A Propriedade Constitucionalmente Positivada no Brasil e o Direito Ambiental a Partir da Concepção de Fundamentalidade dos Direitos
THE CONSTITUTIONALLY POSITIVE PROPERTY IN BRAZIL AND THE ENVIRONMENTAL LAW FROM THE CONCEPTION OF FUNDAMENTALITY OF RIGHTS
Luigi Bonizzato[1]
Manuel Rodrigues de Sousa Junior[2]
Resumo: O presente Artigo jurídico objetiva examinar a relação entre propriedade, sua função social e, sobretudo, direitos ambientais, sob a ótica da fundamentalidade dos direitos constitucionalmente previstos na Constituição brasileira de 1988. A partir de método dedutivo e qualitativo, valendo-se, sobretudo, de fontes bibliográficas, faz-se exame de teorias jurídicas nacionais e estrangeiras para analisar tanto o direito de propriedade e sua função social, quanto os desdobramentos de possíveis interpretações e concepções diferenciadas para o caráter fundamental comumente conferido à propriedade, enquanto também direito patrimonial. E, tudo, para se concluir que, independentemente de teorias a serem adotadas, deve a propriedade privada ceder a entendimentos sociais, em prol da coletividade, da qualidade de vida, do bem-estar social, enfim, do próprio Direito Ambiental, ramo autônomo e fundamental do Direito, a níveis nacional, internacional e global.
Palavras-chave: Propriedade; Função social; Direito Ambiental; Constituição.
Abstract: This legal article aims to examine the relationship between property, its social function and, above all, environmental rights, in view of the fundamentality of the rights constitutionally foreseen in the Brazilian Constitution of 1988. Based on a deductive and qualitative method, using bibliographical sources, national and foreign legal theories are examined to analyze both the property right and its social function, as well as the unfolding of possible interpretations and different conceptions for the fundamental character commonly conferred on property, like a patrimonial right. And everything, to conclude that, regardless of the theories to be adopted, private property must yield to social understandings, collectivity, quality of life, welfare, Environmental Law, autonomous and fundamental branch of Law, at national, international and global levels.
Keywords: Property; Social Function; Environmental Law; Constitution.
1 INTRODUÇÃO
A complementaridade e imbricação entre os ramos do Direito ocorre com cada vez maior intensidade. Portanto, em inúmeras situações, não se deve mais cogitar de um estudo isolado dos referidos ramos, sob pena de se tropeçar em reducionismo condenável e comprometedor da própria labuta de pesquisa.
Nesse contexto é que as breves linhas seguintes versarão sobre uma análise da propriedade privada sob a égide constitucional e, sob o mesmo manto, sobre um exame da relação daquela com o Direito Ambiental e as políticas públicas nesta seara. A maneira pela qual se decidir encarar o direito de propriedade será de suma importância para o desenvolvimento, efetividade e eficácia das políticas ambientais, as quais, calcadas na função social (e, por isso mesmo, também ambiental) da propriedade, findarão por impor limitações ao exercício daquele direito que há muito se decidiu entender como fundamental.
Dessa forma, o exame de teorias que propõem um novo enfrentamento para o direito dominial poderá conduzir a uma possibilidade hermenêutica favorável à aplicação de políticas ambientais, sempre tendo como norte a consecução da qualidade de vida e do bem-estar social, pelos quais todos devem cotidianamente lutar, pois aí residirá a proteção das futuras gerações, ou seja, nos atos e medidas do presente.
Portanto, fundamental ou não, o fato é que o direito à propriedade privada, nos termos do previsto na Constituição da República, deve incondicional respeito e consonância a outros direitos, aí sim, inegavelmente fundamentais, muitos dos quais, conforme se verá, de abrangência supranacional, devendo ceder na medida em que se fizer necessária a proteção do meio ambiente e da qualidade de vida de todos.
A sustentabilidade enquanto princípio de direito ambiental, do direito urbanístico e, igualmente, enquanto norma constitucionalmente prevista no Brasil, deve, assim, contemporaneamente nortear o direito de propriedade, estabelecendo-se, a partir desta profícua e sugerida inter-relação, novos horizontes para os meios sociais e jurídicos brasileiros. É o que se tentará, sob interpretação específica, breve e singelamente demonstrar nas linhas seguintes.
2 PROPRIEDADE E FUNÇÃO SOCIAL COMO INTEGRADORAS DO DIREITO E BASES DO DIREITO AMBIENTAL
Da mesma maneira quando em diversos outros momentos, nos quais a Constituição brasileira de 1988 cuidou de versar sobre matérias ligadas a outros ramos do Direito, sendo esta uma marca registrada de seu inegável dirigismo, ao trazer previsões sobre a propriedade privada deixou o legislador constituinte claro que, embora o tema muito se aproximasse da fundamentalidade dos direitos, a aproximação com o Direito Civil seria notória e indiscutível. Pensar em propriedade, em uma primeira análise, é também pensar no Direito Privado e em seu principal ramo, que é o Direito Civil[3].
Entretanto, a evolução jurídica do instituto da propriedade fez com que não pudesse se restringir à esfera privada e a exames meramente ligados à sua utilização no âmbito das relações estritamente pessoais, inter partes. Muito pelo contrário, os tempos modernos foram generosos com teorias em torno do instituto, alçando-o a categorias múltiplas e, principalmente, ao universo constitucional, com o qual bem se adaptou e no qual achou por bem também se instalar. O comumente chamado fenômeno da constitucionalização do Direito, já bastante investigado entre nós[4], possui como uma de suas pontas de análise e estudo a previsão constitucional da propriedade e do direito dela decorrente.
Não foi à toa, assim, que o legislador constituinte originário, criador da Constituição de 1988, trouxe algumas previsões da propriedade privada, entre elas as contidas no art. 5º, inc. XXII, e no art. 170, inc. II. São demonstrações patentes da magnitude da propriedade privada no Ordenamento Jurídico brasileiro, a qual se mantém como um dos alicerces da formação social brasileira que se quis proteger com a nova ordem constitucional.
Por outro lado, no intuito de promover o acolhimento de pretensões variadas, o mesmo legislador constituinte inseriu anseios e objetivos complementares no texto constitucional, fazendo, muitas vezes, com que aparentes contradições saltassem aos olhos, sobretudo a partir de uma leitura inicial do texto consolidado e promulgado em 1988. Assim é que o resultado dos trabalhos constituintes impôs a convivência harmoniosa entre valores sociais e liberais, entre a valorização do trabalho humano e a livre iniciativa, entre a livre concorrência e a proteção do meio ambiente. Enfim, decidiu o legislador, no compasso de ordenamentos jurídicos estrangeiros e também brasileiros, outrora sob a égide de antigas Constituições, estabelecer que propriedade privada e função social da propriedade deveriam se entender, conviver em harmonia e de acordo com as possibilidades concretas. Garantiu-se uma das principais causas da desigualação no Brasil[5] e, paralelamente, protegeu-se a tentativa de amenização de tal problemática, com a qual não se quis criar indisposição, mas em relação a qual se teve que ceder em razão de pressões várias.
É certo que o período pós-ditatorial foi decisivo para que posições possivelmente dominantes cedessem espaço para outras formas de pressão, mas é também certo que as negociações foram intensas e que o elitismo[6] no Brasil não foi eliminado. A contrario sensu, o grande objetivo e que findou por ser mais uma vez consagrado, foi a manutenção do status quo, ainda que com alguns obstáculos e percalços extras, os quais tiveram e têm, até os dias de hoje, grande importância no movimento contrário e complementar do incremento de igualações mínimas e de socialização de condutas.
Portanto, independentemente das causas, o fato é que o acima anunciado liberalismo social previsto na Constituição trouxe consequências práticas e teóricas relevantes e deve ser estudado sob este manto, ou seja, da contradição aparente e do inevitável esforço pela complementaridade. Quis-se proteger a propriedade, mantendo-se o conservadorismo jurídico brasileiro, sem se abrir mão dos novos rumos constitucionais, fundados na necessidade de se estimular o desenvolvimento de direitos e políticas sociais. Em uma Constituição, repita-se, desde o início anunciada como analítica, ideias variadas acabaram estampadas em seu corpo, ora representando anseios liberais, ora sociais. Assim como, por exemplo, se prestigiou a expressão desenvolvimento sustentável[7], acolheu-se a continuidade da proteção à propriedade com a paralela previsão de sua função social[8].
Destarte, tendo em vista tal contexto, afigura-se necessário que propriedade privada e função social convivam harmoniosamente, muitos tendo sido os estudos, nas últimas décadas, sobre a relevância da função social da propriedade[9]. Inclusive, é a função social da propriedade a base sobre a qual se fundam vários avanços no Direito, tais como a consolidação do Direito Ambiental e do Direito Urbanístico como ramos autônomos, influentes e necessários para o aprimoramento das relações sócio-políticas brasileiras.
Nessa linha, ao se constatar a existência de direitos sociais urbanísticos e ambientais, calcados na própria Constituição e ligados às funções sociais da cidade, constata-se, sem grandes esforços hermenêuticos, que o também chamado princípio da função social da propriedade alimenta o desenvolvimento destas modernas teorias. Defender que a propriedade é função social ou que deve atender a sua função social significa acolher a tese de que o fundamental é que os direitos privados respeitem os públicos. Ou seja, acolher a tese de que ainda que o pacta sunt servanda seja máxima sobre a qual se montou boa parte do ordenamento jurídico brasileiro, normas e necessidades de ordem pública se sobrepõem ao liberalismo tradicional.
Nesse viés, se a propriedade privada é proclamada como direito fundamental, a função social da propriedade surge como norteadora dos rumos interpretativos, com influência marcante na teoria e prática jurídicas, ajustando a maneira pela qual se deve encarar a fundamentalidade da mencionada propriedade privada. Basta observar que a maioria absoluta de institutos, instrumentos e normas de Direito Urbanístico e Ambiental, bastante impregnada pelo caráter social a ela emprestada já pela própria Constituição, tem por base, em menor ou maior medida, a função social da propriedade. É com base nesta função social, por exemplo, que se permitem intromissões do Estado na propriedade, tanto as mais drásticas e diretas, como no caso da desapropriação, quanto as meramente mediatas, observadas praticamente em todos os instrumentos de política urbana contidos no Estatuto da Cidade e em boa parte das medidas ambientais de contenção da degradação do ambiente. Pôde assim o legislador perceber que a fundamentalidade do direito à propriedade privada, herança da Revolução Francesa de 1789[10], não significa uma utilização em desconformidade com o bem-social. E, se a Carta de 1988 decidiu prestigiar, em aparente igualdade de condições, propriedade privada e função social da propriedade, deve-se interpretá-la, frise-se, de maneira a proporcionar uma convivência harmoniosa de institutos. Nessa linha, por exemplo, se o Plano Diretor é lei de elaboração obrigatória para Municípios com mais de vinte mil habitantes, de acordo com o anteriormente já bem delineado, deve, sim, proteger o patrimônio privado, mas com todo o foco voltado para a harmonização entre o direito privado e o direito público, em outras palavras, entre a propriedade privada e a sua função social. A elevação da propriedade privada e de sua função social à categoria de direitos fundamentais exige tal enfrentamento e interpretação da Constituição.
Portanto, sob a égide e o escudo protetor do princípio da dignidade da pessoa humana, aparece a função social da propriedade como direito humano fundamental e inafastável, a ele se emprestando natureza nitidamente principiológica e ligada ao Direito Constitucional Ambiental e Urbanístico[11]. E esta parece ter sido a linha de princípio adotada pela atual Constituição brasileira: um direito de propriedade que possa significar mais amparo, abrigo e produção, como contrapontos da exclusão, especulação e desigualação.
Por conseguinte, antes mesmo de se adentrar esfera teórica específica, ligada ao recorte temático deste breve Artigo jurídico e, considerando a relevância do instituto da função social da propriedade para o que ora se desenvolve, proceder-se-á a breve histórico de sua previsão nas múltiplas Cartas e Documentos constitucionais brasileiros.
O Direito brasileiro não se inclinou, de imediato, aos propósitos acima mencionados, ou seja, à previsão de um direito de propriedade relativizado, por meio do qual se pudesse garantir sua integral realização como agente imprescindível e perseguidor da justiça e paridade sociais. Um inteiro século se passou, após a independência brasileira, e ainda não se vislumbrava qualquer efetiva alteração no direito de propriedade e em seus limites. O primeiro documento constitucional brasileiro, outorgado à nação logo após sua independência, trazia, em seu art. 179, inc. XXII, a garantia do direito de propriedade. Entretanto, excepcionando-se a previsão constitucional da desapropriação por exigência do bem público, era o direito de propriedade nada mais que um direito absoluto, nos moldes de um modelo clássico e já anteriormente delineado.
A Constituição da República dos Estados Unidos do Brazil, de 24.02.1891, que muito modificou a ordem até então vigente no país[12], relativamente ao direito de propriedade não trouxe grandes inovações: mantinha-se sua plenitude, com exceção dos casos de desapropriação por necessidade ou utilidade pública. Era o estatuído em seu art. 72, § 17.
Já a Carta Constitucional de 1934, criada após mais de 40 anos de vigência da primeira Constituição republicana brasileira, pela primeira vez na história do Brasil, declarou que o direito de propriedade não poderia ser exercido contra o interesse social ou coletivo, mas condicionou a eficácia destes dizeres à elaboração de lei complementar regulamentadora, a qual jamais seria editada[13].
A Constituição brasileira de 1937, criada para reger as relações jurídicas nacionais na vigência do Estado Novo, apesar de consignar o caráter relativo do direito de propriedade, não mantém as disposições presentes na Carta Magna anterior, permitindo[14], destarte, que o exercício do direito sob foco fosse contrário aos interesses sociais e coletivos. Isto era o que dispunha o art. 122, n. 14, do Texto Magno de 1937.
Por outro lado, a Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 18.09.1946, alargando substancialmente a noção do direito de propriedade até aquele momento defendida e proclamada, expôs, em seu art. 147, que o uso da propriedade estaria condicionado ao bem-estar social. Embora não tenha significado, efetivamente, uma modificação material nas relações sociais existentes, serviu de segundo[15], mas ainda mais claro marco, a partir do qual se facultaria caminhar para um novo condicionamento do direito de propriedade no direito pátrio. E, nas Constituições que se seguiram, mais precisamente, as de 1967, 1969 e 1988, foi finalmente consubstanciada a expressão função social da propriedade, referindo-se à necessidade, sempre crescente, de conformarem-se os interesses da sociedade e do proprietário unicamente considerado.
Cumpre, todavia, assinalar que, conforme aduz André Osorio Gondinho, tanto a Constituição de 1967 quanto a Emenda Constitucional n. 01, de 1969, incluíram a função social da propriedade como princípio de fundamentação da ordem econômica e social, mas sem lhe outorgar o posto de garantia fundamental do cidadão[16]. Coube à Constituição Federal, de 05.10.1988, imergir o direito de propriedade, juntamente com sua função social, no extenso rol de direitos e deveres individuais e coletivos, elencados[17] no Capítulo I, do Título II[18], da Carta Magna hoje em vigor, tornando-os – repita-se, direito de propriedade e sua função social – direitos constitucionalizados e, para além disso, fundamentais.
De qualquer maneira, ultrapassado o breve histórico constitucional supra desenhado e, apesar de a evolução do ordenamento jurídico brasileiro ter sido nítida e indubitavelmente tendente à fundamentalização do direito de propriedade e, recentemente, também de sua função social, não se pode deixar de mencionar que uma visão diferenciada da questão pode remeter à ideia de que teria o legislador constituinte se equivocado ao conferir fundamentalidade ao direito de propriedade. Seria mesmo o direito de propriedade, alicerce do Direito Civil e uma das bases do liberalismo clássico, um direito fundamental?
Se encarada a questão sob determinada ótica, as conclusões podem ser determinantes para que se defenda um reticente equívoco, repita-se, de vários ordenamentos jurídicos. É o que será examinado no capítulo subsequente.
3 A FUNDAMENTALIDADE DO DIREITO DE PROPRIEDADE E SUA RELAÇÃO COM O DIREITO AMBIENTAL
Se no capítulo anterior foram montadas bases de estudo na propriedade e em sua função social, sustentáculos de vários ramos do Direito, entre os quais, por exemplo, o próprio o Direito Ambiental, neste momento direcionar-se-á este Artigo rumo à interpretação e ao desenvolvimento teórico, específicos da propriedade enquanto direito e, sobretudo, fundamental.
Assim, primeiramente, deve a problemática ser lançada no âmbito de uma suposta dicotomia: direitos patrimoniais e direitos fundamentais. Segundo o que ora se apresenta, o direito de propriedade deveria ser entendido muito mais como no âmbito e pertencente à categoria dos direitos patrimoniais, do que como integrante do grupo dos direitos fundamentais.
Não se pretende aqui debruçar sobre a teoria dos direitos fundamentais ou patrimoniais, mas apenas assinalar alguns elementos identificadores. Isto é, demonstrar características próprias de direitos fundamentais e típicas de direitos patrimoniais, salientando as diferenças entre umas e outras.
Propondo uma definição para os direitos fundamentais, Luigi Ferrajoli[19] elabora quatro teses, a partir dos quais pretende estabelecer uma nova concepção da fundamentalidade dos direitos. Além da primeira, pela qual defende o citado autor uma radical diferença de estrutura entre os direitos fundamentais e os direitos patrimoniais, destaca outras três: a da relação entre direitos fundamentais e democracia substancial – os direitos fundamentais, ao corresponderem a interesses e expectativas de todos, formam o fundamento e o parâmetro da igualdade jurídica, chamados pelo autor de dimensão substancial da democracia, intimamente ligada não apenas aos direitos de liberdade, que traduzem expectativas negativas dos cidadãos, mas também aos direitos sociais, os quais representam expectativas positivas –; a da natureza supranacional de grande parte dos direitos fundamentais – os quais, principalmente após a criação da ONU e da elaboração de uma série de cartas e documentos internacionais sobre direitos humanos, passaram a ser fundamentais não apenas dentro dos Estados em cujas Constituições se encontram formulados, mas também em nível supranacional, vinculando cada Estado no âmbito do direito internacional e não mais se limitando a meros direitos de cidadania, sendo considerados direitos da própria pessoa, aonde quer que se encontre –; e, por fim, a da relação entre os direitos e suas garantias – os direitos fundamentais, da mesma forma que os demais direitos, consistem em expectativas negativas ou positivas, às quais correspondem obrigações (de prestação) ou proibições (de lesão).
Seguramente, as quatro importantes teses desenvolvidas por Ferrajoli encontram guarida neste breve trabalho, com especial destaque para a terceira e para a última. Contudo, neste momento, maior atenção se dedicará à primeira tese por ele defendida, qual seja, a da diferença estrutural entre direitos fundamentais e direitos patrimoniais. Ferrajoli estabelece quatro grupos de diferenças básicas entre as duas espécies de direito citadas, passando-se a sobre elas melhor se debruçar nas linhas seguintes.
Deve ser ressaltado que tais distinções se fundam em uma crítica inicial ao fato de o direito de propriedade ter sido considerado direito da mesma categoria dos direitos de liberdade. A vida, a propriedade e a liberdade são realçadas e estudadas por John Locke no Segundo Tratado sobre o Governo[20], afirmando-se que a tutela e garantia dos três direitos fundamentais justificaria o contrato social. E tal associação entre propriedade e liberdade é recuperada no art. 2º da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, com a afirmação dos direitos à liberdade, à propriedade e à resistência à opressão como direitos naturais e imprescritíveis. Essas visões da propriedade e da liberdade, no entanto, são colocadas em xeque, primando-se pelo estabelecimento de linhas divisórias claras, além das quais não se estendem quaisquer dos direitos citados.
A primeira diferença citada por Ferrajoli consiste no fato de que os direitos fundamentais – tanto os direitos de liberdade e o direito à vida, quanto os direitos civis, aí se incluindo os direitos de adquirir e de dispor dos bens objeto de propriedade, e os direitos políticos e sociais – seriam direitos universais, devido à quantificação universal da classe dos sujeitos que são seus titulares, enquanto que os direitos patrimoniais – direito de propriedade e demais direitos reais e direitos de crédito – seriam direitos singulares, uma vez que para cada um deles existe um titular determinado, com a exclusão de todos os demais.
Neste sentido, os direitos fundamentais seriam reconhecidos a todos os seus titulares em igual forma e medida, não havendo que se cogitar de discriminações e desigualações não permitidas pela própria natureza do Direito. Por outro lado, os direitos patrimoniais pertenceriam a cada titular de forma diversa, tanto em razão da qualidade, quanto da quantidade, aí residindo o seu teor exclusivo, ao contrário do aspecto inclusivo dos direitos fundamentais.
O que é importante observar é que as liberdades de dispor dos próprios bens e de se tornar proprietário é que poderiam ser consideradas direitos fundamentais, uma vez que ligadas aos direitos de liberdade propriamente ditos. Contudo, ao se pensar no direito de propriedade, o melhor entendimento, segundo explana Ferrajoli, seria o de vinculá-lo à sua essência indubitavelmente patrimonial.
Deveras, as considerações levam a crer em uma patrimonialidade aguçada do direito de propriedade em contrapartida a uma fundamentalidade.
A segunda diferença que poderia ser aqui apontada entre direitos fundamentais e patrimoniais, recai sobre algumas características funcionais básicas de cada uma dessas classes de direitos. Os primeiros seriam direitos indisponíveis, inalienáveis, invioláveis, intransigíveis e personalíssimos, ao passo que os direitos patrimoniais seriam disponíveis, negociáveis, alienáveis e acumuláveis[21].
Vale notar que a indisponibilidade dos direitos fundamentais assume duas formas distintas de manifestação: a indisponibilidade ativa e a indisponibilidade passiva. Pela primeira, significa dizer que não são alienáveis pelo sujeito que é o seu titular – não há como se vender a própria liberdade, a própria vida ou o próprio direito de voto. Já pela segunda, afirma-se que não são expropriáveis ou limitáveis[22] por outros sujeitos, sobretudo pelo Estado, ao qual, por exemplo, não é permitida qualquer privação natural à vida ou à liberdade.
A terceira diferença entre direitos fundamentais e patrimoniais versa sobre a estrutura jurídica dos direitos. Pela sua própria disponibilidade, os direitos patrimoniais podem ser constituídos, modificados ou extintos por atos jurídicos, enquanto que os direitos fundamentais decorrem imediatamente da lei, no sentido de que são todos ex lege, vale dizer, conferidos através de normas gerais de cunho normalmente constitucional. As normas que portam direitos fundamentais já estatuem acerca das situações que expressam. Já as portadoras de direitos patrimoniais não impõem imediatamente nada, senão predispõem situações jurídicas como efeitos dos atos nelas previstos[23].
Por fim, a quarta diferença diz respeito à horizontalidade dos direitos patrimoniais e à verticalidade dos direitos fundamentais. As relações jurídicas mantidas pelos titulares de direitos patrimoniais são relações intersubjetivas de tipo civilista, ao passo que as relações produzidas entre os titulares de direitos fundamentais são de tipo publicista, ou seja, do indivíduo frente o Estado.
Pelas distinções acima destacadas, podem ser depreendidos traços básicos da delimitação, conceituação e definição dos direitos fundamentais. Independentemente de uma definição, o fato é que algumas de suas características são marcantes e os qualificam aonde quer que se apresentem[24].
Pois bem, pelas diferenças assinaladas e pelas próprias delimitações extraídas, levando-se em conta todas as classificações e características apontadas, haveria clara distinção entre as duas classes de direito destacadas, descartando-se, pelo menos em um primeiro momento, a fundamentalidade do direito de propriedade. Um exame, assim, da reunião dos quatro grupos distintivos acima aduzidos poderia facilmente levar à conclusão de que o direito de propriedade não deve ser jamais reputado fundamental, seja por suas externalidades, seja por sua própria essência patrimonial. Contudo, o ordenamento jurídico brasileiro previu o direito de propriedade como fundamental, fato este de perto acompanhado pelo princípio da função social. Nesse viés, ainda que possa, sob o foco acima exposto, distanciar-se o direito de propriedade dos direitos fundamentais, uma interpretação específica e direcionada passa a ser necessária para que se atenda à máxima eficácia e efetividade da Constituição Federal. Privilegiando-se a labuta legiferante constituinte brasileira, pela qual se emprestou ao direito de propriedade caráter fundamental, deve-se assim entendê-lo, ainda que sob esforço hermenêutico considerável.
O liberalismo social a que se fez menção objetivou conciliar propriedade privada e função social da propriedade, elevando, ambas, ao patamar de direitos fundamentais. Assim, é indispensável que se busque uma aplicação da Constituição brasileira com base na fundamentalidade conferida ao direito de propriedade, a qual se aproxima consideravelmente da ideia de função social e finda por associar ramos do Direito, tais como o Urbanístico do Ambiental e estes últimos do Constitucional. Um dos pilares do moderno Direito Constitucional Urbanístico[25] é exatamente a socialização da propriedade com base nos próprios parâmetros trazidos pela Constituição, em torno dos quais gravitam os direitos sociais à moradia, à segurança, à saúde, à educação, entre outros. E, outrossim, uma das bases do Direito Ambiental é também sua relação com a função social da propriedade e, logicamente, com o Direito Constitucional, na medida em que o Direito Ambiental se encontra previsto e garantido na Constituição, assim como elevado à categoria de direito fundamental, não apenas de todo cidadão, mas também de todas as pessoas e, indo mais além, de todos os seres vivos[26].
Assim é que, nos termos do anteriormente identificado por Luigi Ferrajoli, os direitos fundamentais têm um caráter supranacional e, por esta razão, devem ser encarados como direitos que não estão limitados aos cidadãos, isto é, ao conceito de cidadania. Em um universo jurídico cada vez mais amplo, cada vez menos delimitado por fronteiras, certos direitos despontam como aplicáveis a todos, independentemente de nacionalidade ou demais formas de origem. E, neste plantel de direitos, os ligados à defesa do meio ambiente são o mais puro e cristalino exemplo de que a fundamentalidade ultrapassa fronteiras e caminha rumo à mundialização de sua garantia e tutela. O Direito Ambiental, como direito fundamental que é, é universal, mundial, sendo apenas delimitado, normatizado e instrumentalizado dentro de cada ordenamento jurídico nacional, que terá a árdua tarefa política de defender interesses de todos aqueles que dependem de um meio ambiente saudável e sustentável. Em outras palavras, defender interesses de todos os seres vivos, residindo ou não no interior das fronteiras do Estado-nação.
Nessa linha de ideias e princípios, portanto, a atuação de organismos internacionais se mostra cada vez mais importante, pois têm eles a difícil missão integradora e harmonizadora dos interesses emanados dos mais variados cantos do planeta, alguns dos quais mais ou menos distantes da defesa do bem-estar ambiental. Mas, no mesmo rumo, é igualmente cada vez mais relevante a atuação de cada Estado-nação, a qual deve convergir com a fundamentalidade dos direitos ligados à proteção do meio ambiente.
Entretanto, quando se cogita da atuação de cada Estado, cogita-se de sua atividade nas três tradicionais esferas, quais sejam, legislativa, judicial e executiva. Legislar com qualidade ambiental não é tarefa fácil e depende de fatores predominantemente políticos, os quais levarão em conta a força argumentativa de grupos de pressão voltados para a garantia de seus próprios interesses. O mesmo se diga com relação à jurisdição, a qual, em medida distinta, mas semelhante, exerce seu poder com base, muitas vezes, em pressões de todos os lados. Aliás, que não se iluda: viver em sociedade é viver sob pressão. Enfim, os Poderes Executivos de cada país exercem também papel fundamental quando o assunto é política ambiental. Deles depende a criação e implantação de políticas públicas de qualidade e protetivas do meio ambiente. Como a própria expressão sugere, uma política pública ambiental passa, necessariamente, por um exame político de conveniência, oportunidade, adequação e propriedade. Elementos que esbarram na influência de interesses distintos no interior da administração pública e, sobretudo em questões macro e micro institucionais, isto é, referentes às mais variadas relações e desenhos institucionais. Pois, afinal de contas, o comportamento de cada instituição brasileira, seja ela um próprio Poder da República (uma macro instituição), seja ela um pequeno, mas relevante órgão social (uma micro instituição), é de complexa análise e possivelmente influente nos cenários jurídico, social, econômico e político do país[27].
Mas, em que pese toda a imersão política acima destacada, é certo, também, que sob as mesmas ou parecidas influências foi o poder constituinte originário orientado a inserir na Constituição de 1988 a proteção do meio ambiente como meta e, sobretudo, como direito fundamental. Nesse sentido, o respeito a tal inserção deve ser incondicional e políticas públicas em matéria ambiental, leis protetivas diversas e decisões judiciais tutelares devem sempre levar em conta, independentemente de todas as pressões sofridas, a necessidade constitucional e planetária de defesa do ambiente.
Não se pode esquecer que, em quaisquer das atuações estatais acima destacadas, a fundamentalidade da defesa do meio ambiente deve prevalecer e ser alçada a patamar hierárquico elevado em labutas ponderativas. Nos ordenamentos jurídicos contemporâneos, em que vários direitos já se encontram sedimentados em textos constitucionais, não é incomum choques de valores e princípios, que muitas vezes escondem tensões entre interesses sociais, políticos e econômicos. Exemplo claro do que se alega é, mais uma vez, o ligado ao comum choque entre propriedade e o direito dela decorrente e Direito Ambiental. Até que ponto podem o legislador, o juiz e, principalmente, o administrador público irem, se a defesa do meio ambiente representar uma restrição ao clássico, vetusto e, em alguns ângulos também fundamental direito de propriedade? Se adotada a visão clássica de que o direito de propriedade é invariável e quase absolutamente fundamental, ainda que encarado sob nuança eminentemente privada, deparar-se-á o Direito Ambiental com grande obstáculo e sério limitador de sua extensão. No entanto, se, por outro lado, conforme acima já exposto, interpretar-se a propriedade e o seu direito conforme a fundamentalidade, ou seja, de maneira a inseri-lo no contexto jurídico constitucional, no sistema de normas e finalidades da Constituição de 1988, abrir-se-á a possibilidade de a propriedade ceder em prol do meio ambiente e, por conseguinte, de sua função social. As funções estatais, assim, findarão por ser, se não facilitadas, pelo menos justificadas, embasadas, permitidas e orientadas sobre uma premissa assim tornada inquestionável: a de que o direito de propriedade é fundamental se não for um fomentador da destruição ambiental e do aguçamento de desigualdades.
A submissão do direito de propriedade ao meio ambiente é, inclusive, salientada por Arlindo Daibert, para quem “proteger o ambiente, em suma, é imperativo ético e moral com nosso presente e com o nosso futuro, a que se devem submeter a família, a propriedade privada e o estado”[28].
Toda e qualquer legislação, decisão judicial e política pública em matéria ambiental, portanto, deve pautar-se no respeito à Constituição da República, que instaurou em seu sistema a necessidade de convivência harmônica do direito de propriedade com sua função social, que, necessariamente, abrange sua função ambiental. Vale sempre lembrar, aproximar institutos e os fazer conviver de forma harmoniosa é mais do que uma mera tarefa hermenêutica. É um dever interpretativo, o que transforma a função social da propriedade em balizadora da ordem ambiental e urbanístico-constitucional.
Enfim, embora aqui não se pretenda em muito desenvolver o tema, a atuação estatal deve ser acompanhada da atuação da população, a qual, de forma organizada ou não, deve conduzir de perto as decisões em matéria ambiental. A própria Constituição de 1988 oferece o meio e o instrumento (Ação Popular) para que qualquer cidadão possa buscar a proteção do meio ambiente, possibilitando e estimulando, dessa forma, a participação de cada um de nós nesse processo de defesa contínua ambiente. Branca Martins da Cruz[29] faz menção ao princípio da participação dos cidadãos na defesa do ambiente e ao direito de acesso à justiça, pelo qual se pode proporcionar uma mais eficaz defesa do meio ambiente. Realmente, na grande maioria dos países faltam instrumentos pelos quais possa o cidadão enfrentar a destruição ambiental. E, igualmente, faltam adequados estímulos para que os mesmos cidadãos possam acessar a justiça e entender que sua atuação é fundamental no presente, para que, aí sim se possa pensar no futuro[30].
Na mesma linha, o Estatuto da Cidade[31], marco regulatório em matéria urbanística e, por corolário, também em matéria urbanístico-ambiental, também propõe a participação efetiva da população nos processos de desenvolvimento urbano, reservando capítulo específico para a gestão democrática da cidade. Utiliza-se o vocábulo ‘propõe’ porque, como toda e qualquer lei, depende da tomada de consciência de sua importância pela população, o que, no caso do Estatuto da Cidade, vem crescendo, embora de forma ainda lenta e gradual. Paralelamente, institutos como, por exemplo, o plebiscito e o referendo, pouquíssimo utilizados no Brasil, encontram-se também estampados no Estatuto da Cidade e, mesmo diante de veto presidencial[32] a algumas previsões estatutárias, continuam sendo arma potente, apesar de ainda pouco usada[33].
Enfim, o Estatuto da Metrópole, Lei 13.089, de 12.01.2015, embora voltado para a regulação das chamadas regiões metropolitanas – aglomerações urbanas onde municípios contíguos muito populosos e, portanto, com grande densidade demográfica, estabelecem as mais variadas relações, vinculadas a diversos direitos, entre eles, sociais, ambientais e urbanísticos –, para além de trazer importante contribuição legislativa para tomadas de decisão no seio de grandes cidades, também defende a participação popular e respeito à gestão democrática da cidade. Eis, a título meramente exemplificativo, o teor de seu Art. 6º, no qual os referidos direitos sociais, ambientais, urbanísticos e outros mais, encontram-se contemplados:
Art. 6º. A governança interfederativa das regiões metropolitanas e das aglomerações urbanas respeitará os seguintes princípios:
I – prevalência do interesse comum sobre o local;
II – compartilhamento de responsabilidades para a promoção do desenvolvimento urbano integrado;
III – autonomia dos entes da Federação;
IV – observância das peculiaridades regionais e locais;
V – gestão democrática da cidade, consoante os arts. 43 a 45 da Lei 10.257, de 10 de julho de 2001;
VI – efetividade no uso dos recursos públicos;
VII – busca do desenvolvimento sustentável.
Nessa linha, poder-se-ia continuar a citar legislações e dispositivos legais e constitucionais, em um ordenamento jurídico rico em normas, como o brasileiro, mas com longo caminho a ser ainda percorrido em matéria de eficácia, efetividade, assim como vigência e validade. Entretanto, tais citações tornar-se-iam excessivas e, até mesmo, desnecessárias para o objeto deste estudo, recortado e voltado às relações, desdobramentos e desenvolvimentos supratranscritos.
Assim e, conclusivamente, encarar o Direito Ambiental como direito fundamental significa não apenas a adoção de um discurso ideológico e, muitas vezes, demagógico, de manipulação de massas e de criação de uma ambiência supostamente voltada para a proteção do meio ambiente. Muito mais do que isso, representa entender a supranacionalidade da defesa do meio ambiente e a necessidade de consciência contínua da magnitude do tema e da imprescindibilidade de atuação estatal efetiva, constante e precisa no processo de tutela do meio ambiente, a qual passa, necessariamente, pela paralela e cada vez maior atuação da população nos processos decisórios do Estado.
4 CONCLUSÃO
O Direito Ambiental e sua concretização sedimentam-se em medida proporcional à consolidação da democracia brasileira. Não há dúvidas de que inúmeros outros fatores exercem influência sobre a citada sedimentação, mas o avanço e desenvolvimento das instituições democráticas exercem papel decisivo na maneira pela qual são conduzidas as políticas públicas, sobretudo em matéria ambiental.
Encarar a propriedade com outros olhos, no entanto, não depende apenas de um amadurecimento democrático, mas também de rompimento, paralelo ou não, com conservadorismos e, até mesmo, tabus em torno de um direito de relevância inquestionável, mas de fundamentalidade discutível sob alguns aspectos.
Nesta esteira, deve-se buscar uma constante manutenção da ordem jurídico-constitucional, com base em uma interpretação atual e renovadora de suas normas, a qual, no tema debatido, poderá conduzir à certeza de que a proteção da vida e do meio ambiente deve prevalecer sobre questões patrimoniais, comumente vinculadas ao direito de propriedade.
Proteger o meio ambiente é tarefa árdua, sobretudo se levados em conta os inúmeros obstáculos naturais em sociedades complexas como as atuais. Entretanto, abandonar tal luta seria o mesmo que abandonar e desprezar a Constituição, pela qual todo esforço jurídico para a concretização da defesa do meio ambiente não será em vão, em homenagem à vida, à dignidade, enfim, à própria existência.
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Notas de Rodapé
[1] Doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professor de Direito (FND) e do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Direito (PPGD) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), nos Cursos de Mestrado e Doutorado. Integrante do LETACI/FND/UFRJ (Laboratório de Estudos Teóricos e Analíticos sobre o Comportamento das Instituições). Editor da Revista Estudos Institucionais (REI).
[2] Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGD/UFRJ). Integrante do LETACI/FND/UFRJ (Laboratório de Estudos Teóricos e Analíticos sobre o Comportamento das Instituições).
[3] E o art. 5º, inc. XXII, da Carta Constitucional brasileira, nesse rumo, congrega, em torno de si, pelo menos, uma constitucionalização da propriedade privada, juntamente com sua elevação à categoria de direito fundamental, conforme a seguir melhor desenvolvido.
[4] Já são diversos, hoje, os estudiosos que se debruçaram na investigação do fenômeno da constitucionalização do direito. Ricardo Aronne, em abordagem dos direitos reais limitados menciona que “a conformação social do Estado brasileiro, juridicamente positivada, não dá mais espaço ao pensamento jurídico patrimonialista em detrimento do ser humano, sob pena de inconstitucionalidade do próprio discurso jurídico justificante” (ARONNE, Ricardo. Por uma nova hermenêutica dos direitos reais limitados. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 98). Tal afirmação apenas transcrita remete à necessária conclusão, objetivada pelo autor, da conformidade que deve existir entre o direito de propriedade constitucionalizado e o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Neste breve artigo que aqui se inicia, trabalhar-se-á com o direito de propriedade sob a égide da Constituição da República de 1988, demonstrando-se os efeitos de sua constitucionalização na atuação estatal e democrática. Sobre a constitucionalização do Direito, máxime em seara dominial, conferir também, entre tantos outros: ANDRADE, André (Org.). A constitucionalização do Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.
[5] Tendo em vista que a utilização da propriedade no Brasil sempre foi um tanto excludente, com o seu acesso sempre proporcionado à pequena parcela de população, em cujo seio sempre se localizaram inúmeras e profundas desigualdades, sobretudo econômicas e sociais, pode-se, ainda que de forma superficial, fazer a afirmação contida no corpo do texto.
[6] Não se pretende desenvolver, neste trabalho, causas e consequências deste anunciado elitismo. Nem mesmo se desviar por qualquer ingenuidade que leve a uma simplificação de uma realidade complexa, a qual envolve aspectos políticos, econômicos, intelectuais, sociais, entre outros. Para uma visão da dita ideia de elitismo no Brasil, conferir, entre outros: ALMEIDA, Agassiz. A República das elites: ensaio sobre a ideologia das elites e do intelectualismo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.
[7] O mesmo art. 170 abriga a defesa do meio ambiente, em seu inc. V, e a livre concorrência e a propriedade privada, em seus incs. IV e II, respectivamente. Desenvolvimento e sustentabilidade são vocábulos, para muitos, antagônicos, inconciliáveis, tendo em vista a condição predatória do regime capitalista. Sobre o tema e seus diversos desdobramentos, entre outros, conferir: COUTINHO, Ronaldo; ROCCO, Rogério (Orgs.). O Direito Ambiental das cidades. Rio de Janeiro: D.P.& A, 2004; FOLADORI, Guillermo. Limites do desenvolvimento sustentável. Campinas: Editora da Unicamp, 2001; ACSELRAD, Henri. Sentidos da sustentabilidade Urbana. In: ACSELRAD, Henri (Org.). A duração das cidades: sustentabilidade e risco nas políticas urbanas. Rio de Janeiro: D.P.& A., 2001; HARVEY, David. A produção do espaço capitalista. 2. ed. Tradução de Carlos Szlak. São Paulo: Annablume, 2005.
[8] A função social da propriedade é, hoje, uma das molas mestras de vários ramos do Direito, tais como o Direito Urbanístico e o Direito Ambiental, além do Direito Civil e Constitucional. Trabalhando-se com as noções de propriedade pública e privada, ressalte-se que ambas são detentoras deste importante papel atribuído pelo legislador constituinte: em sentido positivo, o de se utilizar a propriedade sempre em consonância com o bem e o interesse públicos; em sentido negativo, o de se coibir utilização contrária ao interesse coletivo. Quanto à abrangência desta função social, no entanto, sua extensão não se limita a apenas algumas formas de propriedade, sobretudo à propriedade imóvel. Fábio Konder Comparato destaca a função social da propriedade dos bens de produção. E, assim se pronuncia: “(…) em se tratando de bens de produção, o poder-dever do proprietário de dar à coisa uma destinação compatível com o interesse da coletividade transmuda-se, quando tais bens são incorporados a uma exploração empresarial, em poder dever do titular do controle de dirigir a empresa para a realização dos interesses coletivos” (COMPARATO, Fábio Konder. Função social da propriedade dos bens de produção. Separata da Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo: RT, v. 63, p. 71-79, jul./set. 1986.).
[9] Sobre o tema, conferir, dentre outros, trabalho: BONIZZATO, Luigi. O advento do Estatuto da Cidade e consequências fáticas em âmbito da propriedade, vizinhança e sociedade participativa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
[10] Refere-se, aqui, à ascendência mais recente, pois desde a Era romana já se podia verificar fases de absolutização do direito de propriedade.
[11] Para uma análise embrionária do Direito Constitucional Urbanístico, conferir, entre outros: BONIZZATO, Luigi. A Constituição Urbanística e elementos para a elaboração de uma teoria do Direito Constitucional Urbanístico. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010; BONIZZATO, Luigi. Propriedade Urbana Privada & Direitos Sociais. Incluindo a Lei 13.089/2015, que instituiu o Estatuto da Metrópole. 2. ed. rev. e atual. Curitiba: Juruá, 2015.
[12] A Carta Outorgada de 1824, inspirada pelo direito emergente, alhures, não conseguiu escapar das fortes tendências absolutistas de D. Pedro I, cuja formação havia incontestavelmente seguido tal linha. Assim, além de proclamar um poder central forte e unitário – e aí merece destaque a premente necessidade de se zelar pela unidade de um país de grandes extensões territoriais, dispersa população e recém liberto dos laços coloniais – trazia, em seu bojo, sob a influência magna de Benjamin Constant, o de todos conhecidos Poder Moderador. A tripartição de poderes, materializada por Montesquieu em seu Do Espírito das Leis, era parcialmente modificada em prol de um adendo que, inicialmente, poderia até direcionar um objetivo harmonizador e, de certa forma, controlador, mas que, logo em seguida à sua fiel execução, mostrou-se um instrumento de garantia às pretensões imperiais, as quais deveriam prevalecer sobre todas as demais então presentes no Estado brasileiro que se formava. Passado o período imperial brasileiro, subdividido em dois reinados distintos, e diante de uma série de interesses, todos voltados para um rompimento monárquico e adoção de uma nova forma de governo – comportam especial destaque, dentre outros: a influência da aristocracia rural do oeste-paulista, detentora de poder econômico, mas ávida por maior entranhamento político; o descontentamento dos militares, vencedores da Guerra do Paraguai e também ansiando inserção no meio político; os problemas religiosos envolvendo a figura do imperador e as determinações papais, visto que a religião oficial no Brasil era a Catholica Apostólica Romana, com a aqui utilização da normas gramaticais à época vigentes; a insatisfação de uma crescente massa popular, ali composta de imigrantes, trabalhadores diversos e, principalmente, ex-escravos, libertos gradativamente pelas Leis Eusébio de Queiros, Saraiva-Cotegipe, Ventre-Livre e, finalmente, Áurea – surge o movimento republicano, do qual resulta a criação de uma nova ordem constitucional. A Constituição de 1891, nesse sentido, sob forte influência norte-americana, traz inovações de significativo vulto, tais como, dentre inúmeras outras, a adoção de uma forma de governo republicana, o federalismo, a tripartição tradicional dos poderes etc. Para um aprofundamento no tema, confira-se: BUENO, José Antônio Pimenta. Direito público brasileiro e análise da constituição do Império. Rio de Janeiro: Ministério da Justiça e Negócios Interiores, 1958; BARBOSA, Ruy. Comentários à Constituição Federal brasileira. São Paulo: Saraiva, 1932. v. 6; FAORO, Raymundo. Os donos do poder. 15. ed. São Paulo: Globo, 2000. v. I e II; NUNES, Edson. A gramática política do Brasil – clientelismo e insulamento burocrático. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997; TORRES, João Camilo de Oliveira. A democracia coroada. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1964. p. 25-257.
[13] Art. 113, n. 17, da Constituição de 1934, considerada o primeiro documento constitucional do país portador, ainda que de forma embrionária, do que viria a ser chamado de função social da propriedade.
[14] Ao não proibir.
[15] O primeiro, conforme em linhas anteriores já exposto, foi a Constituição brasileira de 1934.
[16] TEPEDINO, Gustavo (Org.). Problemas de Direito Civil – Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 412.
[17] Sedimentada teoria constitucionalista, amparada por decisões inúmeras dos pretórios nacionais, sustenta, corretamente, que os direitos e garantias fundamentais do cidadão brasileiro – note-se que o termo cidadão não deve ser encarado em seu sentido técnico, proveniente do conceito de cidadania, mas em sentido lato, abrangendo toda a população brasileira, inclusive estrangeiros residentes e em trânsito pelo território nacional – estão espalhados por todo o corpo da Constituição, mormente se acoplados a uma interpretação diversa da literal ou gramatical, expansiva, em contrapartida, a um processo hermenêutico sistemático, teleológico, histórico, conforme etc. Sobre interpretação constitucional, conferir: BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1999; COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação constitucional. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1997; LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989; REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 1994; SCHIER, Paulo Ricardo. Filtragem Constitucional. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1999; HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997; CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na Ciência do Direito. 2. ed. Tradução de António Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996.
[18] Art. 5º da Constituição Federal de 1988.
[19] FERRAJOLI, Luigi. Derechos y Garantias: la ley del más débil. 3. ed. Tradução de Perfecto Andrés Ibáñez e Andrea Greppi. Madrid: Trotta, 2002. p. 37-72.
[20] LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo. Tradução de Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2005.
[21] “No cabe llegar a ser jurídicamente más libres, mientras que sí es posible hacerse jurídicamente más ricos” (FERRAJOLI, Luigi. Derechos y Garantias, 2002, p. 47).
[22] Não se está aqui enfrentando o assunto na esfera de sua aplicação concreta, quando seria possível imaginar-se uma ponderação de alguns direitos tidos como fundamentais. De qualquer forma, pela própria política ponderativa, afasta-se ou se diminui momentaneamente a incidência de determinado princípio fundamental sem significar tal conduta qualquer restrição anômala do direito e, sim, uma melhor aplicação em prol do maior respeito aos próprios direitos fundamentais. Sobre o tema a doutrina jurídica é fértil, valendo citar: CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de Sistema na ciência do Direito. Tradução de António Menezes Cordeiro. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996; DWORKIN, Ronald. Los Derechos em Serio. Barcelona: Ariel, 1997; ALEXY, Robert. Colisão e ponderação como problema fundamental da dogmática dos direitos fundamentais. Palestra proferida na Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, em 10.12.1998; ALEXY, Robert. El concepto y la validez Del Derecho. Barcelona: Gedisa, 1997; ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993; ATIENZA, Manuel. As razões do Direito. São Paulo: Landy, 2000; LARENZ, Karl. Derecho justo – fundamentos de etica jurídica. Madrid: Civitas, 2001; PEIXINHO, Manoel Messias (Org.) et al. Os princípios da Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001; SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000; ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2004.
[23] Reforce-se o entendimento de Luigi Ferrajoli sobre o tema: “Podemos llamar normas téticas a las del primer tipo, que inmediatamente disponen las situaciones expresadas mediante ellas. Aqui entran no solo las normas que adscriben derechos fundamentales sino también las que imponen obligaciones o prohibiciones, como las normas del código penal y las señales de carretera. LLamaré, en cambio, normas hipotéticas a las del segundo tipo, que non adscriben ni imponen inmediatamente nada, sino simplemente predisponen situaciones jurídicas como efectos de los actos previstos por ellas. Entran aquí no solo las normas del código civil que predisponen derechos patrimoniales, sino también las que predisponen obligaciones civiles como efectos de actos negociales o contractuales” (FERRAJOLI, Luigi. Derechos y Garantias, 2002, p. 49). O autor afirma que as primeiras normas expressam a dimensão nomoestática do ordenamento, enquanto as segundas pertencem à sua dimensão nomodinâmica.
[24] FERRAJOLI, Luigi. Derechos y Garantias, 2002, p. 37. Para Danilo Zolo, “(…) fundamentales son solo aquellos derechos que ofrecen un tratamiento igual a todos los hombres en cuanto personas morales y ciudadanos del mundo y que, por tanto, les atribuyen iguales facultades jurídicas, prescindiendo de las relaciones de pertenencia a una determinada formación política, a una determinada tradición ético-cultural o a una ciudadanía” (ZOLO, Danilo. Libertad, Propriedad e Igualdad en la teoría de los derechos fundamentales. In: FERRAJOLI, Luigi. Los fundamentos de los derechos fundamentales. Madrid: Trotta, 2001. p. 83). Para, inclusive, uma crítica ao entendimento de que o direito de propriedade não seria um direito fundamental, pelas razões defendidas por Luigi Ferrajoli, conferir a mesma obra citada (ZOLO, Danilo. Libertad, Propriedad e Igualdad en la teoría de los derechos fundamentales. In: FERRAJOLI, Luigi. Los fundamentos de los derechos fundamentales. Madrid: Trotta, 2001. p. 75-104).
[25] BONIZZATO, Luigi. A Constituição Urbanística e elementos para a elaboração de uma teoria do Direito Constitucional Urbanístico. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
[26] Não se tem dúvidas, aqui, que o desenvolvimento teórico em torno de alguns princípios se mostra ainda insuficiente, tendo em vista seu alcance e a magnitude de diversas normas constitucionais. Quando no art. 3º, inc. IV, o legislador constituinte estabeleceu que um dos objetivos da República brasileira é a promoção do bem de todos e, quando, no art. 225, caput, determinou-se que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, certamente, a primeira noção que desponta é a de que tais dispositivos alcançam todos os seres humanos. O mesmo se diga, de forma ainda menos duvidosa, do caput do art. 5º, onde se lê que todos são iguais perante a lei, garantindo-se, ente outros, o direito à vida aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país. Complementa tal noção a previsão do princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil, nos termos do art. 1º, inc. III, da Constituição de 1988. No entanto, é imperioso notar que a principiologia constitucional, ainda que de forma não ostensiva, privilegia o bem-estar de todos, não apenas seres humanos, mas também seres vivos. Em outras palavras, deve-se interpretar as normas constitucionais de maneira a estender o alcance do direito à vida e à dignidade a todos os seres vivos (lembrando que o art. 225, § 1º, inc. VII, condena práticas que coloquem em risco a função ecológica da fauna e da flora e as que submetam os animais a crueldade) e não somente a todos os seres humanos. O direito dos animais, ainda muito pouco desenvolvido entre nós, sobretudo teoricamente, merece muito maior atenção e sua correta investigação e evolução representará um avanço hermenêutico fundamental para um Estado que objetiva garantir o bem de todos. O tema aqui é apenas anunciado e, para aprofundamento específico, citam-se os seguintes trabalhos: CASTRO, João Marcos Adede Y. Direito dos animais na legislação brasileira. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2006; RODRIGUES, Danielle Tetü. O Direito & os animais: uma abordagem ética, filosófica e normativa. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2008. Mas caberá ao Direito Constitucional e à teoria especializada desenvolverem-se de maneira a não mais existirem dúvidas de que a dignidade da vida, incluindo a dos animais, possui contornos não conflitantes com a dignidade da pessoa humana, podendo-se cogitar, até mesmo e, sob determinado foco, que esta última estaria inserida nos lindes daquela. Em sucinta anunciação do tema, também já se pronunciou Ingo Sarlet, também em nota de rodapé de artigo intitulado As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma compreensão jurídico-constitucional necessária e possível: “Tais questionamentos, por sua vez, nos remetem à controvérsia em torno da atribuição de dignidade e/ou direitos aos animais e demais seres vivos, que, de resto, já vem sendo reconhecida por alguma doutrina. Sem que se vá adentrar este campo, desde logo nos parece que a tendência contemporânea de uma proteção constitucional e legal da fauna e flora, bem como dos demais recursos naturais, inclusive contra atos de crueldade praticados pelo ser humano, revela no mínimo que a própria comunidade humana vislumbra em determinadas condutas (inclusive praticadas em relação a outros seres vivos) um conteúdo de indignidade. Da mesma forma, considerando que nem todas as medidas de proteção da natureza não humana têm por objeto assegurar aos seres humanos sua vida com dignidade (por conta de um ambiente saudável e equilibrado), mas já dizem com a preservação — por si só — da vida em geral e do patrimônio ambiental, resulta evidente que se está a reconhecer à natureza um valor em si, isto é, intrínseco. Se com isso se está a admitir uma dignidade da vida para além da humana, tal reconhecimento não necessariamente conflita (nem mesmo por um prisma teológico) com a noção de dignidade própria e diferenciada da pessoa humana, que, à evidência, somente e necessariamente é da pessoa humana” (SARLET, Ingo Wolfgang. As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma compreensão jurídico-constitucional necessária e possível. Revista Brasileira de Direito Constitucional, Método, n. 09, p. 372, jan./jun. 2007).
[27] Para aprofundamento, conferir: BOLONHA, Carlos; BONIZZATO, Luigi; MAIA, Fabiana (Coords.). Teoria Institucional e Constitucionalismo Contemporâneo. Curitiba: Juruá, 2016.
[28] DAIBERT, Arlindo. Notas sobre proteção ambiental e Direito de propriedade no Direito brasileiro. In: FACHIN, Luiz Edson; TEPEDINO, Gustavo (Coord.). O Direito e o tempo: embates jurídicos e utopias contemporâneas. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 578. Deve-se sempre e apenas evitar uma ‘futurização’ excessiva do Direito Ambiental, de maneira a não se deixar levar por discursos demagógicos de que se está trabalhando em prol das gerações futuras, razão pela qual resultados ainda não são observados e verificados no presente.
[29] CRUZ, Branca Martins da. Desenvolvimento sustentável e responsabilidade ambiental. In: Direito e Ambiente. Revista do Instituto Lusíada para o Direito do Ambiente, Universidade Lusíada, a. I, n. 1, p. 34, out./dez. 2008.
[30] Reforça-se, mais uma vez, a crítica aqui já proferida à tendência demagógica de se ‘futurizar’ o Direito Ambiental.
[31] Acrescente-se o Estatuto da Metrópole, Lei 13.089, de 12.01.2015, pelo qual também se defende a participação popular e respeito
[32] “O Ministério da Justiça propôs veto aos seguintes dispositivos: inciso V do art. 43 – ‘Art. 43. (…) V – referendo popular e plebiscito’. E estas foram as razões do veto, in verbis: “Tais instrumentos de exercício da soberania popular estão disciplinados na Lei 9.709, de 18 de novembro de 1998, que, em seu art. 6o, admite a sua convocação por parte de Estados e Municípios, na forma determinada pela Constituição Estadual ou Lei Orgânica Municipal. Há, portanto, no ordenamento jurídico pátrio, permissivo legal para a utilização destes mecanismos por parte dos Municípios, desde que observados os ditames da Lei Orgânica Municipal, instrumento constitucionalmente habilitado a regular o processo político em âmbito local. Instituir novo permissivo, especificamente para a determinação da política urbana municipal, não observaria a boa técnica legislativa, visto que a Lei 9.709/98 já autoriza a utilização de plebiscito e referendo popular em todas as questões de competência dos Municípios”.
[33] Assim estatui o art. 4º, inc. V, alínea “s”, do Estatuto da Cidade: “Art. 4º. Para os fins desta Lei, serão utilizados, entre outros instrumentos: (…) V – institutos jurídicos e políticos: (…) s) referendo popular e plebiscito”. Note-se que tal previsão é genérica e não foi alvo de veto por parte do Presidente da República. No entanto, a previsão específica dos institutos citados, no capítulo destinado à gestão democrática da cidade, foi atacada pelo veto presidencial. De qualquer forma, deve o ordenamento naturalmente caminhar para a consolidação de formas eficazes de participação popular em processos decisórios e em políticas públicas diversas, uma vez que não falta estrutura legal, seja no âmbito federal, seja no estadual ou municipal, permissiva e, de alguma maneira, incentivadora da participação direta da população em processos até pouco tempo reservados apenas à esfera estatal.