Reflexões Sobre a Proteção do Interesse Público e Demais Princípios do Direito Administrativo a Partir da Atuação de Graciliano Ramos na Administração Pública
DOI: 10.19135/revista.consinter.00006.13
Fábio Lins de Lessa Carvalho[1] – ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3621-7290
Resumo: O presente trabalho analisa a proteção do interesse público e os princípios da administração pública brasileira a partir da perspectiva da atuação de Graciliano Ramos, conhecido por ser um consagrado escritor, mas que também exerceu diversos cargos públicos, inclusive de Secretário de Estado da Educação e Prefeito Municipal. O artigo procura demonstrar como um administrador público das primeiras décadas do século passado agia com admirável retidão, eficiência e inovação, o que pode ser conhecido nos dias de hoje a partir da leitura de seus relatórios de gestão. As experiências do gestor público Graciliano Ramos servem como pano de fundo para a compreensão dos principais princípios do Direito Administrativo moderno.
Palavras-chaves: Graciliano Ramos; Administração pública; Princípios; Relatórios de gestão; Transparência; Legalidade; Impessoalidade; Moralidade; Publicidade; Eficiência; Interesse público.
Abstract: The present work analyzes the protection of the public interest and the principles of brazilian public administration from the perspective of the work of Graciliano Ramos, a famous brazilian writer, but who also held several public positions, including Secretary of State for Education and Municipal Mayor. The article seeks to demonstrate how a public administrator of the first decades of the last century acted with admirable rectitude, efficiency and innovation, which can be known today from the reading of his management reports. The experiences of the public manager Graciliano Ramos serve as a background for understanding the main principles of modern Administrative Law.
Keywords: Graciliano Ramos; Public administration; Principles; Management reports; Transparency; Legality; Impersonality; Morality; Publicity; Efficiency; Public interest.
INTRODUÇÃO
A história mostra que, na primeira metade do século XX, um alagoano de pouca instrução formal, mas de muita capacidade e discernimento, ocupou diversos cargos públicos e demonstrou como a coisa pública deve ser tratada com seriedade. E mais: para a sorte dos brasileiros, ele registrou (e melhor que isto, relatou) as atividades que ajudou a desenvolver. Trata-se de Graciliano Ramos, tão estudado no cenário acadêmico brasileiro e internacional pelos que são versados em literatura, mas tão pouco lembrado pelos que fazem parte dos meios jurídico, administrativo e político. É exatamente esta lacuna que se pretende, através do presente estudo, preencher.
Registre-se, oportunamente, que o presente trabalho não busca realizar reflexões jurídicas a partir da análise da obra literária do Velho Graça (embora isto também fosse possível e interessante). Na verdade, trata-se de um estudo, sob a ótica do Direito Administrativo e da gestão pública, de suas atuações enquanto agente público. E mais: o que se pretende nesta investigação é resgatar as experiências vivenciadas por um brasileiro que, em sua dimensão pública, ao exercer vários cargos e funções, procurou aplicar com tenacidade princípios que hoje são amplamente reconhecidos como obrigatórios no âmbito da Administração Pública.
Assim, em um cenário atual onde se verificam perdas de parâmetros sociais e ideológicos, trata-se a presente empreitada intelectual de uma tentativa de retomada do passado em busca de modelos que sirvam para justificar ou inspirar ações no presente. Ademais, como já alertava o jurista Pontes de Miranda, alagoano como Graciliano Ramos, ao destacar a necessidade de um estudo mais interdisciplinar da ciência jurídica, “quem só o Direito sabe, nem Direito sabe”[2].
O que certamente já se pode afirmar é que as contribuições que o homem público Graciliano Ramos pode oferecer aos agentes públicos e à sociedade dos tempos de hoje, assim como ao estudo do Direito Administrativo é algo inestimável, e, ao mesmo tempo, desconhecido, já que este enforque, conforme já destacado, não despertou até o presente momento o interesse da comunidade jurídica.
1 GRACILIANO RAMOS NO SERVIÇO PÚBLICO
Consagrado pelo público e pela crítica, reputado por muitos como um dos grandes nomes da literatura mundial, Graciliano Ramos sempre teve uma constante preocupação social, o que se vê de forma acentuada em suas obras literárias ou mesmo em seu ofício de jornalista.
Mais que um pensador e emissor de opiniões, Graciliano teve uma efetiva atuação política, tendo sido membro do Partido Comunista Brasileiro (filiou-se em 1945) e Presidente da Associação Brasileira de Escritores (a partir de 1951), tendo ainda tentado sem sucesso um mandato na Câmara dos Deputados por Alagoas (mais uma vez sem fazer campanha). O que pouca gente sabe (ou repercute) é que Graciliano Ramos dedicou vários anos de seus sessenta anos de vida ao serviço público, tendo exercido diversas funções (em geral, paralelamente à literatura e ao jornalismo), que vão desde cargos administrativos, cargos de direção, e até mesmo um mandato eletivo, como Prefeito de Palmeira dos Índios/AL.
Conforme se verá, Graciliano passou, deixando sua marca, pelas Administrações Pública municipal, estadual e federal. Neste contexto, em termos cronológicos, convém registrar que o autor de Vidas Secas iniciou sua vida pública na Administração Pública Municipal, como Presidente da Junta Escolar de Palmeira dos Índios em 03.11.1926, espécie de cargo assemelhado ao atual Secretário Municipal de Educação e foi prefeito do citado município entre 07.01.1928 e 10.04.1930, quando renunciou ao cargo. Em seguida, para a ocupar cargos no âmbito da Administração Pública Estadual, onde exerceu a função de Diretor da Imprensa Oficial de Alagoas (instituição que hoje leva o seu nome), entre 31.05.1930 e 29.12.1931, e ocupou o cargo de Diretor da Instrução Pública Estadual (correspondente ao cargo de Secretário Estadual da Educação), entre 18.01.1933 até a data em que foi preso (supostamente por suas convicções políticas), em 03.03.1936. Após deixar o Estado de Alagoas, também integrou os quadros da Administração Pública Federal, onde exerceu o cargo de Inspetor Federal de Ensino Secundário do Rio de Janeiro, tendo sido nomeado em agosto de 1939, e permanecido no cargo até sua morte, em 26.01.1953.
Conforme anotam alguns biógrafos, Graciliano Ramos acabou entrando para o serviço público porque seu ofício de escritor não lhe traria rendimentos necessários para sustentar uma família numerosa (o escritor teve oito filhos). Todavia, além destas questões de ordem prática e econômica, é inegável que Graciliano Ramos aceitou alguns desafios espinhosos no serviço público especialmente pelo amor que sempre sentiu por sua gente humilde e sofredora, tão bem retratada em seus livros, e inclusive, por sua terra natal, que tanto precisava do talento e obstinação deste que foi escolhido o maior alagoano do século XX[3].
Mas como se saiu o consagrado escritor como agente público? Teria sido ele um funcionário exemplar[4]? Ou teria o Velho Graça se acomodado como era (e muitas vezes ainda é) costume no serviço público? É o que se verá nas próximas páginas, oportunidade em que se analisará a aplicação dos princípios da administração pública pelo gestor Graciliano Ramos.
2 APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
Se a compreensão e o manejo de princípios jurídicos são essenciais ao aplicador de todos os ramos do Direito, no campo específico do Direito Administrativo, por uma série de razões, isto se aplica com muito mais intensidade. Um dos motivos a ser destacado é a presença da discricionariedade administrativa, espaço de movimentação que a lei concede ao administrador público a fim de que ele realize as melhores escolhas possíveis. Neste tocante, são os princípios que devem orientar a Administração Pública a fim de que esta venha a decidir da forma que melhor atenda o interesse público.
A partir da Constituição de 1988, o Direito Administrativo passou por uma série de transformações que visam reforçar valores como justiça, isonomia, democracia, dentre outros, o que estaria supostamente garantindo uma atividade administrativa mais alinhada aos ditames do Estado Democrático de Direito. Neste sentido, se é verdade que citado ramo do direito público tem procurado avançar consideravelmente, amoldando-se aos valores constitucionais, respirando ares mais democráticos, afastando-se cada vez mais do formalismo e buscando conferir maior importância à motivação, ao controle da discricionariedade e aos resultados da atuação administrativa, também é fato que a Administração Pública brasileira ainda não tem conseguido acompanhar estas mudanças de paradigma.
Neste cenário, o papel dos princípios do Direito Administrativo é extraordinário: eles orientam a criação de regras que tratam dos temas mais variados e provenientes das mais diversas fontes e graus de hierarquia normativa, servem como vetores para sua interpretação em consonância com o ordenamento constitucional e orientam os comportamentos quando de sua aplicação pela Administração Pública, o que, inevitavelmente, gera reflexos na vida social.
A sociedade moderna aspira a uma administração pública que cumpra a lei de forma inteligente, sem favoritismos, com probidade e transparência. Todavia, a realidade é desoladora: somente em raras ocasiões se sentiu neste país tamanha sensação de descumprimento generalizado aos preceitos jurídicos pelos agentes públicos como se verifica nos dias de hoje[5]. Nos tempos de Graciliano Ramos, a situação certamente era mais grave, ao menos no que diz respeito à consolidação dos direitos fundamentais difusos, como é o caso do direito à boa administração. Diante da prevalência das práticas patrimonialistas, onde não se garantia a supremacia do interesse público, não havia muito espaço para se falar e efetivar valores como a impessoalidade, a moralidade, a transparência e a eficiência.
Não obstante, conforme se verá em seguida, o gestor público Graciliano Ramos, enfrentando uma série de obstáculos jurídicos, financeiros e culturais, já aplicava com muita seriedade e inteligência tais princípios, que somente sessenta anos após o início de sua gestão como Prefeito se tornaram positivados na Constituição e passaram a ser a base do Direito Administrativo moderno. O que ele fez de diferente? Como ele agia para garantir que a administração pública fosse voltada exclusivamente para o atendimento do interesse coletivo? Todas estas respostas serão investigadas a continuação.
3 LEGALIDADE: CUMPRINDO A VONTADE POPULAR COM CORAGEM E CRIATIVIDADE
Quando o prefeito Graciliano Ramos assumiu em 1928 seu mandato como Chefe do Poder Executivo de Palmeira dos Índios, município do agreste alagoano, ele encontrou um quadro bastante caótico na Prefeitura. Para se ter uma ideia, a primeira dificuldade que ele encontrou foi achar uma lei municipal. Em seus relatórios ao governo do Estado, ele registra:
Em janeiro do ano passado, não achei no Município nada que se parecesse com lei, fora as que havia na tradição oral, anacrônicas, do tempo das candeias de azeite. Constava a existência de um código municipal, coisa intangível e obscura. Procurei, rebusquei, esquadrinhei, estive quase a recorrer ao espiritismo, convenci-me de que o código era uma espécie de lobisomem. Afinal, em fevereiro, o secretário descobriu-o entre papéis do Império. Era um delgado volume impresso em 1865, encardido e dilacerado, de folhas soltas, com aparência de primeiro livro de leitura de Abílio Borges. Um furo. Encontrei no folheto algumas leis, aliás bem redigidas, e muito sebo. Com elas e com outras que nos dá a Divina Providência consegui agüentar-me, até que o Conselho, em agosto, votou o código atual[6].
Em uma época em que não existia o computador e seu poder de armazenamento de informações, trabalhar na Administração Pública, e mais especificamente, com sua legislação, era tarefa das mais ingratas. Ao assumir seu cargo de Prefeito, Graciliano Ramos sabia que teria que conduzir suas ações de acordo com a legislação disponível[7]. Mas que leis o município produziu? Onde encontrá-las? Estariam elas em vigor?
Se os órgãos de assessoramento jurídico dos dias de hoje, em especial no âmbito dos Estados e Municípios, ainda têm enorme dificuldades em localizar leis e demais atos normativos, catalogar a legislação que ainda está em vigor, descartando normas já revogadas, imagine-se o que os gestores públicos das primeiras décadas do século passado não sofreram.
A passagem em que aduz que “constava a existência de um código municipal, coisa intangível e obscura. Procurei, rebusquei, esquadrinhei, estive quase a recorrer ao espiritismo, convenci-me de que o código era uma espécie de lobisomem”, embora descrita de forma chistosa, caracteriza a labor daqueles que são levados, por seus ofícios (advogados públicos, pesquisadores, historiadores etc.), a localizar, como uma agulha em um palheiro, leis antigas de um ente federativo brasileiro.
Convém registrar que o Direito Administrativo se caracteriza no Brasil por um ser um ramo jurídico não codificado. Assim, ao contrário de outras áreas (como o Direito Civil, Penal, Processual), há inúmeras leis administrativas esparsas e que versam sobre os temas mais distintos (organização administrativa, servidores, saúde pública, segurança, poder de polícia, serviços públicos, contratos etc.). Ademais, as referidas leis são produzidas por todos os entes federativos, gerando não dezenas ou centenas de leis, mas milhares, quiçá milhões[8]. Isto sem falar no imenso contingente de normas administrativas infra legais, como decretos, portarias, resoluções, regimentos internos, estatutos, dentre outras, que fazem com que a tarefa de administrar o interesse público seja ainda mais complexa.
Pois Graciliano Ramos prefeito se deparou exatamente com este quadro caótico. Ou melhor, com algo bem pior: “Em janeiro do ano passado, não achei no Município nada que se parecesse com lei”. Ora, indaga-se aqui: como vinham então as gestões anteriores realizando suas atividades sem lei? Para que o leitor possa ter uma ideia aproximada do que significava gerir um município sem leis que definissem as condutas e os procedimentos que deveriam ser realizados no exercício do poder de polícia da Administração Pública, José Afonso da Silva destaca o conteúdo de uma Lei de 1828 que regulamentou a competência dos Câmaras dos municípios brasileiros. No caso, um século antes da gestão de Graciliano Ramos, as atividades de ordenação do convívio urbano já eram bem abrangentes[9].
Em outro trecho do relatório, Graciliano, ao criticar as gestões públicas municipais que achavam que administrar não era mais que as “modestas tarefas de varrer as ruas e matar cachorros”, já responde que uma Administração Pública que consegue realizar suas atividades sem lei é exatamente aquela que não nada faz. Ressalte-se que para disciplinar todas estas temáticas citadas, era imprescindível que existissem leis, ou, usando a nomenclatura da época, um Código Municipal. Assim, quando o prefeito escritor afirma, não em tom de chacota, que o secretário descobriu o código municipal “entre papeis do Império”, comprova na pele como o direito administrativo possui fontes normativas derivadas de tempos imemoriais[10], o que dificultaria ainda mais sua plena aplicação.
Afortunadamente, Graciliano conseguiu ver aprovado um novo código municipal, votado em agosto de 1928 no Conselho. Uma vez aprovado o código tão inovador, o prefeito logo começou a ter problemas com aqueles que não queriam se adequar as suas regras. Um dos que se confrontou com o prefeito Graciliano foi exatamente o Conselheiro Capitulino José de Vasconcelos, que estava injuriado porque os fiscais da Prefeitura estavam ameaçando fechar seu açougue caso não pagasse os impostos devidos. Curiosamente, tratava-se de um dos Conselheiros que havia aprovado o Código meses antes. Ao ser procurado e confrontado, o prefeito Graciliano Ramos revidou “Eu não tenho culpa de você ser burro e assinar papel sem ler. Não pleiteei a Prefeitura, não farei favores”. E acrescentou “Pague o imposto antes que tenha que fazê-lo pela coerção da lei”. Em outro momento, durante a construção da estrada para Palmeira de Fora, um fazendeiro não queria permitir que os operários dessem continuidade às obras em suas terras. Graciliano compareceu ao local, determinando que fossem cortadas as roças de milho que ficavam no caminho da estrada. Após os protestos do fazendeiro, Graciliano dissera “Seu milho ia dar aqui a noventa dias, mas o senhor já o colheu agora. Vá à prefeitura receber o seu dinheiro”[11].
O prefeito Graciliano Ramos dava mais uma lição aos administradores públicos brasileiros: de nada adianta tanto esforço para aprovação de leis se estas não forem executadas pela Administração Pública com inovação e coragem, ainda que isto represente contrariar interesses poderosos.
4 IMPESSOALIDADE: COMBATENDO VELHAS PRÁTICAS
O município de Palmeira dos Índios de 1928 era um retrato fiel da realidade das pequenas cidades do interior do país, dominadas por velhas práticas patrimonialistas, dentre as quais o coronelismo, o clientelismo, o fisiologismo, o nepotismo, o favoritismo, o revanchismo. Assim como em todo território brasileiro, a Administração Pública municipal naquele pedaço de Alagoas era uma terra “sem lei e sem obediência, à margem do controle, inculcando ao setor público a discrição, a violência, o desrespeito ao direito. Privatismo e arbítrio se confundem numa conduta de burla à autoridade, perdida esta na ineficiência”[12].
Quando assumiu o mandato de Prefeito, Graciliano Ramos encontrou uma cidade “onde o poder dos grandes senhores se sobrepunha ao interesse coletivo e às normas vigentes”[13], o que era apenas uma dentre as incontáveis dificuldades que teve que superar. Registre-se que o novo prefeito não reconhecia o poder destas autoridades paralelas (“havia em Palmeira innumeros prefeitos” ou “cada pedaço do Municipio tinha a sua administração particular”), embora recebesse constantes ameaças e intimidações, inclusive uma tentativa de assassinato[14]. No tocante ao combate ao clientelismo[15], não tolerava qualquer acordo espúrio. Era avesso a toda espécie de favoritismo. Neste sentido, cunhou uma das frases mais expressivas do primeiro relatório: “Há quem não compreenda que um acto administrativo seja isento da ideia de lucro pessoal”; no segundo, afirmou que não empregara rigores excessivos. “Fiz apenas isto: extingui favores largamente concedidos”.
Adotando sempre uma postura que consagra a impessoalidade, afastou-se da tradição do nepotismo, chegando a afirmar que o dinheiro do povo estaria melhor aplicado se transformado em “pedra, cal, cimento” que se distribuído com seus parentes. Estes, aliás, não tiveram vida fácil: basta lembrar do exemplo de seu próprio pai, multado por deixar animais soltos na rua. Se não favoreceu, também procurou não trilhar o caminho do revanchismo: “puz termo às extorsões que afligiam os matutos de pequeno valor, ordinariamente raspados, escorchados, esbrugados pelos exactores”. Outra prática que o prefeito de Palmeira dos Índios procurou reprimir foi a da promessa vazia, típica de gestões que agem com populismo apenas porque objetivam obter proveitos eleitorais a fim de que consigam se perpetuar no poder.
Devido a sua austeridade, jamais dava um passo maior que as pernas. No segundo relatório, indagava: “Mas para que semear promessas que não sei se darão fructos? Relatarei com pormenores os planos a que me referi quando eles estiverem executados, se isto acontecer. Ficarei, porém, satisfeito se levar ao fim as obras que encetei. É uma pretensão moderada, realizável”.
A doutrina administrativista brasileira, após destacar os vícios de uma administração patrimonialista e o perfil do gestor público personalista, já destacou que quem vier a contrariar o perfil acima indicado está fadado muitas vezes ao isolamento, “uma vez que estará indo de encontro a todo um modelo cultural já incorporado na sociedade brasileira”, e que “embora se tenha experimentado uma indiscutível democratização na gestão dos negócios públicos, o que possibilitou um maior controle e transparência dos atos do Poder Público, a administração personalizada continua sendo uma constante”[16].
5 MORALIDADE: “PREFEITO NÃO TEM PAI”
O fato de uma gestão realizada há quase noventa anos ainda servir de referência (inclusive ética) para os atuais administradores públicos é algo que merece ser destacado, especialmente em se tratando de um período histórico em que não existiam leis administrativas tão rígidas (como a lei de responsabilidade fiscal e a lei de licitações) e em que os municípios possuíam ainda menos autonomia, posto que dispunham de míseros recursos financeiros.
Menos de um mês a frente da Prefeitura, Graciliano já antevê que terá dificuldades em concluir o mandato, o que se confessa quando escreve em uma carta à Heloísa (que viria se tornar sua esposa no primeiro ano do mandato) que: “Para os cargos de administração municipal escolhem de preferência os imbecis e os gatunos. Eu, que não sou gatuno, que tenho na cabeça uns parafusos de menos, mas não sou imbecil, não dou para o ofício e qualquer dia renuncio”[17].
O prefeito Graciliano se portava de forma austera e agia com convicção. Certa vez ele “demitiu seu secretário de Finanças ao desconfiar de sua lisura no cuidado das contas do município. Só que o tal secretário era irmão do vice-prefeito, que prontamente foi até Graciliano reclamar da situação e dizer que, se o irmão saísse, ele sairia também. O escritor não se abalou. Peremptório, continuou a governar sem vice-prefeito”[18].
Como não poderia ser diferente para aqueles que impõem o cumprimento irrestrito da lei, o escritor prefeito contrariou muitos interesses enquanto exerceu seu mandato. Até mesmo seu pai não foi poupado. Neste sentido, há um episódio que ficou conhecido por traduzir com perfeição o estilo de administrar de Graciliano: após determinar a limpeza de ruas e logradouros, o recolhimento dos animais que ficavam soltos nas vias públicas e a imposição de multa para aqueles que reincidissem, ficou sabendo que seu pai não acatara a ordem. Na mesma hora, mandou multá-lo. Magoado, seu pai o procurou, mas teve que ouvir uma admoestação: “Prefeito não tem pai. Eu posso pagar sua multa. Mas terei que apreender seus animais toda vez que o senhor os deixar na rua”[19].
Em seu relatório ao Governador do Estado, destacou: “Procurei sempre os caminhos mais curtos. Nas estradas que se abriram só há curvas onde as retas foram inteiramente impossíveis”. Ao contrário do que se possa supor de alguém que seja conhecido por ser severo, rígido e austero, o prefeito Graciliano Ramos não era um aficionado pelas exigências burocráticas, nem tão pouco alguém que tinha obsessão pelo cumprimento insano das normas jurídicas. Ao confessar que sempre procurara os “caminhos mais curtos”, destaca sua objetividade de caráter, seu pragmatismo. Todavia, rende-se à realidade: a impossibilidade de seguir retas, já que estas inexistiam. Na Administração Pública, as dificuldades para realização do interesse da coletividade estão sempre presentes, ainda que as condições sejam mais favoráveis que aquelas encontradas pelo prefeito escritor.
No serviço público, se as “retas” são “inteiramente impossíveis”, isto ocorre geralmente porque há interesses consagrados no ordenamento jurídico que devem ser prestigiados. Por exemplo, se não é possível o administrador público escolher rapidamente aqueles que serão contratados pelo Estado, tendo que realizar um procedimento licitatório, isto se deve diante da necessidade de garantir a isonomia e a impessoalidade na escolha.
O mesmo se diga em relação ao concurso público, que ao invés de ser considerado um entrave ao imediato provimento da maior parte dos cargos públicos, trata-se de uma garantia da sociedade para que todos tenham igualdade de oportunidades e para que os servidores sejam selecionados a partir do mérito.
Todavia, se por exigências republicanas e democráticas não é possível alcançar o interesse público seguindo por retas, não se pode tolerar que os administradores públicos trilhem os caminhos mais longos, já que a população tem direito à boa administração[20], o que exige empenho daqueles que gerem o interesse coletivo. Neste contexto, que se faça como Graciliano Ramos: deve se procurar seguir sempre pelos caminhos mais curtos, o que exige criatividade, inteligência e comprometimento, sem que sejam desprezados valores como a ética e a responsabilidade. Em outro trecho do relatório, destaca:
Evitei emaranhar-me em teias de aranha. Certos indivíduos, não sei por que, imaginam que devem ser consultados; outros se julgam autoridade bastante para dizer aos contribuintes que não paguem impostos. Não me entendi com esses.
Há quem ache tudo ruim, e ria constrangidamente, e escreva cartas anônimas, e adoeça, e se morda por não ver a infalível maroteirazinha, a abençoada canalhice, preciosa para quem a pratica, mais preciosa ainda para os que dela se servem como assunto invariável; há quem não compreenda que um acto administrativo seja isento de lucro pessoal; há até quem pretenda embaraçar-me em coisas tão simples como mandar quebrar as pedras dos caminhos. Fechei os ouvidos, deixei gritarem, arrecadei 1:325$500 de multas.
Não favoreci ninguém. Devo ter cometido numerosos disparates. Todos os meus erros, porém, foram da inteligência, que é fraca. Perdi vários amigos, ou indivíduos que possam ter semelhante nome. Não me fizeram falta. Há descontentamento. Se a minha estada na Prefeitura por estes dois anos dependesse de um plebiscito, talvez eu não obtivesse dez votos.
O prefeito Graciliano Ramos conclui seu primeiro relatório de forma contundente: apesar das inúmeras realizações em prol da sociedade palmeirense, sua gestão agradou a poucos. Isto, evidentemente, não causa surpresa alguma, posto que em uma sociedade tão afeita às práticas patrimonialistas e com pessoas tão acostumadas a receber do Estado um tratamento personalizado, o descontentamento pela adoção de posturas impessoais e austeras seria algo já esperado. Neste contexto, o antropólogo Roberto DaMatta afirma que “não é por acaso que os brasileiros no exterior sentem ‘saudade’, ou seja, vem a descobrir a terrível nostalgia do estado de solidão, quando se situam diante de um mundo impessoal”[21].
O historiador Sérgio Buarque de Holanda também registrou que a cordialidade dos brasileiros, que é tão alardeada como algo positivo, também apresenta outros aspectos. No caso, trata-se de uma máscara, que permite que o indivíduo possa manter sua supremacia ante o social[22]. Em outras palavras, o brasileiro tem uma enorme dificuldade em encontrar satisfação em algo que “apenas” satisfaça o interesse coletivo.
Graciliano Ramos fora um bom gestor? Para a maioria dos habitantes de Palmeira dos Índios de 1928, que como o brasileiro descrito por Sérgio Buarque de Holanda, não conseguia visualizar o “coletivo”, as vantagens de uma gestão moralizadora, é provável que não, daí a afirmação de que não teria sequer dez votos em um plebiscito. Sobre isto:
Não soa despropositado, afinal, que, depois de tanta austeridade e aversão à politicagem reinante à época, o “Velho Graça” tenha apresentado sua carta de renúncia ao Governador antes do fim de seu mandato: suas ideias eram muito avançadas para aplicação naqueles tempos – quiçá, mesmo hoje se tenha dificuldade de vivenciá-las na Administração Pública brasileira, para desconsolo das muitas vidas secas a ela confiadas…[23].
Conforme já anunciava, após o segundo ano do mandato, Graciliano renunciou ao cargo de Prefeito. No caso de Graciliano Ramos, que nem sequer queria ser prefeito, que não queria ser reeleito e que sequer sabia se iria concluir o mandato, há um caso raríssimo de desapego ao poder. A partir das mais diferentes medidas, a sociedade brasileira deve mirar neste exemplo e estimular que mais gracilianos aceitem participar da vida pública.
6 PUBLICIDADE: PRESTÍGIO À TRANSPARÊNCIA
O gestor público Graciliano Ramos sempre cultivou o costume de redigir relatórios, dando publicidade às atividades que exercia, prestando contas dos recursos que geria e tornando transparentes suas condutas enquanto homem público. De uma forma geral, relatório, na definição do dicionário Aurélio, “significa uma exposição escrita em que se descrevem todos os fatos (…)”. No caso dos relatórios administrativos ou de gestão no âmbito da Administração Pública, é o instrumento que apresenta ao público e, em particular aos órgãos de hierarquia superior ou de controle, as ações desenvolvidas por determinado órgão ou entidade. Em um relatório de gestão, haverá sempre os seguintes elementos: aquele que relata (no caso, o órgão responsável pelas ações), aquele para quem se relata (em geral, o público ou uma autoridade ou órgão de controle), as atividades realizadas (objeto do relatório) e a linguagem adotada.
O grande mérito a ser atribuído a Graciliano Ramos enquanto gestor público não reside especificamente no fato de que o mesmo procurava ser transparente (embora isto também seja extremamente louvável). Na verdade, o que homem público Graciliano Ramos tinha de único era seu estilo peculiar de administrar o interesse público, sem quaisquer ranços de um modelo patrimonialista que estava fortemente presente. Ademais, a grande contribuição dos relatórios não é exatamente o fato deles existirem, mas o conteúdo que ele relatou à sociedade da época e o muito que ele ensina à sociedade de hoje.
Por sua vez, no tocante à linguagem dos relatórios, é importante sempre sublinhar que o texto há de ser compreensível, redigido em termos técnicos, mas que não sejam inacessíveis ao entendimento daqueles que o lerão[24]. Parece indiscutível o fato de que Graciliano Ramos relatava suas atividades públicas não apenas por dever legal, para exercitar seu ofício de escritor ou por vaidade (no caso, por desejo de ter suas ações divulgadas e conhecidas por todos), mas porque considerava ser este o papel do gestor público, de alguém que precisa prestar contas do encargo que lhe foi confiado.
Acerca das características marcantes do texto, a professora Elizabeth Ramos ressaltou que: “surpreende, ainda, o tom de denúncia observado em várias de suas afirmações, afastando o signatário da mera posição de ator político, fazendo com que o leitor o reconheça, acima de tudo, como um prefeito que não se exime da condição de cidadão”[25].
Muito mais que uma preciosidade literária e que um exemplo de cidadania, os Relatórios têm um pioneirismo no campo da gestão pública a ser destacado, sendo “um marco na história política nacional. Era a primeira vez que um gestor prestava contas de seus feitos e gastos na ‘máquina pública’ de modo tão detalhado e translúcido e numa linguagem quase literária”[26]. De fato, enquanto muitos escritores imprimiram a suas obras literárias conotações políticas. Graciliano Ramos fez o caminho inverso: transformou a mais árida política em literatura. E mais: através de seus relatórios, Graciliano destacou a cultura patrimonialista e fisiológica como problema maior das administrações públicas brasileiras, tendo combatido tais práticas com vigor.
Apesar de proclamada em 1889 por seu conterrâneo Deodoro, Graciliano Ramos tinha clara noção de que a República, trinta anos depois daquela data, ainda não havia se instalado efetivamente no país, e muito menos no interior do Estado de Alagoas, onde as práticas patrimonialistas na Administração Pública permaneciam intocadas.
Como alguém que dominava a língua e a linguagem e que era consciente de seu papel enquanto representante da sociedade, Graciliano Ramos adotou uma linguagem acessível em seus Relatórios, o que veio a ser preconizado por leis brasileiras somente no século XXI.
É evidente que outro fator deve ser levado em consideração: a linguagem dos relatórios também era menos técnica porque inexistiam na Prefeitura, à época de Graciliano Ramos, pessoal com habitação profissional (inclusive o próprio prefeito) para se utilizar de termos de contabilidade mais apurados. Por esta razão, há de se ponderar que devem ser lidos os relatórios redigidos por Graciliano “considerando-se a escassez dos recursos disponíveis para ele elaborar suas demonstrações, a falta de conhecimento teórico e prático sobre contabilidade, a falta de pessoal técnico para lhe ajudar a preparar os Relatórios”[27].
Ademais, Graciliano, em sua famosa prestação de contas ao Governador de Estado, se é verdade que redige textos que se afastam do tom oficial característico dos relatórios, é importante também deixar claro que “a contravenção não foi realizada pelo autor por ignorância às normas constitutivas do gênero dos textos oficiais, mas pela sua intenção em ampliar a mensagem e, desta forma, dizer muito além das palavras escritas e lidas”[28]. Como se vê, até as dificuldades foram contornadas pelo Velho Graça, que tornou seus relatos uma peça que ultrapassou os limites frios da contabilidade pública. E muito mais que isto: não seria exagero afirmar que a leitura dos relatórios de Graciliano Ramos deveria ser recomendada a todos os cidadãos brasileiros, em especial, os agentes públicos[29]. Ademais, apesar destes valiosos documentos serem levados em consideração pelo meio acadêmico de diversas áreas (literatura, comunicação, sociologia, gestão pública, contabilidade etc.), seu estudo, até a presente data, foi totalmente negligenciado pelo meio jurídico. Neste sentido, não há dúvidas de que os relatórios podem fornecer uma relevante contribuição ao aperfeiçoamento do Direito Administrativo brasileiro.
7 EFICIÊNCIA: DIREITO DO CIDADÃO, DEVER DA ADMINISTRAÇÃO
Para abordar a questão da eficiência, registre-se que há um trecho do relatório de Graciliano Ramos que destaca as ações no tocante à saúde (no relatório chamada “higiene”) e educação (denominada “instrução”): eis duas das prioridades eleitas e que efetivamente foram contempladas na prática pela gestão do prefeito escritor. Se isto já teria algum mérito hoje, quando o binômio saúde-educação representa quase como um jargão obrigatório das campanhas eleitorais para a Chefia dos Executivos Federal, Municipal e Estadual, em 1929, época em que o Poder Público (especialmente os municípios) pouco faziam nestas áreas, soava um tanto quanto revolucionário.
Neste sentido, considerando-se que a Administração Pública, segundo Hely Lopes Meirelles, “é o instrumental de que dispõe o Estado para pôr em prática as opções políticas do Governo”[30], a máquina administrativa no início do século XX ainda era muito incipiente no Brasil, já que este país ainda não havia atingido o estágio do Estado Social de Direito[31].
Assim, pode-se afirmar que “a presença da Administração Pública na vida dos cidadãos cresceu de tal modo, que se tornou usual afirmar, em todos os países que seguiram o sistema constitucional europeu, que deixou de existir atividade social, cujo exercício não se vinculasse, em maior ou menor grau, com o Direito Administrativo”[32].
Todavia, antes disto ocorrer, como era possível a colocação de questões como saúde e educação como prioritárias em um contexto marcado pela presença (ou seria ausência?) de um Estado de feição liberal? Certamente isto somente decorria devido à grande sensibilidade social que sempre caracterizou a vida (inclusive pública) do Mestre Graça, e a sua eficiência enquanto gestor público, que conseguiu superar as indiscutíveis dificuldades administrativas.
Neste sentido, convém registrar que, à época de Graciliano Ramos prefeito, inexistia qualquer espécie de vinculação de despesa para as citadas áreas de saúde e educação, como existe atualmente[33]. Ainda assim, a gestão do prefeito escritor dedicou especial atenção a tais setores imprescindíveis à vida e ao desenvolvimento da sociedade.
No tocante à educação, ressalte-se que em uma época em que a taxa de analfabetismo no Brasil ultrapassava 65% (mais de 11 dos 17 milhões de brasileiros não eram alfabetizados), este percentual era muito maior nos Estados nordestinos[34], onde miséria superava em números e dramaticidade (devido à seca) aquela encontrada em outras regiões do país. Vale ainda lembrar que a atuação dos municípios na área de educação ainda muito embrionária, já que os Estados costumavam ser os maiores protagonistas nesta área. Neste quadro, assevere-se que:
eram poucos os municípios que possuíam grupos escolares nos anos de 1930 nas Alagoas. Do ponto de vista oficial, o sistema de criar grupos escolares foi adotado depois da Revolução de 1930, porém, na realidade, isto só existia nos decretos. Em Palmeira dos Índios, por exemplo, “havia um desses pessimamente instalado no prédio da prefeitura. Mobília nenhuma. Cada alunno levava a sua cadeira, cada professora adquiria uma banca” (RAMOS, 1935, p. 13). Assim, primeiro era criado um grupo escolar na lei, depois, nomeava-se o corpo docente, para, então, procurar uma casa[35].
Mesmo no século XXI, apesar dos avanços em termos quantitativos, ainda existem muitas dificuldades no campo educacional. Segundo o IBGE, no ano 2000, “dos 5.507 municípios brasileiros apenas 19 asseguram à sua população uma escolarização média que corresponda ao ensino fundamental completo (oito séries concluídas)”[36].
Ao afirmar, em relação às escolas, que “esses estabelecimentos são de eficiência contestável”, o prefeito Graciliano Ramos já tinha um perfeito diagnóstico da triste realidade da instrução pública em Palmeira dos Índios de 1929[37]. Por sua vez, quando se lê no relatório que “as aspirantes a professoras revelaram, com admirável unanimidade, uma lastimosa ignorância”, a sinceridade ácida de Graciliano Ramos aflora, mas não em tom de crítica às professoras, verdadeiras vítimas de um sistema educacional deficiente. O que o prefeito escritor queria mesmo era denunciar ao Governador do Estado e a toda a sociedade alagoana a precariedade da formação dos professores de seu município, tarefa tão bem executada que fez com que fosse convidado, anos depois, para ser o Diretor da Instrução Pública Estadual (cargo equivalente ao de Secretario Estadual de Educação).
Dentre as iniciativas de Graciliano no campo da instrução, destaca-se a abertura de três novas escolas em regiões mais periféricas do município (“três aldeias”), o que demonstra a preocupação em descentralizar as ações administrativas da Prefeitura e em atender os munícipes mais esquecidos pelo Poder Público.
Realista antes de tudo, ao invés de relatar, com estrelismo, as atividades da Prefeitura de modo a parecer que o mesmo realizara grandes feitos, preferira a sinceridade, o que se verifica claramente quando afirma: “não creio que os alunos aprendam ali grande coisa. Obterão, contudo, a habilidade precisa para ler jornais e almanaques, discutir política e decorar sonetos, passatempos acessíveis a quase todos os roceiros”.
Neste trecho, além de atender aos reclamos da transparência administrativa, Graciliano demonstra ainda compreender que, em geral, na administração pública, a eficiência se alcança a partir de pequenos avanços perseguidos com responsabilidade e com os pés no chão (especialmente diante das dificuldades financeiras). E ainda: tais pequenos avanços são preferíveis a ações imponentes e grandiosas sem qualquer eficácia.
Por sua vez, no tocante à saúde, o Prefeito Graciliano enfrentava provavelmente uma situação mais dramática que em relação à educação. Neste sentido, da instalação da colônia até a década de 1930, as ações eram desenvolvidas sem significativa organização institucional. Convém ainda se fazer o registro histórico de que algo que hoje chega a parecer difícil de acreditar: o Ministério da Saúde somente foi criado no Brasil em 1953, e até então vinculado ao Ministério da Educação.
Ao quadro de abandono descrito devem ser somadas a insignificante atuação dos municípios brasileiros em ações de saúde na primeira metade do século XX e a lastimável situação das finanças herdadas pela gestão de Graciliano Ramos em Palmeira dos Índios.
Mesmo diante de tantas adversidades, com as iniciativas propostas por Graciliano, este afirma, sem empolgação que “O estado sanitário é bom. O posto de higiene, instalado em 1928, presta serviços consideráveis à população. Cães, porcos e outros bichos incômodos não tornaram a aparecer nas ruas. A cidade está limpa”. Em tais medidas, ao adotar ações simples, porém eficazes, vê-se que o prefeito de Palmeira dos Índios não queria inventar a roda ou mesmo fazer pirotecnia, algo muito comum nos tempos modernos. Sabia que o grau de eficiência administrativa que se podia alcançar não era alto, mas teria que se esforçar ao máximo para oferecer à sociedade o que lhe fosse mais proveitoso. Ao deixar o posto de higiene (de saúde) em condições de prestar serviços consideráveis à população, garantiu o mínimo de dignidade a uma população acostumada ao abandono.
Por sua vez, ao afirmar que a cidade estava limpa, declarou sua grande preocupação com as condições de higiene do espaço público, até então, terra de ninguém. Como já destacado, o gestor Graciliano Ramos sempre valorizou as ações preventivas de saúde pública, mesmo que para tanto, tivesse que enfrentar uma grande resistência, inclusive cultural, da sociedade palmeirense.
7.1 Interesse Público
Pouca gente sabe, mais um dos cargos mais espinhosos[38] que Graciliano Ramos ocupou, assim como provavelmente aquele que mais desafios lhe impôs, foi o de Secretário Estadual da Educação, ou, para ser mais preciso, Diretor da Instrução Pública Estadual.
Na Pasta encarregada pela educação em Alagoas, Graciliano, em apenas três anos (1933-1936), o Diretor da Instrução Pública promoveu profundas mudanças, “tendo tornado transparentes as licitações, distribuído uniformes e materiais escolares, instituído a merenda na rede, construído escolas em zonas carentes, proibido pistolões políticos nas nomeações de professores, reduzido os índices de evasão; e mais do que duplicado as matrículas na rede”[39]. Sobre a gestão de Graciliano Ramos como Diretor da Instrução Pública do Estado de Alagoas, o historiador alagoano Moacir Sant’Ana destaca:
A gestão de Graciliano enquanto diretor da Instrução Pública alagoana pautou-se pelo aumento do número de alunos na escola (acréscimo de 87,3%), pela construção de novas escolas e consequente expansão do ensino, pelo aperfeiçoamento do processo seletivo dos docentes, pela oferta de tecidos e calçados aos alunos, entre outros triunfos pedagógico-administrativos. Diante de tais conquistas, o Jornal de Alagoas, em editorial de 13.12.1935, descreve o Sr. Graciliano Ramos como um técnico no assunto: “Trabalhador compenetrado de seus deveres, decidido nas suas determinações, a sua obra, na Instrução Pública, dia a dia impõe-se ao respeito da coletividade”[40].
Para se ter uma clara ideia de como o gestor Graciliano Ramos agia, entre as medidas administrativas realizadas pelo então Diretor da Instrução Pública, chama a atenção a exoneração de sua própria irmã por não estar habilitada para o ofício.
O próprio filho de Graciliano, o escritor Ricardo Ramos esclarece algumas de suas principais medidas: “Em muitas ocasiões se referia ao seu tempo alagoano de Diretor da Instrução Pública, função correspondente ao de Secretário da Educação. A merenda escolar, a criação de uma escola profissional feminina, o concurso obrigatório para as professoras do ensino primário. Tudo isso eram novidades e saneamentos”[41].
Apesar do relativo prestígio que alcançou como Prefeito de Palmeira dos Índios (muito por conta dos relatórios publicados em vários jornais do país na época), parece que nenhum outro cargo público permitiu a Graciliano Ramos exercer tão intensamente sua dimensão social e cidadã. Além de se tratar de um órgão público de atuação estadual (o que superaria, em número de pessoas afetadas por suas ações, a Prefeitura que ocupara), a Pasta da Educação, em um Estado tão excludente como Alagoas (inclusive até hoje), era de extrema relevância social. E Graciliano tinha a perfeita compreensão disto tudo e se empenhou ao máximo para mudar aquela triste realidade.
Diante de tantas adversidades, levava tão a sério sua missão que fazia visitas surpresas às escolas e sabatinava os professores, algo impensável nos dias de hoje. Em outras palavras, “ele foi um secretário revolucionário, redirecionando os investimentos para os bairros pobres e municípios carentes”[42]. Neste contexto, algumas de suas ações demonstram seu compromisso com o interesse público:
A merenda lhe rendera um bate-boca desagradável com o comandante da guarnição militar, que incluíra meninos de grupo no desfile de Sete de Setembro. “Criança não é soldado. Eles só marcham se comerem antes e depois, se estiverem calçados e vestidos. Não vou deixar ninguém desmaiado pelo caminho”, Dito e feito, acompanhou pessoalmente a meninada, uma ambulância de garantia fechando o cortejo. A escola profissional, bem recebida, não deu cuidados. Mas o concurso das professoras, “na maioria analfabetas”, levantou celeuma, gerou pistolões, pressões, alcançou o plano das ameaças. Morte matada era, ou sempre foi, coisa corriqueira. E ele duro, cumpra-se. Não escapou da prova nem minha tia avó. (…) Hoje, quando a merenda escolar é iniciativa de tanto, penso em Graciliano, Alagoas, 1935. Naturalmente a comida era pouco, irregular, não atendia às suas aspirações. Isso reforça o pioneirismo, sempre um esboço a preencher[43].
Sobre o perfil do Diretor da Instrução Pública no início dos anos 1930:
Assim que foi empossado para cuidar da Educação de Alagoas, ele quis ir à periferia. Escolheu, então, o bairro mais pobre de Maceió e encontrou uma escola completamente às moscas porque os alunos eram muito pobres, não tinham dinheiro para comprar uniformes e sapatos, e havia um regimento que impedia que a escola funcionasse com alunos sem uniforme. Aí ele foi a uma loja de tecidos, a uma sapataria e costureiras. Disse, em todos os casos, que não tinha dinheiro para pagar naquele momento pelos serviços, mas que precisava de ajuda e que pagaria assim que pudesse. Depois ele voltou pessoalmente à escola com os embrulhos para dar para os alunos. E, mais adiante, mandou pagar a loja de tecidos, as costureiras e a sapataria[44].
Todos estes acontecimentos somente demonstram o quão revolucionário foi o secretário de Educação de Alagoas, ao tentar renovar os arraigados padrões estabelecidos. E, apesar de ter atendido ou até mesmo superado às expectativas daqueles que estavam envolvidos com a educação[45], infelizmente, em um ambiente tão hostil e avesso a novidades que contemplassem a população mais necessitada, teve que pagar um alto preço por este comportamento tão pouco habitual. Neste sentido, convém destacar que a postura de Graciliano Ramos incomodava os poderosos e aqueles que não queriam mudanças:
Graciliano tomou algumas iniciativas que desagradaram a muita gente. Primeiramente manda distribuir comida, roupas, sapatos e material escolar, gratuitamente, às crianças pobres da rede oficial. Contrapõe-se ao interventor, que queria a todo custo abrir escolas a torto e direito, certamente a fim de expandir não o ensino, mas a clientela eleitoral, os pistolões, o favoritismo. Trata de efetivar as professoras da zona rural, consideradas matutas e ignorantes pelas normalistas da capital, com o que exacerba ódios e ressentimentos[46].
Neste sentido, Graciliano chegou a considerar que teria sido esta a verdadeira causa de sua prisão: fora considerado subversivo por causa de sua conduta inovadora. Ele próprio, em carta redigida (mas não entregue) ao então Presidente da República Getúlio Vargas, confessara:
Ignoro as razões por que me tornei indesejável na minha terra. Acho, porém, que lá cometi um erro: encontrei 20 mil crianças nas escolas e em três anos coloquei nelas 50 mil, o que produziu celeuma. Os professores ficaram descontentes, creio eu. E o pior é que se matricularam nos grupos da capital muitos negrinhos. Não sei bem se pratiquei outras iniquidades. É possível. Afinal o prejuízo foi pequeno, e lá naturalmente acharam meio de restabelecer a ordem[47].
Em todos os casos, o que se verifica é a adoção, ainda que à época sem qualquer cogitação de natureza teórica, do princípio da supremacia do interesse público sobre o particular, que hoje tantos tentam aniquilar, ainda que, para isto, usem o discurso da relativização. Neste contexto, no direito administrativo brasileiro, prevalece o entendimento que o citado princípio “trata-se de verdadeiro axioma reconhecível no moderno Direito Público. Proclama a superioridade dos interesses da coletividade, firmando a prevalência dele sobre o do particular, como condição até mesmo, da sobrevivência e asseguramento esse último”[48].
Todavia, na atualidade, está cada vez mais em evidência a alegada “crise do Direito Administrativo”, que tem levado a questionamentos de parcela da doutrina sobre os fundamentos tradicionais deste ramo do direito (supremacia do interesse público sobre o privado, indisponibilidade do interesse público), especialmente com a utilização do discurso da eficiência e o objetivo (mais ou menos revelado) de supressão de mecanismos de controle. Assim, nos últimos tempos, vários administrativistas, como Marçal Justen Filho, têm destacado que o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular não é absoluto, nem tão pouco seguro, sob o ponta de vista da clareza em sua aplicação:
o critério da supremacia do interesse público apresenta utilidade reduzida, uma vez que não há um interesse único a ser reputado como supremo. O critério da supremacia do interesse público não permite resolver de modo satisfatório os conflitos, nem fornecer um fundamento consistente para as decisões administrativas. Mas ainda, a determinação do interesse a prevalecer e a extensão dessa prevalência dependem sempre da avaliação do caso concreto. Trata-se de uma questão de ponderação entre princípios e regras[49].
Embora as considerações deste grupo de juristas sejam bem fundamentadas, já que ressaltam a necessidade de razoabilidade na aplicação da lei, e que, de fato, a simples evocação do interesse público não tem o condão de, por si só, conferir à Administração Pública posição de superioridade diante de qualquer situação em que esta se relacione com os particulares, havendo sempre a necessidade de que a lei disponha neste sentido, não se olvidar que:
as normas de direito público, embora protejam reflexamente o interesse individual, tem o objetivo primordial de atender ao interesse público, ao bem-estar coletivo. Além disso, pode-se dizer que o direito público somente começou a se desenvolver quando, depois de superados o primado do Direito Civil (que durou muito tempo) e o individualismo que tomou conta dos vários setores da ciência, inclusive a do Direito, substituiu-se a ideia do homem com fim único do direito (próprio do individualismo) pelo princípio que hoje serve de fundamento para todo o direito público e que vincula a Administração em todas as suas decisões: o de que os interesses públicos tem supremacia sobre os individuais[50].
Ademais, como destaca o próprio Celso Antônio Bandeira de Mello, ao se referir às prerrogativas da Administração Pública, estas “de modo algum autorizariam a supor que a Administração Pública, escudada na supremacia do interesse público sobre o interesse privado, pode expressar tais prerrogativas com a mesma autonomia e liberdade com que os particulares exercitam seus direitos. É que a Administração exerce função: a função administrativa”, e tal função, segundo o professor paulista, é aquela que tem como finalidade “satisfazer interesses públicos, ou seja, interesses de outrem: a coletividade”[51]. Assim, entende-se aqui que o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular não significa nem o aniquilamento do interesse individual, nem tampouco a possibilidade de a Administração Pública desconsiderar a existência de tais direitos subjetivos.
Na verdade, o que o citado princípio pretende ressaltar é a proeminência dos interesses da coletividade em relação aos interesses particulares, o que deve ser levado em consideração pelo legislador quando da criação das leis, e uma vez autorizadas por estas, pela Administração Pública, sempre precise interpretar ou mesmo aplicar as normas legais.
Embora exista uma premente necessidade de abertura do Direito Administrativo para a consolidação de valores democráticos (motivação, participação popular, transparência, legitimidade) e de redução de entraves burocráticos que comprometem as finalidades (e a funcionalidade) da Administração Pública, deve-se estar ciente que este movimento de “fuga do Direito Administrativo”, com a cada vez maior aproximação dos institutos tradicionais do Direito Privado (autonomia da vontade, igualdade entre as partes), é uma tendência que recebe os influxos de inspiração neoliberal, onde os interesses individuais estão no centro das preocupações. Desta tensão poderá surgir um novo Direito Administrativo, que avance em alguns pontos, mas não retroceda em outros.
Ademais, diante de um momento em que o Direito Administrativo parece não receber investigações e estudos que ofereçam um contraponto à visão avassaladora de índole marcadamente neoliberal, a divulgação e análise das medidas administrativas realizadas por um gestor público ímpar em seu tempo e atual e (até mesmo avançado) até hoje em diversos aspectos, como é o caso de Graciliano Ramos, podem servir para atenuar eventuais retrocessos e impulsionar determinados avanços.
REFERÊNCIAS
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Notas de Rodapé
[1] Doutor em Direito Administrativo pela Universidad de Salamanca (Espanha), Mestre em Direito Público pela UFPE, Professor Adjunto da UFAL e Cesmac, Procurador do Estado de Alagoas, Advogado, autor de diversos livros e artigos jurídico.
[2] Além de afirmar a necessidade de ampliação da visão daqueles que lidam com o Direito, o próprio Pontes de Miranda, reconhecido como um dos maiores juristas brasileiros de todos os tempos “foi sociólogo, foi filósofo, foi cientista político, foi antropólogo, foi prosador, foi poeta, foi matemático, foi lingüista e foi jurista, área em que obteve a maior notoriedade. Foi até biólogo, pesquisador que descobriu a pontesiae, uma bactéria assim nomeada em sua honra” (MELLO, Marcos Bernardes de. A genialidade de Pontes de Miranda. Revista Getúlio – Revista do GVlaw – Programa de Especialização e Educação Continuada da DIREITO GV, São Paulo, p. 44-48, mar. 2008, p. 45).
[3] Na virada do século XX para o século XXI, o jornal Gazeta de Alagoas promoveu uma espécie de concurso para escolha do maior alagoano do século XX. Graciliano ficou em primeiro, tendo o jurista Pontes de Miranda ficado na segunda colocação. Votaram neste concurso personalidades alagoanas de destaque na atualidade (Informação obtida na reportagem Graciliano Ramos eleito o alagoano do século, publicada no jornal Gazeta de Alagoas do dia 01.01.2000).
[4] Em suas obras literárias, há personagens servidores públicos, como é o caso de Luiz da Silva, de Angústia, publicado em 1936. No livro, em tom crítico, Graciliano o descreve da seguinte forma: “Trinta e cinco anos, funcionário público, homem de ocupações marcadas pelo regulamento” (RAMOS, Graciliano. Angústia. 67. ed. Rio de Janeiro: Record, 2012. p. 40)
[5] Sobre esta questão, “as críticas reiteradas ao Estado e ao modelo de Administração Pública brasileiros são, em geral, justas, e remontam a razões históricas profundas, que levaram a dominação do aparato estatal por elites sociais que, ao dirigir a atuação administrativa em favor de seus próprios interesses, promoveram a reprodução de um modelo exclusivista e ineficiente no tocante à prestação de serviços públicos à população” (MIRAGEM, Bruno. A nova administração pública e o direito administrativo. 2. ed. São Paulo: RT, 2013. p. 23).
[6] Trecho do Relatório do Prefeito de Palmeira dos Índios ao Governador do Estado de Alagoas, referente ao ano de 1928, publicado no Diário Oficial de Alagoas em 24.01.1929.
[7] Apesar de proferida em outro contexto e muitos anos depois da gestão à frente da Prefeitura de Palmeira dos Índios, Graciliano escrevera uma frase que bem traduz sua compreensão de que como o administrador público se sujeita à lei, devendo-lhe ser obediente, mas detendo ainda um espaço, dentro dos limites fixados por ela, para tomar decisões: “Liberdade completa ninguém desfruta: começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas com a delegacia de ordem política e social, mas, nos estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda nos podemos mexer” (RAMOS, Graciliano. Memórias do Cárcere. Rio de Janeiro: Record, 2008. p. 12).
[8] Basta fazer uma simples conta: se cada um dos mais de cinco mil municípios brasileiros tiver, pelo menos, duzentas leis, existirão no Brasil um milhão de leis municipais (isto sem falar nas leis nacionais, federais e estaduais).
[9] No caso: “1) alinhamento, limpeza, iluminação, e desempachamento das ruas, cais e praças, conservação e reparo de muralhas feitas para segurança dos edifícios, e prisões públicas, calçadas, pontes, fontes, aquedutos, chafarizes, poços, tanques, e quaisquer outras construções em benefício comum dos habitantes, ou para decoro e ornamento das povoações; 2) o estabelecimento de cemitérios fora do recinto dos templos; o esgotamento de pântanos, e qualquer e estagnação de águas infectas; a economia e asseio dos currais, e matadouros públicos, a colocação de curtumes, os depósitos de imundices, e quanto possa alterar e corromper a salubridade da atmosfera; 3) edifícios ruinosos, escavações e precipícios nas vizinhanças das povoações; 4) vozerias nas ruas em horas de silêncio, injúrias, e obscenidades contra a moral pública; 5) construções, reparo, e conservação das estradas, caminhos , plantações de árvores para preservação de seus limites à comodidade dos viajantes e das que forem úteis para a sustentação dos homens e dos animais” (SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. 6. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, p. 53-54).
[10] Para estudar alguns temas de Direito Administrativo no Brasil, como é o caso de bens públicos, há a necessidade de se manusear atos normativos produzidos no Brasil colônia e Império. No caso, os terrenos de marinha e as terras devolutas se enquadram perfeitamente nesta situação.
[11] MORAES, Dênis de. O velho Graça. Uma bibliografia de Graciliano Ramos. 1. ed. rev. e ampl. São Paulo: Boitempo, 2012. p. 67.
[12] FAORO, Raymundo. Os donos do poder. Formação do patronato político brasileiro, 11. ed. São Paulo: Globo, 1997. v. 1, p. 231.
[13] MORAES, Dênis de. Op. cit., p. 65.
[14] Neste sentido, Graciliano cumpriu rigorosamente a lei “…sem temer inimizades, ameaças, intimidações, ou mesmo tentativas de assassinato, como a que sofreu em 1928 enquanto passeava com a mulher, Heloísa, grávida de Ricardo, o primeiro filho do casal. Com cerca de seis tiros, um atirador chinfrim conseguiu apenas quebrar o para-brisa do carro que os transportava numa tarde de domingo. O prefeito, mesmo tendo pessoalmente levado o homem para a cadeia, nunca soube quem era o mandante do crime” (trecho retirado do prefácio dos Relatórios de Graciliano Ramos publicados no Diário Oficial, elaborado por Elizabeth Ramos, Imprensa Oficial Graciliano Ramos, Maceió, 2013, p. 14).
[15] Desde sua origem, Alagoas sempre esteve inserida em um contexto de profundo desequilíbrio socioeconômico, o que serviu de combustível para as práticas clientelistas: “Das benesses sesmarias, fundiárias, à estruturação do poder familiar/pessoal, dos lanços de parentela ao estabelecimento da corte de agregados e à prática clientelista, a relação de dependência da população e o uso da violência em qualquer disputa, principalmente política, são fatos que vão caracterizar a nova unidade administrativa” (TENÓRIO, Douglas Apratto. A tragédia do populismo. O impeachment de Muniz Falcão. 2. ed. Maceió: Edufal, 2007. p. 95).
[16] CARVALHO, Fábio Lins de Lessa. O princípio da impessoalidade nas licitações. Maceió: Edufal, 2005. p. 43.
[17] MORAES, Dênis de. O velho Graça. Uma bibliografia de Graciliano Ramos. 1. ed. rev. e ampl. São Paulo: Boitempo, 2012. p. 64.
[18] Trecho retirado da reportagem Graciliano Ramos, o político: ordem na literatura e na administração, publicada no Caderno Prosa do jornal O Globo, em 01.07.2013.
[19] MORAES, Dênis de. O velho Graça. Uma bibliografia de Graciliano Ramos. 1. ed. rev. e ampl. São Paulo: Boitempo, 2012. p. 65.
[20] É célebre a sentença que diz que “Justiça que tarda não é justiça”. Da mesma forma, pode-se afirmar que “Administração que tarda não administra”, o que se pode vislumbrar em questões diversas, como as de saúde pública, por exemplo, onde a falta de celeridade da atuação administrativa pode gerar situações de calamidade pública e comprometer a vida de milhares de pessoas.
[21] DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis. Para uma sociologia do dilema brasileiro. 6. ed., Rio de Janeiro: Rocco, 1997. p. 243.
[22] HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 147.
[23] MEDEIROS, Morton Luiz Faria de. Administrando vidas secas: ensaio sobre os relatos de Graciliano Ramos em sua experiência como Prefeito de Palmeira dos Índios/AL. Revista de Filosofia do Direito, do Estado e da Sociedade, v. 6, n. 2, p. 11, 2015.
[24] Neste sentido, deve-se evitar: “uma forma específica de linguagem administrativa, o que coloquialmente e pejorativamente se chama burocratês. Este é antes uma distorção do que deve ser a redação oficial, e se caracteriza pelo abuso de expressões e clichês do jargão burocrático e de formas arcaicas de construção de frases. A redação oficial não é, portanto, necessariamente árida e infensa à evolução da língua. É que sua finalidade básica – comunicar com impessoalidade e máxima clareza – impõe certos parâmetros ao uso que se faz da língua, de maneira diversa daquele da literatura, do texto jornalístico, da correspondência particular, etc. (Manual de Redação da Presidência da República. 2. ed. rev. e atual. Brasília, 2002).
[25] Trecho retirado do prefácio dos Relatórios de Graciliano Ramos publicados no Diário Oficial, elaborado por Elizabeth Ramos, Maceió: Imprensa Oficial Graciliano Ramos, 2013. p. 15.
[26] Retirado do texto “Política de Graça: um bom exemplo de político”, de autoria do jornalista Fernando Coelho, publicado no jornal Gazeta de Alagoas, no dia 12.09.2010.
[27] CRUZ, Vera Lúcia; LOPES, José Expedito de Gusmão; RIBEIRO FILHO, José Francisco; PEDERNEIRAS, Marcleide M. Macêdo. Uma análise das práticas de evidenciação contábil sob a ótica de Graciliano Ramos nos anos de 1928 e 1929. Revista de Contabilidade e Controladoria, Curitiba: Universidade Federal do Paraná, v. 2, n. 6, p. 81-95, maio/ago. 2010.
[28] JACONI, Sônia. Graciliano Ramos: o prefeito escritor. São Paulo: LCTE, 2013. p. 115.
[29] Nunca é demais lembrar as lições magistrais do professor Celso Antônio Bandeira de Mello a respeito da noção de função pública: “Onde há função, pelo contrário, não há autonomia da vontade, nem a liberdade em que ela se expressa, nem a autodeterminação da finalidade a ser buscada, nem a procura de interesses próprios, pessoais. Há adscrição a uma finalidade previamente estabelecida, e, no caso da função pública, há submissão da vontade ao escopo pré-traçado na Constituição ou não lei e há o dever de bem curar um interesse alheio, que, no caso, é o interesse público; vale dizer, da coletividade como um todo, e não da entidade governamental em si mesma considerada” (MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 69-70).
[30] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 66.
[31] Esta mudança passa o ocorrer “a partir do fim do século XIX e início do XX, verificou-se de forma clara que o homem idealizado pelo liberalismo – cuja única necessidade era sua própria liberdade, suficiente para assegurar uma vida digna para si próprio e sua família – não existia mais. A garantia dos direitos individuais clássicos tornou-se insuficiente, na medida em que o Estado deixou de ser o único opressor. A lógica aleatória e impessoal do mercado capitalista livre era capaz de negar aos indivíduos bens absolutamente fundamentais, a despeito da liberdade garantida e do empenho destes em obtê-los” (BARCELLOS, Ana Paula. O Mínimo Existencial e Algumas Fundamentações: John Rawls, Michael Walzer e Robert Alexy. In: TORRES, Ricardo Lobo (Org.). Legitimação dos Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 14)
[32] PEREZ, Marcos Augusto. A Administração Pública Democrática. Belo Horizonte: Fórum, 2004. p. 41.
[33] Atualmente, desde a EC 29/2000, o art. 198, § 2º, incs. I, II e III, da Constituição Federal, passou a definir que o gasto com saúde, em cada um dos entes federativos, precisa obedecer a determinados percentuais mínimos da receita líquida (no caso da União não será inferior a 15%). Por sua vez, com educação, o art. 212 da Constituição prevê um gasto mínimo de 25% das receitas tributárias de estados e municípios – incluídos os recursos recebidos por transferências entre governos – e de 18% dos impostos federais, já descontadas as transferências para estados e municípios.
[34] Neste contexto, sobre o Estado de Alagoas: “Em 1900, 81% da população era analfabeta; duas décadas depois, o censo demográfico de 1920 registrava que apenas 15% dos alagoanos “sabiam ler e escrever”. Em 1930, para uma população de 200 mil crianças, a rede de ensino tinha 19.737 alunos matriculados em 434 escolas” (CARVALHO, Cícero Péricles. Formação histórica de Alagoas. 3. ed. Maceió: Edufal, 2015. p. 251).
[35] SANTOS, Aline da Silva. Graciliano Ramos: literato e gestor – contribuições à educação alagoana (1920-1940). Trabalho de Conclusão de Curso apresentado por Aline da Silva Santos, no curso de graduação em Pedagogia da Universidade Federal de Alagoas, Maceió, 2013. p. 38.
[36] Trecho retirado do estudo Mapa do analfabetismo no Brasil, publicado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – INEP, de autoria de José Marcelino de Rezende Pinto, Liliane Lúcia Nunes de Aranha Oliveira Brant, Carlos Eduardo Moreno Sampaio e Ana Roberta Pati Pascom, 2003. p. 11.
[37] Já foi observado que “nesse período, muitos professores eram apenas nomeados para o cargo por políticos no estado de Alagoas, o que significava não haver concurso para o ingresso na carreira. Esse fato pode ser observado na crônica “Teatro I”, na qual as instituições de ensino eram vistas como prejudiciais, no entanto […] “Havia algumas, é certo para dar emprego às filhas dos Prefeitos, mas estas não forneciam aos alunos conhecimentos” (RAMOS, 1992, p. 50) (SANTOS, Aline da Silva. Op. cit., p. 31).
[38] Neste sentido, “nos dois anos anteriores, oito pessoas haviam passado pelo cargo. Graciliano também se espantava de ter aguentado ali mais de três anos, contra a iniquidade, o pistolão, a impotência em meio à rotina”. In: LEBENSZTAYN, Ieda. Graciliano Ramos e a Novidade. O astrônomo do inferno e os meninos impossíveis. São Paulo: ECidade, 2010. p. 116.
[39] MORAES, Dênis. O velho Graça. Uma biografia de Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Record, p. 91-98.
[40] SANT’ANA, Moacir Medeiros de. Graciliano: vida e obra. Maceió: Secom, 1992, p. 53, apud LEBENSTAYN, Ieda; SALLA, Thiago Mio (Orgs.). Conversas Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Record, 2014. p. 232.
[41] RAMOS, Ricardo. Graciliano retrato fragmentado. 2. ed. São Paulo: Globo, p. 71.
[42] Trecho retirado da reportagem Graciliano Ramos, o político: ordem na literatura e na administração, publicada no Caderno Prosa do jornal O Globo, em 01.07.2013.
[43] RAMOS, Ricardo. Graciliano retrato fragmentado. 2. ed. São Paulo: Globo, p. 71-72.
[44] Trecho retirado da reportagem Graciliano Ramos, o político: ordem na literatura e na administração, publicada no Caderno Prosa do jornal O Globo, em 01.07.2013.
[45] Na pesquisa de Aline da Silva Santos, foram encontrados discursos proferidos por professoras, que circulou na imprensa alagoana, por ocasião do final do ano letivo, onde se verifica a visão positiva que possuíam em relação à administração de Graciliano Ramos. (SANTOS, Aline da Silva. Op. cit., p. 47).
[46] FACIOLI, Valentim. Um homem bruto da terra. In: GARBUGLIO, José Carlos; BOSI, Alfredo; FACIOLI, Valentim. Graciliano Ramos. São Paulo: Ática, 1987. p. 52.
[47] MORAES, Dênis de. O velho Graça. Uma bibliografia de Graciliano Ramos. 1. ed. rev. e ampl. São Paulo: Boitempo, 2012. p. 172.
[48] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 19. ed. rev. e atual. até a Emenda Constitucional 47, de 05.07.2005. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 45.
[49] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 9. ed. rev., atual e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 145.
[50] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo, 19. ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 82-83.
[51] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 19. ed. rev. e atual. até a Emenda Constitucional 47, de 05.07.2005. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 61.