Mediação Humanista: A Mediação como Caminho e o Caminho da Mediação

HUMANIST MEDIATION: MEDIATION AS THE PATH AND THE WAY OF MEDIATION

Karina Nogueira Vasconcelos[1]

Resumo: Por volta das décadas de 70 e 80, uma série de movimentos, estudos e práticas vem tentando promover uma inversão cultural, difundindo a cultura da não violência ou cultura da paz. Movimentos de alternativas à Justiça ou mesmo de práticas inovadoras inseridas nos modelos de Justiça tradicionais, como Justiça Restaurativa, praticada por Howard Zehr; a Mediação Humanista, criada por Jacqueline Morineau e processos pedagógicos de diálogo e educação à não violência, como a Comunicação Não-Violenta de Marshall Rosenberg, fazem parte desse contexto. Amplamente difundida na França e em vários países europeus, a Mediação Humanista, objeto deste estudo, inspirada na tragédia grega, desenvolve-se por meio de um procedimento dividido em três fases – Theoria, Crisis e Catharsis –, capazes de produzir o desenlace do nó conflitual. Esta experiência, praticada e difundida pelo CMFM (Centre de Médiation et de Formation à la Médiation) de Paris, vem apresentando grande êxito junto à Procuradoria da República de Paris, solucionando cerca de 80% dos conflitos apresentados.

Palavras-chave: Mediação Humanista; Solução de Conflitos; Cultura de Paz.

Abstract: Around the 70s and 80s, a range of social movements, studies and practices has been trying to promote a cultural reversal, spreading the culture of non-violence and peace culture. Alternative dispute resolution (ADR) movements and innovative practices which has been inserted in the traditional justice model, such as restorative justice, practiced by Howard Zehr; Humanistic Mediation, created by Jacqueline Morineau and the pedagogical processes of dialogue and education to non-violence, such as Nonviolent Communication Marshall Rosenberg, are part of that context. Widely spread in France and in several European countries, Humanistic Mediation, object of this study, inspired by the Greek tragedy it develops through a divided three-stage procedure – Theoria, Crisis and Catharsis – capable of producing the outcome conflictual node. This experience, practiced and disseminated by CMFM (Centre Médiation et de Formation à la Médiation) of Paris, has shown great success with the Attorney General of Paris, solving about 80% of the conflicts presented.

Keywords: Humanistic Mediation; Conflict Resolution; Culture of Peace.

1 O ASPECTO CULTURAL DA VIOLÊNCIA E A NÃO-VIOLÊNCIA

A busca pela compreensão do porquê da violência e sobre a possibilidade concreta da não violência reúne historiadores, filósofos, sociólogos, psicanalistas, juristas. Este estudo, partirá da observação de um psicanalista – Fagundes (2004) – ao afirmar que: a violência na negação do outro não é somente destrutiva em relação ao outro como também a si próprio, visto a negação da capacidade de amor, compaixão e reparação, e mais, embora a violência sempre tenha existido entre os homens, também sempre existiu uma revolta contra ela, manifestada por meio da solidariedade, da compaixão, do bem comum, de valores éticos contra as injustiças.

1.1 A Transformação Cultural

Há uma forte atração teórico-prática entre o paradigma da violência e o modelo androcrático (ou hierárquico) assim como há uma evidente sintonia entre o paradigma da não violência, o modelo gilânico (ou de parceria) e a Mediação Humanista.

Segundo Riane Eisler (2007), a Teoria da Transformação Cultural anuncia a possibilidade de uma convivência social pacífica não como uma bela utopia, mas como uma escolha concreta, contrariando, com base em descobertas arqueológicas, a história evolutiva do homem atrelada à história de violências e dominações simplesmente.

A autora afirma que houve no neolítico sociedades de parceria, ou seja, sociedades em que não existiam hierarquia e dominação entre homens e mulheres. Baseando suas análises em várias descobertas arqueológicas, sobretudo no sítio arqueológico de Creta, que apontam para sociedades sem hierarquia e dominação, que cultuavam a figura de uma deusa, tida como criação, harmonia entre os homens e a natureza, ela cria um modelo explicativo para esse tipo de sociedade intitulando-o de sociedade de parceria e concebe o amor como fundamento de agregação entre os homens e não o medo da violência.

Para ela, os seres humanos são dependentes e originários do amor, inclusive a negativa dele causa adoecimento em qualquer fase da vida, pois é ele que possibilita o espaço de coexistência propociador da coordenação de ações que constituem a linguagem. Logo, nossa origem não pode estar atrelada à agressão, ódio, confrontação e competição, estes só podem ter sido cultivados após a linguagem.

Na cultura patriarcal, primeiro se nega a biologia do amor ao valorizar a guerra, a luta e a competição, e depois se busca o amor como algo especial no âmbito cósmico; na cultura matrística pré-pratiarcal, a biologia do amor é constitutiva do cotidiano e se dá sem esforço como parte do viver normal, que leva à dignidade conferida pelo respeito por si mesmo e pelo outro[2].

Depois de 10 anos de pesquisa, promovendo uma releitura minuciosa da história, Riane mostra como a invasão de povos indo-europeus, durante o neolítico, em várias regiões da Europa, foi difundindo, pelo símbolo da espada, o poder da destruição, da dominação, da guerra e a cultura da violência para povos que conheciam até então, pelo símbolo do cálice, o poder da criação, da parceria, da colaboração entre os sexos. Esta sociedade pacífica, baseada em valores criativos e sem hierarquia entre os sexos, chama-se sociedade de parceria, pautada na cultura gilânica[3]; já a sociedade hierárquica, difusora da violência é chamada de sociedade de dominação, pautada na cultura androcrática[4]. Segundo Eisler (2007, p. 96):

O valor supremo reinando no cerne do sistema dos invasores era o poder de tirar a vida, e não o de dar a vida. Esse é o poder simbolizado pela Espada ‘masculina’, e literalmente venerado pelos primeiros kurgans, segundo se vê de entalhes nas cavernas desses invasores indo-europeus. Pois, na sua sociedade dominadora, governada por deuses – e homens – guerreiros, esse era o poder supremo.

Após a dominação desses povos, a difusão dessa cultura da violência vem sendo constantemente reiterada e combatida na história da humanidade ocidental. Ao ler a história de forma descontínua e sob a perspectiva da Transformação Cultural, temos passado por períodos de forte cultura androcrática, mas nunca sem resistência de um retorno singular à cultura gilância. Essa interpretação nos conduz ao seguinte questionamento: qual a origem desse sentimento que afirma a possibilidade de uma vida social pacífica? Seria a esperança utópica ou a saudade inconsciente e histórica de uma experiência bem vivida? Certos de que o passado está no presente, talvez estejamos lutando pela afirmação possível de uma cultura da não violência.

É inevitável que toda essa informação sobre nosso passado dê início a um conflito entre o velho e o novo dentro de nossa mente. A antiga visão diz que a primeira relação de parentesco (e depois econômica) evoluiu a partir dos homens que caçavam e matavam. A nova visão diz que os fundamentos de nossa organização social vieram da partilha entre mães e filhos. A antiga visão pintava a pré-história como a história do ‘homem caçador e guerreiro’. A nova visão mostra mulheres e homens, juntos, utilizando nossas capacidades humanas singulares para nutrir e aprimorar a vida. […] Em suma, dentro dessa nova visão da evolução cultural, a dominância masculina, a violência masculina e o autoritarismo não são inevitáveis, nem são dados imutáveis. E longe de ser um ‘sonho utópico’, um mundo mais pacífico e igualitário é uma possibilidade real para nosso futuro. (EISLER, 2007, p. 126)

É inevitável trazer o posicionamento de Muller (2007) aludindo também, de certa forma, a uma “transformação cultural” a partir do rompimento necessário com a cultura da violência, pois, só é possível invalidar a sua lógica, rompendo com tudo aquilo que “legitima e glorifica a violência como virtude do homem forte”.

1.2 Violência: Agressividade e Cultura

A violência é fruto da cultura e a não violência é também cultural. Buschinelli (2004), numa interessante interpretação correlacional entre o poema “O medo” de Carlos Drummond de Andrade e a carta enviada por Einstein a Freud indagando-o sobre o porquê da guerra, afirma que a violência é a canalização do instinto de agressividade para a destruição do outro. Como esse canal para a guerra constitui um processo cultural, o processo civilizatório constitui, segundo a autora, a grande crença de Freud na canalização desse instinto não mais para a guerra, pois, tudo aquilo que contribui para o processo civilizacional trabalha contra a guerra. Segundo Fagundes (2004), o que Freud chama de contribuição ao processo de civilização é tudo que pode encorajar o desenvolvimento de ligações emocionais entre os homens, ou seja, é o amor que pode conter a destrutividade e a violência. Freud se considerava um pacifista e evidencia que essa conduta de “intolerância constitucional à guerra” é fruto do processo civilizacional.

O instinto agressivo ou destrutivo (pulsão de morte), radicado no homem é tão fundamental para sua sobrevivência quanto a libido (pulsão de vida), como diz Fagundes (2004). Logo, o problema não é o instinto agressivo, mas sua canalização, pois, como afirma Muller (2007, p. 22), a agressividade é uma força de combatividade, de autoafirmação, que promove a confrontação com o outro, ou seja, a aceitação do conflito sem submissão.

O verbo agredir vem do latim aggredi, cuja etimologia ad-gradi significa ‘caminhar em direção’, ‘ir ao encontro’. Apenas num sentido derivado agredir significa ‘caminhar contra’: isso se deve ao fato de que, na guerra, caminhar em direção ao inimigo significa ir de encontro a ele, ou seja, atacá-lo. Assim, em sua etimologia, o verbo a-gredir não implicaria uma violência maior do que o verbo pro-gredir que significa ‘caminhar para frente’.

É justamente sobre esse ponto que Lédio Rosa de Andrade, numa leitura psicanalítica, indaga sobre a relação entre Violência, Direito e Cultura.

Segundo Andrade (2007), a história da humanidade por vezes se confunde com uma história de lutas e matanças, tendo na banalização da violência, uma grande aliada à perpetuação da violência, ao ponto de atribui-la um destino biológico. No entanto, a violência não é instintiva, como o é a agressão. A violência é, portanto, a conjunção do instinto agressivo a um fim específico: aniquilação do outro. A violência guarda, portanto, um forte componente cultural. Para ele, o instinto corresponde a um comportamento ou atividade mental primitiva anterior à civilização ou à cultura. A civilização, por meio de interdições ou leis, oriundas da religião, da moral ou do direito, tolhe a agressão instintiva do homem, permitindo a vida em coletividade. Ocorre que esse tolhimento não é absoluto, visto a luta constante entre as pulsões (desejo agressivo) e a necessidade da vida comunitária (violência sob controle).

Logo, conclui Lédio, que embora haja uma agressão natural e instintiva no ser humano, isso não faz dele um sujeito descontrolado. A cultura se apresenta, portanto, como um forte elemento dosador dessa relação. Assim, questiona-se se após um processo educativo, embasado no amor e em outras virtudes, não estariam as pessoas aptas a viverem em paz e harmonia.

Como se pode perceber, há diversas abordagens no tema da violência, mas um, muito presente neste estudo é o de Isabelle Filliozat, para quem a violência está diretamente ligada à impotência de gerir os afetos, de exprimir e satisfazer as necessidades e não necessariamente à injustiça ou à frustração. Logo, quando o sofrimento, a injustiça ou a frustração podem ser expressos e ouvidos, a pessoa pode recuperar sua integridade e a violência não terá mais lugar. O diálogo é, portanto, fundamental para cessar a violência, os golpes saem de cena quando as palavras assumem o palco.

Sugundo Filliozat (1997, p. 174, tradução nossa), há uma linguagem própria da violência, que “julga, desvaloriza, nega a existência do outro, desconsidera as emoções”, e uma da não violência, que “escuta e respeita, que reconhece o outro, que compartilha as emoções, que exprime as necessidades”.

Desdobrando essa interpretação e coligando-a à nossa temática, da palavra ao diálogo, e à cultura de dar espaço ao sofrimento, podemos dizer que esse processo de civilização, perpassa, atualmente, pela difusão da cultura da paz.

Daqui podemos perceber como abrir espaço a práticas pautadas pelo diálogo pode evitar ações violentas.

1.3 A Comunicação Não Violenta

Uma prática que pode auxiliar no desenvolvimento do diálogo e que se afina às perspectivas da Mediação Humanista e da educação ético-afetiva é a da Comunicação Não violenta (CNV) de Marshall Rosenberg. O processo da CNV é composto por quatro elementos que se desenvolvem como fases: observação, sentimento, necessidades e pedido.

Essa proposta em fases não guarda qualquer rigidez na comunicação, inclusive é possível estabelecer a comunicação não violenta sem que seja pronunciada qualquer palavra, como diz Rosenberg (2006). Essa proposta se apresenta como uma orientação a elementos fundamentais para o estabelecimento da CNV, como uma espécie de guia ou educação à percepção desses componentes.

A observação consiste no momento de atenção voltada “às ações concretas que […] afetam o nosso bem-estar”, àquilo que nos incomoda. Em seguida vem o momento de percepção do sentimento que nos acomete diante da observação que fazemos e, daí, vem a compreensão das necessidades que levam a esse sentimento. Por fim, “as ações concretas que pedimos para enriquecer nossa vida” (ROSENBERG, 2006, p. 26).

O uso da CNV consiste, portanto, em recomendações que permitem uma comunicação mais clara, menos confusa e não violenta. Frequentemente mistura-se observação com avaliação (julgamento), assim como pedido com exigência. Essas confusões são muito relevantes durante a comunicação, podendo conduzir a um contato violento ou não violento.

Há, como diz Rosenberg (2006), uma forma de comunicação alienante da vida que se caracteriza por julgamentos moralizadores sobre a conduta alheia, a ponto de tratar como errados ou maus aqueles que agem em dissonância conosco, pelo estabelecimento de comparações e pela substituição do pedido pela exigência. Todas essas práticas bloqueiam a compaixão durante a comunicação.

Um dos principais elementos da CNV é a empatia, é o estar presente, é, como diz Rosenberg (2006) referenciando o filósofo chinês Chuang-Tzu, a escuta com todo o ser, que ultrapassa a escuta só do ouvido ou só do intelecto.

A CNV se desenvolve a partir do momento em que nos propomos a uma escuta com empatia das necessidades dos outros, muitas vezes embutidas numa fala violenta. É muito importante procurar desvendar a necessidade que se encontra por trás de uma comunicação violenta. A compreensão dessa necessidade, muitas vezes não evidente, pode-se dar pela prática de parafrasear o que está sendo dito. A paráfrase tem a função de demonstrar a empatia e de possibilitar o esclarecimento do que se quer. Durante a paráfrase, além da pessoa se sentir ouvida e compreendida, descortina-se a real necessidade e ela se torna clara inclusive para a pessoa que a sente. A partir desse momento, é possível para a pessoa que até então escutou com empatia expressar também suas necessidades e uma nova forma de comunicação pode se estabelecer.

Com a CNV, Rosenberg já mediou as mais variadas formas de conflito em várias partes do mundo. Sua vasta experiência possibilitou a difusão da CNV de forma didática que pode ser aprendida e aplicada. O interessante nesse processo é perceber como uma educação à escuta com empatia associada a uma clara manifestação de nossas necessidades pode contribuir para a dissolução de um conflito ou mesmo, de forma preventiva, pode evitar que o conflito se estabeleça.

1.4 Não Violência: Agressividade e Cultura da Paz

A não violência se fundamenta na recusa a toda legitimação da violência e se afirma como uma exigência para o homem a partir da experiência da violência nele ou no outro, afirma Muller (2007). Para o autor, mesmo sendo a não violência uma “solicitação da razão”, “exigência da consciência” ou mesmo “reinvidicação do espírito” anteriores à experiência da violência, é após experimentá-la que o homem toma ciência de sua “desumanidade”, “irracionalidade”, “nonsense”.

Para o autor de “O princípio da não violência: uma trajetória filosófica”, por mais que as violências contemporâneas sejam explicadas a partir do contexto econômico-político, todas elas têm uma base comum: a cultura da violência e sua difusão a partir da imitação mimética da conduta do outro[5], como elemento de identidade entre os homens. Assim, afirma que a paz não se instalará necessariamente pela aceitação das diferenças, pela tolerância às diversidades, mas pela recusa às nossas semelhanças, ou seja, a cultura que nos identifica.

A não violência vem se delineando, portanto, como um terreno propício à semente da Mediação Humanista, além de se harmonizar sobremaneira como o discurso propositivo de uma sociedade de parceria. A não violência só faz sentido se pensarmos a partir de outros paradigmas, ou seja, fora do modelo androcrático ou de dominação, pois, raciocinando por meio de suas estruturas, só a violência faz sentido e pode ser de fato combativa. Por exemplo, pode-se perceber como a perspectiva sobre luta, coragem e medo é completamente diferente numa cultura violenta e não violenta. Vejamos.

Ao interpretar Gandhi, Muller (2007) expõe que a escolha pela não violência é uma escolha dos bravos por não matar e não matar implica o risco de ser morto e esse risco produz um medo. Diante desse medo, a violência procura combater a sua causa, sem libertar o homem do medo, enquanto a não violência liberta totalmente o homem do medo. Logo, exercitar-se na não violência é prepara-se para a natural circunstância da morte. Esta morte pode advir da luta e a bravura está em enfrentá-la em nome do que dá sentido a vida que, para Gandhi, era a verdade intimamente ligada ao amor.

Toda luta exemplificada por Gandhi na não cooperação dos indianos com a dominação do sistema colonial britânico evidencia que a luta não violenta se dá em erradicar o mal sem eliminar aquele que o promove. A não cooperação é uma ação que busca impedir o mal, após tentativas de dissuasão e convencimento para uma mudança de atitude. Como diz Eisler (2007), o conflito não violento se configura como uma ação capaz de produzir mudanças sociais e não de mera resistência passiva; logo, tem por objetivo transformar o conflito, recusando-se a cooperar com a violência e promovendo a “energia tranformadora positiva” que Gandhi chamou de “satyagraha ou força da verdade”.

Assim, pondera Muller (2007), a não violência é uma atitude ética e espiritual do homem forte que recusa a violência, por entendê-la como negação da humanidade e por compreender, sobretudo, a não violência como uma resistência mais forte à violência do que a “contra-violência”. Há um episódio histórico trazido pelo autor que ilustra bem a diferença entre a violência e a não violência diante de um conflito, trata-se do episódio de Alexandre Magno diante um complicado nó que, se dasatado, segundo o oráculo, lhe garantiria o império da Ásia. O então rei da Macedônia, após tentar sem sucesso desatá-lo, corta o nó com a espada. Assim é a ação violenta, diz Muller, “corta o nó em vez de dasatá-lo”.

Para ele, solucionar um conflito, ou seja, promover o desenlace, implica intervir ao mesmo tempo nas suas causas e a violência não é capaz dessa atitude em diferentes ações, visto concentrar-se em uma só causa, atuando em uma só direção. A mediação, sendo uma experiência de desenlace, caracteriza-se pela passagem da adversidade para a conversação, ou seja, na condução de um para ou outro, no intuito de passar da conversa à compreensão e desta à reconciliação. Esse processo se dá trazendo à tona e trabalhando os afetos que outrora ensejaram o conflito, pois, como diz Fagundes (2004, p. 24): “Violência e agressão são ações, enquanto raiva, hostilidade, agressividade e ódio são afetos subjacentes, mobilizadores dessas ações”.

2 A MEDIAÇÃO HUMANISTA: ENTRE O SOFRIMENTO E A CATARSE

Para falar sobre a Mediação Humanista, é imprescindível falar sobre Jacqueline Morineau. Arqueóloga de profissão, Jacqueline tornou-se pesquisadora em numismática grega no British Museum. Sua atividade profissional começou a se modificar quando ela passou a dedicar parte de seu tempo a um centro de acolhimento de jovens que acabaram de sair da prisão em Brixton. Graças a essa experiência, Jacqueline, após seu retorno à França, foi indicada para participar de um pequeno grupo de reflexão, no Ministério da Justiça da França, sobre a criação de uma estrutura alternativa nos tribunais, que pudesse melhor atender às demandas da população. Assim, no final de 1983, nascia a proposta de criação da primeira estrutura de “Ajuda às vítmas e Mediação”, tendo sido Jacqueline encarregada de criar o primeiro órgão de ajuda às vítimas e de mediação penal, em colaboração com a Procuradoria da República em Paris.

Jacqueline começou a formar mediadores quando não havia qualquer pessoa na França com experiência na formação à mediação. Da prática adquirida com a experiência de Brixton de dar espaço ao grito, ao sofrimento, eis que nasce a “Mediação Humanista”, cujo coração é “o encontro com o sofrimento para que este seja transformado, para que se possa sair do caos e reencontrar a harmonia, a humanidade de cada um” (MORINEAU, 2008, p. 77, tradução nossa).

Ao tentar estruturar o material para a formação de mediadores, Jacqueline refeltiu acerca dos filósofos gregos, de suas pesquisas nos temas da Justiça, da bondade, da sabedoria, enfim, no que seria viver, voltando-se, portanto, às questões fundamentais dos homens. Foi então que ela percebeu que não havia nada a ser ensinado tecnicamente, mas um caminho de vida a ser compartilhado, uma experiência a ser vivida conjuntamente. Como diz Jacqueline (2008, p. 78, tradução nossa): “A mediação é o cenário onde se apresenta ‘A Comédia Humana’ com toda a sua riqueza composta de desespero e esperança”.

A formação na Mediação Humanista nasce, então, como diz Jacqueline, de duas experiências: os 20 anos de prática na mediação, ou seja, 20 anos de experiência com os conflitos, sofrimentos e emoções das partes e sua experiência pessoal ligada ao sofrimento pela morte de familiares próximos, em especial, mãe, pai e filho, num curto período de tempo. Dessas experiências associadas à crença de Jacqueline na capacidade de renascimento de cada pessoa depois de vivenciar situações difíceis, surge o método de formação na Mediação Humanista, que, na verdade, não se trata propriamente de um método, mas de um processo, pois o método está em constante transformação.

Em 1993, ou seja, após 10 anos da prática da Mediação Humanista com o Ministério da República de Paris, a Lei 93-2 institucionalizou a mediação que pode ser desenvolvida em outras jurisdições da França. Hoje, cerca de 80%[6] dos casos encaminhados ao CMFM (Centre de Médiation et de Formation à la Médiation) pelo Parquet de Paris que passam pela experiência da Mediação Humanista resultam na retirada das queixas. É importante destacar, ainda, que embora a Mediação Humanista tenha nascido da experiência da mediação penal, hoje, ela se difunde para as mais diversas áreas: família, escola, comunidade, cárcere.

2.1 Em que Consiste a Mediação Humanista?

Mediação, como diz Morineau (2005), é estar entre, estar no meio de, pois estar entre é fundamental para se atingir o coração do conflito. Para Jacqueline, um dos principais aspectos da Mediação fora já identificado por Platão, e constitui a capacidade de ver as coisas na sua unidade e na sua multiplicidade. É diante dessa realidade múltipla e única que se desenvolve o processo da Mediação Humanista, que embora possa ser oportunizado a todos, depende de cada um a aceitação do processo.

A Mediação Humanista não é uma técnica, mas uma prática de dar a palavra, de oferecer um espaço ao conflito e, por meio de um “jogo de espelhos” bastante complexo, oportunizar uma outra perceção do conflito e, quem sabe, o desatrelamento da condição de sofrimento, alcançando a paz. Abre-se então um espaço para se exprimir a diferença e reconhecer a diferença alheia.

O “jogo de espellhos” entre as partes em conflito e os mediadores consiste nos sentimentos e emoções sentidas e refletidas pelos mediadores a partir da fala das partes. Os mediadores, utilizando as expressões: “eu sinto” ou “eu te sinto”, vão oportunizando que as partes reconheçam ou não aqueles sentimentos e emoções e falem sobre eles.

O mediador recebe a emoção da parte em mediação e devolve uma imagem, dando a palavra à parte para que ela possa se exprimir. Mas o sofrimento da parte pode também tornar-se o reflexo do sofrimento do mediador. A mediação se apresenta, portanto, um campo de aprendizagem não somente para as partes em mediação, mas também para os mediadores que muito aprenderão em relação a si mesmos. (MORINEAU, 2008, p. 94, tradução nossa)

Aqui torna-se importante, como diz Jacqueline (2005, p. 181-182, tradução nossa), a percepção do não-dito, do sentido oculto do que foi dito, daquilo que foi voluntariamente ocultado ou simplesmente ignorado, mas que pode vir à tona, graças ao jogo de espelhos. Assim, os mediadores podem se tornar uma espécie de catalisador entre o dito e o não dito, auxiliando as partes na expressão de suas dualidades, na compreensão de que o outro, o adversário, não é o único responsável, pois o ‘outro’ se refere também a si mesmo. Assim, “a confrontação se dá não mais com o adversário, o outro, mas com o adversário que está em si”. O cenário muda completamente. Esse processo é bastante importante, visto que geralmente o problema e a demanda enunciados pelos protagonistas não correspondem aos reais problemas e demanda das partes, afirma Jacqueline, após uma experiência de quase dois mil casos de mediação.

Os mediadores falam pouco ou de forma sintética. Dessa forma, dando a palavra e possibilitando a escuta do sofrimento, pode-se passar da Crisis à Catharsis, fases do processo de Mediação, mais adiante tratadas.

Isabelle Filliozat (1997), psicoterapêuta especializada em Análise Clínica Transacional e mestre em Programação Neurolinguística, com experiência de mais de 20 anos no trabalho com as emoções, afirma que as emoções são nossa linguagem comum. Isabelle trabalha com a aprendizagem de uma gramática emocional e nominar as emoções faz parte do primeiro passo desse aprendizado. Para ela, a emoção, assim como toda linguagem tem uma gramática, por meio da qual pode-se aprender como cultivar e exprimir nossas emoções autênticas, como escutar os outros, como erradicar sentimentos que ferem, aprisionam e destroem e como compartilhar as alegrias.

Para ela, compreender melhor os outros e reagir com empatia às necessidades e sentimentos alheios nos permite ter menos medo dos outros e de nos sentir mais próximos, mais solidários, reforçando, portanto, a cooperação e a solução dos conflitos de maneira não-violenta. A alfabetização emocional por meio da escuta do nosso coração com os outros é a sua proposta.

Para aprofundar alguns elementos vinculados ao tema da Mediação Humanista, cabe inicialmente um questionamento: o que é emoção?

Etmologicamente, “moção” evoca movimento e o prefixo “e” indica a direção para o exterior. Emoção é um movimento para fora […] uma sensação que nos diz quem somos e nos coloca em relação com o mundo. […] Elas [as emoções] nos individualizam e nos conferem a consciência de nossa própria pessoa. (FILLIOZAT, 1997, p. 31, tradução nossa)

Segundo Filliozat (1997, p. 31, tradução nossa), a vida emocional está estreitamente ligada à vida relacional e o compartilhamento das emoções nos permite sentir próximos uns dos outros. Todos os homens vivem as mesmas contrações estomacais, aumento do ritmo cardíaco e o ressecamento da boca nas mesmas circunstâncias, logo, os parâmetros fisiológicos da emoção são universais. Como diz Jacqueline, as emoções são universais, mesmo sendo todas diferentes.

Nessa perspectiva, é possível quantificar as emoções? Segundo Filliozat (1997), há, pelo menos, cinco emoções de base em todas as culturas. São elas: raiva, medo, tristeza, alegria e repugnância. O medo ou a surpresa, a raiva e a alegria são expressas pelas mesmas contrações musculares. Embora emoções e sentimentos estejam estreitamente vinculados, enquanto as emoções são biológicas, instintivas, os sentimentos são frutos de elaborações secundárias. Os sentimentos religam os homens para além das culturas.

Essa constatação nos remete mais uma vez ao ponto fundamental da Mediação: a unidade e a pluralidade, pois embora tenhamos emoções comuns, portanto, mais fáceis de reconhecer, os sentimentos advém de nossa elaboração, guardando, portanto, singularidades. Durante o processo de Mediação, o jogo de espelhos é capaz de promover o reflexo não somente de emoções, mas também de sentimentos, logo, ele lida tanto com a unicidade como com a singularidade. Para o desenvolvimento aprimorado e autêntico desse processo é imprescindível o estabelecimento da empatia e a boa utilização do silêncio.

O silêncio é realmente fundamental na Mediação, pois é ele que “situa o nível de troca do diálogo. Não são as palavras que permitem a resolução da situação, ou seja, um raciocínio de ordem lógica, mas sim o espaço criado pelo silêncio” (MORINEAU, 2008, p. 181, tradução nossa). Ainda segundo Jacqueline, o silêncio proporciona um diálogo de cada parte consigo mesma, visto que graças ao “jogo de espelhos”, as partes são reenviadas para si mesmas, por meio das imagens refletidas.

Através dessa prática do diálogo, constata Jacqueline (2008), a mediação se aproxima dos ensinamentos da filosofia socrática e do Evangelho cristão, proporcionando ao indivíduo o reencontro de seu eixo vertical terra-céu assim como de seu eixo horizontal homem-homem.

Como diz Morelba Pacheco, mediadora do CMFM, no material do curso de formação na Mediação, a “Mediação é o espaço-tempo durante o qual o sofrimento pode se exprimir, pode ser acolhido e, em seguida, pode-se transformar em fonte de renovação no futuro”. (tradução nossa). Na Mediação há as partes que trazem o conflito e os mediadores, cuja função é acolher o conflito ali exposto, dando a palavra, para que cada parte possa expor fatos e emoções.

O papel dos mediadores é o de ser “um terceiro entre”, um estranho ao conflito que facilitará o diálogo, as trocas, que ouvirá cada parte sem julgar o que está sendo dito. Por isso, acolhe o conflito com benevolência e empatia e possibilta que as partes se escutem, que sintam as diferenças entre elas, no entanto, descubram também valores comuns, o que pode possibillitar a abertura para uma nova visão sobre o conflito. Os mediadores dão às partes sua presença, uma qualidade de presença. Por isso, diz-se que a Mediação é um estado de espírito que permite aos mediadores estarem presentes a eles mesmos e aos outros. O mediador não irá procurar compreender o porquê e o como dos fatos, como diz Jacqueline (2008), mas simplesmente perceber-se diante de uma realidade de sofrimento.

A benevolência, tão essencial na prática da Mediação, se configura como um benefício tanto para quem a doa, quanto para quem a recebe, como diz Rosenberg (2003). Para ele, há uma linguagem e interações que reforçam essa atitude da benevolência, intituladas pelo autor de Comunicação Não-Violenta, cujos principais aspectos é não confundir observação e valoração, é saber expor os fatos com objetividade, abstendo-nos de julgar os atos dos outros e formular nossas demandas numa linguagem clara, exprimindo mais o que queremos do que aquilo que não queremos.

O aprendizado do não-julgamento é um elemento essencial na Mediação. O julgamento sobre o que se é dito é bastante comum na nossa sociedade, no entanto, essa prática é responsável por vários conflitos nas relações, como diz Jacqueline. Geralmente os conflitos são de responsabilidade de ambas as partes, mas é bastante difícil esse reconhecimento. “A força do nosso amor próprio nos impede de aceitar qualquer responsabilidade na situação e, sobretudo, de reconhecer que nós podemos errar. Temos muito medo de perder ou arranhar nossa imagem cuidadosamente construída” (MORINEAU, 2008, p. 177-178, tradução nossa).

Como diz Filliozat (2001), uma vez que as emoções são ouvidas, as feridas reconhecidas e a reparação efetuada, a compaixão e o perdão ganham lugar. Para ela, o perdão é impossível se o sofrimento não vem escutado e se a justiça e a verdade não vêm restabelecidas. Para isso, é imprescindível reconhecer a realidade de sua história, esclarecer o caos emocional (identificar cada emoção e suas causas), sentir as emoções e ultrapassá-las em busca da cura interior.

As fases da Mediação, de certa forma, se aproximam do que Filliozat (1997, p. 203, tradução nossa) chama de etapas do perdão. São elas:

1. Expresse seus sentimentos. Diga ao seu agressor o quanto ele lhe fez sofrer com aquele comportamento. Compartilhe eventualmente “seus fantasmas paranóicos”, ou seja, as razões que você imagina (por exemplo: “Eu pensei que tu fizeste isso porque não me amas mais”). 2. Dê a palavra ao outro, verifique suas intuições, suas conclusões. O comportamento dele foi dirigido contra você? 3. Procure que o outro reconheça seu sentimento. Para que você possa perdoar, isso é importante, ou melhor necessário, que o outro reconheça a realidade de sua dor. 4. Peça reparação.

A escolha pelo perdão, com ou sem a participação do outro implica a libertação do rancor e/ou remorso, como diz Alberto Almeida (2012). Para desenvolver o perdão é fundamental colocar-se no lugar do outro, agir com empatia. Para Almeida (2012, p. 81-82), empatia é:

[…] um exercício de amorosidade, de vez que o egoísmo nos fixa numa posição de personalismo, sem abrir espaços para outros olhares, mormente pela janela do nosso ofensor. Esta forma de se colocar diante do outro resulta num estreitamento da nossa visão acerca do outro e do seu comportamento, gerando aumento da dificuldade de compreendê-lo e, por conseguinte, perdoá-lo.

O perdão é um excelente elemento para compor nosso estudo, visto ser muito comum a convivência com remorsos (“culpa tóxica”[7]) e mágoas ou rancores. O remorso pode-se caracterizar como uma agressão dirigida para si, enquanto o rancor se configura como uma agressão dirigida para o outro, como diz Almeida (2012). O perdão, como caminho de dispersão dessa agressão é, segundo Alberto Almeida (2012, p. 12), “antes uma viagem, do que um porto de chegada. É também um ato, mas é, sobretudo, um hábito de caminhar”.

Os efeitos do não perdão, como diz Almeida (2012), podem ter consequências psicosocioemocionais, psicoespirituais e biológicas. Quanto às consequências psicosocioemocionais, segundo o autor, elas tanto podem se restringir às emoções, manifestando-se por meio de dificuldades nas relações interpessoais, visto o “lixo emotivo” que carrega para as relações, como podem avançar, promovendo a desorganização da estrutura psíquica, afetando o pensamento, a memória, a concentração, a afetividade, a inteligência ou mesmo, de maneira mais intensa e complexa, desenvolvendo patologias variadas, como transtornos da personalidade e da conduta, da ansiedade e do humor, esquizofrenia, autismo, etc. Como diz Almeida (2012, p. 39-40):

Assim, surgem silêncios ruidosos, agressividade excessiva, complexo de superioridade, tristeza imotivada, medo exagerado, perfeccionismo, autocomiseração, complexo de inferioridade, mesquinhez, falas contundentes, distanciamentos nocivos, aproximações invasivas etc., tudo revelando conteúdos não devidamente elaborados, porque foram colocados ‘embaixo do tapete’ e, como tal, transparecem no dia a dia, ou, então, irrompem abruptamente fazendo um estrago.

Além dessas consequências, vale a pena citar também, como diz Alberto, as “distonias energéticas”, que resvalam para o corpo, desarmonizando-o e favorecendo o desenvolvimento de doenças.

Já os efeitos do perdão constituem um nova ética comportamental, caracterizada pelas significativas transformações promovidas pelo perdão como caminho, referenciadas por Almeida (2012, p. 71): “vicissitudes em aprendizado, erro em experiência, negatividade em lição, dor em dom, sombra em luz”. Esse caminho transformador passa por reconhecer do próprio erro (arrependimento), responsabilizar-se, corrigir o erro (reparar) e celebrar o perdão. Para o remorso o autoperdão e para o rancor o heteroperdão.

2.2 A Empatia: Presença, Silêncio, Energia e Não Julgamento

Na Mediação Humanista, a empatia é um elemento fundamental e, por isso, merece uma análise mais detida. Na Mediação, os mediadores se apresentam numa equipe de dois ou três, para facilitar a identificação de cada parte com cada um deles. Eles agem para facilitar o diálogo, para facilitar a tomada de consciência do outro e para uma nova qualidade na relação, sem exercer o papel de árbitro, juiz, conselheiro ou mesmo conciliador. A postura deles é neutra, imparcial. Eles agem com empatia.

Empatia, segundo Faure e Girardet (2012, p. 43), é uma “qualidade de atenção multisensorial”, sem palavras. A empatia se torna, portanto, uma história de silêncio, que se estabelece a partir da energia lançada, da necessidade formulada, da conexão entre as partes. Este silêncio ajuda a parte no encontro do seu silêncio interior. A partir daí, as trocas entre as partes e os mediadores se dão em todas as dimensões sensoriais: palavras, gestos, atitudes, olhares, tom da voz, posições corporais, tensão e distensão físicas, sincronia das atitudes, ritmo respiratório, etc. Resumindo os pontos principais que caracterizam a empatia tem-se: acolhimento do outro e doação de tempo, atenção e energia.

É importante diferenciar simpatia e antipatia de empatia. Como dizem Faure e Girardet (2012): simpatia e antipatia indicam que se foi afetado emocionalmente pelo que o outro viveu – movimento para dentro; já empatia indica um desatrelamento da questão trazida pelo outro – movimento para fora.

O processo da Mediação se desenvolve melhor com o real estabelecimento da empatia e o afastamento da simpatia ou antipatia. De fato, não é um aprendizado fácil, visto que o mais comum é o estabelecimento da simpatia ou antipatia, muitas vezes estabelecidas pelo julgamento e valoração daquilo que está sendo dito. Ouvir, doar atenção, acolher sem julgar não é uma técnica, mas uma experiência, um aprendizado contínuo.

O processo de recepção do sentimento do outro, como diz Filliozat (1997), se dá através de uma escuta das necessidades sem uma interferência na tentativa de acalmar. O simples fato da pessoa se sentir acolhida na sua emoção já a acalmará. Após a aceitação da emoção, é importante manifestar a percepção sobre o que foi sentido.

A empatia, segundo Filliozat (1997 e 2001), é essa capacidade de perceber o que o outro sente, é essa “troca autêntica entre dois humanos”. Para ela, a empatia é uma importante dimensão da inteligência emocional, pois ela exige a saída do egocentrismo para se centrar no outro. Exige um sentir sem julgar, um acolhimento da expressão do afeto do outro.

Por isso é tão importante essa qualidade de presença do mediador, caracterizada por uma escuta atenta e um olhar presente, ou seja, um acolhimento com empatia. Como ressalta a autora, empatia não significa leitura do pensamento, ou mesmo instrumento de manipulação sobre o outro, empatia é o respeito pela individualidade alheia.

A linguagem da empatia se dá através de uma “escuta ativa”, como diz Thomas Gordon (discípulo do pai da empatia – Carl Rogers), pois esta se trata de uma linguagem eficaz, atenta à finalidade da comunicação, que dá mais importância aos sentimentos que aos fatos, para ele, uma comunicação sem respeito configura-se como ineficaz.

Gordon (apud Filliozat, 1997, p. 290, tradução nossa) especificou 12 importantes barreiras à comunicação:

1. Ordenar, comandar, exigir; 2. Ameaçar, amedrontar; 3. Fazer um discurso moralizador, fazer um sermão; 4. Aconselhar, propor soluções; 5. Dar uma lição, fornecer fatos; 6. Julgar, criticar, desaprovar; 7. Parabenizar, passar a pomada; 8. Ridicularizar, apelidar; 9. Interpretar, analisar; 10. Tranquilizar, simpatizar; 11. Investigar questionar; 12. Iludir, tratar com diversão, dar pouca importância.

Essas atitudes, em geral, dificultam o diálogo, a troca e, como se pode perceber, algumas evidentemente agressivas e outras, muitas vezes simpáticas ou gentis, mas que, na verdade, interrompem ou frustram o processo cartático que pode acontecer ao final do processo de troca, de diálogo. Essas barreiras são completamente evitadas no processo de Mediação, que autenticamente só abre espaço para a verdadeira empatia. É interessante perceber os efeitos produzidos pelo estabelecimento da empatia.

Carl Rogers (apud ROSENBERG, 2003, p. 73), por exemplo, discorre acerca dos efeitos da empatia sobre o outro. Segundo ele, quando uma pessoa se sente realmente ouvida, sem julgamentos ou enquadramentos, ela é capaz de redescobrir seu próprio universo e continuar seu caminho. Mas, para que isso aconteça, é fundamental a presença que se contenta só em estar lá, sem necessidade de agir, como diz Rosenberg ao citar Buda. A empatia exige, portanto, uma atenção ao outro, à sua mensagem, àquilo que ele precisa expressar e se sentir compreendido.

Obter essa postura é bem difícil, como diz Rosenberg (2003), pois é natural que se assuma a postura de aconselhar, consolar, dar o próprio exemplo, levantar questões moralizantes ou mesmo interrogar o outro. No entanto, é imprescindível concentrar nossa atenção no que se passa com o outro e nas suas demandas.

Como diz Claude Steiner (apud Faure e Girardet, 2012, p. 85, tradução nossa): “Estabelecer a empatia não é nem deduzir, nem pensar, nem ver, nem ouvir as emoções dos outros… a empatia é, de fato, um sexto sentido com o qual percebemos a energia das emoções, da mesma forma que nossos olhos percebem a luz”.

A pessoa que escuta com empatia age como um espelho que recebe e reflete o que foi passado, sem modificar a informação, como dizem Faure e Girardet (2012). Aqui percebe-se que a empatia, elemento fundamental na Mediação Humanista, também é um elemento fundamental na Comunicação Não Violenta. Há grandes semelhanças entre esses dois movimentos de pacificação social, que utilizam além da empatia e da paráfrase (que consiste em fazer uma espécie de resumo do que foi dito, lançando ao outro sua interpretação sobre o que foi dito e oportunizando ao outro corrigir aquilo que ficou mal interpretado), o acompanhamento do outro, ajudando-o no seu religamento às suas necessidades.

A prática da Mediação Humanista se baseia na interação de todos esses elementos, que juntos caracterizam o processo de acolhimento do sofrimento, por meio da importância da palavra, da autenticidade da expressão do sofrimento e da energia da benevolência capaz de propiciar aos “médiants” (as pessoas que apresentam o conflito) uma nova percepção sobre o conflito. Essa prática contribui, portanto, para a promoção da cultura da paz.

Segundo Morineau (2005), uma situação dolorosa ou injusta constitui um obstáculo que para ser superado é imprescindível ser confrontado e a Mediação oferece esse espaço-tempo para essa liberação, iniciada pela esperança de reparação.

Marshall Rosenberg (apud Faure e Girardet, 2012, p. 97) diz uma coisa que reflete bastante minha experiência no curso de formação na Mediação Humanista em Paris: “Não é preciso conhecer o contexto para se conectar de coração com alguém”. Durante os estágios de formação pude sentir assim como fiz sentir às pessoas que comigo estavam em formação essa realidade. Meus estudos na língua francesa não me propiciavam, sobretudo nos primeiros estágios, uma compreensão plena do contexto apresentado pelas pessoas em conflito. No entanto, essa dificuldade linguística não dificultou, acredito até que auxiliou, minha compreensão dos sentimentos e emoções que vinham à tona no processo de Mediação. Às vezes era curioso como as pessoas se reconheciam nos sentimentos e emoções por mim refletidos no jogo de espelhos, mas, em seguida, numa simples conversa, se davam conta de minha incipiente compreensão da língua francesa. Foi uma experiência muito importante, desafiadora e enriquecedora no processo de formação.

2.3 A Mediação Humanista como um Processo

O “espírito da Mediação”, como denomina Morineau (1998), aponta para uma nova concepção de Mediação que surge da ligação entre uma base filosófica enraizada na cultura clássica, em especial, nos filósofos gregos e a experiência de campo, com a prática da Mediação no CMFM. Esse espírito consiste na busca da harmonia, que, segundo Morineau, não pode nascer senão das diferenças e contradições localizadas no coração da experiência humana. Por isso, “a mediação é a cena onde o drama do conflito se desenvolve”.

A Mediação Humanista, como diz Jacqueline (2008), se desenvolve em três etapas: Theoria, Crisis e Catharsis, também identificadas no direito grego e na tragédia grega.

2.3.1 Theoria

A Theoria, fase inicial, consiste em Accueil, Exposé des faits e Resumé. O Accueil consiste na recepção das pessoas em conflito com benevolência. Após essa recepção, o mediador encarregado dessa primeira fase expõe o quadro da Mediação, informando o discorrer do processo e ressaltando a confidencialidade. É um momento muito importante, porque é o primeiro contato das pessoas com os mediadores. As pessoas chegam e é fundamental esse momento de acolhimento para que elas se sintam à vontade, diante de uma situação de exposição, já que elas falarão de assuntos, às vezes, bastante íntimos para pessoas desconhecidas. Certamente o que contorna esse desconforto é a empatia estabelecida pelos mediadores e a sinceridade e respeito do decorrer do processo.

A Exposé des faits é o momento que sucede o Accueil. Nesse momento, o mediador que fez a recepção das partes em conflito passa a palavra a cada uma das partes, para que elas exponham sua percepção do conflito, uma após a outra, sem ser interrompida. Durante esse momento os mediadores só escutam, doando sua qualidade de presença.

Após a exposição dos fatos pelas partes, passamos ao momento do Resumé, quando um mediador resume aquilo que ele entendeu dos pontos de vista de cada uma das partes de maneira imparcial e objetiva, abrindo espaço para que algo seja acrescentado ou algum mal-entendido seja superado. A partir de então, há uma abertura ao diálogo, inclusive consigo mesmo. É comum que o mediador que fez o resumo dos fatos inicie o jogo de espelhos, dirigindo-se a uma das partes e refletindo o seu sentir.

Nesta fase, quando os mediadores entram em contato com o conflito das partes, ou seja, quando as partes expõem “fragmentos de suas vidas”, os mediadores estão a contemplar “sentido etmológico de teoria, guardando uma justa distância para ‘ver’ e ‘discernir’ o sentido oculto das coisas” (MORINEAU, 2008, p. 127, tradução nossa).

Durante a Theoria, cada parte se exprime, fala de como viveu certa situação. É um momento de expressão e escuta recíproca entre as partes em conflito, como diz Morineau (2005).

2.3.2 Crisis

A Crisis se caracteriza, como diz Jacqueline (2008, p. 128, tradução nossa), pela “confrontação dos dois sofrimentos, cujas histórias narradas permitirão reconstruir o encadeamento das causas”. Tudo o que foi narrado pelas partes, durante a Theoria, provoca reações dos protagonistas, como diz Jacqueline (2005), logo eles se percebem em oposição. É justamente essa confrontação entre as partes que se chama Crisis, logo, a Theoria é que provoca a Crisis.

A mediação foi elaborada, justamente, como diz a autora, para atender as pessoas em crise, pessoas num “estado de grito”. Do encontro desses dois gritos surge a crise, expressão do sofrimento e da confusão vividos por cada um.

Crisis’: a etmologia grega nos direciona à necessidade de escolher, de discernir para poder tomar uma decisão. Esta decisão pode tornar-se julgamento, condenação da justiça, resultado de um processo. Trata-se de um momento importante ligado a um acontecimento, a uma situação que separa, que cria disputa, que requer transformação. Podemos perceber que a palavra é pesada, plena de simbologia. Em primeiro lugar, ela exprime um estado de separação, resultante de uma situação do passado ou de um acontecimento recente, bastante forte, que promove uma reconsideração do presente e do futuro. (MORINEAU, 2008, p. 87-88, tradução nossa)

Nesta etapa, ocorre a troca que vai se dando a partir do reconhecimento das emoções, graças ao “jogo de espelhos”, o reconhecimento das necessidades não satisfeitas que compõem a origem das emoções expressas e a tradução das necessidades em valores (os valores de cada um, a visão de mundo expressa através de valores).

Essas necessidades podem ser de várias ordens: fisiológica, de segurança, de pertencer, de estima, de conhecimento, de estética, metafísica. Rosenberg (2003, p. 48-50, tradução nossa) traz algumas necessidades, que ele chama de necessidades de base, comuns aos homens. São elas:

AUTONOMIA: – escolher seus sonhos, seus objetivos, seus valores, – escolher os meios de satisfazer seus sonhos/objetivos/valores.

BEM-ESTAR FÍSICO: – abrigo, – ar, – contato, toque, – água, – expressão sexual, – movimento/exercício, – alimentação, – proteção contra formas de vida que ameaçam a Vida (vírus, bactérias, insetos, predadores, em especial seres humanos), – repouso.

COMUNHÃO ESPIRITUAL: – beleza, – harmonia, – inspiração, – ordem, – paz.

DESENVOLVIMENTO: – autenticidade, – criatividade, – integridade, – senso.

INTERDEPENDÊNCIA: – aceitação, – amor, – avaliação, – calor, – confiança, – consideração, – empatia, – possibilidade de contribuir ao enriquecimento da vida, – proximidade, – conforto, – respeito, – sinceridade, – apoio.

Segundo Jacqueline (2005), essa dualidade entre as partes em conflito e os mediadores remete cada um dos protagonistas a sua própria dualidade, ao seu próprio combate íntimo. Essa fase vem precedida pela Catharsis, visto que, por meio do jogo de espelhos e dos seus reflexos, as partes vão pouco a pouco se distanciando de suas emoções e adquirindo um outro olhar sobre a situação vivenciada que pode propiciar uma mudança no comportamento de cada um. Nesse momento chegamos à Catharsis.

2.3.3 Catharsis

Segundo Le Roy (2011), a Theoria caracteriza o momento em que cada parte expõe suas razões, seus argumentos – os paradigmas da argumentação. Aqui vêm à tona as contradições, as oposições. A Crisis, por sua vez, é a confrontação entre as teses levantadas, para se alcançar a verdade, mais que a materialidade dos fatos. Essa é uma fase muito tensa, podendo derivar na revelação de coisas intencionalmente ocultadas. Por fim, a Catharsis, também chamada de purificação, significa o retorno à paz. Mas, se esta não é alcançada, ao menos pode auxiliar no esclarecimento dos fatos.

A Catharsis consiste na clarificação após a Crisis, na purificação, na transformação – reparação moral e material. Nessa fase há um reconhecimento recíproco das pessoas em conflito, um reencontro nos valores, um novo olhar sobre o outro e sobre a situação e, daí, a emergência de soluções escolhidas pelas próprias pessoas em conflito e não soluções impostas por quem quer que seja. Trata-se da retomada dos fatos em um outro nível.

Como diz Morineau (2008, p. 129, tradução nossa), o desenvolvimento de todo o processo só é possível quando o grito, que está por trás do sofrimento, é liberado. Só assim a transformação final – objetivo do processo de Mediação – se opera, e o sofrimento – “uma forma de morte” – se transmuta em vida. Assim, “há a transformação da pessoa, de sua atitude, uma ruptura com a mentira para o outro e para si, uma consciência do mundo de ilusões que foi criado e a visão de um novo porvir”.

Aqui está a grande finalidade da mediação: “acolher o sofrimento para que este transcenda e se abra a um novo equilíbrio, a uma harmonia vivenciada consigo mesmo e com os outros e, porque não, a uma nova forma de bem-estar” (MORINEAU, 2008, p. 82, tradução nossa).

2.4 “O Perdão como Caminho… e o Caminho do Perdão”

Refletindo acerca do caminho da mediação, sob inspiração de Alberto Almeida em “O perdão como caminho… e o caminho do perdão”, pode-se dizer que, da mesma forma que Alberto estabalece uma gradação no caminho do perdão para que esse seja atingido, há umas etapas que constituem o caminho da mediação. O perdão, como já referido, é uma forte estratégia combatente à culpa tóxica, ao rancor, que se constitui como caminho de percepção e reflexão acerca das condutas nas relações interpessoais.

O caminho da mediação se identifica bastante com o caminho do perdão, tanto do autoperdão quanto do aloperdão. São caminhos de libertação do sofrimento que se afirmam contrários à cultura da violência e ao culto do sofrimento expiatório.

Segundo Alberto (2012), os degraus no caminho do perdão são: 1- desejar, contatar e descobrir; 2- conviver, conhecer e compreender; 3- conscientizar e aceitar; 4- transformar, amadurecer e felicitar. Movimento semelhante podemos perceber no caminho da mediação: 1- desejar revisitar os sofrimentos para contatá-los e contatá-los para os descobrir em toda sua extensão; 2- conviver com eles, conscientemente, para bem conhecê-los e os conhecer para compreendê-los; 3- conscientizar-se deles para aceitá-los; 4- buscar transformá-los para amadurecer e amadurecer para buscar felicidade e bem-estar.

Nesse caminho, é importante perceber que não basta se libertar do sofrimento, é fundamental construir uma mudança de padrão de funcionamento psicobiológico, sociocomportamental e moral-espiritual, como diz Aberto Almeida (2012, p. 152). Ainda, segundo ele, as ações positivas, além de uma reparação justa, “promovem uma imunização para que não se repitam os mesmos deslizes”.

Falar sobre o perdão não é tarefa tão simples, sobretudo pela forte conotação religiosa que tem quando associado à noção de pecado. Como diz Muller (2007, p. 75), é necessário “repatriar” o perdão ao âmbito da filosofia, pois há uma “exigência ética do perdão” entre os homens, que precisa ser trabalhada e afirmada, caso contrário, abre-se espaço a vinganças e retaliações.

A vingança é estrita reciprocidade, pura imitação da violência do adversário. Em primeiro lugar, o perdão vem romper com a reciprocidade e a imitação. Enquanto o ressentimento, o rancor e o ódio aprisionam o indivíduo aos grilhões do passado, o perdão leva-o a se libertar deles, permitindo-lhe entrar no futuro. […] A vingança prolonga no futuro as consequências destruidoras de um ato maléfico cometido em circunstâncias que não mais existem. A vingança é inoportuna, intempestiva, anacrônica e vem sempre fora de hora.

É importante ainda ressaltar que perdão nada tem a ver com esquecimento, como já dizia François Ost e nesse mesmo sentido afirma Muller (2007, p. 76-77), pois “o perdão não perde a memória do passado – o esquecimento não é uma virtude e sim uma distração –, mas orienta-se resolutamente para o futuro”. Daqui infere-se o “dever de memória” do passado como uma espécie de “dever de vigilância em relação ao futuro”, não para ser um empecilho ao futuro, mas uma aposta no futuro. Para isso, é fundamental que a pessoa que causou o mal reconheça suas responsabilidades e se insira na história do perdão.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Traçando um paralelo entre a experiência da “Mediação Comunitária” africana e a “Mediação Humanista”, pode-se dizer que as quatro funções da “Mediação Comunitária”, na visão de Jean-Godefroy Bidima (apud LE ROY, 2012) também se aplicam à Mediação Humanista, são elas: domesticação da violência, visto que a Mediação institui um espaço comum; pedagogia social, pois o importante é salvar a relação e não saciar a vingança; promover a coexistência de consenso e pluralismo, aqui o dissenso se corporifica num espaço social pacífico; abertura a compromissos que atendam às especificidades e alteridades.

A Mediação Humanista, desenvolvida nos últimos anos, diz Jacqueline (2008), a fez encontrar o que está no coração da experiência humana – o sofrimento e suas consequências para o indivíduo e para a sociedade. Por isso, ela compreende a mediação tanto como um processo de simbolização, capaz de dar sentido às demandas das partes em conflito que visam, muitas vezes, a algo mais que uma reparação material ou o reconhecimento dos fatos, quanto como um processo educativo de se dar conta do outro e de acolher seu sofrimento.

Com o propósito de elevar a pessoa, ajudando-a a se religar aos seus valores essenciais e, assim, passar a viver melhor com ela mesma e com os outros, a mediação se caracteriza por uma passagem do sofrimento e da prisão à pacificação e esperança que se dá graças à aquisição de um nível de consciência mais elevado, no qual o homem pode encontrar sua dignidade.

Para tanto, a Mediação Humanista tem por objetivos: assegurar a reparação dos danos causados, pondo fim a desordem causada pela situação de conflito (pela mudança de ponto de vista das partes sobre o conflito) e buscar o reconhecimento recíproco, pois, frequentemente, os erros são cometidos por ambas as partes. Um importante caminho para alcançar esses objetivos vem sendo a promoção do diálogo e, portanto, o entendimento entre as pessoas, pois é como diz um provérbio africano, trazido por Mannozzi (2003, p. 8, tradução nossa): “Não existem pessoas que não se entendam, mas somente pessoas que ainda não tenham se falado”.

O diálogo, reforça Alberto Almeida (2012), configura-se como importante instrumento para reparar danos e refazer relações, visto que ao empregá-lo, vem-se promovendo a restauração dos relacionamentos e reconquistando, por meio da reparação, a paz interna perdida. A Mediação Humanista tem grande contribuição para o percurso de autoconhecimento e perdão possibilitado pelo diálogo.

Certos de que o desespero vem da incapacidade de sair de uma condição de sofrimento e de que, contrariamente, a esperança nasce da descoberta de que é possível libertar-se, ou seja, salvar-se, a mediação atua para que isso aconteça, ensinando, como diz Jacqueline, os mediandos e mediadores a ultrapassar a dimensão factual e emocional do conflito para dar voz à dimensão profunda do ser, abrindo-se à dimensão do espírito e para conduzir as partes em conflito aos seus próprios caminhos, “os mediadores precisam aprender a sair de si mesmos, a esquecerem de si, para, então, tornarem-se transparentes, espelhos límpidos para a recepção da imagem do outro, do sofrimento alheio” (MORINEAU, 2008, p. 148-149, tradução nossa).

Em sintonia com esse entendimento e enfatizando a vasta dimensão da mediação como um instrumento de solução não violenta dos conflitos, Muller (2007, p. 153,) destaca o importante papel do mediador na contribuição para a cultura da paz, favorecendo a autorregulação da violência social. Para ele, “o mediador pratica, de certo modo, a arte da maiêutica (do grego maieutiké, que significa a arte de realizar um parto), ou seja, ajuda seus interlocutores a ‘dar à luz’ a sua própria verdade”. Grande contributo tem o saber ouvir do mediador, ou seja, sua escuta ativa, pois “para desatar o nó de um conflito, não basta estabelecer a verdade objetiva dos fatos, é necessário apreender a verdade subjetiva das pessoas, com suas emoções, desejos, frustrações e sofrimentos”.

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Notas de Rodapé

[1] Doutora em Teoria e História dos Direitos Humanos pela Universidade de Florença/Itália; Mestre pela Universidade do Salento/Itália; Mediadora pelo Centro de Mediação e Formação na Mediação de Paris/França; Professora de Direito da Universidade Católica de Pernambuco; Advogada-mediadora.

[2] Prefácio de Humberto R. Maturana (p. 17-19) ao livro O cálice e a espada: nosso passado, nosso futuro, de Riane Eisler.

[3]Para descrever uma alternativa palpável ao sistema baseado no escalonamento de uma metade da humanidade sobrepondo-se a outra, proponho o neologismo gilania. Gi deriva da raiz grega gyne, ou ‘mulher’; an deriva de andros, ou ‘homem’. A letra ‘l’ entre as duas sílabas tem duplo significado: representa a ligação entre as duas metades da humanidade – ou seja, não se trata de um escalonamento, como na androcracia – e em grego deriva do verbo lyein ou lyo, que por sua vez também tem duplo significado: resolver ou solucionar (come se vê da palavra análise) e dissolver ou libertar (como na palavra catálise). Nesse sentido a letra ‘l’ representa a solução de nossos problemas através da libertação das duas metades da raça humana em relação aos papéis degradantes e distorsivos, que foram rigidamente impostos pelas hierarquias de dominação inerentes aos sistemas androcráticos”. (EISLER, 2007, p. 165)

[4]No lugar de patriarcado, para descrever com maior exatidão um sistema social regido pela força, ou ameaça de uso de força pelos homens, proponho o neologismo androcracia. Já utilizada por alguns, essa palavra deriva das raízes gregas andros, ou ‘homem’, e kratos, ou ‘governo’”. (EISLER, 2007, p. 165)

[5] Aqui Muller (2007, p. 148) faz menção a René Girard, segundo o qual: “[…] a origem do conflito entre dois adversários encontra-se na rivalidade mimética que os opõe, objetivando a apropriação de um mesmo objeto”. Em seguida, expõe Muller que a não violência objetiva justamente romper esse mimetismo, ou seja, a imitação da violência do outro. Sobre a teoria mimética, vide: GIRARD, René. Um longo Argumento do Princípio ao Fim. Tradução de Bluma Waddington Vilar. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000.

[6] Dado informado pela instrutora Laure Galvez no curso de formação na mediação, em Paris.

[7] É importante diferenciar culpa de culpa tóxica. Segundo Almeida (2012), o sentimento de culpa é salutar quando ele representa um arrependimento, abrindo margem a uma ação reparadora; já a culpa tóxica se caracteriza pela paralisação da pessoa na culpa, sem condução ao caminho da reparação.