A Interpretação da Linguagem do Direito no Brasil e em Espanha
Irene Portela[1]
Resumo: O presente trabalho visa tratar da interpretação da norma jurídica dentro do enunciado linguístico. A compreensão da norma jurídica não só implica o estudo dos aspectos semânticos, sintáxicos, lexicais morfológicos do texto como também a compreensão da linguagem que resulta da experiência humana. Dentro deste conjunto de requisitos de análise para a hermenêutica da norma jurídica, o princípio da clareza dos atos legislativos resulta ser o primeiro limite, intransponível e iniludível, nos vários sistemas jurídicos, nos vários países, seja na Espanha, seja no Brasil, seja em Portugal. Mas a complexidade técnica do discurso jurídico, do direito aplicado pelo Juiz é de tal forma hermética, que a norma se afasta da linguagem humana, contrariando o seu objeto: a conformação da conduta do ser humano nos termos da norma, em caso de incumprimento. Só uma norma compreendida, entendida, pode fazer justiça. A distância entre a linguagem e o direito não pode ser maior do que a compreensão humana sob pena de não ser válida, justamente pela natureza performativa da própria norma jurídica e da linguagem jurídica.
Palavras-chave: Direito; justiça; norma; linguagem performativa; linguagem constativa.
Abstract: This study aims to address the interpretation of the legal standard within the linguistic utterance. Understanding the rule of law not only involves the semantic, lexical, morphological, syntactic analysis but also the understanding of language that results from human experience. Within this set of requirements analysis for the hermeneutics of rule of law, the principle of clarity of legislative acts turns out to be the first threshold, insurmountable and certain in the various legal systems of all the countries, whether in Spain, either in Brazil or in Portugal, as a constative utterance. But the technical complexity of legal discourse, the duty imposed by the judge is so airtight that the rule departs from the human language, contrary to its object: the conformation of the conduct of human beings under the rule, in case of default. Only one understood norm could do justice. The distance between language and the law can not be greater than human understanding otherwise it will not be valid, precisely because the performative nature’s of the sentences and the language.
Keywords: Law; justice; rule; performative utterance ; constative utterance;
Introdução
Toda regra jurídica exprime-se necessariamente numa língua. A interpretação e aplicação da regra exigem um exame crítico do seu enunciado linguístico. Este exame centra-se sobre os aspetos morfológicos, lexicais, sintáxicos e semânticos do texto a interpretar (cf. NORMIER, 2007; GARRIC, 2007, p. 4-5). Ora, os problemas linguísticos têm hoje um lugar especial nos diversos campos das ciências exatas e humanas. A linguagem é para a pessoa humana a mediadora de todas as experiências que o saber pode atestar, comparar ou partilhar. A compreensão dos atos legislativos, ou a sua receptibilidade, é objeto de discussões entre juristas e políticos. Numa sociedade cada vez mais complexa, a temática ganha uma atualidade cada vez mais significativa. O princípio da clareza dos atos legislativos e da interpretação da lei é um princípio fundamental. Tal será o objetivo este texto olhando para a linguagem e a sua articulação com o direito.
1 A linguagem jurídica independentemente do espaço
Nascida espontaneamente do jogo das relações humanas, além da linguagem corrente há uma outra série de linguagens técnicas especializadas às quais pertence a linguagem jurídica[2]. A criação de linguagens técnicas tornou-se necessária pela falta de precisão e ambiguidade da linguagem corrente. A imprecisão desta deve-se a várias causas, nomeadamente: à polissemia e à sinonímia; às conotações e aos deslizes semânticos. Se abrirmos um dicionário facilmente constatamos que existem palavras que recobrem vários sentidos diferentes. A polissemia pode obscurecer a relação de um significante com um significado e obriga ao recurso do contexto ou a outros processos que possam tornar clara esta relação entre a palavra e o seu sentido. Inversamente à polissemia, a sinonímia designa a existência de várias palavras tendo o mesmo sentido. As conotações ou valores estilísticos são associações extrassemânticas, mais ou menos latas, que, sem alterar o sentido da palavra, o podem colorir. Por fim, a imprecisão da linguagem corrente deriva também da instabilidade semântica. Todas as línguas variam no tempo e têm necessidade de se adaptar às alterações constantes da comunidade linguística (ARRIVÉ, 2007, p. 80-100). As linguagens técnicas tendem a purificar o seu léxico, a sua sintaxe, a sua semântica, de modo a realizar os enunciados desprovidos de qualquer equívoco. Tal procura é feita pela substituição das palavras intuitivas e coloridas da linguagem corrente por termos abstratos, conceitos rigorosamente definidos que excluem qualquer ambiguidade. A linguagem técnica mais perfeita é a das matemáticas, que permite a transmissão exata do pensamento evitando a confusão das significações. A linguagem técnica do direito não atingiu ainda tal grau de abstração e de formalização comparável à da linguagem matemática (PARQUET, 2007, p. 35-37). Conserva laços estreitos com a linguagem corrente e participa em larga medida da ambiguidade daquela. Por outro lado, o carácter normativo do direito adapta-se mal à lógica formal e ao cálculo lógico, concebidos primordialmente para os julgamentos de existência e não tanto para as normas, que, em si mesmas, não são verdadeiras nem falsas (WAGNER; HAAG, p. 12-17). O papel importante da linguagem corrente nos enunciados jurídicos e um dado com consequências, pois o jurista procura extrair do fundo comum expressões para dar sentido profundo e científico aos preceitos do direito. Daí deriva, como em toda atividade própria, uma língua técnica apoiando-se na linguagem comum, mas clarificando os termos e as formas de modo a obter um idioma particularmente adaptado ao objetivo procurado, e que finalmente assinala um lugar distinto no meio das confusões, das obscuridades e dos equívocos da linguagem comum.
2 O Historiador e a compreensão do texto jurídico
Investigar o sentido que tinha uma mensagem no momento da sua difusão é o trabalho do historiador. Para tal, trata de recolocar o texto no seu contexto histórico e na sua situação. O texto é então compreendido pelo historiador como o tinha sido pelo contemporâneo de quem o emitiu (cf. SOARES, 2012). O historiador pode então realizar um estudo diacrónico de um texto. A este propósito, procurará o sentido primeiro do texto (o que tinha no momento da sua escrita) e depois tentará encontrar os sentidos diferentes que o mesmo texto recebeu ao longo da história[3]. Qual é a regra fundamental do historiador no caso da interpretação da lei? Segundo Gadamer, o historiador do direito deve examinar primeiramente a coerência interna de uma lei e desta em relação ao sistema jurídico; depois, a medida na qual o legislador conseguiu realizar o objetivo do bem comum e satisfazer assim as exigências que a lei havia fixado, por fim, o historiador do direito não pode avançar julgamentos críticos, a não ser de um ponto de vista histórico determinado (GADAMER, 1986, p. 273s). Assim, várias interpretações históricas podem ser dadas sobre a evolução histórica de uma lei. Na interpretação dos textos o historiador considera o texto da lei como um vestígio que fala do passado. O historiador orienta a este propósito a sua interpretação para o que não está declarado no texto e não se encontra necessariamente na direção do sentido proposto pelo texto. O historiador procura ir além dos textos para lhes arrancar uma informação que eles não dão espontaneamente: o contexto da elaboração, o humor da assembleia legislativa, a reação dos destinatários à promulgação. O que está em causa na hermenêutica histórica é a questão da consciência histórica e o historicismo como perversão da hermenêutica histórica[4]. Acontece que o jurista se torna historiador quando investiga no contexto histórico os trabalhos preparatórios das leis, a situação histórica de que trataram, o sentido autêntico, o pensamento histórico do legislador. Acontece também ter que retraçar a história de um texto para encontrar os diversos sentidos que os tribunais lhe possam ter dado ao longo de determinado período. Essas pesquisas históricas podem ajudar o jurista no seu trabalho, mas, mesmo sendo importantes estes trabalhos ou investigações, ele não podem deixar negligenciar o seu papel específico: encontrar no direito positivo um instrumento de medida para julgar uma ação presente, uma máxima de conduta para hoje.
3 A dificuldade de entender a linguagem jurídica
A linguagem jurídica, recorrendo à linguagem corrente, corre o risco de contaminação pela ambiguidade das obscuridades e confusões daquela. Na verdade, as palavras da linguagem corrente são muitas vezes polissémicas, envolvidas em conotações múltiplas e dificilmente circunscritas; as suas significações sofrem variações no tempo. Consequentemente, a aplicação de um texto jurídico exige sempre um exame crítico preliminar do seu enunciado. É este, sem dúvida, o que constitui a interpretação jurídica[5]. A este propósito Michel Rosenfeld escreveu:
Um texto constitucional escrito é inexoravelmente incompleto e sujeito a múltiplas interpretações plausíveis. Ele é incompleto não só porque não recobre todas as matérias que ele deveria idealmente contemplar, mas porque, também, não é capaz de abordar exaustivamente todas as questões concebíveis que podem ser levantadas a partir das matérias que ele acolhe. Mais ainda, precisamente em razão da incompletude do texto constitucional, as constituições devem permanecer abertas à interpretação; e isso, no mais das vezes, significa estarem abertas às interpretações opostas que pareçam igualmente defensáveis. (ROSENFELD, 2009, p. 17-18)
Nenhum enunciado jurídico é totalmente claro em si mesmo ao ponto de deixar a interpretação inútil. Apenas a interpretação pode permitir afirmar a clareza de um enunciado. Não se pode confundir a interpretação da regra do direito com a sua aplicação. As duas operações, que parecem por vezes confundir-se na prática, sucedem e mantêm-se logicamente distintas. Para aplicar uma regra ao direito, é necessário primeiramente determinar o seu alcance. Não há, portanto, aplicação sem interpretação, mesmo quando o enunciado da regra é tão claro que a interpretação continua virtual (cf. MACHADO, 2010, p. 181s). Neste sentido, o ponto de partida da interpretação jurídica encontra-se no elemento literal e com duas funções centrais, que Susana Duarte explicita: “uma negativa (ou de exclusão), que consiste em afastar a interpretação que não tenha o mínimo de apoio na letra da lei; uma positiva (ou de seleção) que privilegia, de entre os vários significados possíveis o técnico-jurídico (…), o especial e o fixado pelo uso geral da linguagem” (DUARTE, 2013, p. 73-74).
4 A linguagem do direito é performativa
A linguagem do direito apresenta três características: é locucionária, uma vez que visa comunicar, e ilocucionária, porque é um ato de prescrição. Assim, a Constituição Portuguesa no seu preâmbulo anota: “A Assembleia Constituinte (…) aprova e decreta a seguinte Constituição da República Portuguesa…”. Estas palavras não procuram apenas informar, mas são em si mesmas um ato de autoridade, prescrevem um determinado número de normas. Enfim, a linguagem das leis é performativa, uma vez que procura influenciar o comportamento dos cidadãos pelas normas de conduta (medidas de conduta) que se impõem (direito civil em sentido lato) ou com sanção que se impõe (direito penal, ou, em sentido lato, o direito repressivo) (cf. LOGER-RIOPEL, Viaud, 2013). A linguagem das leis, contrariamente à linguagem científica, não procura constatar ou descrever uma realidade preexistente ou por hipóteses em relação a esta. Não trata de uma realidade que existiria fora dele, ele é a sua própria realidade: ele é o seu referencial, ou seja, é ao mesmo tempo seu significado e referente (cf. TEIXEIRA DE SOUSA, 1986). Não tem outra existência senão na língua que o estabelece. Quando, por exemplo, um juiz na ordem jurídica que lhe dá competência de dissolver um casamento pronuncia estas palavras: “o casamento entre A e B está dissolvido” não constata uma realidade preexistente, uma vez que antes das suas palavras o casamento existia. Cria uma realidade jurídica nova, o divórcio. Pode ser que antes de pronunciar o divórcio, a união dos cônjuges já estivesse de facto rompida, mas a linguagem do juiz situa-se num outro patamar, no nível da superestrutura jurídica que goza de uma existência independente da união de facto dos esposos. O julgamento é portanto performativo. Se, por exemplo, um jornalista escrevesse o este assunto “o casamento de A e B está dissolvido” esta linguagem não é performativa e a sua força ilocucionária seria diferente; ela é simplesmente constativa. Na linguagem corrente fala-se de leis jurídicas e de leis científicas. Não se deve confundir estas “leis”. As leis científicas constatam uma relação que elas não estabelecem, não prescrevem, não criam, não são performativas: “aquece-se um metal e ele dilata”. Esta lei constata a regularidade da natureza, nada tem de normativo ou de performativo. Inversamente, a lei dos juristas é normativa, ela cria um facto novo: a norma. Por exemplo: um homicida é punido com pena de 25 anos. Esta lei não constata nada. Ela não pretende que na sua instância os homicidas sejam de facto punidos. Ela ordena que sejam punidos. Na linguagem jurídica pode distinguir-se, primeiro, a linguagem das normas, que estabelece, comunica, que torna obrigatórias as normas de conduta abstratas e compostas de uma hipótese (conceito de identificação) e de um dispositivo (conceito de predicação). Em seguida, a linguagem da decisão, que é a concretização da linguagem das normas e que comporta uma qualificação, ou seja, a relação de um caso a uma hipótese legal e uma predicação: a aplicação de um dispositivo legal a um caso concreto pela via da consequência. Por fim, pode-se também distinguir na linguagem jurídica a linguagem dos doutores, que, excepto em casos excecionais, não é uma linguagem performativa, mas um simples comentário da linguagem normativa (uma metalinguagem). Uma linguagem apenas é performativa se reunir determinadas condições de validade: ela tem qualidade performativa apenas se for pronunciada por quem tem o poder de o fazer e de acordo com um ritual fixo. Por exemplo, gritar: “Decreto uma mobilização geral” numa qualquer rua reduz-se a um ato de clamor ou infantilidade se a palavra não for pronunciada por alguém com autoridade para tal palavra. Concluindo, podemos dizer que a regra jurídica pertence à linguagem performativa, a lei científica à linguagem constativa ou hipotética. A primeira tem uma existência, tem uma realidade que se pode constatar. É assim que se pode falar de “lei falsa”, de uma lei que não emanaria da autoridade, de uma lei não autêntica. Mas a lei jurídica é uma realidade, não é em si, uma constatação de uma realidade para além da minha. Uma vez estabelecido o seu caracter autêntico, não de pode dizer que seja verdadeira ou falsa, boa ou má, conforme ou não às regras do bom agir. Ora as predicações de qualidade caracterizam os valores. Pode dizer-se então que a linguagem da lei como tal pertence ao domínio dos valores. Há uma lei que decreta a maioridade, ou uma idade para o casamento (Código Civil art.1587 a 1772 e do Registo Civil – DL 131/95 de 6 de Junho, com as alterações introduzidas pelo DL 36/97, de 31 de Janeiro e Portaria 996/98, de 25 de Novembro); quer isso dizer que não é recomendável, bom ao nível dos valores antes da idade codificada. Desta pertença da lei dos juristas ao mundo dos valores podemos tirar, a nível hermenêutico, consequências muito importantes.
5 O jurista na compreensão de um texto
A língua e o direito inscrevem-se no quadro dos fenómenos normativos. A língua, com as suas regras gramaticais, incorpora um sistema de normas; do mesmo modo o direito positivo apresenta-se como um conjunto ou sistema de normas de conduta ou regras coercivas jurídicas, válidas num determinado momento e local, formando o que se designa como “ordenamento jurídico” (cf. OLIVEIRA ASCENSÃO, 2005).
Para se entender todas as dimensões do trabalho específico de um jurista, é necessário recordar as particularidades da linguagem normativa. Esta é performativa[6], isto é executório, as palavras produzem efeitos jurídicos. Este laço entre linguagem performativa e direito existe numa primeira forma na teoria dos atos da linguagem, elaborada num quadro jurídico, a teoria dos atos sociais do fenomenologista e jurista Adolf Reinach. Em 1913, no seu livro Die apriorischen Grundlagen des burgerlichen Rechtes, considera que as leis essenciais da estrutura do direito permitem compreender não a experiência jurídica na sua individualidade, mas antes a experiência jurídica na sua tipicidade. O professor Lorenzo Gazel, no colóquio Reinach: philosophie des normes et theorie du droit, realizado na Universidade Paris 1 Panthéon-Assas (17/18 junho 2005) notava “quand Reinach parle d’un acte social, il parle d’un acte en tant qu’eidos, et non pas en tant qu’idion (non pas en tant que realisation d’un eidos)” (GAZEL, 2005). Na sua silagem, J. L. Austin inventa os “atos da linguagem”, isto é, a ideia de performance de um ato de linguagem concebido como tal, independente de toda a normatividade anterior e inversamente de toda a criação de estado de coisas ou da realidade social: “L’acte (promettre) crée une situation (lien, état de choses). Mais cette création n’est pas la seule action impliquée puisqu’il reste à réaliser le contenu de la promesse (la chose promise)” (LAUGIER, 2004, p. 607)[7]. Judith Butler na sua obra Excitable Speech: A Politics of the Performative (1997), aborda os debates relacionados com o poder das palavras e o seu alcance sociocultural, político, jurídico e psicológico. Relendo filósofos como Michel Foucault, Jacques Derrida, Jacques Lacan e John Rawls, enuncia a performatividade como sendo um poder reiterativo do discurso para produzir os fenómenos que regula e limita (cf. BUTLER, 2004).
Há (…) enunciados performativos de dois níveis diferentes. Nos enunciados de primeiro nível – enunciados performativos formais – a alteração que provocam na realidade corresponde tão só à sua existência: não existia uma declaração, passou a existir uma declaração; não existia uma promessa, passou a existir uma promessa. Nos enunciados de segundo nível – enunciados performativos materiais – a alteração que provocam na realidade é dupla: a que decorre da sua existência e a que decorre – como efeito imediato da sua existência – da realização de seu conteúdo. (CUNHA, 2012)
A lei, materializada nos textos legislativos, é um exemplo de discurso performativo que, mediante a linguagem, aspira a produzir aquilo que regulamenta. Concretamente, a lei produz os sujeitos que enuncia através da interpelação performativa dos seus textos. Esta interpelação materializa-se no uso instrumental de palavras e construções gramaticais normativas, cuja eficácia não se baseia em nenhuma autenticidade intrínseca normativa, mas na sua capacidade retórica para persuadir o cidadão. Neste sentido, todo ato jurídico que contém uma declaração ou manifestação de vontade. A compreensão de um mesmo texto por um jurista não é portanto unívoca. O jurista procura não tanto uma linha de pensamento histórica, mas procura encontrar no texto uma regra de conduta válida para um caso determinado no quadro da sua época (JUSTO, 2009, p. 335-336). A sua hermenêutica é criadora. Não se tratará de forjar a partir da regra e do casus uma máxima de conduta conforme os valores de hoje? Esta ação de criação designa-se decisão. Ela é a concretização da regra. Assim, o trabalho específico do jurista não é apenas um trabalho lógico como o do historiador, nem tão só de subordinar um particular sob o universal (o conceito), mas de fazer uma aplicação particular da mensagem no sentido que promove, em concreto, um valor exprimido em abstrato no texto e assim explicitar as próprias premissas.
O sentido da lei entende-se na prática da lei. Seria uma insuficiência de um professor limitar o seu horizonte apenas ao texto de lei, como poderia também ser um risco um jurista, muito preocupado com a justiça de um caso, perder de vista a justiça da regra.
Ora os legisladores que estabelecem, formulam e norteiam as políticas dos governos a nível nacional e internacional, e elaboram, ratificam, reformam ou revogam leis, regras e regulamentações públicas, devem estar cientes de que, através de um único texto, deverão regular uma série de situações que, apesar de todos os seus esforços, são incapazes de prever (cf. HORN, 2002). A impossibilidade de controlar a potencialidade inerente ao texto legal e a sua proliferação em múltiplas interpretações não é mais do que uma manifestação da possibilidade da lei para refletir a totalidade da vida humana. O legislador e o poder disciplinar deixam assim abertas fissuras na lei, que podem ser exploradas pelos indivíduos por ela abrangidos para desvios ou apropriações da mesma de várias maneiras nem conscientes nem necessariamente resistentes (cf. MONTANÉ; SERDIO, 2010).
6 Cintura de segurança
Não obstante o carácter performativo da lei na regulação que exerce e na relação com as apropriações que os vários intervenientes que acedem ao sistema legal podem fazer dos seus conflitos, contradições e ambiguidades a verdade é que tantas interpretações da lei quanto os que a interpretam, tantas decisões diferentes quantos os que decidem conduziriam à insegurança. Então, se o direito é conhecido pela decisão, como orientar a ação diariamente? Um jurista não se improvisa. O seu trabalho exige determinada habilidade e por outro lado em certa responsabilidade. Habilidade, pois nada pode substituir o ensino e a experiência que lhe concedem esta clarividência. Este espírito que discerne as diferenças mais ténues. Este espírito geométrico que o salva de uma justiça particular, enfim, esta exigência de ordem e segurança que é como que uma segunda natureza[8]. A sua responsabilidade, ou se quisermos a sua lealdade: o jurista sabe que a lei se impõe a ele, bem como a todos os cidadãos; do mesmo modo os valores que determinam as decisões que toma na sua qualidade de jurista são os da própria lei e não os seus. Akam Akam escreveu a este propósito da figuro do juiz
En appliquant la loi, le juge obéit à sa ‘conscience judiciaire’ ou professionnelle – le devoir de son état –; en se faisant le serviteur de la justice, il se conforme à (…) sa conscientia humana, la ‘conscience générale’ présente en tout homme et qui commande à tous d’aimer la justice’. Il reste que la loi et la conscience ne sauraient être ni en compétition, ni en conflit dans l’office du juge. Celui-ci ne peut choisir entre l’application stricte de la loi et ‘le jugement en conscience’, encore moins privilégier sa conscience au détriment de la loi. (AKAM AKAM, 2012)
No ato de julgar, a aplicação rigorosa da lei prima sobre qualquer eventual recurso do juiz à sua consciência, pronunciando-se a partir das regras jurídicas produzidas pelas autoridades competentes nacionais ou internacionais.
Os juristas são os garantes de uma compreensão unívoca da lei. A lei e a jurisprudência inscrevem-se neste contexto exercendo ambas a função de regras do direito à responsabilidade civil. Assim encontram sentido e realização da segurança jurídica, que Montesquieu exprimia assim: é essencial que as palavras das leis despertem em todos os homens as mesmas ideias. A obrigação do jurista é aplicar a lei, é uma garantia da boa administração da justiça.
Conclusão
A interpretação dos tribunais deve ter um mínimo de correspondência com a lei, caso contrário[9] estariam comprometidas garantias de acesso à justiça reconhecidas pelo n. 1 do artigo 20 da Constituição da República Portuguesa: “A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos…”.
A partir da natureza performativa da linguagem do direito é possível organizar uma semântica das leis. Sendo verdade que o contexto situacional condiciona o sentido das leis, toda e qualquer mudança de contexto ou de situação histórica arrasta inevitavelmente uma mudança na significação do texto legal, pelo menos na medida compatível com a flexibilidade relativa ao campo semântico das palavras, especialmente na medida da sua relativa determinação.
Poderia então pensar-se que a querela dos juristas é uma querela de palavras ou de ideias? Será necessário acusar um formalismo jurídico? O formalismo jurídico proíbe ao intérprete ter um papel na compreensão do texto, tomar em consideração os valores novos, os novos sentidos dados ao texto, a precisão fornecida pelo próprio caso. O formalismo é sempre redutor, impõe uma significação imanente, atribui um valor exponencial à fórmula, arranca a palavra da sua terra natural: o enunciado, o enunciado do discurso, o discurso da situação, e considera-a como uma totalidade autossuficiente e autónoma. Assim é redutor e antitético ao desenvolvimento semântico natural. A palavra inscreve-se numa frase e ultrapassa-a, a frase no discurso, o discurso na situação histórica. O formalismo, não recorrendo ao contexto, à situação social e às particularidades do caso, oculta os valores que a lei promove para apenas reter o valor supremo da lei.
A linguísta e a hermenêutica, ao revelarem a natureza performativa das leis, puseram em questão esta concepção radical do raciocínio jurídico limitado nas dimensões de um silogismo meramente formal. A compreensão de um texto é inseparável de uma análise aprofundada da espécie, uma vez que da linguagem das leis se deve extrair uma máxima para a conduta humana; a relação da espécie à regra não é apenas uma relação formal mas uma operação da razão prática que considera também o dispositivo da regra, a saber que a lei prescreve dados que entram na sua hipótese.
A língua e direito são permeáveis à dinâmica que lhes imprimem, o fluxo espontâneo dos seus empregos, e à ação voluntária de uma autoridade: mutatis mutandis,as palavras novas são para a língua o que para o direito é a inovação legislativa – ambas são necessárias, cum grano salis, e podem até acontecer concomitantemente (cf. PIRES, sd).
referências
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Notas de Rodapé
[1] Doutora em Direito Público e Instituições Europeias, com o título de Doutor Europeu pela Universidade de Santiago de Compostela obtido em 2007. Professora de Direito Constitucional e Direito Administrativo. Diretora de Departamento de Direito do Instituto Politécnico do Cávado e do Ave. Provedora dos Estudantes. Avaliadora da Fundação da Ciência e Tecnologia. Avaliadora da Agência 3E. Diretora do Centro de Investigação em Direito Aplicado CIJA. Autora e Coordenadora de várias obras e artigos sobre Direito Constitucional e tecnologias aplicadas ao Direito. Professora Coordenadora do Instituto Politécnico do Cávado e do Ave, Barcelos, Portugal.
[2] Notemos o que escreve na sua tese Maria da Conceição Rodrigues: “Se o Direito é um universo de palavras, é também um universo de poder e não será difícil perceber que esse poder se pode (também) traduzir linguisticamente; provavelmente mais que noutros contextos, a palavra pode ser, no Tribunal, palavra de poder, o que se reflete no forte enquadramento institucional que limita, estabelece e define o que pode ser dito, por quem e para quem e em que circunstâncias”. (RODRIGUES, 2005, p. 23)
[3] A história tem como missão reconstruir o passado humano. No caso da lei, trata-se de analisar o contexto da emergência desta lei, o quadro económico e social, as condicionantes do legislador, o impacto da lei na sua evolução histórica, ou a tensão social que está na origem da sua emergência. Esta reconstrução efetua-se a partir da explicação. É domínio da história mostrar como uma determinada lei derivou de uma situação social precedente. O historiador do direito tem por primeira missão compreender exatamente o que uma lei diz, tal como se apresenta a ele, por um lado, e, por outro, mostrar a partir da interpretação do contexto a emergência da lei, as dimensões que a lei não diz expressamente.
[4] No nosso ponto de vista, os historiadores tomam posições por ou contra uma lei de acordo com os pressupostos ideológicos, metodológicos, políticos, económicos e sociais que os predeterminam de modo implícito ou explícito.
[5] Gerard Cornu escreveu a este propósito: “Il est banal d’opposer le langage courant au langage juridique, parfois plus spécialement au langage judiciaire. Cette façon habituelle de parler est une invitation à déceler ce que recouvre cette convention commode du langage (…) L’existence du langage juridique est spontanément attestée par une réaction sociale. Cette donnée immédiate d’ordre socio-linguistique est aussitôt confirmée par une observation linguistique précise. Le fait est que le langage juridique n’est pas immédiatement compris par un non-juriste. Il n’entre pas d’emblée dans l’entendement de celui qui ne possède que le langage commun. La communication du droit se heurte à un écran linguistique. Le profane en retire un ‘sentiment d’étrangeté’ (Sourioux et Lerat). Le langage du droit existe parce qu’il n’est pas compris. Il est en dehors du circuit naturel d’intercompréhension qui caractérise les échanges linguistiques ordinaires entre membres d’une même communauté linguistique”. (CORNU, Gerard. 1990, p. 19)
[6] O acento colocado sobre a função performativa não pode levar ao esquecimento de outras funções possíveis. Alguns enunciados têm uma função mais explicativa ou persuasiva (por exemplo, os esperados de uma decisão ou um artigo de doutrina). Pode-se mesmo falar de uma função fática em certas formas de comunicação do jurista: assim quando um advogado se dirige aos jurados procura não apenas demonstrar, mas também convencer ou mesmo emocionar. Assim, Susan Sarcevic limita o alcance da linguagem jurídica à comunicação entre os juristas, o que exclui textos expressivos como as “defesas” (SARCEVIC, 1997, p. 12). Por sua parte, Robert Cornu refere que “a linguagem do direito tem por vocação não apenas reinar nos diálogos e trocas entre iniciados, mas na comunicação do direito a todos os que nele se inscrevem como sujeitos”. (CORNU, 1990, p. 23)
[7] Vê-se que a noção de ato de linguagem enquanto tal é ambígua. François Récanati, no seu livro Les énoncés performatifs, Paris, Seuil, 1981, escreve: “En disant ‘Rentre à la maison tout de suite!’ ou ‘Quelle heure est-il?’ je ne décris pas la réalité: je donne un ordre à mon interlocuteur, ou je lui pose une question. Ces énoncés, n’étant pas constatifs, ne sont ni vrais ni faux; ils ne reflètent pas une réalité préexistante, mais en constituent une nouvelle, dont un énoncé constatif pourra, ensuite, rendre compte (“Il m’a ordonné de rentrer à la maison”, “il m’a demandé l’heure”)…” (RÉCANATI, 1981, p. 82). O artigo de Sandra Lagier, Performativité, normativité et droit (2004), é o mais completo sobre esta questão em estudo analisando o pensamento de Wittgenstein, Kelsen e Rawls.
[8] A este propósito do Professor André Akam Akam: “Dans la fixation du droit, le juge met en œuvre son pouvoir d’interprétation, soit pour conforter la lettre de la loi, soit pour en rechercher l’esprit, à l’aide des méthodes ou techniques d’interprétation . Dans le premier cas, il s’agit de restituer le sens exact du texte en conformité à la volonté du législateur elle qu’elle s’est littéralement exprimée dans la lettre de la loi. Cette démarche intellectuelle se prolonge dans la recherche de l’esprit de la loi”. (AKAM AKAM, 2010)
[9] Esta frase aparece em muitos dos acordos do Supremo Tribunal de Justiça. Citamos dois: STJ – Proc. 2599/08.4PTAVR-A.C1-A.S1 – 14.03.2013; STJ – Proc. 13/06.0GTEVR-A.S. –21.07.2009. Do mesmo modo encontra-se em acordos da relação, por exemplo: da Relação de Coimbra de 24.04.2012, Proc. 2/12.4GAFVN. C1, todos disponíveis em .