Abordagens Axiológicas e a Ética para o Consumo em Razão da Obsolescência Programada e da Responsabilidade Civil Ambiental
DOI: 10.19135/revista.consinter.00005.08
Beatriz Souza Costa[1]
Ana Maria Alves Rodrigues Varela[2]
Resumo: O artigo elucida a responsabilidade civil em razão da obsolescência programada, prática empresarial que visa fomentar o consumismo, colocando em risco a sadia qualidade de vida e o meio ambiente ecologicamente equilibrado. Para tanto, parte de uma abordagem axiológica do leading case da empresa Apple ao analisar de forma crítica o julgamento do processo 0024249-68.2013.8.219000/ RS. Como resultado, demonstrar-se-á se existe responsabilidade civil ambiental quando um fornecedor intencionalmente reduz a duração de um produto, induzindo o consumo sem ética, e inobserva a boa-fé. Para a consecução do trabalho foi utilizado o método teórico-jurídico com raciocínio dedutivo e técnica de pesquisa bibliográfica e documental.
Palavras-chave: Obsolescência programada; Meio Ambiente; Responsabilidade civil ambiental; Boa- fé objetiva; Consumismo.
Abstract: The article elucidates the civil responsibility due to the programmed obsolescence, a business practice that aims to foment consumerism, putting in risck the healthy quality of life and risking the environment ecologically balanced. For this, an axiological approach of the Apple Company Leading Case was choosen analyzing critically the trial process 0024249-68.2013.8.219000 / RS. As a result, it is intended to demonstrate whether there is environmental civil liability when a supplier intentionally reduces the life of a product, inducing consumption unethically and disregarding the Good Faith. The theoretical-juridical method with deductive reasoning and bibliographic and documentary research technique were used for the accomplishment of the work.
Keywords: Planned obsolescence; Environment; Environmental liability; Good objective faith; Consumerism.
1 INTRODUÇÃO
É imperativo reconhecer que antes da Revolução Industrial o desenvolvimento econômico – social era marcado por atividades essencialmente braçais, as quais não representavam maiores riscos para o meio ambiente. O homem, até então, tinha a natureza como essencial mantenedora de suas atividades.
O século XVIII trouxe consigo novas descobertas científicas e inovações tecnológicas, caracterizadas, em sua quase totalidade pela utilização inadvertida dos recursos naturais, como se inesgotáveis fossem. Essa foi a tônica que levou o homem a grandes transformações dos mais diversos proêmios, inclusive fazendo-o alterar seus valores e estilo de vida.
Necessário também reconhecer que a partir de então há o advento da mecanização dos sistemas de produção e o incremento das transações comerciais, possibilitando o acúmulo de riquezas e consolidação do Capitalismo. Em suma: o deflagrar da Revolução Industrial reinventou o modo de vida humano por alterar as relações sociais e de trabalho e promover o aumento da expectativa de vida.
Lado outro, a sociedade de consumo de massa, marcada pelo consumo desenfreado e pela degradação ambiental, se fez presente no século XX.
Um dos motores da circulação de mercadorias é a estratégia denominada obsolescência programada, por meio da qual os fabricantes deliberadamente encurtam o ciclo de vida útil do produto, gerando constantes substituições, com o fito de alavancaras vendas no mercado, garantido, com a referida manobra, a manutenção da lógica do sistema em si.
Entretanto, tal prática enaltece o prêt à jeter[3], tornando-se responsável por graves problemas ambientais, como por exemplo, a disposição de resíduos sólidos no ambiente, a contaminação dos lençóis freáticos, a poluição atmosférica, dentre outros.
O problema da obsolescência é tão grave atualmente que se faz menção não apenas a sua forma tradicional, como também a obsolescência indireta, a obsolescência por incompatibilidade e a obsolescência psicológica.
Paradoxalmente, na segunda metade do século XX, questões relativas ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e a sadia qualidade de vida começaram a despertar o interesse da sociedade global, apontando novos axiomas. Foi a partir de então que sociedade e governos, em virtude da constatação de que a existência humana no planeta é intimamente dependente da constância dos atributos ambientais impôs aos recursos naturais uma nova valoração, materializada, inclusive, por meio de normas jurídicas.
Dessa forma, por meio da chamada transvaloração de valores, se faz possível a alteração do arquétipo instalado, ainda que de forma lenta e gradual, ao propor que a sociedade adote o modelo de desenvolvimento sustentável, pautado na proteção socioambiental e no desenvolvimento econômico, tanto para as presentes quanto para as futuras gerações.
De outro giro, há que se notar a existência do contato entre o direito e a moral, sendo certo que a ciência do Direito é um fenômeno complexo, composto pelo fato, valor e a norma. Assim, pautados pela percepção da necessidade de proteção ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, diversos ordenamentos jurídicos começaram a inserir normas de cunho ambiental.
No Brasil, o art. 225 da Constituição Federal tutela o meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem como outras tantas normas infraconstitucionais tratam de questões atinentes a responsabilidade civil por danos ambientais, a proteção do consumidor, a gestão de recursos sólidos e outros tantos exemplos que coadunam com o conceito de desenvolvimento sustentável.
Na União Europeia é nítida a preocupação com o consumo mais sustentável, levando em conta o ciclo de vida dos produtos industriais e a informação do consumidor, de modo a promover a proteção ambiental, como se depreende do Parecer do Comitê Econômico e Social Europeu – CESE, por um consumo mais sustentável: O ciclo de vida dos produtos industriais e informação do consumidor a bem de uma confiança restabelecida.
Em 2015, o Código do Consumidor francês, por exemplo, sancionava as empresas que comprovadamente se valessem da técnica da obsolescência programada, com dois anos de prisão e multa de 300 mil Euros, plausíveis de majoração.
Em que pese não existir uma lei específica que vede a obsolescência programada, no Brasil, existe todo um arcabouço jurídico que não corrobora com tal prática, a começar do § 3º, do art. 225 da Constituição Federal, dispondo sobre a tríplice responsabilização, e, especialmente, designando a imputação da responsabilidade civil objetiva, isto é, aquela que exime o elemento culpa, por parte do poluidor. Em termos de legislação ordinária, a responsabilidade civil objetiva por danos causados ao meio ambiente também é evidenciada no art. 14, § 1º, da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente e do art. 927, Parágrafo único do Código Civil vigente.
Ademais, as decisões judiciais começam a se valer de axiomas como a veracidade e a lealdade, a despeito da inexistência de uma norma jurídica expressa, amoldada a perfeição ao caso, como ocorreu no processo julgado no Rio Grande do Sul, em que o telefone celular iPhone 3G, se tornou imprestável para o uso em virtude do lançamento de nova versão do sistema IOS, com poucos meses de uso do aparelho pela consumidora.
Nesse viés, o presente artigo seguirá uma linha de exposição em quatro capítulos. Primeiramente, serão abordadas considerações gerais acerca da relação íntima que existe entre Direito e Moral, perpassando pelo Positivismo Jurídico de Kelsen e o expurgo dos valores para a compreensão do que era tido por jurídico, na transvaloração dos valores de Nietzsche e por fim, na Teoria Tridimensional de Miguel Reale.
Após ocorrerá uma abordagem quanto à obsolescência programada, tanto no ponto de vista conceitual e histórico, bem como a interface da degradação do meio ambiente, em contraponto com a ética do consumo e a educação ambiental, inferindo a Teoria da Sociedade de Risco e da Modernidade Líquida. Também serão tratadas as alterações de valores sociais que acabaram por inserir normas nos ordenamentos jurídicos e/ ou ensejarem julgados combatendo a referida técnica.
Posteriormente, realizar-se-á a análise quanto a responsabilidade civil ambiental em razão da obsolescência programada, no Brasil.
Serão apresentadas, no último capítulo, as considerações finais, as quais a partir da análise axiológica do caso Apple, mormente o elucidado no julgado 0024249-68.2013.8.219000/ Rio Grande do Sul, pretendendo-se responder se é civilmente responsável o fornecedor de produtos pela prática da estratégia da obsolescência programada, bem como se estaria o fornecedor a macular o meio ambiente ecologicamente equilibrado e o princípio da Boa-Fé que deve pautar as relações de consumo.
Para o desenvolvimento desse artigo será adotado o método teórico-jurídico com raciocínio dedutivo e técnica de pesquisa bibliográfica e documental.
2 UM NOVO TEMPO, UM NOVO DIREITO
Atualmente, tem-se por certo que apesar de distintos, o direito e a moral se amoldam intimamente. Tal afirmação foi se clarificando no decorrer das épocas. Na sociedade primitiva não havia diferenciação entre direito, moral e religião, materializando a severidade dos costumes e a coação religiosa. Para Paulo Dourado de Gusmão:
Na sociedade pré-letrada a regra do direito se confundia com a moral. Porém, nesse remoto passado, direito moral e religião não se diferenciavam. Mesmo nas altas civilizações há infiltração da moral no direito. Infiltração constatável facilmente no direito privado e no direito penal. Neste, regras morais, como por exemplo, não matar, não furtar, respeitar os mortos, os túmulos, os cultos e os símbolos sagrados, são impostos pela norma penal, enquanto no direito privado é no direito de família que os deveres e as regras morais estão presentes. (GUSMÃO, 2008, p. 71)
Em apertada síntese os romanos, ao estruturar o direito, o definiam como a arte do bom e do justo, sendo que o Jurisconsulto Paulo, afirma Gusmão, “talvez compreendendo a particularidade do direito sustentou que o permitido pelo direito nem sempre está de acordo com a moral” (2008, p. 69).
A dissociação entre direito e moral ocorre na Idade Média e na Idade Moderna, oportunidade em que foram completamente apartados. Gusmão ilustra:
[…] Kant atribuiu à moral o julgamento dos motivos, das resoluções, da intenção e da consciência, enquanto ao direito, a disciplina da conduta exterior do homem e da manifestação da vontade. Por isso, diz Kant, o direito é coercitivo, enquanto a moral incoercível. […] Todavia, alguns juristas como Jellinek, entre outros, definiram o direito como mínimo ético. (GUSMÃO, 2008, p. 70-71)
A Idade Moderna presenciou o nascimento do Positivismo Jurídico, escola que pensou o Direito como ciência autônoma, tendo como um dos grandes teóricos, o jurista Hans Kelsen. Segundo o Positivismo Jurídico não existiria nenhum outro direito, a exceção dos produzidos pelas ações políticas-legislativas, materializadas nas normas jurídicas, independentemente de seu conteúdo, posto que fontes do direito.
O fenômeno jurídico, conforme o Positivismo Jurídico, encontra-se distanciado de avaliações morais, sendo que sua validade também se mostra apartada de valores como o que é justo e correto. A norma jurídica, como já dito, desde que produzida pelas autoridades competentes pode ter diversos conteúdos, ainda que não expresse valores morais.
Kelsen, assim define sua teoria:
A Teoria Pura do Direito propõe uma análise estrutural de seu objeto e, portanto, expurga de seu interior a justiça, a sociologia, as origens históricas, as ordens sociais determinadas, etc. A ela não se defere a tarefa de empreender todo esse estudo, mas de empreender uma sistematização estrutural do que é jurídico, propriamente dito. (KELSEN, 1998)
Enfrentando o tema, Fábio Ulhoa Coelho preleciona:
[…] de modo geral, positivista tem sido considerado tanto aquele autor que nega qualquer direito além da ordem jurídica posta pelo Estado, em contraposição às formulações jusnaturalistas e outras não formais, como o defensor da possibilidade de construção de um conhecimento científico acerca do conteúdo das normas jurídicas. (COELHO, 2012)
Contemporaneamente, busca-se a reaproximação entre o direito e a moral, já que uma das falhas do positivismo kelseano reside justamente na dissociação entre ambos. Assim, o aspecto axiológico, ou seja, a teoria filosófica responsável por investigar valores, especialmente os valores morais, se aproxima a passos largos da ciência jurídica, repercutindo na seara ambiental e consumerista.
Para Miguel Reale (2001), o direito é tridimensional, na medida em que contempla três aspectos básicos, sendo o primeiro aspecto o normativo – o direito como ordenamento e sua respectiva ciência; o segundo aspecto o fático – entendido como fato social e histórico e o terceiro aspecto o axiológico – valor ligado a ideia de Justiça.
Nesse ponto pode- se entabular um contato com a filosofia de Nietzsche, especificamente em relação à por ele denominada transvaloração dos valores.
A transvalorazação dos valores estabelece a substituição dos valores vigentes (inapropriados) por valores mais adequados à realidade humana, possibilitando a contingência da degradação ambiental, por exemplo.
Maria Rosane Junges, ao estudar o autor, define a transvaloração de valores por meio do seguinte entendimento:
O pensador questiona quais são nossos critérios para valorar algo, bem como quais eram os valores vigentes, o valor destes valores. Assim, criar novos valores é imperativo, mas algo que não é destinado a todos, mas tão somente aos fortes de espírito, e não para as ovelhas do rebanho […]. (JUNGES, 2016, p. 99)
Oliveira e Trindade (2016) explicam a transvaloração dos valores, levando em conta o fim em si mesmo, isto é, o mundo não ocorre de acordo com o progresso retilíneo que intenta um fim, como uma valoração de cunho cristão, em que se tome, por exemplo, o céu e o inferno. O mundo tal qual afirmavam os gregos, seria um eterno retorno. Partem ainda de outros conceitos, o amor fatie o super-homem.
Reale e Antiseri (2006, p. 14), elucidam o amor fati como “amar o necessário, aceitar esse mundo e amá-lo”.
Simultaneamente à transvaloração dos valores, um novo homem deverá surgir para romper com os axiomas que permeiam a sociedade – valores inferiores: bondade, humildade, piedade – ou na expressão de Nietzsche, um “Super-homem” será o responsável pela cessação do modelo social.
O “Super-homem” é o encarregado das transformações axiológicas, as quais para Oliveira e Trindade “não estariam mais vinculados à metafísica que guia os fracos e vencidos. Os novos valores seriam uma afirmação da vida e todos os seus prazeres, que são considerados pecaminosos pelo cristianismo”. (2016, p. 134).
Segundo Nietzsche:
A moral do além-do-homem, que vive esse constante perigo e fazendo de sua vida uma permanente luta, é a moral oposta à do escravo e do rebanho. Oposta, portanto, à moral da compaixão, da piedade, da doçura feminina e cristã. […] O forte é aquele em que a transmutação dos valores faz triunfar o afirmativo na vontade de potência. (NIETZSCHE, 1999, p. 13)
Reali e Antiseri assim explicam:
O homem deve inventar o homem novo que deve vir, que vai além do homem, um homem que- voltando as costas para as quimeras do céu- voltará para a sanidade da terra, um homem cujos valores são a saúde, a vontade forte, o amor, a embriaguez dionisíaca e um novo orgulho. (REALE; ANTISERI, 2006, p. 14)
Logo, a valorização da vida terrena, levada a cabo pelo Super-homem, permitiria a preservação do meio em que vive. Oliveira e Trindade explicitam:
[…] levando em consideração a atuação na natureza, do homem fraco- egoísta que preocupa tão somente com a salvação de sua alma- provoca o desequilíbrio dos ecossistemas, extinção de espécies, mudanças climáticas e desastres ambientais, é fundamental que ocorra uma transvaloração, a fim de que os novos homens fortes valorizem a realidade terrena e preservem, assim, a natureza. (OLIVEIRA; TRINDADE, 2016, p. 135-136).
A mudança de valores, dentre eles, o respeito e preservação ambiental para as presentes e futuras gerações, o consequente expurgo do consumismo, o desmantelar da obsolescência programada seria, conforme o pensamento de Nietzsche, inerente a vontade humana, em virtude de sua importância, e, não como preceituaria Kelsen, pela sanção advinda de uma norma jurídica estabelecida por agentes legalmente constituídos.
2 A OBSOLESCÊNCIA PROGRAMADA COMO MOTOR DO CONSUMISMO E DA DEGRADAÇÃO AMBIENTAL x NOVO PARADIGMA ÉTICO PARA O CONSUMO
Discorrem Vieira e Reis (2016) que o consumo dos indivíduos antes da Revolução Industrial era lastreado no que naturalmente se produzia ou ainda mediante a caça e pesca. Tal paradigma foi brutalmente esgarçado, sobretudo a partir do século XVIII, donde se verifica o surgir de um novo estilo de vida.
Elucidam Varela e Carvalho:
A produção de riqueza desencadeou a produção de riscos afetando diretamente o meio ambiente ecologicamente equilibrado, a sadia qualidade de vida, comprometendo a vida no presente e no futuro, e, assim, a sociedade tornou- se, como diria o próprio Beck (2003), a sua própria autoameaça. (VARELA; CARVALHO, 2016, p. 142)
Dois séculos depois, Ulrich Beck, (2003), identifica a Segunda Modernidade ou Sociedade de Risco, a qual é baseada em um estilo de vida extremamente dependente da utilização de recursos naturais, sendo, portanto, responsável pelas ameaças globais, como os riscos ecológicos, químicos, nucleares, genéticos, econômicos e demográficos. Fato notório é que a sociedade de risco vivencia a era da obsolescência programada, do consumo desenfreado e da profunda degradação ambiental.
Entende-se como obsolescência programada a estratégia utilizada pelos fabricantes para que os produtos apresentem um ciclo de vida reduzido, de modo a demandar constantes substituições, fomentando o mercado Capitalista, o qual adota o modo de produção industrial que requer a constante renovação de seus produtos e geração de lucros.
Em conformidade com o Parecer do Comitê Econômico e Social Europeu – CESE: por um consumo mais sustentável, o ciclo de vida dos produtos industriais e informação do consumidor a bem de uma confiança restabelecida, proferido na 493a reunião plenária, ocorrida entre de 16 e 17 de outubro de 2013, o qual por 178 votos a favor, 1 voto contra e 5 abstenções, a obsolescência programada pode ser conceituada como:
[…] a degradação de um material ou de um equipamento antes da sua deterioração material pelo uso a ponto de perder valor e utilidade por razões independentes do seu uso físico, mas ligadas ao progresso técnico, à evolução dos comportamentos, à moda, etc. (BRUXELAS, 2013)
Ainda em conformidade com o Parecer, a obsolescência programada se manifesta de diversas formas, a saber:
A obsolescência programada em sentido restrito, que consiste em prever uma duração de vida reduzida para o produto, caso necessário introduzindo um dispositivo interno que determine o fim da vida do aparelho após um certo número de utilizações.
A obsolescência indireta, ligada geralmente à impossibilidade de reparar um produto por falta de peças adequadas ou porque a reparação se revela impossível (como no caso das pilhas soldadas ao aparelho eletrônico).
A obsolescência por incompatibilidade, como, p. ex., no caso dos programas informáticos que deixam de funcionar quando da atualização do sistema de exploração; esta obsolescência está ligada à obsolescência do serviço pós-venda, que faz com que o consumidor tenda mais a comprar um novo produto do que a reparar um antigo, em parte devido ao prazo e ao preço da reparação.
A obsolescência psicológica, ligada às campanhas publicitárias das empresas que procuram tornar os produtos existentes obsoletos na mente dos consumidores. De nada serviria obrigar um fabricante de tablets digitais a produzir objetos com uma duração de vida de 10 anos se os nossos modelos de consumo nos fazem desejar mudar de produto cada dois anos. A título de exemplo, a periodicidade seria de 20 meses em média para a renovação de um telemóvel (esta renovação é de 10 meses para os jovens de 12 a 17 anos). Apesar da sua importância, o parecer examina apenas os três primeiros pontos; o 4.o merece uma análise específica relativa aos modelos de consumo. (BRUXELAS, 2013)
Com o escopo de combater a técnica empresarial o CESE pondera que as empresas facilitem a reparação dos seus produtos, tornando a reparação tecnicamente possível, viabilizando aos consumidores a alternativa de adquirir peças sobressalentes até cinco anos após a aquisição da mercadoria, sendo que no ato da compra deve haver a informação sobre as possibilidades de reparação e a forma de as utilizar.
Para o Código do Consumidor francês, desde 2015, trata- se do conjunto de técnicas pelas quais uma empresa reduz deliberadamente o ciclo de vida de um produto para aumentar a taxa de substituição.
Tal artimanha empresarial diz Varela e Carvalho:
[…] remontam aos anos de 1920, oportunidade em que os fabricantes de lâmpadas, de todo o mundo, se reuniram em Genebra, episódio que ficou conhecido como “Conspiração da Lâmpada ou Lâmpada de Livermore”. (VARELA; CARVALHO, 2016, p. 145)
Diante da crise de 1.929 e a considerável queda na circulação de mercadorias, entabulou London (1933), que a prática obsolescência programada deveria ser obrigatória. Diz ainda London (1933) que a crise seria combatida com êxito se as pessoas continuassem comprando, para tanto, a redução do ciclo de vida útil do produto fortaleceria as indústrias, além de assegurar emprego aos trabalhadores.
Maria Beatriz Oliveira da Silva (2012), explica que a Ford tinha motores imbatíveis quando se levava em consideração os quesitos de durabilidade, qualidade e resistência. Já a Chevrolet investiu no design dos automóveis. “Assim, a Ford tem motor, mas a Chevrolet tem design, e a cada novo design o anterior fica ‘velho’ exigindo a troca em períodos cada vez mais curtos. O forte e velho Ford não tinha mais lugar no mercado” (SILVA, 2012, p. 183).
Silva (2012), ainda apresenta outros exemplos em que nitidamente pode-se vislumbrar a utilização da estratégia da obsolescência programada: com o nylon a fabricação de meias com fios de alta durabilidade e resistência se tornou possível, porém inviável a guisa dos fabricantes.
O defeito intencional nos produtos acarreta a aceleração dos padrões de consumo, além de comprometer meio ambiente; o aspecto social, cultural e econômico; a saúde pública e os valores éticos e morais.
De acordo com o Parecer CESE, já mencionado, o qual utilizou de dados da Organização de Desenvolvimento Econômico (OCDE), um cidadão europeu consome cerca de 43 kg de recursos naturais diários, ao passo que um cidadão africano uma média de 10 kg de recursos ao dia.
Tomando por base os dados fornecidos pela OCDE, o Parecer do CESE afirma que o consumo anual de matérias-primas levando em conta apenas a Europa, gira em torno de 60 mil milhões de toneladas, por ano, o que contabiliza um acréscimo de 50 % a mais de recursos naturais do que se consumia há 30 anos.
Ainda de acordo com o CESE e a OCDE, com base nos níveis conhecidos no ano de 1999, a taxa de crescimento anual da sua produção primária de 2 %, as reservas de cobre, chumbo, níquel, prata, estanho e zinco não ultrapassariam 30 anos, ao passo que as de alumínio e ferro se situariam entre 60 e 80 anos.
Assim, aproxima-se uma fase de escassez para um número cada vez maior de materiais, corroborando com a ideia de finitude dos recursos ambientais. Além disso, dados aferidos em 2012 pela OCDE e utilizados no Parecer CESE dão conta que são gerados todos os anos na Europa 10 mil milhões de toneladas de resíduos de equipamentos elétricos e eletrônicos (REEE), um volume deve chegar aos 12 milhões em 2020.
No âmbito social, especialmente nas classes menos abastardas, a obsolescência programada provoca uma crise comportamental, fazendo com que os indivíduos sejam alvo fácil para as compras a crédito, fomentando o endividamento. Ademais, em classes menos favorecidas acaba-se optando pela aquisição de produtos com menor qualidade e menos sustentáveis.
A saúde pública é frontalmente afetada devido à toxicidade dos componentes eletrônicos, desprovidos de reciclagem, acabam por ser incinerados em países asiáticos e da América Latina.
Do ponto de vista econômico percebe- se a nítida redução da vida útil do produto. Já no aspecto cultural, compromete- se a confiança, credibilidade e a responsabilidade entre consumidores e fabricantes, alijando tais valores.
Varela e Carvalho sustentam:
[..] a degradação ambiental consubstancia-se no consumo desmedido da população, estimulado pela prática da demanda do mercado (que se funda na busca pelo crescimento econômico) e com o uso da obsolescência programada que acaba por se transformar em um dos entraves para o meio ambiente ecologicamente equilibrado. A ideia de infinitude dos recursos naturais utilizados no processo produtivo das mercadorias lançadas ao mercado tende a aumentar o número de lixo despendido ao meio, ainda mais em se tratando de obsolescência programada. (VARELA; CARVALHO, 2016, p. 147)
Lado outro o consumo é ato inerente ao homem o qual alocado em sociedade, demanda de vários itens como alimentos, vestuário, moradia, fármacos, dentre outros tantos. Contudo, a forma de consumo propagada pelo Capitalismo, cujo baluarte é a circulação de mercadorias, para a consecução de lucro mais vertiginoso, refuga os valores morais e a ética. Nesse sentido apontam Gabriella Vieira e Elcio Nacur:
Em primeira análise, o consumo é prática normal, corriqueira do cotidiano. Entende- se que consumir é ato inerente da natureza do homem, pois para sua sobrevivência precisa de alimentos. Medicamentos, moradias, dentre outros que se configurem como essenciais. Por se tratar de uma prática natural à espécie humana, o consumo deve ser considerado saudável quando praticado de forma consciente e de acordo com suas necessidades para a sua sobrevivência. (VIEIRA; NACUR, 2015, p. 67)
Para se atingir as metas colimadas, o Capitalismo acabou por impor aos consumidores, por meio da implementação de diversas técnicas, um estilo de vida que dá azo às ameaças globais: diuturnamente se tem notícia de riscos ecológicos, químicos, nucleares, genéticos, econômicos e demográficos, inaugurando uma sociedade mergulhada no risco.
Fugindo da básica noção de consumo, o homem se torna ávido por consumir, e, sofre interferências que o compele a acreditar que algo é trivial, quando de fato não é. Nessa esteia dizem Elucidam Bruno Torquato de Oliveira Naves e Franclim Jorge Sobral de Brito:
Debruçar o olhar sobre a relação homem-natureza torna-se cada vez mais importante diante da frenética sede de apropriação que move o ser humano do século XXI, caracterizado pelo ardor enfurecido de possuir, adquirir, somar, descobrir e manipular. O homem moderno ofuscou sua semelhança com o Divino e se fez divino para si, colocando-se no centro da existência. Se no “velho mundo” o homem não encontrava respostas às suas infindáveis perguntas, porque estas estavam para além-Cosmos, o “novo mundo” o desafia a encontrar novas respostas que estão no interior da sua própria ação desgovernada, o que anseia por possuir, atropelando o idílico frescor da existência. (NAVES; BRITO, 2012, p. 1.515)
Na verdade, é conclamado a adquirir produtos, inclusive os mais supérfluos, sem analisar impacto ambiental causado, em nome de desejos que geram uma satisfação enganosa.
Quanto aos desejos e a pseudo satisfação, oportunas são as considerações de Zygmunt Bauman:
Aparentemente o consumo é algo banal, até mesmo trivial. É uma atividade que fazemos todos os dias. Se reduzido à forma arquetípica do ciclo metabólico de ingestão, digestão e excreção, o consumo é uma condição, e um aspecto, permanente e irremovível, sem limites temporais ou históricos; um elemento inseparável da sobrevivência biológica que nós humanos compartilhamos com todos os outros organismos vivos. […] Já o consumismo, em aguda oposição às formas de vida precedentes, associa a felicidade não tanto à satisfação de necessidades (como suas “versões sociais” tendem a deixar implícito), mas a um volume e uma intensidade de desejo sempre crescentes, o que por sua vez implica o uso imediato e a rápida substituição dos objetos destinados a satisfazê-la. (BAUMAN, 2008, p. 37)
O consumismo vincula- se com a falta de educação e ética, tanto para o consumo quanto ambiental, haja vista que durante um longo período de tempo perdurou a máxima de uso infinito dos recursos naturais e ausência de responsabilidade (ética e civil) dos fornecedores e consumidores.
Fato é que em meio ao trinômio obsolescência programada-consumismo-lucro versus preservação do meio ambiente e valores morais e éticos contemporâneos logrou a França, em 2015, como citado anteriormente, em seu Código do Consumidor, no art. L. 213-4-1, em estabelecer severas penalidades para as empresas que lancem mão da obsolescência planejada.
Tal norma jurídica visa rechaçar a técnica empresarial, divorciada de valores morais e éticos, e previa a punição de dois anos de prisão, além de multa de trezentos mil Euros, passíveis de majoração, de forma proporcional aos benefícios derivados da violação, à razão de 5% das vendas anuais médias, calculados sobre os últimos três anos, contados do conhecimento dos fatos.
Art. L. 213-4-1. I. L’obsolescence programmée se définit par l’ensemble des techniques par lesquelles um metteur sur lemarché vise à réduire délibérément ladurée de vie d’un produit pour en augmenter letaux de remplacement.
II.- L’obsolescence programmée est punie d’une peine de deuxans d’emprisonnement et de 300 000 € d’amende.
III.- Le montant de l’amende peut être porté, de manière proportionnée aux avantages tirés du manquement, à 5 % duchiffre d’affaires moyenannuel, calculé sur les trois derniers chiffres d’affaires annuelsconnus à la date desfaits[4]. (FRANÇA, 2015)
Todavia, pouco tempo depois, a lei foi alterada minorando as possíveis sanções àqueles que propositalmente encurtassem a vida útil de seus produtos.
Art. L. 441-2 [Créé par Ordonnance 2016-301 du 14 mars 2016]. Est interdite la pratique de l’obsolescence programmée qui se définit par le recours à des techniques par lesquelles le responsable de la mise sur le marché d’un produit vise à en réduire délibérément la durée de vie pour en augmenter le taux de remplacement[5].(FRANÇA, 2016)
A obsolescência programada é uma problemática de matizes ambientais, sociais, culturais, econômicos, éticos- morais e de saúde pública.
Na função de baliza da licitude, confiança e boa-fé (ideias já unidas etimologicamente pela noção de fides) conectam-se funcionalmente, uma sintetizando a proteção das legítimas expectativas, outra traduzindo as exigências de probidade e correção no trafego jurídico. Atuam, pois, coligadamente para coibir condutas que defraudem a expectativa de confiança – seja aquele grau mínimo de confiança que torna pensável a vida social, seja a confiança qualificada por uma especial proximidade social entre as partes, como ocorre na relação pré-contratual. Isto porque não é nem sequer pensável a comunicação (entendida como meio de entendimento e de coordenação da ação humana), senão havendo a observância de regras éticas elementares, como veracidade e lealdade, a que correspondem os conceitos complementares de credibilidade e responsabilidade. (COSTA, 2008, p. 57).
Situações como essas são justificadas na medida em que o direito assistiu a decadência do positivismo e atualmente busca a reaproximação com a ética e valores morais, tanto é assim que o Código Civil brasileiro tem como princípios a eticidade, a socialidade e a concretude.
3 A RESPONSABILIDADE CIVIL AMBIENTAL EM RAZÃO DA OBSOLESCÊNCIA PROGRAMADA, O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA E O CASO APPLE
Afirmam Viera e Rezende:
A responsabilidade civil clássica era composta de três pressupostos: o dano, o nexo de causalidade e a conduta. Em matéria ambiental, por força de lei, não há que se falar em culpa. A responsabilidade é objetiva, prescindindo da averiguação de culpabilidade do agente […]. (VIEIRA; REZENDE, 2015, p. 71)
O ordenamento jurídico brasileiro, tomando por base a letra do art. 225, § 3º, da Constituição Federal, do § 1º, do art. 14 da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente e do art. 927, Parágrafo único, do Código Civil, adota nitidamente a responsabilidade civil objetiva por danos ambientais, tendo por escopo a imputação àquele que causar dano ambiental, a obrigação de reparação do dano.
De acordo com Caio Mário da Silva Pereira:
A doutrina objetiva, ao invés de exigir que a responsabilidade civil seja resultante dos elementos tradicionais (culpa, dano, vinculo de causalidade entre uma e outro) assenta na equação binária cujos pólos são o dano e a autoria do evento danoso. Sem cogitar da imputabilidade ou de investigar a antijuridicidade do fato danoso, o que importa para assegurar o ressarcimento é a verificação se ocorreu o evento e se dele emanou prejuízo. Em tal ocorrendo, o autor do fato causador do dano é o responsável. (PEREIRA, 1990, p. 35)
Tal assertiva se justifica na medida em que o meio ambiente ecologicamente equilibrado é indissociável à sobrevivência de todo e qualquer ser vivo, sendo impossível considerá-lo como res nullius[6], eis que se constitui em res ommium[7].
Para Reis Neto, Silva e Araújo:
A responsabilidade objetiva é, sem dúvida, uma grande conquista para a proteção ambiental. Todo o arcabouço institucional/legal traz à tona a importância da temática do Direito Ambiental para grande parte das relações cotidianas e, principalmente, para as relações econômicas. A legislação nacional sofreu grandes evoluções ao longo dos anos, principalmente com a chegada da Política Nacional de Meio Ambiente, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, a Lei de Crimes Ambientais e a Política Nacional de Resíduos Sólidos. Apesar de suas falibilidades, todas apresentam uma grande área de exploração para aqueles que desejam compreender todos os seus meandros. (REIS NETO; SILVA, 2016, p. 163)
A princípio, a prática da obsolescência programada não guardaria nenhuma relação com a imputação de responsabilidade civil por danos ambientais. No entanto, a partir de uma melhor análise do tema, surge uma linha diferente de raciocínio, ensejando ao fabricante de produtos a responsabilidade civil objetiva por danos causados ao meio ambiente, uma vez que a proposital redução da vida útil da mercadoria, visa obrigar o consumidor a descartar o produto e adquirir um novo, em substituição ao antigo, o que logicamente acaba por gerar impactos ambientais, em pelo menos dois momentos.
O primeiro momento ocorre no descarte prematuro do produto, o que a Política Nacional de Resíduos Sólidos, por meio da Lei 12.305, promulgada em 2010, visa combater. Nesse esteio Gabriella de Castro Vieira:
A competitividade capitalista, propulsora das constantes inovações tecnológicas, estimula e incentiva a fixação do homem pela aquisição de bens de consumo cada vez mais novos tecnologicamente, considerados como de última geração, o que implica em aumento do volume a ser descartado, especialmente dos produtos eletrônicos. E tal consumo descomedido do individuo tem trazido consequências nefastas para toda a sociedade, já que o acondicionamento dos resíduos sólidos, decorrentes da sua crescente produção, tornou- se um grande problema da pós- modernidade. (VIEIRA, 2016, p. 254)
Já a segunda hipótese ocorre quando o fabricante, de determinado produto, procura no meio ambiente matérias primas para a feitura de itens que [re] abastecerão o mercado. Nesse sentido, em voto do Ministro Luís Felipe Salomão ficou configurado:
[…] Nessas circunstâncias, é até intuitivo imaginar que haverá grande estímulo para que o produtor eleja estratégias aptas a que os consumidores se antecipem na compra de um novo produto, sobretudo em um ambiente em que a eficiência mercadológica não é ideal, dada a imperfeita concorrência e o abuso do poder econômico, e é exatamente esse o cenário propício para a chamada obsolescência programada. São exemplos desse fenômeno: a reduzida vida útil de componentes eletrônicos (como baterias de telefones celulares), com o posterior e estratégico inflacionamento do preço do mencionado componente, para que seja mais vantajoso a recompra do conjunto; a incompatibilidade entre componentes antigos e novos, de modo a obrigar o consumidor a atualizar por completo o produto (por exemplo, softwares); o produtor que lança uma linha nova de produtos, fazendo cessar açodadamente a fabricação de insumos ou peças necessárias à antiga. […] Certamente, práticas abusivas como algumas das citadas devem ser combatidas pelo Judiciário, visto que contraria a Política Nacional das Relações de Consumo, de cujos princípios se extrai a “garantia dos produtos e serviços com padrões adequados de qualidade, segurança, durabilidade e desempenho” (art. 4º, inciso II, alínea “d”, do CDC), além de gerar inegável impacto ambiental decorrente do descarte crescente de materiais (como lixo eletrônico) na natureza. (BRASIL, 2012)
No Brasil, em que pese à ausência de legislação expressamente combativa à prática da obsolescência programada, demandas judiciais já tratam do tema, nas quais o julgador se vale da legislação protetiva ao meio ambiente e ao consumidor, bem como a princípios e axiomas para a resolução do caso concreto. Tome-se por exemplo, o Processo 0024249-68.2013.8.21.9000, o qual tramitou em Porto Alegre. Nesse caso, a consumidora adquiriu um telefone, modelo Iphone 3G, cuja versão operava no sistema 4.2.1. Entretanto, com pouquíssimo tempo de uso, percebeu que vários aplicativos de seu aparelho subitamente pararam de funcionar. Ao tentar instalar novas versões no aparelho não obteve sucesso, já que para tanto, segundo informações da Apple seria necessário um equipamento que suportasse o software IOS 4.3 ou superior.
No processo demonstrou-se que o fabricante ao invés de disponibilizar novas atualizações para os aplicativos, cria novos aparelhos compatíveis com as novidades tecnológicas.
É lícito à ré lançar novos aparelhos e novos programas no mercado; mas não é lícito tornar inutilizáveis seus smartphones anteriores e com pouco tempo de uso, razão pela qual tem o dever de fornecer um produto à autora que essa possa utilizar. Dano moral fixado na sentença mantido. […]. (RIO GRANDE DO SUL, 2014)
Apesar de não ter ocorrido uma condenação expressa da empresa por danos ambientais, reconheceu-se artimanha do fabricante condenando-o a reparação de danos materiais e morais à consumidora, uma vez que ao adotar a prática da obsolescência programada, o fabricante ignora o princípio da boa-fé objetiva nas relações de consumo, o qual representa valores éticos, ligados à fidedignidade e correção dos contratantes. Elucida Cláudia Lima Marques:
A grande contribuição do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90) ao regime das relações contratuais no Brasil foi ter positivado normas específicas impondo o respeito à boa-fé na formação e na execução dos contratos de consumo, confirmando o princípio da boa-fé como um princípio geral do direito brasileiro, como linha teleológica para a interpretação das normas de defesa do consumidor (artigo 4º, III, do CDC), como cláusula geral para a definição do que é abuso contratual (artigo 51, IV do CDC), como instrumento legal para a realização da harmonia e equidade das relações entre consumidores e fornecedores no mercado brasileiro (artigo 4º, I e II, do CDC) e como novo paradigma objetivo limitador da livre iniciativa e da autonomia da vontade (artigo 4º, III, do CDC combinado com artigo 5º, XXXII, e artigo 170, caput e inc. V, da Constituição Federal.
É cediço ainda que os referidos axiomas devem perpetrar todos os momentos da relação jurídica, ou seja, devem começar a partir da negociação se externando até a execução, o que não tem acontecido, modo geral, na sociedade contemporânea.
Lado outro, cabe ao fornecedor a prestação de informação clara e precisa ao comprador, nos moldes do art. 6º, III, do Código de Defesa do Consumidor. Em se tratando de um produto complexo que utiliza plataformas de vários softwares, não se eximindo de responsabilidade o fornecedor que disponibiliza informações intangíveis ao leigo.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Realizada a pesquisa, o trabalho conseguiu fornecer uma reposta para o problema proposto, qual seja, são civilmente responsáveis os fornecedores pela obsolescência programada, por degradarem o meio ambiente ecologicamente equilibrado e macularem o princípio da Boa-fé objetiva. Para tanto, o estudo tomou por base uma abordagem axiológica a partir de um leading case da Apple, levado ao Poder Judiciário.
Em uma primeira empreitada demonstrou que a sociedade de risco vivencia a era da obsolescência programada, do consumo desenfreado e da profunda degradação ambiental, denotando o divórcio dos valores morais e éticos tanto para o consumo quanto para a garantia do meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Propôs-se a reflexão a respeito da relação entre a ciência do Direito e a moral, as quais, após longo período se reaproximam, tendo em vista que uma das falhas do positivismo reside justamente no afastamento dos valores morais e éticos, como defendia Hans Kelsen, em sua Teoria Pura do Direito.
Levou-se em consideração para um contraponto, a filosofia de Nietzsche, especificamente no que diz respeito à transvaloração dos valores, proporcionando a substituição dos axiomas vigentes por axiomas mais adequados à realidade humana, viabilizando, dentre outros, a contingência da degradação ambiental.
Levando em conta a transvaloração dos valores, é possível concluir que o respeito, a preservação ambiental e o expurgo do consumismo, riscos reticentes na sociedade contemporânea, seriam possíveis para Nietzsche, por representarem valores inerentes à vontade humana, em virtude de sua importância, e, não como preceituaria Kelsen, pela sanção advinda de uma norma jurídica estabelecida por agentes legalmente constituídos.
Logo após, verificou- se a respeito da estratégia da obsolescência programada que se propaga de diversas formas, falou- se do Parecer do Comitê Econômico e Social Europeu- CESE: por um consumo mais sustentável, o ciclo de vida dos produtos industriais e informação do consumidor a bem de uma confiança restabelecida, da Lei 2015- 992, vigente na França, desde 2015, em cujo incisos do art. L. 213-4-1, estabeleceu severas penalidades para as empresas que lancem mão da obsolescência planejada.
Verificou- se que no Brasil não há ainda uma lei que vede expressamente a estratégia empresarial em comento. Ainda assim, situações em que os empresários deliberadamente utilizam- se do encurtamento da vida útil das mercadorias chegam ao Judiciário.
No caso da consumidora que adquiriu o aparelho celular IPhone 3G e pouco tempo depois não conseguia utilizar seus aplicativos, devido ao fato de ter se tornado o equipamento obsoleto, constatou-se que o fabricante não foi responsabilizado por danos ambientais, restando sua condenação adstrita ao ressarcimento dos danos morais e materiais causados à consumidora.
Em que pese à ausência de condenação da empresa por danos ambientais, no caso analisado, é possível a imputação da responsabilidade civil ambiental, em razão da obsolescência programada, sobretudo por força dos arts. 225, § 3º, da Constituição Federal de 1988 e 14, § 1º, da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, além da Lei da Política Nacional dos Resíduos Sólidos.
A ética, os novos valores e as preocupações socioambientais serão os responsáveis pela construção de um modelo em que os consumidores possam conscientemente efetivar suas escolhas, conforme as informações disponibilizadas pelo mercado, pois não mais se admite o que é pronto para jogar fora, tal qual é preceituado pela obsolescência programada.
5 REFERÊNCIAS
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_____. Lei n. 12.305, de 02 de agosto de 2010.Institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos; altera a Lei n. 9.605, de 12 de fevereiro de 1998 e dá outras providências. Disponível em: <http://www.mma.gov.br/port/conama/legiabre.cfm?codlegi=636>. Acesso em 22 mar. 2017.
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Notas de Rodapé
[1] Doutora e Mestra em Direito Constitucional. Professora do Programa de Mestrado em Direito na Escola Superior Dom Helder Câmara, Minas Gerais.
[2] Aluna do Programa de Mestrado em Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável pela Escola Superior Dom Helder Câmara, Minas Gerais.
[3] Tradução livre: pronto para jogar fora.
[4] Tradução livre: “Art. L-213-4-1. I. A obsolescência programada é definida como o conjunto de técnicas pelas uma empresa reduz deliberadamente a vida útil de um produto para aumentar a taxa de substituição II.- A obsolescência programada é punível com dois anos de prisão e multa de 300. 000 €. III- O montante da multa pode ser aumentado, de modo proporcional aos benefícios derivados da violação, a 5% das vendas anuais médias, calculadas sobre os últimos três anos, conhecidos no momento dos fatos”.
[5] Tradução livre: “Art. L- 441-2. [Criado pela Portaria 2016-301, de 14 de março, de 2016]. É proibida a prática de obsolescência planejada, que é definido pelo uso de técnicas pelas quais o chefe da comercialização de um produto é reduzir deliberadamente o tempo de vida para aumentar a taxa de substituição”.
[6] Tradução livre: Coisa de ninguém.
[7] Tradução livre: Coisa de todos.