Aspectos Jurídicos dos Protestos Públicos no Brasil

LEGAL ASPECTS OF PUBLIC PROTESTS IN BRAZIL

José Carlos Buzanello[1]

Resumo: O Brasil está inovando na atividade política por meio dos protestos públicos, no qual multidões de pessoas tomam ruas e prédios, demandando questões ao Estado e à própria sociedade. Este fenômeno, ainda não está explicado suficientemente pelos pesquisadores. Estes protestos são legitimados pelo sistema constitucional como expressão do pluralismo político do Estado Democrático de Direito, contudo nem sempre são pacíficos. Quando estes movimentos descambam para a violência e com incidentes gravosos contra pessoas e bens públicos e privados, questiona-se, quem responde juridicamente por esses danos? O Estado, a sociedade, a entidade responsável pelo evento ou individualmente cada agente causador do dano? Essas questões serão analisadas a luz das teorias da responsabilidade do Estado no regime constitucional vigente, pois a fundamentação depende da análise histórica dos institutos jurídicos e das práticas que envolvem esses fatos. Diante desse complexo problema político-jurídico, até onde o Estado é responsável diante dos incidentes gravosos, quais as atenuante ou exclusões na sua obrigação de indenizar. Tudo indica que a solução mais adequada juridicamente ainda está na análise e na interpretação do caso concreto.

Palavras-chave: Responsabilidade civil do Estado. Fatos multitudinários. Protestos públicos. Direito de resistência

Abstract: Brazil is innovating in the political activity through public protests, in which crowds of people take the streets and buildings, demanding questions to the State and to society itself. This phenomenon is not sufficiently explained by the researchers. These protests are legitimized by the constitutional system as an expression of political pluralism of law democratic state, yet are not always peaceful. When these movements slide into violence and grievous incidents against people and public and private property, it questions, who answers legally for such damage? The state, society, the entity responsible for the event or individually each agent causing the damage? These issues will be analyzed in light of the theories of State responsibility in the current constitutional regime, as the foundation depends on the historical analysis of legal institutions and practices involving these facts. Given this complex political-legal problem, as far as the state is responsible to the grievous incidents, which extenuating or exclusions in their obligation to indemnify. It seems that the best solution is still legally in the analysis and interpretation of the case.

Keywords: Liability of the State. Multitudinous facts. Public protests. Right of revolution.

1 INTRODUÇÃO

O Brasil passa por transformações na sua base social. Se há, de um lado, maiores facilidades no acesso aos bens materiais e melhor distribuição de renda na sociedade, de outro lado, fica evidente a crise cultural de valores da sociedade e crise na organização institucional do Estado. Grassam conflitos entre os poderes instituídos e agentes públicos, o alargamento da violência em todos os sentidos e os riscos a que está submetida cada pessoa ou grupo social. Parece-nos que perdemos a noção de “responsabilidade social” e a clareza dos valores morais, onde só há uma pauta forte de reivindicações de direitos e de poucos deveres, de pessimismo exagerado, que nos lembra se estamos diante de um problema político-cultural não resolvido: civilização versus barbárie.

Dentro desse processo de mudança social, o Brasil está conhecendo novas formas de protestos públicos, que congregam multidões interconectadas pelas redes técnico-sociais. Trata-se de uma inovação política num dinamismo sem precedente relacionado às ciências (computador/internet) e às artes (plástica do evento). Nenhum partido ou associação consegue ter essa capacidade de grandes mobilizações sociais, pois tornaram-se apenas domínio de grupos de interesse. Os protestos são uma reação espontânea de multidões de pessoas, contra ou a favor de determinado fato para que suas reivindicações sejam ouvidas, ou uma tentativa de influenciar a política do governo ou opinião pública. Esses protestos públicos se apresentam por meio de marchas, piquetes, passeatas, greves, quebra-quebra, uso de bombas, interrupção de tráfego, nudez pública, gestos obscenos, autoimolação, greve de fome, ocupação de prédios e outras formas de contracultura.

Nos interessa analisar apenas quando os movimentos sociais descambam para a violência e com incidentes gravosos contra pessoas e danos de bens públicos e privados. Estes protestos no interior dos movimentos sociais, ao mesmo tempo, em que apresentam um revigoramento do sistema democrático plural, apresentam em paralelo com problemas relacionados à violência contra a vida de pessoas e o patrimônio público e privado.

Esses fatos violentos, que discrepam dos movimentos sociais, denomina-se fato multitudinário, objeto deste estudo. Dois elementos caracterizam teoricamente os fatos multitudinários: 1) ato de multidão; 2) conduta violenta contra pessoas e danoso ao patrimônio público ou privado. Compreende-se que estas características de um caso típico de “fatos multitudinários”, estejam presentes no interior dos protestos públicos, pois os limites dos direitos coletivos constitucionais de reunião por descambar para atos atentatórios às pessoas, ao patrimônio público, à propriedade privada, como os saques e as depredações.

Em regra, os fatos multitudinários se distinguem da simples interdição de rua para comemorações de jogos e ou para manifestações em geral. Esses fatos sociais têm repercussão jurídica de forma distinta, pois em tese, a interdição de rua sem prévia comunicação às autoridades municipais causa um dano difuso de mobilidade urbana, ofendendo a liberdade de locomoção. Já nos movimentos espontâneos e com baixa lideranças, não se sabe a priori como começa e termina o próprio evento, pois não se conhece a dinâmica do evento, a sua pauta de reivindicações, por razão é considerado fenômeno social.

Nesses casos, havendo danos pessoais ou materiais, o sistema constitucional autoriza a reparação civil e criminal. O problema jurídico é saber a quem se imputa a responsabilidade por esses danos? Quem responde, o Estado, a sociedade civil, a pessoa física ou a pessoa jurídica responsável pelo evento ou individualmente cada agente causador do dano? Todos ou apenas os civilmente identificados? Como aferir o tamanho da culpa de cada membro ou como individualizar a reparação dos valores do dano? Essas questões teóricas serão analisadas no bojo da teoria da responsabilidade do Estado, pois a sua fundamentação depende da análise histórica dos institutos jurídicos e das práticas que envolvem esses fatos.

Não obstante a evolução histórica da responsabilidade civil do Estado, não há ainda uma legislação específica que regule a responsabilização do Poder Público pelos danos decorrentes de fatos multitudinários, que diferencia o Brasil de outros países que já possuem legislação específica, como a Argentina, em virtude dos piqueteiros[2].

2 CONTEXTO DOS PROTESTOS PÚBLICOS

Os protestos públicos no Brasil iniciados com força no ano de 2013, para contestar os aumentos nas tarifas de transporte público. Os protestos públicos geraram grande repercussão nacional e internacional, que ganharam forte apoio popular, levando a aprovação de grande parte da população. Esses atos rapidamente começaram a se proliferar em diversas cidades do Brasil passando a abranger uma grande variedade de temas, como os gastos públicos, a má qualidade dos serviços públicos e a indignação com a corrupção dos políticos e empresários, mobilizações tanto pelo impeachment da Presidente Dilma Rousseff, como também pela sua permanência no cargo presidencial.

Onde está a fonte dessa combustão? Primeiro, a sociedade de classes não é mais organizada pela polarização entre burguesia e operários. Temos, hoje, novos sujeitos sociais originados da inclusão social de milhões de brasileiros extremamente pobres que passaram a ser visíveis e estão na arena pública formando uma “nova classe social de mais de 35 milhões de incluídos”. Houve sensível êxito econômico com o incremento de nova classe de consumidores, mas sem o correspondente êxito cultural de cidadania cívica. De qualquer forma, houve uma mudança na paisagem social do país, pois esses mais pobres ganharam visibilidade e estão mais presentes na seara pública, querem mais do que a bolsa família. Demandam mais ao Estado, mas o sistema político-econômico e orçamentário têm limites em conceder novos ganhos e novos direitos. Parte da combustão desses conflitos são desse novo contingente social sobre o aparelho de Estado, que quer mais renda e melhor serviço público e qualidade de vida. Esta mudança gerou no Brasil um novo tipo de movimento em que o conflito não é mais de classe contra classe social, no seu sentido tradicional. Agora temos um militante mais conjuntural com reivindicações pontuais, exceto alguns grupos que “pregam o caos”. Surge o conflito das maiorias com as minorias e também a inversão de tudo isso, a “ditadura das minorias”, fundado no direito à diferença. Os jovens querem ver e ser vistos, para isso frequentam o Shopping Center, como paraíso do consumo, como no caso dos rolezinhos[3].

No decorrer dos protestos públicos, surge uma série de reivindicações políticas, econômicas e sociais heterogêneas, reflexo do desejo de seus participantes de mudanças no modelo político e econômico. Os políticos viram-se expostos como mentirosos e corruptos. Governos denunciados, na maioria da vezes, por esquemas de corrupção. Os banqueiros como os “sanguessugas” da sociedade, alvos de desprezo universal. A mídia, principalmente a televisão tornou-se fonte de manipulação. A total descrença e a desconfiança no sistema social, político e econômico turbinaram as consciências individuais e coletivas. Os movimentos sociais organizados por setores específicos, como os sem-terra, sem-teto, feministas, negros sempre denunciaram a violação de seus direitos pelo governo.

Essas manifestações de manifestações nas cidades brasileiras em 2013 possuem características próprias, diferentes dos clássicos eventos históricos, pois, misturam atos de desobediência civil com atos criminosos, tais como: 1) são organizadas pelas mídias eletrônicas; 2) sem a presença ostensiva de liderança, próximo do modelo de organização anarquista[4]; 3) qualificam-se por uma ação pública de massa e simbólica, própria da desobediência civil[5]; 4) manifesta-se de forma coletiva e pela ação “violenta” e “não violenta”, conforme o caso, com danos materiais e pessoais; 5) realizam num contexto democrático, de modo legítimo, que permite aos seus manifestantes adotar diversos comportamentos, seja por consciência política, responsabilidade social ou por necessidade material; 6) não acreditam no processo político-eleitoral e nas representações governamentais, sindicais; 7) são pautadas por discurso genérico de reivindicação, centrado na questão da tarifa de ônibus, na legitimidade das despesas da copa do mundo e contra a corrupção; 8) querem demonstrar a injustiça do ato governamental do aumento da passagem de ônibus etc.

O que aproxima a revolta dessa juventude é a grande acessibilidade à informação e às mídias sociais, é o chamado “ativismo do sofá”. No entanto, ainda não está claro se o movimento seria majoritariamente despolitização ou unipartidário, que os analistas descrevem como protestos públicos “anti-institucional”, “antipolítica” ou “mal-estar civilizatório”. Outros grupos defendem a presença de partidos e criticam o teor antipartidário existente. De todo modo, está claro que há um déficit na democracia representativa e de governança.

A história registra grandes protestos que culminaram com a desobediência civil, como nos casos da Índia, liderado por Mahatma Gandhi, nos Estados Unidos, por Martin Luther King e semelhante foi também a manifestação de protestos públicos contra a guerra do Vietnã, na década de 1960. Também os protestos de Maio de 1968, em Paris, que iniciou com uma greve geral e rapidamente adquiriu significado revolucionário; Protesto na Praça da Paz Celestial, na China, em 1989, que consistiu em uma série de protestos públicos lideradas por estudantes por democracia e a revolta de jovens dos subúrbios da França, em 2005, que constituiu-se de episódios de violência urbana que começaram na periferia.

O fenômeno desses protestos contemporâneos seria, segundo a classificação de Albertoni (1977), movimentos sociais agregados, pois não formam laços de identidade e estão mais preocupados em assegurar direitos sociais existentes ou a serem adquiridos para suas clientelas, sendo reivindicatórios e não revolucionários, ao mesmo tempo em que recusam a política de cooperação entre as agências estatais e as associações. Usam as redes sociais em diferentes mídias, para buscar seus intentos, posto que seus integrantes sabem que o “modelo de vida e de trabalho na era da globalização, exige que as pessoas tenham mais habilidades comunicativas do que acervos de conhecimento ou grandes experiências anteriores, com o domínio de certas técnicas ou saberes especializados.

Esses protestos públicos alteram completamente sua forma na ordem internacional e nacional, com grandes possibilidades de serem assimétricos e irregulares. Num determinado período histórico, surge uma região ou um setor com força e vitalidade e com determinadas demandas, para depois aparecer em outras regiões e com outras pautas. Castells (2013) diz que os protestos populares que vêm ocorrendo no Brasil desde junho de 2013, têm muitas similaridades com as que surgiram ao redor do mundo. Sobre esse aspecto, o autor observou que, apesar dos contextos distintos, estes movimentos têm mais semelhanças do que diferenças. Para ele, há um padrão em todas essas ações, orientado para a ocupação dos espaços públicos, como é o caso da materialização da revolta com interação constante entre o real e o virtual.

O comportamento coletivo se distingue dos movimentos sociais pelo grau e pelo tipo de mudanças que pretendem provocar no sistema político e pelos valores e nível de integração que lhe são intrínsecos (BOBBIO, 1999). Toda multidão opera com um elemento psíquico integrador de comportamento coletivo, que pode assumir variadas formas de comportamento, desde um padrão comum de profundo respeito mútuo e silencioso, para o mais grave distúrbio de rua, pânico e terror.

Outro dado importante a se registrar: na década de 1990, ocorre com a volta dos movimentos sociais ao cenário político internacional, como forma de pressão ou manifestação de sua vontade. As marchas tornaram-se parte da agenda comum de grupos organizados e as estruturas institucionais reformularam a arquitetura dos símbolos e espaços de poder, para se ter segurança em caso de eventuais distúrbios (GOHN, 1997, p. 339).

Os fatos violentos produzidos pelas multidões nada mais são do que a liberação do irracional e do inconsciente de cada indivíduo naquele momento. Sterman (1992, p. 10) dá um enfoque jurídico ao tema e conclui que “O movimento multitudinário é um monstro sem cabeça, porque dentro do movimento multitudinário o indivíduo se despersonaliza e acaba agindo de um modo que contraria a sua conduta isolada”.

Os movimentos de multidão se apresentam de várias maneiras, diferenciando-se quanto à ação (pacífica ou violenta), ao tamanho (grande ou médio), a intensidade (mais ou menos força nas manifestações), aos propósitos das reivindicações (a favor ou contra o governo, determinada pessoa ou objeto). Podem ser espontâneos e possuem certa organização de comando, como os movimentos sociais, sindicatos e outros que se autodenominam anarquistas anônimos, grupo de mascarados Black Blocks, os mais conhecidos[6].

A demonstração da confusão entre valores defendidos pelos manifestantes no Brasil também se apresentou no debate público. Surgem protestos públicos violentos, que reivindicam uma mudança na política, desde a morte aos políticos, passando por símbolos comunistas, anarquistas até as saudações hitleristas. Nas ruas, a depredação foi confundida como civismo; direito de manifestação como direito de quebra-quebra; existindo apenas direitos, de modo que deveres públicos não existem nas manifestações citadas. Na internet acusações ou pirataria são confundidos como liberdade ou democratização da cultura; a polícia é identificada apenas como repressão às liberdades públicas. De imposturas em imposturas, de ambos os lados, chega-se ao limite da situação em que se esvaziam os movimentos sociais, devido ao excesso de violência, reprovada pela maioria da população. A sociedade aprova as manifestações, mas não aprova a violência nos protestos públicos.

Tudo isso é muito vivo, latejante, em formação. Quase todos esses protestos públicos reivindicam uma mudança na política e nos valores da sociedade, pois os manifestantes consideram que os governantes e partidos políticos não os representam, nem tomam medidas que os beneficiem. Assim como no processo político-constitucional de disputa pelo poder, que se armou uma “guerra das elites” muito bem montada num complô que inviabilizou o governo Dilma, incluindo políticos, juízes, mídias, empresários bancos e interesses difusos.

Aliada a esta combustão social está a Operação Lava Jato[7], as manobras da mídia, os empresários e os bancos querendo derrubar o Governo Dilma Rousseff. A população também se divide neste processo político do impeachment. “Em tempos de ideologização extrema em um país complexo como o Brasil, o instituto do impeachment aparece como um fantasma na vida política” (STRECK, 2016, p. 221). O processo pautou-se nos crimes de responsabilidade de ordem orçamentária, na crise econômica e política, aliados com os elementos negativos de um governo mal avaliado, com corrupção, inflação, desemprego, em doses diárias de pessimismo e sensação de final dos tempos. Confundiram um governo fraco e ruim com o processo impeachment, pois só é possível retirar o governante num governo parlamentarista. A televisão pautou um mal-estar social que não correspondia com os fatos da realidade. Com o afastamento da Presidente Dilma “tudo ficou melhor na televisão”. A ordem jurídica foi sequestrada pela ordem política e esta pela ordem moral de pulsão antidemocrática. “Quando tudo se ideologiza, não resta nada mais para um constitucionalista. O que dizer, quando juristas pregam contra a Constituição, dizendo que os fatos valem mais do que a Carta Magna?” (STRECK, p. 227). Se o processo impeachment é político, para que serve o jurídico? Este processo não resiste a análise criteriosa de mérito jurídico. Se for procedente, poucos governantes ficarão no cargo. Golpe é golpe, como diz os partidários da presidenta, para o arrepio do Vice-Presidente Michel Temer[8]. A moral pode ignorar o jurídico, assim como um juiz fundamentar a condenação do réu apenas por razões políticas? Qualquer destas respostas fragilizam nossa democracia, antes mesmo da resposta, pela pergunta, que não deveria estar posta.

2 RESPONSABILIDADE DO ESTADO

Quanto ao objeto jurídico, o fenômeno dos protestos públicos, podem ser lícitos ou ilícitos. Os que se reúnem com fins lícitos, não proibidos e amparados pelo direito constitucional de reunião, fortalecem o processo democrático, mas, de outro lado, estão tipificados como crimes constitucionais (art. 5o, XLIV, CF), os atos ilícitos como a ação de grupos armados, civis ou militares contra a ordem constitucional e o Estado democrático. O Direito de resistência é lícito e também tem guarida constitucional (art. 5o, § 2º, CF) e de aplicação imediata (BUZANELLO, 2014).

A idéia-força da responsabilidade do Estado é sua vinculação ao princípio da legalidade, como afirmou Canotilho (1974, p. 13), como conquista lenta mas decisiva do Estado de direito. Este instrumento de legalidade, “não apenas no sentido de assegurar a conformidade ao direito dos actos estaduais: a indenização por sacrifícios autoritariamente imposto, cumpre uma função de ineliminável no Estado de Direito Material – a realização da justiça material”.

Na esteira deste raciocínio, a responsabilidade pública é informada por princípios de direito público, apenas com pontos em comum com os princípios que informam a responsabilidade no direito privado. Já o ilícito praticado pelo particular, em tese, responde por seus atos, conforme configuração do Código Civil. Como saber previamente se o dano será aferido como de natureza de direito público ou de direito privado? Somente pode diferenciar-se após identificar o fato concreto do nexo causal e o responsável pelo dano praticado.

Na análise jurídica, o nexo de causalidade deve circunscrever-se entre a ação lesiva praticada pelos protestos e os danos que estes atos causaram, bastando apenas comprovar a ocorrência de três elementos, para ver-se atestada a responsabilidade do Estado, quais sejam: a) fato administrativo: qualquer forma de conduta atribuída ao Poder Público (culpa in eligendo: pela má escolha do agente; ou culpa in vigilando: pela má fiscalização da conduta do agente); b) dano: elemento inafastável à responsabilização, uma vez que não há porque se falar em responsabilidade sem a presença do dano; c) nexo causal: entre o fato administrativo e o dano sofrido haverá de ter uma relação causal, bastando ao lesado, assim, a demonstração de que o dano sofrido adveio de uma conduta administrativa (comissiva ou omissiva; legítima ou ilegítima) (CARVALHO FILHO, 2015, p. 430). Se, diante da eclosão de tais movimentos, o Estado deixar de empregar todos os meios necessários para prevenir danos e à integridade física dos cidadãos, quando isto era possível, responderá pelos danos daí advenientes por meio do erário público.

O Brasil consagrou a imputação da responsabilidade do Estado, embasada na teoria objetiva na Constituição Federal de 1988 (art. 37, § 6º) (BRASIL, 1988) e no Código Civil de 2002 (BRASIL, 2002), asseverando que a Administração Pública, ao exercer as suas atividades, cria um risco para os administrados e potencializa uma eventual ocorrência de danos ao particular, indenizando no que couber, fundado no princípio da solidariedade social e da igualdade de encargos. Essa responsabilidade extracontratual tem cunho patrimonial, pois visa à reparação de danos causados em decorrência de comportamentos comissivos e omissivos, materiais ou jurídicos, lícitos ou ilícitos, imputáveis aos agentes públicos (DI PIETRO, p. 501).

O texto constitucional colocou a matéria no Capítulo da Administração Pública, dessa forma:

Art. 37, § 6º. As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

O exame deste dispositivo revela que o constituinte estabeleceu para todas as entidades estatais e seus desmembramentos administrativos a obrigação de indenizar o dano causado a terceiros por seus agentes públicos, independentemente da prova de culpa no cometimento da lesão. O vocábulo “agente” abrange todas as pessoas incumbidas da realização de algum serviço público, em caráter permanente ou transitório. O art. 43, do Código Civil de 2002 (BRASIL, 2002), descreve o regime da responsabilidade objetiva: “As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos dos seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado direito regressivo contra os causadores dos danos, se houver, por parte destes, culpa ou dolo”.

Dentro da classificação de responsabilidade do Estado, quase assente na doutrina, além dos decorrentes de ato lícito ou ilícito, temos também os atos decorrentes de condutas comissivas ou omissivas dos agentes públicos. A primeira tem por base o princípio da igualdade de todos os administrados perante os encargos públicos; a segunda, o princípio da legalidade, segundo o qual aquele que age de maneira contrária à lei e, ao fazê-lo, causa dano a alguém, está obrigado a reparar o dano. “Ao contrário do direito privado, em que a responsabilidade exige sempre um ato ilícito (contrário à lei), no direito administrativo ela pode decorrer de atos ou comportamentos que, embora lícitos, causem a pessoas determinadas ônus maiores do que o imposto aos demais membros da coletividade” (DI PIETRO, 2014, p. 208).

Quanto às características de imputação de responsabilidade civil assente na doutrina se apresenta de forma objetiva (teoria do risco) e subjetiva (teoria da culpa). A teoria da responsabilidade civil do Estado, no caso dos fatos de depredações, relaciona-se com teorias do Risco Administrativo e do Risco Social. Se para a teoria do risco administrativo, basta demonstrar o dano e o nexo de causalidade entre o dano sofrido e a conduta do agente público para assegurar a responsabilidade estatal. Surge a polêmica sobre a natureza jurídica da responsabilidade do Estado por conduta omissiva nos casos de manifestações violentas, ou seja, por que terá que indenizar o dano que não causou? Como se mede o uso da violência estatal? Eis uma equação de difícil solução, mas que deve ser ponderada pelos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade aferidos ao caso concreto, pois, se o Estado atua com mais violência, vai ser reprovado pelos manifestantes e, se usa de forma moderada, também será condenado pela opinião pública.

Para alguns doutrinadores, a aplicação do dispositivo constitucional no que tange à responsabilidade estatal, somente é devida em casos de condutas comissivas do Estado, com aplicação, para estas, do Código Civil Brasileiro; enquanto, para outros, a responsabilidade prevista na Constituição Federal abrange as duas modalidades de condutas do Estado, pois o legislador não estabeleceu de forma expressa a qual conduta refere, cabendo entendimento como sendo comissiva ou omissiva. Esta polêmica em torno da natureza jurídica da responsabilidade estatal por conduta omissiva é pertinente, quando se estudam os fatos multitudinários e a responsabilidade do Poder Público. Se o Poder Público, quando lhe sendo possível, deixa de evitar danos causados por atitudes ilícitas praticadas por fatos multitudinários, será obrigado a indenizar o administrado lesado, uma vez que falhou no cumprimento de seu dever de proteção da segurança, da vida e da propriedade de particulares. Por outro lado, quanto ao patrimônio público, que é bem de interesse coletivo, tem o cidadão direitos sobre ele e pode exigir que este esteja em perfeito estado de conservação. Assim, se o Estado não tomou as medidas necessárias para assegurar a integridade deste bem, os cidadãos têm a faculdade de exigir do Poder Público as providências necessárias nesse sentido (ação de indenização).

Partindo-se desta premissa, nasce a ideia da solidariedade social, considerando que diante da desigualdade em que se encontra o particular perante a coletividade, todos devem concorrer para a reparação do dano por meio do erário público. A socialização do dano, associada à teoria do risco administrativo, foi o primeiro passo para o desenvolvimento da teoria do risco social, uma vez que esta não era suficiente para fundamentar a responsabilidade estatal, em todos os casos em que o Estado tinha o dever de indenizar. Tal teoria inova ao abranger os danos não imputáveis diretamente ao Poder Público, sob o argumento de que os prejuízos sofridos pelo particular não deveriam ficar sem o amparo estatal.

No caso, se o dano sobrevier de atos lícitos causados pelos agentes à serviço da Administração Pública, a indenização será devida, pois o fato administrativo é de interesse público, sendo o lesado ressarcido pelo erário. Já no caso do dano sobrevir de atos ilícitos, o fundamento dessa responsabilidade decorrerá da infringência do princípio da legalidade. Tal reparação será devida pelo Estado, ressalvada ação de regresso contra o autor da conduta ilícita, devendo este ressarcir o prejuízo. Já quanto a questão criminal, a Constituição exige que a penalidade deva ser precedida da identificação civil e da conduta típica do agente, além da individualização da culpa. Desta forma, a responsabilidade civil implicará o dever de indenizar, quer sejam os prejuízos causados aos particulares decorrentes de atos ilícitos, quer os advindos de atos lícitos.

4 PROBLEMATIZAÇÃO DO MÉRITO

1) Primeira questão: quem responde civilmente pelos fatos multitudinários? O sistema jurídico está autorizado a criminalizar os movimentos sociais ou apenas as pessoas físicas ou jurídicas causadoras de dano? A Constituição brasileira não autoriza criminalizar os movimentos sociais por ser da essência das pulsações do pluralismo político contido no Estado democrático, mas autoriza a condenação dos seus integrantes por atos ilícitos, seja pessoa física ou jurídica. Quanto às pessoas físicas, não traz nenhuma novidade, pois a Constituição autoriza a interpretação da individualização da culpa e da pena (art. 5º, XLVI, CF), e pelos atos produzidos por agentes públicos (art. 37, § 6º, CF).

Quanto à responsabilização das pessoas jurídicas, o sistema jurídico traz algumas novidades e complexidades, contudo, vencido estes aspectos, cabe essa responsabilização por fatos multitudinários, desde que alcance algumas condições, que seja cometida por pessoa autorizada ou por decisão de entidade[9].

A Constituição autoriza a responsabilidade penal das pessoas jurídicas sobre crimes ambientais e crimes de corrupção praticada pelas pessoas jurídicas. O disposto no § 3º do art. 225, CF, ganhou aplicabilidade os crimes ambientais quando foi regulamentado pela lei 9.605/1998, que no seu “Art. 3º. As pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente, conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade”. A Lei 12.846/2013 dispõe sobre a responsabilização objetiva administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira. A responsabilização da pessoa jurídica não exclui a responsabilidade individual de seus dirigentes ou administradores que participem do ato ilícito.

Num sentido mais amplo, para ampliar o sentido e o alcance, no caso dos fatos multitudinários perpetrados por pessoas jurídicas, seria uma interpretação alargada da tipicidade do art. 3º da Lei 9.605/1998, já que é possível identificar os autores, a entidade organizadora, como no caso da condenação do sindicato dos professores de São Paulo[10].

2. A segunda questão problematiza se a responsabilidade civil do Estado terá natureza objetiva ou subjetiva quanto aos fatos multitudinários. Vários doutrinadores já se manifestaram sobre o tema de diferentes formas. Alguns autores brasileiros afirmam que a responsabilidade do Estado decorrente de fatos multitudinários é subjetiva, capitaneada por Pontes de Miranda (1973), Celso Antônio Bandeira de Mello (1991), Sônia Sterman (1992) entre outros. Entendem, com poucas variações conceituais, que a responsabilidade seria subjetiva, pois dependente apenas da prova da existência de culpa, porque o dano não seria (na hipótese de omissão) causado pelo agente público, e sim por terceiro manifestante. Logo, a conduta do agente não seria causa e sim mera condição do dano. Os danos produzidos pelo fato multitudinário são encartados na hipótese de danos não causados por agentes públicos, porque a omissão da autoridade em não conter a violência é condição do dano e não causa.

Neste compasso, Hely Lopes Meirelles, ao comentar o § 6º, art. 37, da Constituição, manifestou-se que esta distingue o dano causado pelos agentes da Administração (agente público) dos danos ocasionados por atos de terceiros, ou por fenômeno da natureza, atribuindo responsabilidade objetiva à administração pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causem a terceiros. Portanto, o legislador constituinte só cobriu o risco administrativo da atuação ou inação dos agentes públicos; não responsabilizou objetivamente a Administração por atos predatórios de terceiros, nem por fenômenos naturais que causem danos aos particulares. Para a indenização destes atos e fatos estranhos a atividade administrativa, observa-se o princípio geral da culpa civil, manifestada pela imprudência, negligência ou imperícia na realização do serviço público, que causou o dano. Daí por que, a jurisprudência tem exigido a prova da culpa da Administração nos casos de depredação por multidões e de enchentes e vendavais que, superando os serviços públicos existentes, causam danos aos particulares (MEIRELLES, 2001, p. 555).

No caso de responsabilidade do Estado por omissão, esta só pode ocorrer na hipótese de culpa anônima, da organização do serviço público, que não funciona ou funciona mal. Pontuou-se a passagem da responsabilidade subjetiva por culpa, já permeada pelas presunções da mesma, e pela inversão do ônus da respectiva prova, para aquela chamada de culpa administrativa, segundo a fórmula ‘o serviço público não funcionou, funcionou mal ou o fez tardiamente’; alcançando-se, finalmente, a responsabilidade por causalidade, pela qual basta a identificação do nexo causal entre a ação ou omissão governamental, e o dano; sendo ela, porém, distinta da responsabilidade efetivamente objetiva.

Por outro lado, outros autores, dentre eles Toshio Mukai (2009), Odete Medauar (2012), Álvaro Lazzarini (1999) entendem que a responsabilidade do fato multitudinário seria sempre objetiva, desnecessária, em consequência, a prova da culpa. Apoiam-se nos fundamentos de que as obrigações, em direito, comportam causas que podem ser a lei, o contrato e o ato ilícito. A causa, nas obrigações jurídicas é todo fenômeno transcendente, capaz de alguém obrigar a outrem à exigência de uma prestação de fazer ou não fazer ou de dar. Portanto, a omissão do agente público que cause dano a outrem é causa e não condição, do que decorre da Constituição que agasalha também a responsabilidade por atos comissivos, além dos atos omissivos. Entendem que a omissão do agente é também causa, não mera condição. A causa do dano poderia então ser, indistintamente, a conduta comissiva, ou a omissiva, do agente público. Afirmam que os fatos multitudinários são exemplos típicos de responsabilidade objetiva do Estado em razão de conduta omissiva, sob a modalidade de risco administrativo.

O Estado brasileiro adota a responsabilidade objetiva, que tem por marca preponderante, o fato de que o lesado não tem necessidade de provar a existência da culpa do agente ou do serviço. A responsabilidade civil toma uma feição mais moderna e justa na medida em que a Constituição adota a teoria da responsabilidade objetiva para os casos de conduta comissiva, pois retirou a parte mais frágil da relação jurídica (lesado) os ônus de provar a culpa estatal.

A responsabilidade objetiva da Administração não exclui o abuso no exercício das funções por parte do agente público. Desde que a Administração defere ou possibilita ao seu agente a realização de certa atividade administrativa, a guarda de um bem ou o exercício do poder de polícia, assume o risco de sua execução e responde civilmente pelos danos que esse agente venha a causar injustamente a terceiros. Haverá necessidade de se individualizar o agente público, inclusive para fins de ação de regresso.

Não será o Estado penalizado com o dever de indenizar todo e qualquer ato ou fato que venha a causar prejuízo a alguma pessoa. O Estado não pode ser responsabilizado pelos chamados atos imprevisíveis, nem tão pouco por dano proveniente única e exclusivamente da vítima. Tal perspectiva encontra-se abarcada pelo texto do art. 945, do CCB que diz: “Se a vítima tiver concorrido culposamente para o evento danoso, a sua indenização será fixada tendo-se em conta a gravidade de sua culpa em confronto com a do autor do dano”.

A lesão proveniente de fato única e exclusivamente do lesado, assim como fatos exógenos ao querer do Estado, provenientes de sua imprevisibilidade afastam a responsabilização do Estado (força maior e caso fortuito). A imprevisibilidade inerente ao acaso redunda, por razoável que seja, à irresponsabilidade do Estado pelo dano provocado, justamente pelo fato deste estar fora do normal âmbito de previsibilidade fática do Estado.

3) A terceira questão analisa a natureza jurídica da responsabilidade estatal por conduta omissiva, questiona-se se é pertinente no caso dos fatos multitudinários. Assim, temos a responsabilidade do Estado por conduta omissiva, mister se faz a demonstração da culpa do agente público para que haja a responsabilidade; para outros, no entanto, tal conduta está perfeitamente amparada pela Constituição Federal, em seu art. 37, § 6º, quando se refere à teoria do risco administrativo, sendo desnecessária a prova da culpa por parte do Estado. “Não existe razão, de ordem lógica ou legal, para que se faça distinção entre as duas modalidades de conduta (comissiva ou omissiva) para o efeito de responsabilização do Estado” (GANDINI, p. 134).

O Estado, no contexto que não agiu quando deveria agir para evitar a eclosão de tais movimentos ou não obstou a sua ocorrência, foi omisso em seu dever de garantir a ordem pública, a integridade física dos cidadãos e de zelar pela propriedade particular de seus administrados, devendo, por conseguinte, reparar os danos suportados pelos particulares, os quais não concorreram para a eclosão de tais movimentos, não sendo justo que estes suportem sozinhos os prejuízos ante as garantias a eles conferidas pela Constituição.

A defesa jurídica do Estado, em regra, não aceita a tese da conduta omissiva, contexto em que não agiu quando deveria agir para evitar a eclosão da violência nos protestos públicos ou não obstou a sua ocorrência, foi omisso em seu dever de garantir a ordem pública. Por conseguinte, deve reparar os danos suportados pelos particulares, os quais não concorreram para a eclosão de tais fatos, não sendo justo que estes suportem sozinhos os prejuízos ante as garantias a eles conferidas pela Carta Magna.

A responsabilidade por conduta omissiva é a área em que o direito administrativo deve socorrer-se do direito penal. O conceito de culpabilidade, distinto do de culpa, mesmo em sentido largo; e que alberga o juízo de censura em face da reprovabilidade da conduta, e o da cognata exigibilidade de comportamento diverso. Também ao direito penal hão de recorrer àqueles ramos jurídicos, no capítulo da responsabilidade pelo risco, tal como disciplinada pelo art. 927, parágrafo único, do Código Civil: responsabilidade independentemente de culpa por atividade que implique risco.

A responsabilidade estatal decorrente de falha na prestação do serviço público será elidida, no entanto, em determinadas situações, quando não houver nexo causal entre a conduta omissiva ou comissiva do agente do Estado e o dano suportado pelo particular.

4) Quarta questão enfrenta dois questionamentos: a) a interpretação será na forma restritiva prevista na Constituição Federal (art. 37, § 6º) ou na forma aberta do Código Civil (arts. 186 e 927); b) o texto da Constituição autoriza a interpretação de que atos ou fatos não produzidos por agentes públicos, que causem danos a particulares, estejam cobertos pela responsabilidade objetiva?

Há divergência na doutrina e na jurisprudência quanto a imputação de responsabilidade por ilícitos de terceiros contra pessoas e bens, já que há uma restrição constitucional de responsabilização apenas aos agentes públicos no exercício dessa função. Tanto o art. 37, § 6º, da Constituição Federal, como o art. 43, do Código Civil estatuem a responsabilidade civil objetiva do Estado. Cumpre observar que não se trata propriamente de novidade em nosso direito, haja vista que podem ser citados dispositivos jurídicos preexistentes à própria Constituição de 1988 (art. 107 da Constituição revogada), bem como o art. 15 c/c art. 159 do Código Civil revogado.

Quanto ao Código Civil de 2002, há duas interpretações distintas, uma restrita prevista no art. 43, e outra aberta nas redações dos arts. 186 e 927, respectivamente. Recomenda-se, nesse estudo, a interpretação aberta dos arts. 186 e 927, do Código Civil, quando estipulam que:

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito ou causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

Já o art. 927, descreve:

Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

5) Quinta questão: esta construção teórica nos remete para a hermenêutica jurídica, do caso in concreto, saindo da análise genérica da responsabilidade civil. Argumenta-se, assim, que a interpretação genérica neste caso não funciona pelas especificidades dos fatos e pela multiplicidade de elementos, que o compõe.

A responsabilização Estatal pelos crimes de multidão é uma relação processual complexa, pautada pela construção doutrinária e jurisprudencial, enquanto a lei material e formal não o descrever essas situações fáticas, como no caso desses dois julgados: “Não se admite a denúncia genérica nos crimes multitudinários[11] ou os “crimes de autoria coletiva ou multitudinários, a exemplo dos crimes societários, não exigem denúncia com discriminação exaustiva de condutas. (…)[12].

Essa ausência de norma positiva que regule a matéria da responsabilidade dos fatos multitudinários se resolve dentro do sistema jurídico pela interpretação jurídica. No caso dos fatos multitudinários, não há norma regulamentadora, então, como interpretar? O sistema jurídico indica as possíveis soluções do art. 4º, da Lei de Introdução ao Direito Brasileiro (LIDB), que se deve suprir pela hermenêutica para “revelar os segredos”, com a integração dos princípios gerais de direito, a jurisprudência, a analogia e a equidade.

A equação jurídica que o juiz apenas aplica e o legislador produz o direito é relativa, já que a diferença entre os dois momentos da ação estatal é somente de grau e de método: um atende à espécie e olha para o passado, o outro a generaliza e olha para o futuro. As tarefas precípuas da atividade judicial restringem-se ao apuramento do fato, à determinação do direito e à relação material a julgar. Quanto aos fatos, cabe ao autor sustentar o pedido para se formar o convencimento do juiz com os devidos ônus da prova para fundamentar a responsabilidade civil do Estado.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os protestos públicos são uma constante no espaço democrático plural, cabendo ao Estado, dentro do possível, acautelar-se da ordem e segurança pública, como é seu dever, com a devida colaboração da sociedade. Os participantes dos fatos multitudinários quase nunca conflitam entre si, agem de forma conjunta, objetivando o mesmo fim violento contra a vida e bens. Parece-nos que o fim do protesto é apenas a violência e não qualquer outra pauta de reivindicações. Sempre esboçam um descontentamento com o aparelho de repressão do Estado (Polícia e Judiciário). Esses atos são revestidos de caráter criminal (violência) e, ao mesmo tempo provas de ação ou omissão, para serem passíveis de reparação civil.

Na sociedade brasileira pode-se fazer protestos, mas dentro das regras do jogo democrático. Em regra, aprova-se os protestos públicos, mas não se aprova o uso da violência ou o abuso do direito de manifestação. Erra juridicamente quem defende a depredação, como se houvesse um direito de quebra-quebra, confundindo com liberdade de expressão. As pessoas que perpetram essas violências argumentam que as depredações são decorrentes do uso do recurso constitucional da liberdade de expressão. A polícia é identificada apenas como repressão às liberdades públicas. De acordo com o projeto constitucional produz-se falso argumento, com o qual se deve concordar, pois de imposturas em imposturas acabamos perdendo a chance dos protestos públicos renovarem os bons hábitos políticos e administrativos do Brasil.

Nesse conjunto de fundamentações teóricas, discorda-se da doutrina que propõe soluções simples para questões complexas, embora com argumentos sérios, sejam eles para a responsabilidade objetiva ou subjetiva, ou, de conduta comissiva ou omissiva. Não se vê qualquer razão para distinguir estas situações na análise dos fatos multitudinários. No primeiro caso, será responsabilidade objetiva, porque o dano teria sido causado diretamente pelo agente estatal, não obstante no exercício do poder de polícia. Porém, no caso do agente estatal se omitir, quando deveria atuar, a responsabilidade seria subjetiva, porquanto, neste caso, a conduta (omissiva) do agente não teria sido causa, mas mera condição do dano, praticado diretamente por terceiro. Num caso, o agente causou o dano; no outro, deixou de atuar, devendo fazê-lo, dando ensejo a que o dano ocorresse. Houve evolução constitucional para a categoria objetiva, especificamente em sede de responsabilidade civil do Estado.

A questão relativa à natureza jurídica da responsabilidade do Estado por fato multitudinário é complexa e agrava-se pela ausência normativa no Brasil, que deve ser solvida pela hermenêutica na análise do caso concreto. Apresenta-se como solução provisória o estudo do caso concreto, no devido processo legal, do contraditório, dos argumentos, da interpretação dos fatos, da produção da prova, da defesa jurídica do Estado, assumindo assim a jurisprudência, importante papel no tratamento da matéria, seja pelo risco, pelos danos morais ou materiais, sejam de natureza individual, sejam de índole coletiva.

Assim, quem responde civilmente pelos fatos multitudinários? Trata-se de uma imputação jurídica genérica a todos que causem danos e violência, conforme o grau e a intensidade de culpa, seja o Estado, associações responsáveis a cada indivíduo. A responsabilidade estatal será extracontratual, de cunho patrimonial com a reparação de danos, decorrentes de condutas lícitas ou ilícitas, comissivas ou omissivas, dos agentes públicos. Quando do julgamento do processo judicial entre provas e perícias, será aferido o grau e a intensidade de culpa, no caso concreto. Inclina-se, assim, não por aplicar uma teoria de responsabilidade, mas pela ponderação de interesses e pela construção da solução jurídica dentro do devido processo legal.

A interpretação e aplicação jurídica no caso dos fatos multitudinários perpetrados por pessoas jurídicas, seria uma interpretação alargada da tipicidade do art. 3º. da Lei 9.605/1998. A teoria geral das obrigações ministra ser o fundamento genérico do art. 927, do Código Civil e não a leitura exegética do art. 37, § 6º, da Constituição Federal da responsabilidade do Estado pelos danos causados por fatos multitudinários.

Diante do cenário turbulento de mudanças, e ao mesmo tempo vazios de ideias e de novas proposições políticas, a impressão que permanece é de preferir continuar acreditando na necessidade de novas utopias a restaurar a esperança de uma sociedade mais justa. “Como nas ruas não se faz formulação política, as instituições terão a prioridade devida mesmo em tempos de pulsão autoritária e de exceção antidemocrática” (SANTOS, 2016, p. 67).

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Notas de Rodapé

[1] Professor do Curso de Mestrado em Direito da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Doutor em Direito.

[2] Movimento de caráter reivindicatório genérico, assemelhado a uma organização paramilitar, muito hábil no emprego de táticas midiáticas e de mobilização, que interrompem o tráfego nas avenidas dificultando a livre circulação de pessoas ou bens, em clara violação a Constituição e ao Código Penal Argentino.

[3] O rolezinho são encontros em shopping center de centenas de jovens de origem pobre marcados por meio de redes sociais. O fenômeno parece um movimento contra o “apartheid“ social e racial no país.

[4] A fonte de justificação anarquista traz a ideia da autonomia da liberdade individual que se antepõe a toda forma de poder sobre o homem, especialmente o poder do Estado, conforme os expoentes Henry Thoreau (1817-1862), Leon Tólstoi (1828-1910), Mikhail Bakunin (1814-1876), Pierre Proudhon (1809-1865).

[5] Os conceitos sobre desobediência civil são variados, mas advém de autores franceses e americanos, vinculando-se com as personalidades de Étiènne de La Boétie, Henry Thoreau, Mahatma Gandhi e Martin Luther King.

[6] A Ação Global dos Povos (AGP) é um movimento radical e social, em resistência ao capitalismo e para justiça ambiental e social. As manifestações dos Black Bloc chamaram a atenção da mídia pela primeira vez pelo protesto na Organização Mundial do Comércio, em Seattle (EUA, 1999) e usam como símbolo o uso do capuz e roupas pretas, estratégia adotada para dificultar a identificação dos participantes.

[7] Operação judicial e policial de combate a corrupção iniciada em março de 2014, em que estão envolvidos mais de uma centena de políticos, empresários e gestores, que transformou-se no centro da vida política brasileira. Louva-se o esforço contra a corrupção, contudo dentro da ordem jurídica para evitar o abuso havido do hiper-ativismo judicial com muitas medidas inconstitucionais, seletividade do zelo persecutório e a promiscuidade com as mídias televisivas.

[8] Vide PRONER, Carol; CITTADINO, Gisele; RAMOS, Wilson (Orgs.). A resistência ao golpe de 2016. Bauru: Canal 6, 2016.

[9] O STF decidiu que é possível manter a condenação da pessoa jurídica mesmo que fique comprovado que seu representante legal não praticou o delito. No julgamento do AgR no RE 628582/RS, o Ministro Dias Toffoli consignou em seu voto que: “(…) Ainda que assim não fosse, no que concerne à norma do § 3º do art. 225 da Carta da República, não vislumbro, na espécie, qualquer violação ao dispositivo em comento, pois a responsabilização penal da pessoa jurídica independe da responsabilização da pessoa natural.

[10] O Ministério Público de São Paulo ajuizou ação contra a APEOESP que parou o trânsito na Avenida Paulista, em 2009, que geraram quilômetros de lentidão, sem que tivesse havido comunicação prévia ao Poder público para efeito de providências com desvios alternativos no trânsito. A Justiça condenou o sindicato em quase duzentos mil reais.

[11] TRF1 – Habeas Corpus 8715 AM 2005.01.00.008715-7. Processo penal. Habeas corpus. Crime societário. Ausência de justa causa. Ordem concedida. 1. Não se admite a denúncia genérica nos crimes multitudinários. Precedentes do Supremo Tribunal Federal. 2. A denúncia oferecida em desfavor dos pacientes não preenche os requisitos do art. 41, do Código de Processo Penal, uma vez que deixou de individualizar a conduta de cada acusado e de estabelecer o vínculo entre suas condutas e o fato delituoso. 3. Habeas corpus concedido.

[12] STF – Habeas Corpus 96934/SP. Decisão: 73.271/SP, 1ª T. – Rel. Min. Celso de Mello – DJU 04.09.1996. Denúncias genéricas. Na fundamentação. Nulidade não configurada. Os crimes de autoria coletiva ou multitudinários, a exemplo dos crimes societários, não exigem denúncia com discriminação exaustiva de condutas. (…).