pantanal Mato-Grossense e Zona Costeira)[4] são considerados patrimônio nacional e sua utilização ocorrerá na forma da lei, de acordo com condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais. Enfatiza, assim, a relevância e sensibilidade ecológicas dessas áreas, as quais demandam urgente e direta regulamentação[5]. Já em relação aos deveres constitucionais elencados no § 1o, inciso II, determina a preservação da diversidade e integridade do patrimônio genético do País e a fiscalização das entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético.

Nesse panorama, atividades e ações que envolvem o acesso ao patrimônio genético nacional e ao conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético demandam a atuação legislativa, com a finalidade de prescrever regras condicionantes do uso desse patrimônio, visando a proteção da diversidade biológica e a tutela do conhecimento tradicional associado a esta biodiversidade (incluindo aqui o patrimônio genético). Com efeito, tem-se, de modo concomitante, uma demanda legislativa protetiva do meio ambiente natural (patrimônio genético e biodiversidade) e das práticas individuais e coletivas de comunidades indígenas e tradicionais a ele relacionadas, ou seja, do meio ambiente cultural (proteção dos bens culturais e do patrimônio cultural brasileiro, conforme conceito estabelecido no caput do art. 216 da CF).

Assim, e diante da recém-sancionada Lei 13.123, de 20 de maio de 2015, que regulamenta os §§ 1o, inciso II, e 4o do art. 225 da CF, revoga a Medida Provisória 2.186-16, de 23 de agosto, e dispõe sobre o acesso ao conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético, justifica-se a opção temática por se tratar de um diploma legal relevante à conservação da diversidade biológica do País. Os objetivos específicos deste trabalho são (i) no contexto da Lei 13.123, de 2015, comprovar a importante interface existente entre a proteção do meio ambiente natural e a do patrimônio cultural, garantidas nos artigos 225 e 216 da CF, respectivamente; e (ii) analisar as medidas protetivas do conhecimento tradicional associado, conceituado como a informação ou prática de população indígena, comunidade tradicional ou agricultor tradicional sobre a propriedade ou usos diretos ou indiretos associados ao patrimônio genético (inciso II do art. 2o da Lei 13.123, de 2015), sob a perspectiva de sua natureza jurídica de bem cultural imaterial e, portanto, patrimônio cultural brasileiro.

Para alcançar as finalidades pretendidas, serão apresentados, de início, aspectos relevantes do novo marco regulatório sobre o uso da diversidade biológica (Lei 13.123, de 2015), para, na sequência, analisar os dispositivos concernentes à proteção do conhecimento tradicional associado, sua natureza jurídica e, a partir da concepção de bem cultural, verificar a evolução de tal conceito, à luz da CF, da proteção do patrimônio cultural imaterial e da recente lei.

2 A LEI 13.123, DE 2015: NOVO MARCO REGULATÓRIO SOBRE O USO DA DIVERSIDADE BIOLÓGICA

A Lei 13.123, de 2015, introduz um novo marco regulatório sobre o uso da diversidade biológica, regulamenta os §§ 1o, inciso II, e 4o do art. 225 da CF, conforme já dito, e o artigo 1, a alínea “j” do artigo 8, a alínea “c” do artigo 10, o artigo 15 e os §§ 3o e 4o do artigo 16 da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), promulgada pelo Decreto 2.519, de 16 de março de 1998. Dispõe, portanto, sobre o acesso ao patrimônio genético, a proteção e o acesso ao conhecimento tradicional associado e a repartição de benefícios para conservação e uso sustentável da biodiversidade.

A CDB é um dos mais importantes acordos internacionais ambientais promulgados pelo País. Sua origem decorre da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (CNUMAD), também denominada “ECO-92”, a qual despertou a conscientização mundial sobre a crise ambiental e a necessidade de se repensar o modelo de desenvolvimento econômico adotado. Sua relevância decorre, igualmente, de seus produtos, os quais, além da CDB, são a Carta da Terra, a Declaração do Rio sobre Ambiente e Desenvolvimento, a Convenção sobre Mudanças Climáticas e a Agenda 21.

A CDB reconhece o valor ecológico, genético, social, econômico, científico, educacional, cultural, recreativo e estético da diversidade biológica e de seus componentes, bem como garante os direitos soberanos dos Estados sobre seus próprios recursos biológicos, mas os responsabiliza pela sua conservação e utilização sustentável. Além disso, reconhece a problemática da redução da diversidade biológica, causada por atividades humanas, e a estreita e tradicional dependência de recursos biológicos de muitas comunidades locais e populações indígenas com estilos de vida tradicionais.

Em seu art. 1º, estabelece como objetivos a conservação da diversidade biológica, o uso sustentável de seus componentes e a repartição justa e equitativa dos benefícios decorrentes do uso dos recursos genéticos. Os países signatários, portanto, devem seguir tais parâmetros na condução de suas relações internacionais em matéria de meio ambiente e na elaboração de normas nacionais.

O art. 2o do Anexo ao Decreto que promulga a CDB trata da utilização dos termos para os propósitos da Convenção. São conceituados, dentre outros, (i) área protegida; (ii) biotecnologia; (iii) diversidade biológica; (iv) ecossistema; (v) material genético; (vi) recursos biológicos; (vii) recursos genéticos e (viii) utilização sustentável. Quanto aos deveres das partes contratantes, destaca-se o aprimoramento da legislação nacional a fim de respeitar, preservar e manter o conhecimento, inovações e práticas das comunidades locais e populações indígenas com estilos de vida tradicionais relevantes à conservação e à utilização sustentável da diversidade biológica (alínea “j” do art. 8o). Já a utilização sustentável de componentes da diversidade biológica exige, conforme o caso, a proteção e o encorajamento do uso costumeiro de recursos biológicos de acordo com práticas culturais tradicionais compatíveis com as exigências de conservação ou sustentabilidade (alínea “c” do art. 10). O acesso a recursos genéticos está sujeito à legislação de cada País, que deverá adotar medidas legislativas, administrativas ou políticas para compartilhar de forma justa e equitativa os resultados da pesquisa e do desenvolvimento de recursos genéticos e os benefícios derivados de sua utilização comercial.

O Brasil, com base nestas diretrizes, deu início ao processo legislativo para a internalização da CDB, com o Projeto de Lei do Senado (PLS) 305, de 1995, da Senadora Marina Silva. Mas, no ano 2000, diante da inexistência de arcabouço legal, um caso de biopirataria com significativa repercussão nacional motivou a edição da Medida Provisória (MPV) 2.186-16, de 2001, que se tornou o marco legal sobre a matéria, nos termos do art. 2º da Emenda Constitucional 32, de 2001 até a publicação da Lei 13.123, de 2015, que a revogou. A biopirataria consiste em práticas, geralmente realizadas por cientistas e empresas multinacionais, de usurpação de “matérias-primas e conhecimentos tradicionais dos povos indígenas e comunidades locais (geralmente) amazônicas, ações que se mantêm até os dias de hoje, deixando as comunidades exploradas sem nenhuma participação nos lucros que produzem[6].

Os danos desta atividade sem controle pelo Poder Público são de duas ordens: (i) ambiental, em razão da perda da biodiversidade ou muitas vezes exploração insustentável de espécies ameaçadas de extinção; e (ii) socioeconômica, pois é frequente que haja usurpação do conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético sem qualquer contrapartida financeira destinada às comunidades exploradas.

A MPV, portanto, buscou regulamentar essas atividades de bioprospecção e estabeleceu regras para dispor sobre bens, direitos e obrigações relativos ao acesso ao patrimônio genético existente no território nacional, acesso ao conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético, e à repartição justa e equitativa dos benefícios derivados da exploração de componente do patrimônio genético e do conhecimento tradicional associado. Portanto, o acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional associado no Brasil passou a ser autorizado pela União por meio do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN), órgão ligado ao Ministério do Meio Ambiente.

A MPV, apesar de proteger os direitos das comunidades indígenas, regulamentar a repartição dos benefícios advindos do uso do patrimônio genético e visar combater a biopirataria, foi objeto de inúmeras críticas, diante de sua rigidez e desproporcionalidade das medidas, o que gerou o estímulo negativo de realização de pesquisas no País. A esse respeito, Schmidlehner[7] afirma:

A MP é duramente criticada tanto por pesquisadores e empresas, quanto pelos povos indígenas e comunidades locais. Os primeiros apontam seu caráter burocrático e as incertezas jurídicas como obstáculos ao acesso a recursos genéticos ou conhecimentos tradicionais associados a eles. Os povos indígenas e comunidades locais, por sua vez, alegam que a medida provisória não reconhece a sua titularidade como geradores e transmissores dos conhecimentos tradicionais, tampouco assegura plenamente seu direito ao consentimento prévio informado, conforme preconizado pela CDB [Convenção da Diversidade Biológica].

Ainda, a MPV criou incertezas jurídicas, pois era exigida a repartição de benefícios em uma fase de prospecção do produto, ou seja, sequer se sabia se haveria algum resultado economicamente viável. Outra questão incerta dizia respeito à identificação dos detentores do conhecimento tradicional. Nesse cenário caracterizado pelo baixo número de pesquisas e inovação tecnológica com relação à biodiversidade brasileira, não houve, da mesma forma, repartição de benefícios com os titulares do conhecimento tradicional.

Portanto, o Projeto de Lei (PL) 7.735, de 2014, do Poder Executivo, teve como principal escopo criar um novo marco normativo que viesse a garantir segurança jurídica, incentivar o desenvolvimento sustentável, reduzir a burocracia e custos, além de criar um regime de repartição de benefícios adequado com a realidade das comunidades detentoras do mesmo.

Sancionada com vetos, destacam-se as seguintes inovações da Lei 13.123, de 2015: (i) considerou o patrimônio genético como bem de uso comum do povo (art. 1o, I) corroborando com a concepção de que integra o meio ambiente ecologicamente equilibrado (caput do art. 225 da CF), interesse difuso e sujeito aos princípios do Direito Ambiental; (ii) instituiu novos conceitos e reformulou outros já existentes, a exemplo de patrimônio genético como informação de origem genética de espécies animais, vegetais, microbianas ou espécies de outra natureza, incluindo substâncias oriundas do metabolismo de outros seres vivos, desvinculando-a da existência da amostra física, como ocorria com a MPV (art. 2o, I); simplificou os processos para a realização de atividades de pesquisa científica e tecnológica, bem como a exploração econômica de produto acabado ou material reprodutivo oriundo do acesso (art. 3o); (iii) restabeleceu as competências e atribuições do CGEN (art. 6o), assegurando a participação de populações indígenas, comunidades tradicionais e agricultores tradicionais; (iv) assegurou a proteção do conhecimento tradicional associado, de origem identificável e não identificável (arts. 8o a 10); (v) instituiu novas regras, critérios e procedimentos para assegurar a repartição de benefícios (nas modalidades monetária e não monetária), resultantes da exploração econômica de produto acabado ou de material reprodutivo oriundo de acesso ao patrimônio genético ou ao conhecimento tradicional associado (arts. 17 a 26); (vi) instituiu o Fundo Nacional de Repartição de Benefícios (FNRB) e o Programa Nacional de Repartição de Benefícios (arts. 30 a 34); e dispôs sobre a adequação e regularização das atividades realizadas em desacordo com a MPV, bem como suspensão de multas e remição das indenizações civis relacionadas a essas atividades (arts. 35 a 45).

Na sequência, serão analisados os dispositivos específicos voltados à proteção do conhecimento tradicional associado.

2.1 A Tutela do Conhecimento Tradicional Associado ao Patrimônio Genético e a Repartição de Benefícios

Conforme mencionado, a Lei 13.123, de 2015, ao regulamentar o acesso ao conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético e estabelecer normas quanto à repartição justa e equitativa dos benefícios derivados da exploração econômica de produto acabado ou material reprodutivo oriundo do acesso, inova o ordenamento jurídico ao prever procedimentos mais céleres e maior segurança aos usuários e provedores. Inicialmente, serão apresentadas as inovações (em sua maioria positivas) relacionadas à proteção dos provedores do conhecimento tradicional, para, na sequência, apontar críticas ao novo marco normativo.

Quanto à natureza jurídica do conhecimento tradicional associado, a Lei mantém idêntica redação à MPV (ambas no art. 8o, § 2o), no sentido de afirmar que este integra o patrimônio cultural brasileiro, o qual, conforme o caput do art. 216 da CF, é constituído pelos bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira.

As inovações se dão no sentido de integrar ao conceito de conhecimento tradicional associado, além da informação ou prática de população indígena e comunidade tradicional (na MPV, comunidade local), também a informação ou prática de agricultores tradicionais sobre as propriedades ou usos diretos ou indiretos associados ao patrimônio genético (art. 2o, II). Ou seja, dentre os diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, incluem-se os agricultores tradicionais. A Lei conceitua, em seu art. 2o, comunidade tradicional, agricultor tradicional (incluindo neste o agricultor familiar) e traz importante conceito relativo ao conhecimento tradicional associado de origem não identificável, sendo aquele em que não há a possibilidade de vincular a sua origem a, pelo menos, uma população indígena, comunidade tradicional ou agricultor tradicional (art. 2o, III).

Assim, resta garantida a repartição de benefícios não somente derivada do acesso do conhecimento tradicional de origem identificável, mas também de origem não identificável, estendendo-se a proteção, já que na maioria dos casos havia dificuldade de identificar o provedor, o que causava, no modelo anterior, a não formalização do contrato. Tal conceito adequa-se, ainda, ao disposto no art. 216 da CF, já que se tratam de bens imateriais ou materiais portadores de referência a diversos grupos formadores da sociedade brasileira. Tutela-se, portanto, um bem de origem difusa. Outro aspecto importante e necessário à tutela dos direitos e autonomia dos povos indígenas e comunidades tradicionais é a previsão de consentimento prévio informado (art. 2o, VI), sendo aquele consentimento formal, previamente concedido por população ou comunidade tradicional, segundo os seus usos, costumes e tradições ou protocolos comunitários.

Os arts. 8o a 10 compõem o Capítulo III (Do Conhecimento Tradicional Associado) e protegem os conhecimentos tradicionais associados ao patrimônio genético contra a utilização e exploração ilícita. Fica reconhecido o direito de populações indígenas, de comunidades tradicionais e de agricultores tradicionais de participar da tomada de decisões, no âmbito nacional, sobre assuntos relacionados à conservação e ao uso sustentável de seus conhecimentos tradicionais associados ao patrimônio genético do País, e garantido que o acesso ao conhecimento tradicional associado de origem identificável está condicionado a obtenção do consentimento prévio informado, com a ressalva de que o acesso a conhecimento tradicional associado de origem não identificável independe de consentimento prévio informado.

O art. 10, especificamente, garante o direito aos povos indígenas, comunidades tradicionais e agricultores tradicionais de: (i) ter reconhecida sua contribuição para o desenvolvimento e conservação de patrimônio genético, em qualquer forma de publicação, utilização, exploração e divulgação; (ii) ter indicada a origem do acesso ao conhecimento tradicional associado em todas as publicações, utilizações, explorações e divulgações; (iii) perceber benefícios pela exploração econômica por terceiros, direta ou indiretamente, de conhecimento tradicional associado; (iv) participar do processo de tomada de decisão sobre assuntos relacionados ao acesso a conhecimento tradicional associado e à repartição de benefícios decorrente desse acesso, na forma do regulamento; (v) usar ou vender livremente produtos que contenham patrimônio genético ou conhecimento tradicional associado; e (vi) conservar, manejar, guardar, produzir, trocar, desenvolver, melhorar material reprodutivo que contenha patrimônio genético ou conhecimento tradicional associado.

No que diz respeito ao modelo de partilha dos recursos derivados da exploração econômica de produto acabado ou de material reprodutivo oriundo do conhecimento tradicional associado, a Lei institui a repartição de benefícios, que assumirá ou a modalidade monetária ou não monetária (art. 19). A repartição monetária será obrigatória no caso de exploração econômica originada, respectivamente, de acesso ao conhecimento tradicional associado não identificável e identificável. Nesse último caso, o provedor de conhecimento tradicional tem direito de receber benefícios mediante acordo de repartição de benefícios, o qual será negociado de forma justa e equitativa. Os valores serão depositados no FNRB.

Nesse aspecto, pode-se discutir a natureza jurídica dos valores recebidos pelo Poder Público em decorrência da exploração econômica de bens oriundos de acesso ao conhecimento tradicional associados, e, conforme dispõe o art. 2o, II, tal conhecimento é de titularidade de seus provedores, portanto, de natureza coletiva das comunidades e pessoas.

De mais a mais, quanto ao direito à participação dos povos indígenas, comunidades e agricultores tradicionais no processo de tomada de decisão referente ao acesso ao seu conhecimento tradicional associado, verificou-se que a Lei garante o seu consentimento prévio informado. No entanto, tal acesso somente será autorizado ou não, posteriormente, pelo CGen, que poderá ouvir o órgão indigenista. A inafastabilidade da oitiva, entretanto, não se encontra garantida.

Ainda, ao se tratar de conhecimento tradicional associado de origem não identificável (art. 2º, III), nada impede que no futuro tal conhecimento possa ser vinculado a uma fonte específica. Nesse aspeto, a Lei foi omissa ao estipular mecanismos para compensar o detentor desse conhecimento, caso ocorra.

Por fim, quanto à segurança de recebimento, por parte dos provedores do conhecimento tradicional associado, da repartição de benefícios, cabe salientar a redação do art. 17, que o condiciona à comprovação de que o componente do conhecimento tradicional associado seja um dos elementos principais de agregação de valor do produto acabado. O inciso XVIII do art. 2o define esses elementos como aqueles cuja presença no produto acabado é determinante para a existência das características funcionais ou para a formação do apelo mercadológico. Além de ser uma definição subjetiva, poderá gerar litígios em razão da discussão quanto à comprovação de o elemento ser “determinante”. Consequentemente, há o risco de muitas empresas não repartirem seus benefícios e, consequentemente, comunidades não terem seus direitos garantidos. Ainda quanto à repartição, a União estabelecerá por decreto a Lista de Classificação de Repartição de Benefícios, com base na Nomenclatura Comum do Mercosul – NCM (§ 9o do art. 17). Sem a lista, não há repartição. Portanto, a lei carece de urgente regulamentação.

Conclui-se que, apesar das inovações de natureza procedimental e conceitual, disputas judiciais provavelmente advirão a respeito do dever de repartição de benefícios, restando ainda incerta a garantia e a tutela efetiva do patrimônio cultural brasileiro e da diversidade biológica e patrimônio genético nacionais.

3 OS BENS CULTURAIS

A partir da definição de conhecimento tradicional associado e do inovador conceito de conhecimento tradicional de origem não identificável, definidos na Lei 13.123, de 2015, parte-se para a análise doutrinária e legal da natureza jurídica e do conceito de bens culturais e de patrimônio cultural. Objetiva-se, a partir dessa análise, reforçar e defender a premente necessidade de tornar efetivo o direito à proteção insculpido no art. 8o da Lei, diante das fragilidades apontadas quanto à sua efetividade e eficácia. Ademais, está a se tratar de tutela de um direito coletivo constitucional.

Para tanto, demanda-se prévio cotejo acerca do conceito de cultura e de meio ambiente cultural, este resultado da intervenção do homem no meio ambiente natural. Igualmente, essas noções não se despem de aportes sociológicos, antropológicos, filosóficos e jurídicos. A cultura, cuja composição conceitual é, inegavelmente, complexa e dinâmica, recebeu várias definições. Filosoficamente, é tomada por Cornelius Castoriadis como

(…) tudo aquilo que, no domínio público de uma sociedade, transpõe o simples funcional ou instrumental e apresenta uma dimensão invisível, ou melhor, imperceptível, positivamente investida pelos indivíduos de dada sociedade. Em outras palavras, aquilo que, nesta sociedade, está ligado ao imaginário stricto sensu, ao imaginário poético, tal como ele se encarna em obras e condutas que vão além do funcional. Não é necessário dizer que a distinção do funcional e do poético não é material (não está nas “coisas”)[8].

Tal definição afasta-se da monumentalidade, do classicismo literário, musical e teatral, e estético tradicionais – características que predominaram, em especial nos séculos XVIII a XX – dando, à cultura, a conotação denominada de elitista[9]. Essa visão é complementada, de modo magistral, pela concepção contemporânea e ampla de cultura dada por José Teixeira Coelho Netto, segundo a qual “apresenta-se sob a forma de diferentes manifestações que integram um vasto e intricado sistema de significações[10].

Esses conteúdos atribuídos à cultura repercutem nuclearmente na definição de bens culturais, pois, em virtude do elemento “cultura” é que poderá ser atribuída a valoração a determinado bem, dotando-o da condição de cultural[11]. Essa específica valoração conduz à caracterização de certos bens como de interesse cultural, os quais demandam especial proteção por se mostrarem relevantes à sociedade, no passado, no presente e no futuro. Nesse sentido, Carlos Frederico Marés de Souza Filho[12] traz como conceito antropológico de cultura

o elemento identificador das sociedades humanas e engloba tanto a língua na qual o povo se comunica, conta suas histórias e faz seus poemas, como a forma como prepara seus alimentos, o modo como se veste e as edificações que lhe servem de teto, como suas crenças, sua religião, o saber e o saber fazer as coisas, seu direito.

Nesse passo, outro fenômeno acrescenta-se nessa ambiência de complexidade: o interesse cultural. Determinado bem desperta ou é detentor de interesse cultural em certa época e em um local daquela sociedade que, por múltiplas razões, lhe atribui valor e exige a sua perpetuação, mediante o reconhecimento coletivo de que o bem cultural deve ser preservado[13].

Alerta Giuseppe Severini que “o ingresso de um bem no patrimônio cultural advém de um juízo valorativo do ‘interesse’ (cultural) que o próprio bem apresenta ou se reveste, diversamente graduado ou qualificado, em razão da sua natureza ou do tipo de titular, juízo que implicitamente declara também o mérito e a exigência de salvaguarda[14].

A incidência do interesse cultural em específicos bens motivou, ao longo da História, o desenvolvimento de diversas teorias a respeito da natureza jurídica dos bens culturais. A respeito, merece menção a concepção de Giancarlo Rolla, o qual afirma que, para melhor entender a natureza jurídica dos bens culturais, necessário é considerá-los como categoria homogênea em que os bens materiais seriam apenas o suporte para o objeto de tutela, que é o valor (interesse cultural)[15]. Desse modo, aglutinam-se o valor do bem cultural e o seu objeto material, constituindo-se no suporte físico para que o Estado exerça a tutela sobre o interesse cultural a ele atrelado. Tendo em vista a significação dada pelo autor, a natureza jurídica de tais bens corresponde a uma categoria unitária que reuniria o valor cultural objeto de tutela estatal, a ser exercida sobre bens, sejam públicos ou privados, sem com eles se confrontar, favorecendo ao cidadão o desfrute dos valores culturais tutelados[16].

A complementar a definição de Rolla, Massimo Severo Gianinni salienta que o elemento pertencente a todos os bens culturais consistiria no interesse da coisa definida normativamente como sendo pública[17]. É nesse quadro que se atribui aos bens ditos culturais o valor correspondente a “interesse cultural”, informador da possibilidade de usufruto coletivo do valor traduzido pelo objeto e motivo para que se confira a tutela estatal. Daí decorre, por consequência, a sua característica de bem imaterial, eis que o valor tutelado nem sempre é o bem em si, mas todo o arcabouço de técnicas, valores, saberes, rituais atrelados a um dado conhecimento que se materializa, ou não, em um bem. Faz-se necessário, ainda, mencionar a importância do elemento natural (da biodiversidade) na influência da formação cultural de um grupo. Esse aspecto é ainda mais relevante ao se tratar de práticas indígenas, de comunidades e agricultores tradicionais que dependem dos recursos naturais para desenvolver saberes essenciais à sua sobrevivência.

De outra parte, a definição proposta por Carlos Frederico Marés de Souza Filho é elaborada a partir de previsões legislativas infralegais e da Constituição de 1988: o bem cultural é aquele bem jurídico que, além de ser objeto de direito, está protegido por ser representativo, evocativo ou identificador de uma expressão cultural relevante[18]. Salienta que todos os bens culturais são gravados de específico interesse público, independente da natureza público ou privada a que correspondem.

Ao analisar os diversos conceitos propostos pelos doutrinadores, vislumbra-se, com clareza, a superação da distinção entre bens culturais de propriedade privada e bens culturais de propriedade pública, pois, conforme analisado anteriormente, a principal característica desses bens está no valor (interesse cultural) a eles atribuídos.

Deste modo, de forma a integrar elementos contidos nas definições anteriormente expostas, abrangente é o conceito proposto por Júlia Alexim Nunes da Silva, a qual define os bens culturais como bens imateriais, que podem ou não depender de um suporte material, de propriedade pública ou privada, que expressam valores de natureza cultural e que, em razão desse valor, são submetidos a um regime jurídico especial[19].Tal conceito se coaduna com a sistemática da Lei 13.123, de 2015, eis que o objeto de tutela ora analisado é o conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético, bem cultural e difuso, mas passível de apropriação e exploração econômica por particulares (usuários), desde que haja a repartição de benefícios, garantidos, inclusive, os direitos de propriedade intelectual oriundos desse acesso.

Todavia, o conceito de patrimônio cultural atrelado à materialidade de bens móveis e imóveis, conforme art. 1o do Decreto-Lei 25, de 30 de novembro de 1937, que organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional, atualmente não mais se coaduna à dimensão protetiva que o patrimônio cultural imaterial demanda. Isso porque este “pretende, justamente, fazer emergir temas, memórias, saberes, e fazeres de origem popular, em geral excluídos dos mecanismos de registro e divulgação da cultura nacional[20].

Certamente, o conhecimento tradicional associado de origem identificável e não identificável possuirá amparo tão somente em decorrência do preceito constitucional (art. 216) e não regramento do Decreto-Lei 25, de 1937, eis que está a se tratar de uma concepção de cultura não hegemônica da sociedade além de, frequentemente, desconhecida.

4 A EXPRESSÃO “PATRIMÔNIO CULTURAL” E SEUS DESDOBRAMENTOS

A proteção jurídica dos bens culturais no ordenamento jurídico brasileiro resultou, com a Constituição de 1988[21], na manutenção da expressão “patrimônio cultural”, como o conjunto de bens materiais e imateriais, e sua correspondente e ampla tutela jurídica. Para Vieira, a “Carta Magna lança as bases de um novo conceito de cultura, nos artigos especialmente dedicados ao tema, e em diversas referências, esparsas ao longo de todo o texto constitucional[22].

Como diploma normativo embrionário a dar regramento ao tema, conforme já mencionado, tem-se o Decreto-Lei 25, de 1937, conhecido como Lei do Tombamento[23], que, a despeito de limitar a abrangência de um possível conceito envolvendo os bens culturais, definiu em seu artigo 1º que

Constitui o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico[24].

A proteção dos bens culturais, em um primeiro momento, foi determinada a partir de conceito insuficiente sobre “patrimônio histórico e artístico nacional”, restringindo-se em promover o tombamento de obras que, empiricamente, se mostravam belas e relacionáveis a fatos históricos[25]. Esse insuficiente e fechado conceito formulado para a proteção de bens culturais se transformou nos anos subsequentes ao Estado Novo[26].

A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e Cultura – UNESCO, em convenção realizada na década de 70, foi a primeira instituição a utilizar o termo “patrimônio cultural nacional[27] ao invés do clássico “patrimônio histórico e artístico”, o que já representava a compreensão internacional de que a cultura da humanidade não se resumia em edifícios históricos ou apenas a arte[28].

O conceito de patrimônio cultural nacional ainda veio a se desenvolver, tendo por preocupação a inclusão dos bens culturais imateriais. Nesse sentido, a própria UNESCO aprovou, em 2003, Convenção que salvaguardou o patrimônio cultural imaterial, promulgada pelo Decreto 5.753, de 12 de abril de 2006, definindo-o, no art. 2º, como “os usos, representações, expressões, conhecimentos e técnicas – junto com os instrumentos, objetos, artefatos e espaços culturais que lhe são inerentes – que as comunidades, os grupos e em alguns casos os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural”. Ainda, o texto da Convenção dispõe uma tipologia dos bens imateriais. O “patrimônio cultural imaterial”, segundo tal norma, manifesta-se, dentre outros, mediante conhecimentos e práticas relacionadas à natureza e ao universo, campo este que abrange os direitos tutelados pela Lei 13.123, de 2015. Há que se salientar que o País, de modo a complementar a atual previsão constitucional, bem como a antecipar a Convenção supracitada, expediu o Decreto 3551, de 2000, que criou o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, desenvolvendo tanto o conceito quanto a proteção dos bens culturais intangíveis[29].

Assim, nota-se que a proteção jurídica dos bens culturais envolve, necessariamente, o desenvolvimento do conceito de patrimônio cultural e a caracterização desses bens entre materiais e imateriais. Tal distinção pode ser notada na própria definição proposta pela CF, em seu art. 216, segundo o qual “Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira (…)[30]/[31]. E, ainda, densificou o conceito de bens culturais, aproximando-o do significado de identidade nacional ao reconhecer, proteger e enaltecer a diversidade cultural, acrescentando valores indígenas, afro-brasileiros e outros grupos étnicos[32].

De mais a mais, as Emendas Constitucionais 42/2003 e 48/2005, que alteraram o artigo 215 e 216, da Constituição de 1988, demonstram o avanço na tutela do patrimônio cultural. Nesse sentido, “as políticas de salvaguarda relacionadas ao patrimônio imaterial não são ações de preservação no sentido tradicional, mas um conjunto de iniciativas que deve compreender os diversos aspectos de formação da identidade do grupo social considerado. Dessa forma, ações de salvaguarda são, necessariamente, multifacetadas e envolvem vários setores da atuação governamental[33].

De modo a atender aos ditames constitucionais e em conformidade com o exposto por Vieira, no sentido de que as ações de salvaguarda passam a ser multifacetadas, eis que o objeto tutelado demanda políticas que vão além das medidas tradicionais; conclui-se que a Lei 13.123, de 2015, cumpre importante papel ao declarar como patrimônio cultural imaterial os conhecimentos tradicionais associados (de origem identificada e não identificável) independente de registro ou tombamento, incrementando o conceito de patrimônio cultural imaterial e possibilitando a repartição de benefícios às comunidades e povos provedores do conhecimento tradicional associado, eis que, no caso brasileiro, inexiste a previsão de proteção dos direitos difusos destes titulares, o que gera a inexistência de mecanismos legais que garantam o ressarcimento financeiro às comunidades detentor do conhecimento. A Lei 13.123, de 2015, é um marco normativo inovador a este respeito, em que pese sua aplicabilidade restrita ao conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético.

5 CONCLUSÃO

A garantia do ambiente ecologicamente equilibrado e de sua preservação às presentes e futuras gerações, inscritas no art. 225 da CF, cria um direito e, ao mesmo tempo, um dever fundamental, atribuindo ao Estado e à sociedade, conjuntamente, os deveres de cautela, proteção integral e agir precaucional diante dos riscos.

Com vistas à regulamentação dos desdobramentos do comando constitucional, em especial, dos §§ 1o, inciso II, e 4o, do artigo 225, que estabelece a proteção dos grandes biomas brasileiros, configurando-os como patrimônio nacional e sujeitando seu uso à forma da lei, assegurando a preservação do meio ambiente inclusive quanto ao uso dos recursos naturais, foi editada a Lei 13.123, de 2015. A par disso, confere aplicabilidade também à Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), de 1998, da qual o Brasil é signatário.

O citado diploma legislativo – a Lei 13.123, de 2015 – cujo conteúdo visa regulamentar as atividades e ações que abarcam o acesso ao patrimônio genético nacional e ao conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético, é oriundo da demanda de atuação legislativa e avança, inegavelmente, em vários aspectos.

Além de objetivar a preservação da diversidade biológica e a tutela do conhecimento tradicional associado à biodiversidade (incluindo aqui o patrimônio genético), unindo a proteção da sociodiversidade com a biodiversidade, alça o conhecimento tradicional – memórias, saberes e valores das sociedades e grupos culturais do País, – ao status de bem cultural imaterial difuso.

A par disso, o progresso mostra-se contundente ao disciplinar que o acesso ao conhecimento tradicional associado é passível de apropriação e exploração econômica por particulares (usuários), desde que haja a repartição de benefícios, garantidos, inclusive, os direitos de propriedade intelectual dele oriundos.

A Lei 13.123, de 2015, portanto, constitui-se em inquestionável marco regulatório no sentido da evolução do arcabouço protetivo e abarcador de possiblidades de tradução, em valores econômicos, do conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético. Contudo, há ainda entraves que precisam ser superados e desafios a serem enfrentados. Dentre eles, possivelmente o mais significativo seja a necessidade de edição de lista elaborada pela União, de Classificação de Repartição de Benefícios, com base na Nomenclatura Comum do Mercosul, conforme estabelece o marco legal. Outro ponto passível de insegurança jurídica devido à definição legal é o de produto acabado, o qual exige que o componente do patrimônio genético ou do conhecimento tradicional associado seja um dos elementos principais de agregação do valor ao produto.

Com efeito, a partir de uma análise voltada à regulamentação do acesso ao conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético, conclui-se que houve a instauração de novos procedimentos, direitos e garantias deste patrimônio cultural imaterial, assim reconhecendo em razão da evolução desse conceito e em decorrência do disposto no art. 216 da CF. Entretanto, como se trata de lei ainda recente, há desafios a serem superados, esperando-se que a tutela se efetive e que, caso haja disputas judiciais, os princípios e diretrizes aplicáveis ao Direito Ambiental e à proteção de direitos difusos prevalem, a exemplo da inversão do ônus da prova. Afinal, o que está em jogo são valores essenciais à preservação do meio ambiente natural e cultural de nosso País, garantidos de forma transgeracional e de valor incomensurável.

REFERÊNCIAS

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Notas de Rodapé

[1] Angela Cassia Costaldello é Doutora em Direito do Estado pela UFPR; Professora Adjunta da Faculdade de Direito da UFPR (Graduação e Pós-Graduação); membro-fundadora do Grupo de Pesquisa PRO POLIS da UFPR; Procuradora do Ministério Público de Contas do Tribunal de Contas do Estado do Paraná. Email: acostaldello@gmail.com

[2] Karin Kässmayer é Doutora em Meio Ambiente e Desenvolvimento pela UFPR; Mestre em Direito Econômico e Social pela PUCPR; Consultora Legislativa do Senado Federal (área Meio Ambiente); foi Professora de Direito Ambiental da UFPR e é membro-fundadora do Grupo de Pesquisa PROPOLIS da Pós-Graduação em Direito da UFPR.

Email: karin.kassmayer@gmail.com

[3] No julgamento do Mandado de Segurança (MS) 22.164/SP, em 30.10.1995, o STF interpretou o previsto no art. 225 da CF como direito de terceira geração. Extrai-se do acórdão: “A questão do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado – direito de terceira geração – princípio da solidariedade – o direito à integridade do meio ambiente – típico direito de terceira geração – constitui prerrogativa jurídica de titularidade coletiva, refletindo, dentro do processo de afirmação dos direitos humanos, a expressão significativa de um poder atribuído, não ao indivíduo identificado em sua singularidade, mas, num sentido verdadeiramente mais abrangente, a própria coletividade social. Enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) – que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais – realçam o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais) – que se identifica com as liberdades positivas, reais ou concretas – acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados, enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade.

[4] Necessário observar que o legislador constituinte não referenciou expressamente outros biomas nacionais de relevância ecológica: Cerrado, Caatinga e os Pampas. Tramitam na Câmara dos Deputados as Propostas de Emenda à Constituição (PEC) 289, de 2013 e 504, de 2010, a fim de alterar o dispositivo para acrescentar os biomas não elencados ou alterar a redação do dispositivo.

[5] SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 52.

[6] LARANJEIRA, Laís Aparecida et al. Biopirataria: informação e efetivo combate. Revista JurisFIB, a. 2, v. 2, p. 153-167, dez. 2011, p. 157. Disponível em: . Acesso em: 25 jul. 2015.

[7] SCHMIDLEHNER, Michel. Biopirataria: fim à vista? Revista Jurídica Consulex. Brasília: Consulex, v. 15, n. 337, p. 31-33, fev. 2011, apud LARANJEIRA, 2011, p. 157.

[8] CASTORIADIS, Cornelius. As encruzilhadas do labirinto IV: a ascensão da insignificância. Tradução de Regina Vasconcelos. São Paulo: Paz e Terra, 2002. p. 227.

[9] Esse foi, inclusive, o conceito adotado pela Constituição de 1937, em seu art. 134: “Os monumentos históricos, artísticos e naturais, assim como as paisagens ou locais particularmente dotados pela natureza, gozam de proteção e dos cuidados especiais da Nação, dos Estados e dos Municípios. Os atentados contra eles cometidos serão equiparados aos cometidos contra o patrimônio nacional.

[10] COELHO NETTO, José Teixeira. Dicionário Crítico de Política Cultural: cultura e imaginário. São Paulo: Iluminuras, 1997. p. 103. O autor finaliza o verbete, concluindo que “Assim, o termo cultura continua apontando para atividades determinadas do ser humano que, no entanto, não se restringem às tradicionais (literatura, pintura, cinema – em suma, as que se apresentam sob uma forma estética), mas se abrem para uma rede de significações ou linguagens incluindo tanto a cultura popular (carnaval) como a publicidade, a moda, o comportamento (ou a atitude), a festa, o consumo, o estar-junto, etc.”.

[11] O doutrinador Francisco Luciano Lima Rodrigues, com relação à caracterização de bens como culturais, ressalta que: “O valor da coisa, para efeitos culturais, é o que vai caracterizar um objeto como sendo um bem cultural. (RODRIGUES, Francisco Luciano Lima. Patrimônio Cultural: a propriedade dos bens culturais no estado democrático de direito. Fortaleza: UNIFOR, 2008. p. 46)

[12] SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Bens culturais e sua proteção jurídica. 3. ed. Curitiba: Juruá, 2005. p. 15.

[13] Souza Filho (2005) toma esse “interesse público” como um “fenômeno não transforma estes bens em bens públicos, porque grande parte do patrimônio cultural e natural do Brasil se encontra sob a propriedade privada, não havendo nem interesse, nem condições financeiras de, a cada declaração de valor cultural, o Poder Público promover a desapropriação para transformá-lo em públicos”. (Idem, p. 22)

[14] SEVERINI, Giuseppe. Patrimonioculturale. In: SANDULLI, Maria Alessandra (Org.). Codici dei beniculturali e delpaesaggio. Milano: Giuffrè, 2012. p. 17. Tradução livre.

[15] Giancarlo Rolla leciona que “Tal como se há afirmado eficazmente, elbien es cultural no si representa um determinado objeto, sino si cumple uma determinada función”. deduzindo-se que “(…) el objeto de la tutela consiste em el valor que la cosa expresa más que enelbien material que lesirve de soporte” (sem destaques no original). (ROLLA, Giancarlo. Bienes culturales y constituicion. Revista Del Centro de Estudios Constitucionales, Madrid, n. 2, fev./abr. 1989)

[16] RODRIGUES, 2008, p. 59.

[17] GIANINNI, Massimo Severo. I Beni Culturali. Revista Trimestrale di Dirrito Pubblico, n. 3, p. 3, 1976.

[18] SOUZA FILHO, 2005, p. 36.

[19] SILVA, Júlia Alexim Nunes da. Tombamento e Classificação de bens culturais: estudo comparado entre Brasil e Portugal. RIDB, v. 2, n. 6. Disponível em: . Acesso em: 20 ago. 2015.

[20] VIEIRA, Luiz Renato. Registro e salvaguarda do patrimônio cultural imaterial: uma análise comparativa Brasil – Colômbia. 2011. Tese (Pós-doutorado) – Programa de Pós-graduação em História Comparada (PPGHC). Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2011. p. 11.

[21] Importa observar que foi com a Constituição de 1934, que definiu o Estado de Bem-Estar Social, que houve a proteção do patrimônio cultural mesmo que pertencente a particulares. Nessa Constituição houve a introdução da expressão patrimônio artístico. Afirma Souza Filho, (2005, p. 61) que “desde esta Constituição até a emenda de 1969, há tratamento conjunto entre os bens naturais e culturais, com predominância evidente dos culturais. Em 1988, há avanços tanto na tutela dos bens naturais quanto na dos culturais.

[22] VIEIRA, op. cit., p. 22.

[23] Utiliza-se a expressão “Lei de Tombamento” pelo fato de ter passado por todo o processo legislativo democrático na Constituição de 1934, mas, devido ao Golpe de Estado, foi editada como Decreto-Lei.

[24] BRASIL. Decreto-Lei n. 25, de 30 de novembro de 1937. Planalto. Brasília: Planalto, 1937. Disponível em: . Acesso em: 20 ago. 2015.

[25] Rodrigues (2008, p. 79) comenta sobre a efetividade de tal conceito: “A proteção do chamado patrimônio cultural se resumia a tombamentos e inscrições de obras que, ou eram belas, sob o conceito de beleza de um grupo de tecnocratas, ou traduziam fatos marcantes da história do Brasil, sob um critério meramente empírico, sem qualquer fundamento científico e, juntando-se a isto, a ausência de mecanismos para a proteção do patrimônio cultural do povo, da massa, dos grupos marginalizados”.

[26] Moisés A. de Carvalho e Fernando A. C. Dantas comentam que, historicamente, “no processo de fortalecimento do conceito de nação, da busca de elementos de identificação nacional e unificação do povo em torno de objetivos comuns, o Estado havia optado pela história dos vencedores, subjugando e não abrindo espaço para os grupos minoritários, esmagados nos processos sociais, mas nem por isso menos atuantes no processo da construção de nossa sociedade” (CARVALHO, Moysés Alencar de; DANTAS, Fernando Antônio de Carvalho. Do patrimônio cultural material ao imaterial: a inclusão na proteção jurídica aos modos de criar, fazer e viver expressados na musicalidade. In: CONGRESSO NACIONAL DO CONPEDI, 16, 2008. Anais eletrônicos… Belo Horizonte; Florianópolis: Fundação Boitex, 2008. p. 4973). Disponível em: . Acesso em: 25 out. 2013.

[27] Em relação à expressão “patrimônio cultural nacional”, o autor Souza Filho (2005, p. 46) comenta que esse conceito: “define o conjunto que compõe o patrimônio nacional de cada Estado, deixando evidente que o que mais pesa não é a cidadania do autor do bem cultural, mas a sua localização, isto é, a territorialidade do bem cultural”.

[28] COSTA, Amanda Gabrielle de Queiroz. Democratização de políticas culturais: da intenção de Aloísio Magalhães à salvaguarda do patrimônio Imaterial (1975 – 2001). SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 26, 2011, São Paulo. Anais eletrônicos… São Paulo, 2011. p. 2-3.

[29] Sandra C. A. Pelegrini comenta que a “dinâmica acepção de patrimônio, inspirada numa percepção antropológica de cultura, marcou os reptos do ‘Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial’ e concretizou-se a partir do Decreto 3551/2000. (…) o Brasil antecipou-se às disposições da Unesco: antes que esta proclamasse a ‘Convenção para salvaguarda do patrimônio imaterial’, em 2003, o Legislativo brasileiro já havia constituído a figura jurídica do registro como instrumento legal basilar para a proteção e acautelamento dos bens intangíveis dispostos na Constituição Federal desde 1988”. (PELEGRINI, Sandra. A gestão do patrimônio imaterial brasileiro na contemporaneidade. São Paulo: História, v. 27, n. 2, p. 152-153, 2008. Disponível em: . Acesso em: 25 out. 2013.

[30] A preocupação em relação à proteção dos bens culturais imateriais deu ensejo, no final do século XX, à elaboração do Decreto 3551, de 2000, conforme o IPHAN: Para atender às determinações legais e criar instrumentos adequados ao reconhecimento e à preservação de Bens Culturais Imateriais, o IPHAN coordenou os estudos que resultaram na edição do Decreto 3.551, de 04.08.2000 – que instituiu o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial e criou o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI) – e consolidou o Inventário Nacional de Referências Culturais (INCR). (INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. Patrimônio imaterial. Brasília: IPHAN, [2015]. Disponível em: . Acesso em: 10 ago. 2015).

[31] O art. 216 da Constituição Federal de 1988 dispõe: “Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais incluem: I – as formas de expressão; II – os modos de criar, fazer e viver; III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações culturais; V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico(…)”. (grifos das autoras)

[32] SOUZA FILHO, 2005, p. 64.

[33] VIEIRA, 2011, p. 31.