Tateando o Real Concreto: Cooperativismo Popular e Pesca Artesanal na Região Sul do Rio Grande do Sul
FEELING THE REAL CONCRETE: POPULAR COOPERATIVISM AND SMALL-SCALE FISHING IN RIO GRANDE SUL, IN THE SOUTH REGION OF BRAZIL[1]
Paulo Ricardo Opuszka[2]
Priscila Luciene Santos de Lima[3]
Resumo: O presente artigo pretende abordar o tema da organização do trabalho na pesca artesanal da região sul do Rio Grande do Sul, com a finalidade de qualificar as informações sobre as potencialidades e limites do Cooperativismo Popular e Economia Solidária no desenvolvimento sustentável da região. Uma das perspectivas de análise é investigar transversalmente as políticas sociais do Governo Lula/Dilma para o desenvolvimento pesqueiro. Para tanto se faz necessária trabalhar categorias como território, pesca artesanal e sustentabilidade, além de Cooperativismo Popular e Economia Solidária. O locus para verificação da realidade apresentada é a região dos Municípios de Rio Grande, Pelotas além de outros do extremo Sul do Brasil, onde se localiza a maior parte do Estuário da Laguna dos Patos, espaço de trabalho e vida da maioria dos pescadores artesanais e suas organizações comunitárias. Convém destacar que todas as organizações observadas tiveram início nas lutas políticas dos pescadores artesanais para sua afirmação como sujeitos e protagonistas de sua ação política, aumento da participação nas políticas públicas e reconhecimento social. O artigo aborda a organização da Rede de Comercialização de Pescado entre comunidades e pequenos grupos comunitários, cooperativas e associações a partir de uma metodologia que compreende a análise da realidade, reflexão teórica sobre a ilustração apresentada e uma proposta de intervenção a partir dos problemas e potencialidades apreciados. Neste sentido, as considerações finais caminham para a possibilidade de reflexões jurídicas e econômicas que estejam baseadas no real concreto da organização popular pesqueira e ribeirinha.
Palavras-chave: Pescadores artesanais. Cooperativismo popular. Participação e reconhecimento.
Abstract: This article seeks to address the issue of organization of work in artisanal fisheries in the southern region of Rio Grande do Sul, in order to qualify the information on the potential and limits of Cooperatives and People’s Solidarity Economy in sustainable development in the region. One perspective of analysis is to investigate across the social policies of Lula/Dilma’s Government for fisheries development. For both categories is necessary to work as a territory, fishing and sustainability, and Cooperatives and People’s Solidarity Economy. The locus for reality check presented is the region of the municipalities of Rio Grande, pellets and other of the extreme South of Brazil, home to most of the Patos Lagoon Estuary, workspace and the lives of most artisanal fishermen and their community organizations. It is worth noting that all organizations have observed early in the political struggles of fishermen as subjects for his statement and the subject of political action, increased participation in public policy and social recognition. The article covers the organization of the Network Marketing Fish communities and between community groups, cooperatives and associations from a methodology that includes the analysis of reality, theoretical reflection on the illustration and a proposed intervention to the problems and potential appreciated. In this sense, the final consideration for the possibility of legal and economic considerations are based on concrete reality of popular organization and riverside fishing.
Keywords: Fisherfolk. Cooperatives popular. Participation and recognition.
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo pretende abordar o tema da organização do trabalho na pesca artesanal da região sul do Rio Grande do Sul, com a finalidade de problematizar e refletir acerca dos limites do Cooperativismo Popular e Economia Solidária no desenvolvimento sustentável da região e ao mesmo tempo discutir, de forma transversal, as políticas sociais do Governo Lula/Dilma para o desenvolvimento pesqueiro[4].
Para tanto se faz necessária uma abordagem do território estudado, em especial os Municípios de Rio Grande, Pelotas e adjacências[5], onde se localiza a maior parte do denominado Estuário da Laguna dos Patos, espaço de trabalho e vida da maioria dos pescadores artesanais e suas organizações comunitárias.
Na primeira parte será apresentada a pesca artesanal nas regiões de Rio Grande e Pelotas a partir de uma descrição que leva em conta aspectos históricos geográficos e socioeconômicos, no que tange a realidade pesqueira.
Convém destacar que a compreensão de território do presente artigo será aquela sugerida por Paulo André Niederle e Catia Grisa, a partir da construção de E. Sabourin, entendendo a categoria enquanto “espaço construído histórica e socialmente, no qual a eficiência das atividades econômicas é intensamente condicionada pelos laços de proximidade e pelo fato de pertencer a esse espaço; o território é um resultado e não um dado”[6] ou ainda, segundo os mesmos autores citando R. Abramovay, “uma trama de relações com raízes históricas, configurações políticas e identidades que desempenham um papel ainda pouco conhecido no próprio desenvolvimento econômico”[7].
Na segunda parte será apresentada a experiência do Cooperativismo Popular na Pesca Artesanal, a partir dos projetos executados pela Universidade Federal do Rio Grande e financiados pelo Ministério da Pesca e Aquicultura.
Os grupos que participaram das edições do projeto se organizaram ao longo do Estuário da Laguna dos Patos e do entorno da Lagoa Mirim, além de dois grupos envolvidos com a pesca de Oceano, em especial nas praias do Cassino e Hermenegildo, Litoral Sul do Rio Grande do Sul.
Na terceira parte serão apresentadas reflexões sobre as potencialidades do Cooperativismo Popular, necessários para a continuação da pesquisa coletiva realizada pelo Núcleo de Direito Cooperativo e Cidadania da UFPR, desde o ano de 1998.
Cabe também ressalvar que as organizações estudadas tiveram início nas lutas políticas dos pescadores das Lagunas dos Patos e Mirim e que outros grupos foram se incorporando à referida realidade, na medida em que sofriam as consequências da atividade econômica realizada na região da cidade do Rio Grande, especialmente devido ao impacto, em primeiro lugar da Pesca Industrial instalado naquele Município e, posteriormente, a atividade da Indústria e Comércio Exterior Portuária e quais as consequências estruturais da região analisada.
Serão apresentadas as realidades das cidades do Rio Grande (incluídas as Ilhas da Torotama e Ilha dos Marinheiros e a Capilha) e Pelotas por se tratarem de regiões em que a pesca artesanal foi bastante intensa e sua diminuição tem relação direta com a Economia das cidades, especialmente sua indústria pesqueira. Por fim, o artigo é fruto de estudo em trabalho de doutoramento que acompanhou a formação da Rede de Comercialização Solidária do Pescado entre comunidades e pequenos grupos comunitários da pesca artesanal, cooperativas e associações e, portanto, na referida rede não existem pequenas indústrias, titulares embarcações que assalariam trabalhadores em média e grande escala, ou os atravessadores.
2 A PESCA ARTESANAL DO EXTREMO SUL DO BRASIL
Segundo César Augusto Ávila Martins (2002), o Município de Rio Grande está localizado na desembocadura da Lagoa dos Patos na interação dos ecossistemas oceânico atlântico, lacustre e estuariano-lagunar. Explica o autor que “tal domínio natural é objeto de importantes estudos de suas condições naturais. Entre os resultados destes esforços, o estudo organizado por Vilwock e Tomazelli (1995) procura sintetizar os esforços dos pesquisadores especializados em Geologia” (MARTINS, 2002, p. 1).
Apresentando a localização territorial e relevância no que tange à riqueza ambiental e de reprodução das espécies animais e vegetais, continua:
Qual é a produção natural da Natureza do estuário da Lagoa dos Patos? O estuário conceituado do ponto de vista natural como um ambiente mixohalino, compreende uma área constituída por águas que circulam entre a barra do Rio Grande e as proximidades de uma linha imaginária distante 70 km ao Norte que liga a ponta da Feitoria à ponta dos Lençóis. (MARTINS, 2002, p. 2)
A região do Estuário é banhada por água doce, com entrada sazonal, dependendo a estação do ano, de água salgada, o que possibilita o desenvolvimento de espécies como o camarão e outros peixes, variando as espécies de captura em diferentes épocas do ano, o que trouxe à região interesse econômico de populações que em primeiro lugar ali habitaram.
Explica o referido autor:
Dependendo a estação do ano, e especialmente a direção dos ventos, os efeitos da maré salina podem ultrapassar estes limites. Tais combinações dão condições especialmente adequadas para reprodução de uma grande variedade de espécies com sazonalidades múltiplas, passíveis de captura do consumo humano. Concomitante aos atributos do ponto de vista estratégico que levaram a construção e consolidação do pólo industrial e portuário (DOMINGUES, 1995), existe dimensões da produção espacial marcadas pelos recursos das pescarias. (MARTINS, 2002, p. 3)
Em artigo publicado no intuito de analisar as transformações socioeconômicas, sociais e culturais que ocorreram na Colônia de Pescadores Z3, em Pelotas/RS, Niederle e Grisa (2006) apresentam a colônia como situada a 20 km da cidade, à margem oeste da Lagoa dos Patos, fundada em 1923, se constituindo como tradicional núcleo de pescadores artesanais.
Sobre a cidade de Pelotas, assim descreve a região:
O município de Pelotas possui clima subtropical e caracteriza-se por receber, predominantemente, ventos do quadrante leste – que vêm do Atlântico – e forte influência oceânica que proporciona uma atmosfera geralmente úmida. Sua localização na região fisiográfica denominada “Encosta do Sudeste” determinou ao município a existência de duas grandes paisagens naturais e humanas distintas. De um lado, a paisagem serrana, de plantios agrícolas diversificados, com relevo ondulado, que propiciou condições perfeitas para a colonização alemã. De outro, se constituiu uma paisagem de planície, baixa e plana, dominada pela pecuária e orizicultura e de composição étnica variada (onde, litoraneamente, se encontra a Colônia Z3). (NIEDERLE; GRISA, 2006, p. 5)
Um importante dado capturado pelos autores é a classificação da pesca artesanal em diferentes sistemas pesqueiros, historicamente determinados, quais sejam: sistema pesqueiro indígena (da ocupação do Brasil pelos portugueses até 1730); sistema pesqueiro colonial (iniciado com as sesmarias quando de fato ocorre a ocupação massiva do território do Rio Grande do Sul, especialmente pelos açorianos na região referida); sistema pesqueiro pós-industrial (que tem início em 1930/1940 com a desestruturação das parelhas portuguesas e inovação tecnológica essencialmente realizada pelos catarinenses); sistema atual (consolidado pelo investimento realizado no setor somado a um novo arranjo institucional em termos de políticas ambientais e emergência de novas estratégias reprodutivas).
Em relação ao primeiro sistema, modelo importante a ser analisado porque se configura no momento da história do Rio Grande do Sul, compreendendo a ocupação de seu solo, não será dada a devida atenção na presente tese, pelos limites do seu objetivo, mas fica o registro da necessidade de compreensão do mesmo. Um registro importante deste sistema é o fato de que os denominados pescadores nativos, oriundos deste momento histórico, caracterizavam-se pela posse dos meios de produção (jangadas a remo, redes rudimentares), controle de todas as etapas de produção e, sobretudo, pela sua destinação fundamentalmente para atender as necessidades de sua família.
Sobre o segundo sistema, denominado sistema pesqueiro colonial, César Augusto Ávila Martins (2002, p. 4) comenta:
É a partir de 1870 que os recursos pesqueiros do Estuário e litoral adjacentes passam a ser socialmente produzidos com a imigração dos portugueses da Povoa do Varzim. Neste sentido, podemos delimitar dois momentos de sua constituição: o primeiro, no último quartel do século XIX, quando os imigrantes portugueses – portadores de capitais e de um passado vinculado à pesca – organizaram as primeiras parelhas de pesca e unidades de industrialização. O segundo, com os resultados das políticas estatais iniciadas e consolidadas pelo Decreto 221/67 com a possibilidade de captação de recursos públicos via incentivos fiscais.
Continua a argumentação:
Entre os imigrantes lusos uns eram despossuídos dos meios de produção e possuidores da capacidade de trabalho na pesca. Foram os homens que viveriam suas vidas puxando as redes e dando vida ao Estuário. Alguns ao se capitalizarem, deixaram de pescar e se diferenciaram dos outros como comerciantes de pescado. Estes passaram a se reproduzir através do trabalho dos que seguiam vivendo de puxar redes e vender sua força de trabalho nas indústrias. Outros imigrantes lusos já chegaram capitalizados para serem os donos das embarcações, do comércio do pescado e/ou para estruturar um grande parque fabril pesqueiro em quantidades produzidas das diferentes formas de processamento, isto é, a salga, os congelados, os óleos/farinha, as especialidades e o enlatamento. (MARTINS, 2002, p. 5)
(…) Nestas condições, estariam sendo forjadas as possibilidades para a produção de outras espécies de peixes salgados para substituição de importações: “o Rio Grande do Sul concorre ainda grandemente para o abastecimento de peixes para a capital do país”. (SILVA, 1944, p. 1.171)
Niederle e Grisa (2006), desse sistema, destacam que nas charqueadas, os pescadores nativos foram submetidos ao referido sistema agrário, entretanto, foram substituídos pelos negros oriundos do tráfico. Acreditamos que isso ocorre porque os nativos, agregados a terra e a história de seu território, eram pescadores natos e de difícil submissão.
Ainda no sistema colonial o nascimento da indústria pesqueira é capitaneado pelos portugueses e as denominadas atividades pesqueiras eram realizadas por comunidades locais e nas águas próximas ao litoral brasileiro. Assim, na conformação das cidades, a pesca artesanal começa se voltar para o mercado, quando surge o denominado atravessador, homem especializado em produtos do mar, que passou a ser também financiador da produção dos pescadores artesanais.
Mas a consolidação da atividade irá se constituir somente no próximo sistema pesqueiro a ser analisado. Os autores recortam os argumentos de Cesar Martins apresentando um terceiro modelo, a partir das décadas de 1930/1940, com o denominado sistema pós-colonial.
Tal modelo tem origem quando, na crise do charque em na primeira metade do século XIX, a economia da região entra em declínio. Entretanto, consolida-se com a chegada dos catarinenses na região, implementando mudanças tecnológicas na arte da pesca tais como o aumento das embarcações, inclusão do motor nos barcos, aumento do tamanho das redes e diminuição das malhas.
As novas relações de produção acentuam as diferenças entre os pescadores e a figura do intermediário-atravessador se consolida. Além dele, a partir de um projeto de defesa do território nacional por parte da Marinha Brasileira com a criação das colônias de pescadores, estas são bastante fortalecidas pelas ações estatais que vinculam as mesmas diretamente ao Estado controlando as atividades de pesca e servindo como espaço de pressão de interesses de grupos locais com mais expressão política.
Por outro lado, Cesar Martins destaca que as famílias portuguesas mantiveram ainda por longos anos a indústria pesqueira na região, especialmente em Rio Grande através da Torquato Pontes, Junção Pescados e Albano Sobrinho, com exceção da Leal Santos (incorporada pelo grupo Ipiranga ainda nos anos 1940), com produção voltada para o camarão utilizando como base operacional o porto de Icoracacy, no Pará; também famílias italianas fundaram empresas, bem como espanholas (Balester-Pescal S.A.) e inglesas (família Wigg).
Em 1962, sob o signo do desenvolvimento econômico, a política desenvolvimentista do Governo[8], sob a égide de João Goulart, mas efetivamente realizada após o Golpe Militar por Castello Branco, ocorre a criação da Superintendência do Desenvolvimento da Pesca e a promulgação do Código da Pesca de 1967, objetivando a criação de um setor pesqueiro moderno e dinâmico, sobretudo a partir de políticas de incentivo fiscal.
Em relação ao sistema pesqueiro atual, tais são as considerações dos autores:
A delimitação do sistema pesqueiro atual diz respeito a um conjunto de transformações pelas quais a Colônia Z3 de Pelotas, a partir dos resultados das políticas produtivistas e da emergência de novos referenciais na ação do Estado, o que, todavia não superou a prioridade dada aos investimentos em grandes embarcações de pesca. O que se alterou significativamente foi a iniciativa do Estado, tencionado por pressões de diversos organismos – principalmente em virtudes de conjunturas externas – em procurar reduzir os efeitos da modernização nos setores agrícolas e extrativistas com medidas de proteção e preservação dos recursos ambientais. Na pesca artesanal isto representou novas restrições que dificultaram sobremaneira a reprodução das famílias. Uma destas restrições refere-se ao privilegiamento das empresas de pesca que não sofrem com a fiscalização em virtude da falta de recursos para operação dos fiscais em alto-mar. Desta forma, as ações repressivas concentram-se sobre os pescadores artesanais. Conjugado a isto, o explícito privilégio do “agronegócio da pesca”, que concentra a maior parcela dos investimentos públicos, obrigou os pescadores artesanais a encontrar novas estratégias para a reprodução social. (NIERDELE; GRISA, 2006, p. 7)
Outro grande argumento para tese: a grande indústria pesqueira é financiada, há mais de 40 anos, pelo Estado Brasileiro; a pesca artesanal, desde outrora, é controlada no sentido de se evitar a organização e atenuar a luta de classes, num primeiro momento pelas colônias de pescadores; num segundo momento pelas relações estabelecidas entre os artesanais e os atravessadores; atualmente, estes elementos levam a crer, que esta tarefa cabe ao Governo Lula.
Ainda, importante destacar, a partir do conceito de Cesar Augusto Ávila Martins (2002, p. 8) o que são os pescadores artesanais:
Considera-se pesca artesanal aquela realizada com relações sociais não assalariadas entre pescadores e membros de suas famílias, proprietários de pequenas embarcações (para fins de coleta de dados aquelas com capacidade de arqueação bruta de até 20 toneladas – 20 TAB) e seus eventuais parceiros de pesca, que utilizando instrumentos simples de trabalho e conhecimento ancestrais, podem eventualmente trabalhar em atividades formais e não formais urbanas e rurais, assalariando e se assalariando. Tal relação não impede que produzam seus próprios meios de vida, rebaixem sua produção à níveis quase biológicos ou com ganhos excepcionais produzirem mercadorias que se realizem em escalas planetária e possam ascender socialmente.
Nos municípios de Rio Grande e Pelotas, além de outros em torno, num primeiro momento, divididos entre os profissionais pescadores e pescadores artesanais autônomos, se forma um movimento denominado Movimento dos Pescadores da Pesca Artesanal, com grande intervenção da Pastoral da Pesca, no fim dos anos 80 do século XX.
O principal objetivo do referido movimento era discutir e organizar politicamente as demandas da pesca artesanal fixando bandeiras de luta tais como a comercialização do pescado e os problemas com os denominados atravessadores, até mesmo o conflito entre a pesca industrial e a artesanal, comércio formal e informal até mesmo os problemas ambientais devido à falta de peixe no estuário da Lagoa dos Patos e Lagoa Mirim.
Em relação aos atravessadores, ou seja, os compradores de peixe que pagam barato pelo fruto do trabalho dos pescadores e o vendem por um preço maior por possuírem os maquinários de beneficiamento desde o caminhão, freezers, entreposto, fábrica de gelo, fábrica de filetagem[9], adaptação de trabalhadores nas boas práticas, ou seja, o que é necessário para industrialização do pescado ou mesmo o transporte para venda in natura do pescado, a medida discutida é a estratégia para o rompimento de relações e a sonhada autonomia do retorno à direção e posse dos meios de produção, dos tempos de pescadores nativos.
Em 1999, o projeto denominado RS Rural aporta dinheiro público criando um braço do referido programa denominado RS-Pesca, na gestão do então Governador Olívio Dutra (1999-2002).
Através do RS-Pesca que foram organizadas as primeiras atividades voltadas para pesca artesanal a partir do paradigma da Economia Solidária, na tentativa de organizar uma rede de entidades de pescadores (ainda na intenção de organizar as colônias, associações e cooperativas) para possibilitar um comércio mais justo, um preço melhor para o pescado vendido pelo trabalhador e a possibilidade da dupla qualidade, ou seja, o beneficio da comunidade e do pescador, ao mesmo tempo.
Após o ano de 2002, as políticas públicas do Governo Rigotto não mantiveram o programa, entretanto surge a Secretaria Especial da Pesca – SEAP, junto ao Governo Federal, no Governo do recém-eleito Presidente Luis Inácio Lula da Silva.
A forma de dar continuidade à organização do movimento dos trabalhadores foi através de um projeto financiado pela referida SEAP que uniu pela primeira vez, numa área de abrangência compreendendo os municípios de São Lourenço do Sul, Pelotas, Arroio Grande, Jaguarão, São José do Norte, Rio Grande e Santa Vitória do Palmar, empreendimentos dos referidos municípios, na pesca artesanal.
O Governo Federal, através do Ministério da Pesca e Aquicultura – MPA, manteve, até a presente data, quatro edições de projetos para o desenvolvimento do Cooperativismo na Região Sul do Rio Grande do Sul e tal iniciativa tem sido a principal saída para sobrevivência e manutenção das comunidades pesqueiras mais pobres, além dos programas sociais universais, mantidos pelo Governo Federal.
Entretanto, a realidade da pesca artesanal no estuário da Lagoa dos Patos não é suficiente para os trabalhadores que exercem a atividade da pesca artesanal devido a diversos problemas que vão desde a poluição da Lagoa que gera a escassez do produto retirado da natureza (em 1995 a média mensal de pescado na região era de 50 mil toneladas e no ano de 2007 o número reduziu para 5 mil toneladas, dados da própria Secretaria Especial da Pesca), ou seja, uma drástica redução, em pouco mais de dez anos, de 45 mil toneladas até os problemas com os plantadores de arroz da região (devido à necessidade de água doce para o referido cultivo) em confronto com os interesses dos pescadores de camarão (que se beneficiam da água salgada).
Como se observou anteriormente, ainda se mantém a política de intensa fiscalização da pesca predatória realizada pelos pescadores pequenos, iniciativa que atingiu e continua atingindo violentamente o pescador artesanal que, na falta de condições para desenvolvimento de seu trabalho em relação à competitividade com o denominado atravessador (para quem ele inclusive vende o seu produto), realiza pesca predatória (denominada “pesca de prancha” e de “arrasto”) ou com rede proibida pelo órgão governamental, em especial no período de reprodução dos animais.
Ainda, o aparelho estatal nunca conseguiu coibir a grande pesca predatória, realizada pelos grandes barcos pesqueiros oriundos de outras regiões do Rio Grande do Sul ou até de Santa Catarina, uma vez que seus mecanismos de realização do trabalho são muito mais sofisticados e potentes, além de se relacionarem com o poder público de outras formas e com outros expedientes (vão desde acordos em relação ao momento da fiscalização ou até mesmo subornos, conforme declaração dos pescadores e ambientalistas da região), formas com os quais os pescadores artesanais não podem competir.
3 COOPERATIVISMO POPULAR NA REGIÃO SUL DO RIO GRANDE DO SUL
A presente seção tratará do Cooperativismo Popular e da Economia Solidária empreendidos no Rio Grande do Sul, especialmente na região em que ocorre a ilustração com o estudo de caso que caracterizará o principal impasse a ser apresentado.
Alguns elementos merecem consideração: o olhar do texto será bastante atual, fundado no desenvolvimento das referidas práticas baseadas na experiência de um projeto de extensão que utiliza o método da incubação, comum nas Universidades Federais em relação a Cooperativas Populares (HECKERT, 2003; MATSUDA, 2009) e aplicado à organização da Rede de Comercialização de Pescado da Região Sul do Rio Grande do Sul, já que o projeto realizou-se no objetivo de incubação da rede.
Portanto, os métodos aplicados para organização dos empreendimentos populares vêm sendo utilizados desde as primeiras intervenções nas comunidades desta natureza na região observada, a partir de princípios previstos nos primeiros grupos que discutiram o tema, entre eles a ANTEAG, adequados à realidade do Rio Grande do Sul, onde o conceito de popular foi aprimorado a partir das experiências do Governo Olívio Dutra/1999-2002.
Em artigo de opinião publicado em setembro de 2008, Daniel Galileu Cabral destaca a iniciativa de organização dos pescadores artesanais em cooperativas porque possuem vantagens da sua organização tais como:
papel central auto-regulador frente às medidas de manejo; pescarias através de parcerias estabelecidas entre barcos e pescadores tornando a cooperativa uma unidade de captura; redução de custos, inclusive quanto a informações sobre pescarias e estoques (melhor estatística da pesca). Contudo, a principal intervenção desta forma de organização fundamenta-se em romper a dependência entre o setor artesanal e a rede dos atravessadores. (CABRAL, 2008, p. 3)
O autor do texto não se baseia no movimento cooperativista por parte das colônias e OCB, anteriormente considerado Cooperativismo Empresarial, cuja apresentação se deu nas análises anteriores. Sua opinião comunga dos pressupostos do projeto acima referido e do modelo de cooperativismo fundado nas organizações populares e distancia-se do sistema da Organização Cooperativista do Brasil (CABRAL, 2008).
O projeto Incubação da Rede de Comercialização de Pescado da Região Sul do Rio Grande do Sul, durante o ano de 2009, foi uma ação da Pró-reitoria de Extensão, realizada pelo Núcleo de Desenvolvimento Social e Econômico da Universidade Federal de Rio Grande – FURG, financiado pelo Ministério da Pesca e Aquicultura – MPA, e serve como base de estudo para corroborar, na medida do possível, com parte dos argumentos apresentados.
O projeto foi executado pela Universidade Federal do Rio Grande e encontrava-se na sua terceira edição.
A primeira edição foi executada pelo Centro de Apoio ao Pequeno Agricultor – CAPA, Organização Não Governamental situada no município de Pelotas, que tinha como principal finalidade constituir a identidade dos grupos através da constituição da escolha dos nomes das entidades, suas logomarcas, seus selos de comercialização, ou seja, a forma com que seriam identificados enquanto grupo.
A segunda edição foi executada por uma das entidades cooperadas, a Cooperativa Lagoa Viva de Pelotas, com a finalidade de iniciar medidas que contribuíssem com a efetivação da comercialização dos grupos entre os membros da denominada Rede de Comercialização.
Atualmente, nas discussões dos pescadores que participam da Rede se busca promover ações que visem ao fomento e à manutenção dos princípios que nortearam sua origem. Ou seja, a justiça social, a transparência, o preço justo, a solidariedade, o desenvolvimento sustentável, o respeito ao meio ambiente, a promoção da mulher, a defesa dos direitos da criança e o empoderamento dos indivíduos.
Senda assim, as ações realizadas durante o período de realização do projeto, em 2009, tiveram como linha de ação o conhecimento e o respeito às comunidades atendidas, a valorização a sua cultura e estratégias de formação que promovessem nos sujeitos seu desenvolvimento integral, ou seja, pessoal, comunitário e social.
Nos registros das ações no relatório final do projeto constou
Vale aqui registrar que quando nos referimos ao conceito de formação não compartilhamos com o entendimento de “colocar ou dar forma”. Mas nos referimos às ações e estratégias pedagógicas que visaram contribuir para o empoderamento e a emancipação dos participantes. Visto que, através do processo reflexivo estabelecido foi possível compreender que o desenvolvimento humano sustentável está interligado a diversidade de capacidades, recursos e potências dos seres e; que essa imensa e múltipla riqueza de cada um é complementar a do outro(a) e não competitiva. (NUDESE, 2009)
É possível afirmar que o cumprimento das metas inicialmente estabelecidas foi além da realização de um cronograma, visto que não buscou apenas a qualificação dos empreendimentos para sua inserção na comercialização, tão pouco formar modelos de organização, mas no sentido de promover a real e verdadeira emancipação humana, em que os sujeitos através da autogestão tecem permanentemente seus processos de autonomia, ainda que, num determinado momento, os limites da referida organização se apresentem.
A meta principal foi de prestar assessoria técnica através do acompanhamento sistemático aos referidos grupos, estando previstos em seu plano de trabalho a realização de oficinas de formação na área social, ambiental e de gestão, cursos técnicos na parte de beneficiamento e comercialização de pescado, e seminários regionais na área de abrangência do projeto.
O objetivo geral era a incubação da rede de comercialização de pescado da região sul do Rio Grande do Sul, compreendida por sete municípios e dezesseis empreendimentos de pescadores.
O projeto tinha como área de abrangência a região Sul do Rio Grande do Sul, que compreende os municípios de Arroio Grande, Jaguarão e Santa Vitória do Palmar, os quais se localizam no entorno das Lagoas Mirim e Mangueira; e os municípios de Pelotas, São José do Norte, São Lourenço e Rio Grande que fazem parte do estuário da Lagoa dos Patos. Ocorrendo também a pesca oceânica visto que as localidades de Rio Grande e do Hermenegildo são banhadas pelo Oceano Atlântico, fato que demonstra a rica biodiversidade que essa região possui.
Figura 1 – Mapa Estilizado do Rio Grande do Sul
Fonte: NUDESE (2009)
Cabe ressaltar que os empreendimentos assessorados se encontravam em estágio diferenciado visto a constituição histórica de cada comunidade. Há grupos que ainda permanecem em processo de fomento, outros no estágio de incubação, empreendimentos que estão caminhando para a legalização estatutária, ambiental e sanitária; e alguns que num estágio mais avançado buscam a efetiva comercialização através da rede e dentro dos princípios do comércio justo e solidário.
Todos os grupos beneficiados têm como atividade econômica a pesca artesanal, totalizando a abrangência de mais de setecentas famílias diretamente atendidas. Este público caracteriza-se pelo constante desafio de, através da coletividade no modo de produção, romper com as relações de exploração do mercado onde escoam sua produção, buscando dessa forma a sustentabilidade na realidade pesqueira.
O período de execução do projeto foi de 12 meses a partir da liberação dos recursos financeiros que visam à contratação da equipe técnica de trabalho, ao deslocamento e à realização das visitas às mencionadas localidades; que no plano de trabalho compreende o período vigente de janeiro a dezembro de 2009.
A primeira ação foi o Diagnóstico Rápido Participativo – DRP realizado nos meses de junho a agosto consistindo num conjunto de técnicas e ferramentas que permite aos grupos participantes não apenas compartilhar experiências e histórias entre a comunidade e a equipe técnica, mas fomentar nos atores envolvidos a reflexão do que realmente representa um desenvolvimento sustentável, visto que propõe aos sujeitos um processo de autorreflexão, através de seus próprios conceitos e critérios de explicação gerando dessa forma um diagnóstico que supera todos os estudos convencionais de pesquisa que tem por objetivo apenas a coleta de dados.
No entanto, os dados revelados colaboraram também para a obtenção direta de informações primárias bem como os processos, dinâmicas e relações sociais estabelecidos no cotidiano comunitário das comunidades pesqueiras, fato que contribui de forma relevante para o amadurecimento profissional da equipe técnica bem como para a tessitura das futuras ações.
A segunda ação foi a formação e educação na Economia Solidária, no intuito de promover a organização e o esclarecimento conceitual do que é a economia solidária popular e do comércio justo solidário, bem como os seus princípios e valores. Foram organizadas nos meses de setembro a dezembro, três estratégias metodológicas de atuação que buscaram a sensibilização, a apropriação dos instrumentos e conhecimentos necessários para a efetiva participação dos sujeitos dentro das redes solidárias e a reciclagem de alguns conceitos já estabelecidos.
Para tanto, se desenvolveram oficinas de sensibilização – organizadas duas estratégias participativas de abordagem com os grupos envolvidos antes da realização do curso de associativismo/cooperativismo propriamente dito, tendo por objetivo sensibilizar o grupo e fomentar discussões a respeito dos temas abordados, neste caso específico, a cooperação.
As Oficinas de reciclagem tiveram como objetivo amadurecer e resgatar alguns princípios da economia popular solidária e os desafios por ela encontrados no cotidiano dos empreendimentos solidários. Foram realizadas duas oficinas de reciclagem.
Outra etapa foi a Legalização dos grupos – três das comunidades incubadas passaram pelo processo inicial de legalização, ou seja, construção do seu estatuto social. Para isso foram realizados encontros semanais, nos quais eram tecidos e discutidos os princípios que deveriam reger e nortear as associações que estavam sendo gestadas, sendo elas: a Associação dos Pescadores Artesanais e Aquicultores da Praia do Cassino – APAAC, Associação dos Pescadores Artesanais da Coréia – Ilha dos Marinheiros – APACIM e Associação dos Pescadores Artesanais da Ilha da Torotama – APEARTE.
Da mesma forma, houve o acompanhamento jurídico de uma associação (APEPEJA/ Jaguarão) e de uma cooperativa (COOPANORTE/São José do Norte) em suas legalizações, processos que se encontravam pendentes já na edição do antigo projeto realizado no ano de 2008.
Uma etapa bastante complexa e rica do ponto de vista das discussões e debates foram os encontros regionais. Na ocasião foi realizado o primeiro encontro regional dos pescadores artesanais da Rede naquela edição do projeto, no qual participaram ativamente da mesa redonda “As perspectivas da pesca artesanal no sul do Rio Grande do Sul” onde foram expostas as principais dificuldades encontradas nesse setor produtivo tais como a fiscalização das atividades laborais (sejam sanitárias ou ambientais) quanto a comercialização do produto final.
Nesse mesmo evento foi assinado o convênio para a conclusão do entreposto da Associação de Pescadores da Vila São Miguel (APESMI) um dos empreendimentos a ser assessorado, com financiamento particular do MPA.
Além da realização do mencionado acontecimento, foram realizados cinco encontros regionais ao longo do ano de 2009, tendo por dinâmica de organização promover encontros mensais sendo sempre privilegiado um município participante do projeto. Este fato se deu devido à constatação de que apesar da Rede de Comercialização Solidária existir há quatro anos, a maioria de seus atores ainda não conheciam de forma mais próxima seus parceiros e a realidade de suas respectivas comunidades – dado levantado durante o diagnóstico participativo e que está ligado também à dificuldade que os grupos que constituem a “rede solidária” têm de efetivar uma dinâmica mais concreta nas relações de comercialização justa e solidária de seu pescado, contribuindo assim para a presença de certa informalidade na cadeia produtiva.
Cabe destacar que atualmente a relação dos pescadores artesanais organizados na Rede e os pescadores organizados em Colônias é conflituosa. As atuais gestões da Prefeitura Municipal de Rio Grande e Pelotas se relacionam com as lideranças dos grupos de Colônias de forma assistencialista e os pescadores organizados na Rede denunciam tais práticas. Eis a raiz do conflito: a busca pelo protagonismo dos pescadores.
Por outro lado, nos municípios de Arroio Grande, Santa Vitória do Palmar e São Lourenço do Sul, a relação dos pescadores artesanais com os respectivos governos municipais é menos conflituosa dada a conquista de espaços de representação e fóruns de discussão que resultaram na realização de políticas para proteção da pesca artesanal, desenvolvidas a contento e com alto índice de participação popular.
Os casos dos municípios de São José do Norte e de Jaguarão são mais complexos: no primeiro, o representante do município já declarou que a Agricultura e a Pesca Artesanal não são prioridades em seu governo – e as consequências do ato foram nos grupos quanto à dificuldade de organização; em Jaguarão existem conflitos históricos entre os representantes dos pescadores artesanais e o atual prefeito, eleito para primeiro mandato. As referidas divergências têm dificultado a organização dos grupos, e a Universidade, por diversas vezes, foi obrigada a mediar conflitos entre os atores sociais.
Este mesmo grupo fará parte da amostra utilizada para realização do estudo de caso que ilustrará o impasse debatido no presente artigo. Serão escolhidas dentre os grupos incubados, pessoas que se legitimem enquanto representantes dos mesmos, divididos por locais de pesca (água doce e água salgada – região estuarina, água doce e região oceânica), associações e cooperativas, lideranças que participam da Rede e que não participam.
4 A OBSERVAÇÃO PRÁTICA DA POTENCIALIDADE DO COOPERATIVISMO POPULAR: IDENTIDADE, RECONHECIMENTO SOCIAL E A CONFIGURAÇÃO DO NOVO NO PROCESSO DIALÉTICO DE ORGANIZAÇÃO
O fio condutor dos aspectos teóricos do presente artigo é o processo de individualização do homem pelo trabalho, o trabalho como sua propriedade e possibilidade de venda – enquanto propriedade trocada no mercado – na firma ou na relação de trabalho na organização onde o trabalho se realiza.
Ainda, a firma, ou no nosso caso, a cooperativa, a partir de contrato regulado pelo Estado, apresenta os limites da exploração ou realização do trabalho. Já o Estado é o espaço em que se pretende a possibilidade de participação popular pelos pescadores artesanais. Esta última afirmação é fundamental para que aconteça a implementação, por parte do Estado, de políticas públicas que sirvam à realidade pesqueira que desenvolva a comunidade onde a vida viável é possível e não miserável ou pobre.
Na organização da Rede de Comercialização do Pescado na região sul do Rio Grande do Sul, percebeu-se que o combate ao atravessador era o principal foco da luta dos trabalhadores organizados em Cooperativas.
Essa frente de ação, que fundamenta o objeto dessa parcela do movimento social visa duas frentes: a superação da propriedade privada dos bens de produção (já que somente através do meio de produção os trabalhadores atingem a possibilidade de autonomia) com a possibilidade de produção sem a intermediação e o combate a atividade pesqueira informal.
O trabalho informal a serviço dos atravessadores – já que toda a atividade proibida pelo Estado e, por consequência, realizada de acordo com a Lei pelos pescadores artesanais resta custosa não consegue competir com o informal – é mantido com a disposição de postos precários de trabalho, na clandestinidade, sem qualquer proteção ao meio ambiente (pesca predatória é proibida nas épocas do defeso).
Na indústria, atualmente os trabalhadores produzem em condições insalubres e perigosas, do ponto de vista dos locais inapropriados até mesmo na falta de qualquer preocupação com a higiene, segurança e saúde do trabalhador, em decorrência da crise no setor, gradualmente agravada pela degradação ambiental que diminui a matéria-prima, qual seja, o pescado.
Os cooperados da Associação de Pescadores da Vila São Miguel – APESMI passaram por problemas como os acima mencionados, bem como os pescadores da Associação dos Pescadores Artesanais Coréia Ilha dos Marinheiros – APACIM, onde o mesmo problema se evidencia.
Os efeitos da falta de fiscalização ambiental, por parte do IBAMA, especialmente no Oceano, afetam os pescadores da praia do Hermenegildo e os Pescadores da Praia do Cassino.
Na data de 27.11.2009 ocorreu no Município de Rio Grande, uma Audiência Pública na Câmara Municipal, sobre a pesca artesanal na região e as políticas públicas destinadas a ela. O projeto foi proposto por Vereador do PSDB, que compunha a base do Prefeito Municipal, atualmente filiado ao PMDB. Sabe-se que no Estado do Rio Grande do Sul, embora o PMDB seja aliado do Governo Federal no âmbito Federal, isso não se traduz em aliança no referido Estado e, portanto, a audiência pública tinha o claro intuito de atingir as lideranças petistas da região, especialmente aquelas com cargos junto ao Governo Federal já que o Secretario Executivo do Ministério da Pesca é da região de Rio Grande.
Naquela oportunidade, todos os pescadores artesanais pertencentes à Rede, bem como as lideranças da pesca artesanais, estavam presentes na audiência pública, bem como algumas lideranças próximas ao prefeito e a lideranças do PMDB, atrelados atualmente aos industriais e especialmente os empresários do Porto.
Na audiência foram debatidas ações políticas dos Governos anteriores e as políticas do Governo Lula que, embora nossa tese possa apontar seus limites no que tange o Cooperativismo e Economia Solidária, se reconhecem suas diferenças em relação às políticas sociais anteriores.
Das manifestações realizadas mais de 20 intervenções foram dos pescadores artesanais. O que acabou sendo discutido foi o alcance da política local, ineficiência da Secretaria Municipal da Pesca e ainda, a afirmação de diversos compromissos do Governo Federal. Contudo, daquilo que interessa ao presente trabalho, a articulação dos pescadores foi no sentido de unificar o discurso e a direção da crítica, deixando para debater problemas do Governo Federal com representantes do próprio Governo Federal e não em Audiência Pública cuja finalidade era a de atingir politicamente o Governo Federal, por simplesmente não ser vinculado ao PSDB ou PMDB locais.
A consciência dos pescadores é que mereceu ser evidenciada e registrada.
Dentre os argumentos de César Augusto Ávila Martins está o fato dos pescadores artesanais, por estratégias de sua própria organização, a margem do Estado, sobreverem as diversas investidas da Economia, desde a execução de política pública na década de 70 para aquisição de embarcações maiores, que aumentassem a produtividade dos mesmos, mas que não teve adesão dos pescadores (somente 6% dos mesmos aderiram ao programa) até mesmo a relação estranha, de amor e ódio, que estabelece com o atravessador, inclusive produzindo novos atravessadores e se reproduzindo nos mesmos porque é comum pescador artesanal virar atravessador e vice-versa, em tempos de crise, devido a dependência pessoal de ambos.
Outro argumento do autor em relação à manutenção e sobrevivência da atividade da pesca artesanal é a possibilidade de membros de uma mesma família ser pescador e agricultor ao mesmo tempo, ou exercer agricultura nas próprias pequenas propriedades, ainda que para subsistência, ou mesmo para pequeno comércio.
Ainda, a realidade dos filhos dos pescadores serem trabalhadores assalariados ou embarcados assalariados (pescadores profissionais) e receberem salários para compor a renda familiar. Assim, se mantém a atividade mesmo nas crises.
Axel Honneth defende a recuperação de elementos da teoria hegeliana, especialmente a questão da ética nas organizações sociais, naquilo que denominou gramática moral das relações sociais, elemento essencial para luta pelo reconhecimento das coletividades. Esses elementos são o amor ou afeto (especialmente no que tange as relações familiares onde pela primeira vez um ser humano é reconhecido), o direito (nas convenções estabelecidas e na medida em que os sujeitos conquistam direitos e estes direitos são efetivamente garantidos em políticas públicas) e a solidariedade (em especial no momento em que o direito se torna eficaz, quando realmente respeitado e utilizado pela sociedade)[10].
Na pesca artesanal as relações familiares são muito importantes devido aos valores que se passam na reprodução da referida atividade, fato que pode ser observado pela capilaridade que a pastoral da pesca exerce no movimento de pescadores no Brasil.
Entretanto, para além do debate sobre os limites da organização de pescadores em cooperativas e associações, a construção da Rede de Comercialização de Pescado, sob o ponto de vista da organização política dos pescadores, sem dúvida é um grande ponto de avanço para conscientização e formação da identidade dos pescadores artesanais.
A possibilidade de discutir seus problemas, de ser ouvido junto aos técnicos da Universidade, debater seus problemas na condição de ator, ao lado dos professores, alunos e técnicos, foi um dos principais pontos positivos da experiência na atividade de extensão e pesquisa para produção da tese, que nas palavras de Boaventura de Sousa Santos, contribui para o não desperdício da experiência.
Ainda, pode ser realizada uma ilustração através de relato sobre as reuniões do projeto Rede.
As reuniões eram sempre acompanhadas de debates acalorados e sempre com duríssimas colocações, de forma que sempre eram muito tensas. Sob o ponto de vista da conscientização, muito proveitosas para os pescadores e assessores do projeto.
Resultavam, na conscientização dos técnicos, professores e bolsistas, desde a condição dos pescadores e da cultura popular que possuem até mesmo do que conhecem em relação à natureza, as cheias, vazantes, cultivos, marés, espécies de peixes (não precisam mais do que um olhar, de longe, pelo olfato, para dizerem de qual espécie se trata).
Os fatos que merecem maiores registros, sob o ponto de vista da conscientização da condição dos próprios pescadores são: conhecimento de todos os problemas ambientais que afetam suas atividades; alinhamento as principais bandeiras de lutas dos movimentos ambientais tais como o fim da pesca de arrasto, da necessidade do período de defeso, dos graves danos que a orla portuária causa ao ambiente; entendimento, sob o ponto de vista da cadeia produtiva, do lugar em que se encontram e o que devem fazer para sair da condição de explorados; condição política do Município e ineficácia das ações governamentais locais não se iludindo com as pequenas contribuições da Secretaria Municipal de Pesca; consciência da necessidade técnica de acompanhamento das suas atividades, especialmente da EMATER que na atual gestão – Governo do PSDB de Ieda Crusius – abandonou a pesca artesanal.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O artigo pretendeu abordar a organização da Rede de Comercialização de Pescado entre comunidades e pequenos grupos comunitários, cooperativas e associações a partir de uma metodologia que compreende a análise da realidade, reflexão teórica sobre a ilustração apresentada e uma proposta de intervenção a partir dos problemas e potencialidades apreciados, nos termos da pesquisa-ação.
Neste sentido, as considerações finais caminham para a possibilidade de reflexões jurídicas e econômicas que estejam baseadas no real concreto da organização popular pesqueira e ribeirinha.
A Universidade Federal do Rio Grande, através da Faculdade de Direito e do Núcleo de Desenvolvimento Social e Econômico desenvolve a atividade de extensão sob três eixos fundamentais: assessoria popular, busca pela cidadania e atendimento jurídico.
Assessoria Popular considerando a comunidade pesqueira artesanal, comunidade principal a que se destinam as políticas públicas financiadas pelo Ministério da Pesca e Aquicultura e Ministério da Educação e executadas pela Universidade, uma cultura que pertence ao patrimônio histórico e cultural do Município de Rio Grande/RS, nos termos da Constituição Federal e do Plano Diretor do referido Município, ou seja, a pesca e o pescador artesanal representam força e tradição na comunidade, capazes de representar o cotidiano típico dos que sobrevivem da atividade pesqueira.
O trabalho dos acadêmicos e professores da AJUPESCA – Assessoria Jurídica e Popular para Pesca e Pescadores Artesanais parte do respeito ao conhecimento tradicional e interferência na medida das necessidades desde que não interfira na autonomia da comunidade naquilo que representa a vida e o trabalho neste setor produtivo.
A busca pela cidadania marca uma atividade que visa a emancipação social e humana – os primeiros nomes do chamado comunismo – de forma que cada vez mais os atendidos sejam esclarecidos sobre seus direitos e possam agir com autonomia ante os seus problemas.
O cidadão esclarecido, assim se torna o pescador atendido, recorre a Justiça e exerce seus direitos conhecendo cada vez mais o acesso e a busca pela garantia dos seus interesses difusos e coletivos.
O atendimento jurídico demonstra a preocupação com a ação no sentido de não se esgotar no Judiciário e habilitar os pescadores a buscar a resolução de seus conflitos no âmbito social, político, administrativo e também jurídico, não se resumindo ao conflito oriundo de ações judiciais, mas no sentido de mediar relações cotidianas na medida em que se aumenta a capacidade de compreensão do pescador de seus problemas e modos de resolução quando encontra o caminho do acesso à Justiça e aos seus direitos individuais, sociais e culturais, coletivos e difusos.
6 REFERÊNCIAS
ALMADA, Aléssio. Análise benefício-custo: uma contribuição à Pesca Artesanal no extremo Sul do Brasil – Rio Grande/RS. Apresentação de trabalho no I Seminário Internacional “Cidade Sustentável e o Desenvolvimento Humano na América Latina: temas, pesquisas e realizações. Disponível em: <http://www.sober.org.br/palestra/2/929.pdf>.
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FARIA, José Henrique de; MENEGHETTI, Francis Kanashiro. A reificação dos homens do mar. Trabalho apresentado no V Encontro de Estudos Organizacionais da ANPAD. Belo Horizonte: ENEO, 2008.
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HONNETH, Axel. A luta pelo reconhecimento: gramática moral dos conflitos sociais. Tradução de Kampf um Anerkennung por Luiz Repa. São Paulo: Editora 34, 2003.
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SILVA, Ederson. Portifólio de apresentação dos produtos vendidos no mercado municipal de Porto Alegre em 2008.
Notas de Rodapé
[1] O presente título é uma referência ao método do chamado materialismo histórico de Karl Marx que analisa os conteúdos que podem ser objeto de análise das Ciências Sociais a partir do real concreto nos termos das reflexões constantes no Prefácio da Contribuição Crítica à Economia Política bem como os estudos que deram origem ao Capital, do mesmo autor.
[2] Doutor em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná, área de concentração em Direito Humanos, Democracia e Desenvolvimento, linha de pesquisa Direito Cooperativo e Economia Solidária. É professor de Direito do Trabalho e Processo da Universidade Federal do Paraná. É Professor Colaborador do Programa de Pós-graduação da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM. É Membro dos Núcleos de Direito Cooperativo e Cidadania e “Trabalho Vivo” da Universidade Federal do Paraná.
[3] Mestranda em Direito Empresarial e Cidadania pelo Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA. Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR. Bacharela em Direito pela Universidade Tuiuti do Paraná – UTP. É Professora Universitária e Advogada.
[4] O presente artigo é uma reflexão posterior a pesquisa de doutoramento do primeiro autor com considerações reflexivas da segunda autora após a continuidade dos trabalhos elaborados nos Programas de Mestrado do Centro Franciscano – FAE e Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania – UNICURITIBA, programas em que o primeiro autor já foi docente e a segunda autora é mestranda.
[5] Os Municípios que compõem a região Sul do Rio Grande do Sul, no entorno do complexo lagunar dos Patos/Mirim são Arroio Grande, Jaguarão, Pelotas, Rio Grande, Santa Vitória do Palmar, São José do Norte e São Lourenço do Sul.
[6] NIEDERLE, Paulo André; GRISA, Catia. Transformações sócio-produtivas na pesca artesanal no Estuário da Lagoa dos Patos. Revista Eletrônica do Mestrado de Educação Ambiental. Universidade Federal de Rio Grande, v. 16, jan./jul. 2006.
[7] NIEDERLE, Paulo André; GRISA, Catia. Idem, p. 93.
[8] Importante salientar que neste período, especialmente no Governo Castello Branco, ocorre uma união das correntes do pensamento desenvolvimentista à direita, qualificadas como corrente neoliberal e correntes desenvolvimentista do setor privado e do setor público não nacionalista, que implementam as referidas medidas. Cabe ressalvar que de outro lado, as correntes desenvolvimentistas à esquerda também se unem.
[9] O ato de filetear é cortar os pedaços de peixe em filés, e por isso a expressão sala de filetagem, uma parte do entreposto em que os pescadores artesanais realizam a atividade, exercida por trabalhadores tarefereiros, que recebem, por tarefa realizada (quilos de peixe filetados ou “filetiados”, ou, às vezes, por dia trabalhado.
[10] HONNETH, Axel. A luta pelo reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. Tradução de Kampf um Anerkennung por Luiz Repa. São Paulo: Editora 34, 2003.