Processo Eleitoral Democrático: a Via para Aprofundamento da Participação Popular
DOI: 10.19135/revista.consinter.00006.12
Edilene Lôbo[1] – ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4043-0286
Resumo: O presente artigo critica a praxis no processo judicial eleitoral no Brasil que ainda se orienta pelo sistema individual, subjetivista, alheia à procedimentalidade democrática e aos direitos coletivos da espécie. Também porque reticente quanto à destinação da prova à estruturação do procedimento para reconstrução segura do fato jurídico, lançando mão de expedientes censurados pelo garantismo, a exemplo do depoimento pessoal como meio de prova e a delação premiada para corroboração de condenações. A metodologia utilizada para se chegar às conclusões apresentadas é a revisão da jurisprudência e da literatura especializada, destacando o estado da arte acrítico e sua conformação ao status quo, com oferta de sugestões imediatas para imiscuição na realidade, destacando a importância do presente trabalho para o momento em que se anunciam mais reformas eleitorais, às vésperas de novo pleito nacional.
Palavras-chave: Processo eleitoral brasileiro; Democracia; Garantismo; Produção probatória.
Abstract: This work criticizes Brazil´s electoral judicial procedure “praxis” that still guides itself by the individual system, subjectivist, distant from the democratic legal procedure and from the collective rights of the field. Likewise, because reticent about the evidence destination in order to structure the procedure aiming the reliable reconstruction of legal facts, utilizing means reprimanded by the “garantismo” (protection of civil liberties), for example, the use of personal testimony as evidence and plea bargains to confirm convictions. The methodology utilized to reach the shown conclusions consists in the revision of jurisprudence and field specific literature, making salient the uncritical state of the field and it adherence to the “statu quo”, offering immediate proposals to be involved in reality, showing the valuableness of the present work by the current moment in Brazil since new electoral law changes are announced near the national elections.
Keywords: Brazilian judicial electoral procedure; Democracy; Protection of Civil rights; Evidence Gathering.
INTRODUÇÃO
O processo civil brasileiro nunca pode se realizar plenamente em realidades democráticas e ambiências teóricas que pudessem lhe caracterizar inserto no garantismo[2]. E por subsidiar o processo eleitoral, nele inoculam forma, concepção e vícios, corroborados por praxis acrítica.
Vista sua evolução desde o Brasil Colônia até a República dos dias atuais, cuja trajetória acidentada daí para frente ultrapassou ditaduras civis e militares, sacudido por reformas pontuais, mas sempre sob o controle da ideologia dominante, não é de se espantar com a recusa sistemática dos órgãos estatais e dos seus intérpretes mais retrógrados de filtrá-lo pela constitucionalidade democrática, imprimindo-lhe a feição de garantia orientada por teorias mais modernas que a de instrumento do juiz[3].
Todavia, esse modelo aplicado dá claros sinais de fadiga, levando a judicação[4] eleitoral à anacronia e longe da paz social prometida[5], o que se estende à legislação eleitoral – que não atende aos reclamos da pós-modernidade mesmo diante de reformas sucessivas. O problema está justamente na falta de legitimidade porque tais propostas se encontram distantes do controle e da participação populares – emanadas do flácido discurso oficial e infladas por suposta contribuição internacional sem respeito às características constitucionais do ordenamento pátrio[6], movidas pelo casuísmo, numa demonstração do pensamento colonial reinante[7].
A rigor, o que se apresenta na realidade brasileira não coaduna com o constitucionalismo global porque se põe em rota de colisão com os direitos fundamentais, ao invés de afirmá-los contra a barbárie da devastação de ambientes sustentáveis politicamente, ecologicamente e socialmente.
1 A DESCONSTITUCIONALIZAÇÃO DO SISTEMA ELEITORAL: O DESMONTE
A propósito das intermináveis reformas do Direito Eleitoral, que estendem ao processo eleitoral o signo da instabilidade e de decisões construídas a cada caso, no esboço da mais recente, objetivando que se retire do texto constitucional o sistema eleitoral para modificá-lo longe do controle popular, se tem a gênese do que se quer instituído, consoante reforma que tramita no Congresso Nacional[8].
Essa desconstitucionalização do sistema eleitoral, desmonte cuidadosamente urdido sob as graças dos poderes instituídos[9], é explicada por Lu Aiko Otta e Vera Rosa comentando o que se passa no Senado da República:
A proposta de desconstitucionalização do sistema eleitoral é considerada importante por [Senador] Serra para que todas as mudanças sugeridas na reforma política possam ser feitas por projeto de lei. Ele, por exemplo, defende o voto distrital misto. Atualmente, essa alteração depende de emenda constitucional.
(…)
O novo modelo defendido pela cúpula do governo, do Congresso e do próprio TSE prevê mudanças que não precisem de PEC, como a autorização para que as legendas usem o Fundo Partidário em campanhas e as listas fechadas de candidatos. Por essa fórmula, os partidos escolhem os concorrentes que compõem a chapa e os eleitores votam apenas na legenda. (OTTA; ROSA, 2017, on-line)
A ideia é retirar a matéria da Constituição para facilitar sua modificação longe do controle público porque,
Uma mudança na Constituição precisa ser aprovada em duas votações na Câmara e duas no Senado, com quórum de três quintos dos parlamentares. Um projeto de lei, no entanto, pode passar por maioria simples, com apenas um turno de votação em cada Casa. (OTTA; ROSA, 2017, on-line)
Destaca-se, a par da notícia, em suma, que o real interesse é instituir o sistema de listas fechadas para que as eleições proporcionais se processem, de fato, pelo voto das lideranças dos partidos, em repugnante retrocesso ao coronelismo que vigeu na política brasileira por largas décadas do século passado. Ao fazê-lo, violentando o voto direto e secreto, último bastião da democracia representativa, se impedirá que sucedam mudanças efetivas na realidade perversa do sistema político vigente. Os partidos serão biombos para ocultar os maus políticos e lhes garantir espaços de mando na esfera estatal.
Fernando Facury Scaff registra a inaplicabilidade dessa mudança defendida pelo discurso oficial:
Eis o risco da proposta que está com mais adeptos dentre os parlamentares: financiamento exclusivamente público, com listas fechadas. Essa fórmula fará com que os eleitores não votem mais nos candidatos, mas apenas nos partidos, que apresentarão listas com os candidatos. Quem estiver mais próximo da cabeça da lista acabará eleito. Não votaremos em candidatos, apenas nos partidos. Como quem fará as listas é a cúpula partidária, seguramente nela constarão, com destaque, a própria cúpula e seus amigos. Quando existem partidos fortes, com governança democrática e identificação ideológica, o sistema de listas fechadas pode funcionar, mas tal pressuposto não ocorre no Brasil, com 35 partidos políticos que não cumprem os requisitos acima[10].
Nessa linha de pensamento, a importância do sistema eleitoral está no ponto em que, por seu intermédio, é que se vai definir quem criará e aplicará o direito, ocupando os cargos políticos da mais alta esfera estatal, desde o Legislativo até o Executivo, passando também pelo Judiciário – no Brasil as Cortes de cúpula são compostas por juízes nomeados pelo Presidente, depois de aprovados pelo Senado[11].
A questão eleitoral, de um ou outro modo, definirá como será a vida em sociedade, “pois é ela que determinará a paridade de armas da disputa”[12] para provimento dos Poderes da República. Daí que, “Para ser efetivamente democrática a disputa eleitoral, as regras que a regulam devem ser includentes e permitir que a disputa se dê com verdadeira paridade de armas, pois só desta forma se poderá dizer que os eleitos são a cara do povo, ou seja, que representam a sociedade”[13].
Com essa compreensão, é de se indagar:
a) retirar os direitos políticos do texto constitucional é suficiente para rebaixá-los, afastando-os da coletividade?
b) a localização topográfica dos direitos políticos importa mais que a sua finalidade?
c) que fim levará o processo jurisdicional eleitoral destinado a controlar a paridade na disputa eleitoral?
Iniciando o esboço de respostas a partir da última indagação, o referente teórico do qual se vale este trabalho é advindo do paradigma constitucional brasileiro de 1988, que inseriu o processo no rol das garantias fundamentais, assim classificado desde que em seu bojo sejam assegurados o contraditório e a ampla defesa, tratado como devido e legal porque preexistente nas regras válidas aplicáveis a partir do sistema constitucional instituído e sem o qual ninguém será privado da liberdade e de seus bens, nem considerado culpado até trânsito em julgado da sentença penal condenatória[14].
Esse mesmo paradigma fixado pela Constituição possibilitará a boa interpretação dos direitos políticos encartados no seu Capítulo IV, localizando-o em posição de destaque no texto, de modo a não deixar dúvida acerca da classificação e destinação coletivas, não admitindo interpretação erroneamente realizada por meio do processo individual, subjetivista, limitando-o como se tratasse de direitos privados disponíveis.
Tal destinação coletiva dos direitos políticos, o que os tornam fundamentais, localizando-os no centro do paradigma democrático, protegidos, inclusive das pretensões de aboli-los por meio de emendas, como anota o § 4º do art. 60 da Constituição, diz que não interessa sua localização topográfica porque compõem cláusulas pétreas, inatingíveis por emendas (a exemplo do voto direto, secreto, universal e periódico, ápice das garantias políticas da democracia representativa). E o processo judicial eleitoral, por sua vez, garantia para efetivação e socialização desses direitos coletivos, é igualmente inafastável.
É certo que os direitos da cidadania interessam a todos, indistintamente, não podendo ser tratado apenas pelos notáveis ou pelos representantes políticos, ainda que bem-intencionados. Sua natureza coletiva, encarecida diante dos impactos que se lhes pretendem impor com a anunciada reforma de desconstitucionalização, exige chancela do povo.
Marcelo Hailer registra o “profundo colapso de representatividade da população para com as legendas e como atual sistema político brasileiro”, especialmente a partir das “últimas crises no Brasil, envolvendo relações escusas entre empresas privadas, parlamentares e partidos políticos” (HAILER, 2017, p. 33). Por isso, não vale o argumento de se tratar de assunto cheio de “tecnicalidade”, para não submetê-lo ao crivo popular, como se registrou:
O presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Gilmar Mendes, disse nesta segunda-feira, 20, que o atual sistema político brasileiro está “exaurido”, mas criticou a realização de um plebiscito ou referendo para tratar do tema.
“Essa ideia sempre aparece. Todas as ideias são válidas, agora é preciso fazer isso também no tempo. Eu acho um pouco difícil (a consulta popular), tendo em vista a tecnicalidade (do tema), daqui a pouco (vamos) ficar perguntando sobre a qualidade da carne em plebiscito”, disse Gilmar Mendes a jornalistas, depois de participar da abertura do Seminário Internacional sobre Sistemas Eleitorais, na sede do TSE, em Brasília.
“Ou (vamos ficar perguntando) sobre modelo proporcional, modelo aberto, veja, já embaraça a nós, embaraça vocês (dirigindo-se aos repórteres)… Vamos adotar o modelo alemão ou holandês ou americano? Colocar isso para o cidadão em plebiscito?”, questionou Gilmar Mendes[15].
2 O MODELO DE PROCESSO ELEITORAL BRASILEIRO: MINIMALISMO POPULAR E ATIVISMO JUDICIAL
O tratamento de segunda categoria dado aos direitos políticos, afastando o debate acerca de sua conformação, que dirá da aplicação, é equívoco que se repete também na adoção do modelo de processo. Isto, associado à ausência de participação dos interessados diretos na sua formação, evidencia, de forma simplificada, as aporias aqui criticadas. Basta ver que a tônica é de ignorar o controle popular e avantajar o poder das autoridades estatais, numa inversão totalmente inconstitucional e longe do que se estabeleceu no texto constitucional brasileiro como garantia fundamental incrementadora da soberania popular.
Pouco se modificou no discurso de aplicação, mesmo tantos séculos depois do Estado absolutista. Significando reconhecer que o Brasil não superou, na essência, o modelo medieval, ibero-americano de processo, como se constata a seguir.
2.1 A Herança Medieval do Processo Ibero-Americano
A partir da chegada dos portugueses ao Brasil, em 1500, o sistema jurídico consistiu em ordenações (a partir do Rei Afonso V, de 1446) ou cartas firmadas pelos reis[16], geralmente sintetizando a doutrina oriunda do direito romano e canônico, assim como pela opinião dos doutores da época, imune às influências do iluminismo[17].
Mesmo com a instituição do Império em 1822 e da República em 1899, até o século XX o processo civil brasileiro continuava orientado pelas Ordenações, desta feita as Filipinas, de 11.01.1603, editadas pelo Rei Felipe II, de Portugal.
Do ponto de vista da estrutura, as Ordenações constituíam, então, um típico exemplar, na versão ibérica, do processo romano-canônico, existente, à época, em toda a Europa. Era um processo escrito e secreto, articulado rigidamente em fases separadas com rigorosa aplicação do princípio dispositivo, do impulso da parte, do princípio da eventualidade e do formalismo na aquisição da prova[18].
Editado o Código Criminal em 1830, assinado pelo Imperador D. Pedro I poucos meses antes de sua abdicação, este nenhum impacto acarretou ao processo civil porque a justiça civil continuava orientada pelo Livro III das Ordenações Filipinas, que só cedeu lugar a uma legislação pouco mais moderna em 1850, com o Regulamento 737, que instituiu o Código Comercial, também sem grandes impactos no tema em estudo.
Mudança significativa na descentralização política, entretanto, se deu com a Constituição de 1891, inspirada no federalismo da América do Norte, que previu competência aos Estados-membros para legislarem matéria processual, permitindo a partir daí a proliferação dos códigos estaduais[19].
Somente em 1939, quase um quarto de século depois do Código Civil de 1916, é que o Brasil conheceu seu primeiro Código de Processo Civil, editado sob a ditadura do Estado Novo, em 1939, objetivando, como disse seu mentor Francisco Campos, reforçar a autoridade do Estado[20].
O Código de Processo Civil de 1939 durou trinta e quatro anos, com fortes críticas da escola processual que se formava no Brasil sob a batuta do italiano Enrico Tulio Liebman, que por aqui ensinara primeiro em Minas Gerais e depois em São Paulo, deixando assentada a famosa escola processual paulista[21]. As críticas foram dirigidas à identidade do texto com o Estado Novo, autoritário, portanto.
Em 1973, em plena ditadura militar, nasceu o que pretendia ser o novo Código de Processo Civil, método técnico de provocar a jurisdição, cuja exposição de motivos fora assinada por Alfredo Buzaid, discípulo de Liebman. Essa normativa continha “abundância de disposições inspiradas a textos estrangeiros”, no qual “expressamente mencionadas as legislações alemã, austríaca, italiana, francesa e portuguesa”[22].
Nicola Picardi e Dierle Nunes dizem que esse texto “foi aprovado pela melhor doutrina da época, assegurando sua excelência técnica e tentativa de neutralidade ideológica, mas, ao mesmo tempo, não chegou a ofuscar o caráter eminentemente ideológico de não poucos institutos”[23].
Já na abertura democrática e depois da Constituição de 1988 seguiram-se inúmeras reformas ao Código de 1973, desaguando no atual, publicado em 16.03.2015, que a despeito de pretender ser novo (ele também!), copiou muitos dos institutos do diploma anterior, não chegando a superar a doutrina majoritária inspirada em Büllow[24]. Essa corrente cunhou o processo como relação jurídica entre autor, réu e Juiz (em 1868), por aqui ancorada na mencionada escola processual paulista (desde 1940 com Liebman), denominada instrumentalista porque o traduz em instrumento da consciência do juiz para realização de escopos metajurídicos[25]. Nada que ver com povo, legitimidade, direito ou democracia.
2.2 A Gênese Antidemocrática do Código Eleitoral Brasileiro e a Aplicação Acrítica da Jurisprudência que Limita a Participação Popular no Processo Judicial Eleitoral
No entretempo do primeiro e do segundo Código de Processo Civil, reflexos dos períodos antidemocráticos nos quais gerados, também em meio à ditadura militar, em 1965, foi instituído o Código Eleitoral em vigor até o presente, bastante remendado, mas resistindo ao terceiro Código de Processo Civil. Esse texto atribuiu aos tribunais e juízes eleitorais competências administrativas, jurisdicionais e legislativas, “em verdadeira desordem institucional”[26], conjugando regras do Direito Material e do Direito Processual Eleitoral[27].
Além destas, o Código Eleitoral prevê muitas outras competências administrativas referentes à economia interna dos tribunais eleitorais. Porém, mais grave, reveladora da negativa do modelo constitucional vigente, é a que possibilita a criação do direito eleitoral por meio de respostas a consultas emanadas de autoridades, eis que “elastece a jurisdição para além do devido processo legal, permitindo a interpretação de teses desligadas de casos concretos, o que acaba por impor força sancionatória a pareceres. Associada à anterior, outra competência preocupante é a que prevê a expedição de instruções normativas e a adoção de quaisquer providências para a execução da legislação eleitoral”[28].
É também do Código Eleitoral regras expressas para disciplinar os procedimentos judiciais envoltos nas lides eleitorais, dispondo, inclusive, sobre a estrutura recursal, a tramitação das ações e dos recursos, bem como sobre crimes, penas e a exótica ação penal eleitoral exclusiva do Ministério Público.
Interpretando às avessas leis eleitorais que se seguiram ao Código, produtos de reformas frequentes, firmou-se na praxis dos tribunais que somente os envolvidos diretamente nos pleitos, candidatos, partidos, coligações e Ministério Público, é que são legitimados ao processo eleitoral. Conforme estabelecido na jurisprudência, o mero eleitor não possui legitimidade para o ajuizamento das ações judiciais eleitorais![29]. Assim se configurou o processo judicial eleitoral brasileiro absolutamente minimalista no que se refere à inclusão do povo na construção de seus provimentos finais.
O defeito dessa concepção está na pretensão de fazê-la valer no atual paradigma, “desrespeitando a soberania popular por vários ângulos de exame, agredindo em cheio os direitos fundamentais do povo de participação na vida política nacional em todas as latitudes, assim como de controlar os mandatos por ele conferidos aos representantes. É, nesse diapasão, clara e insofismável a violação da teoria constitucional da democracia”[30].
É que “no paradigma da democracia participativa, diferente da ordem constitucional brasileira pretérita, o que confere legitimidade ao desempenho da função judicial é a ampla participação daquele do povo por meio do devido processo legal”[31].
Ainda assim, presentemente, José Jairo Gomes explica o que entende por processo eleitoral, preso à corrente teórica de antanho, o identificando como “relação triangular, da qual participam autor, juiz e réu”[32], ou seja, “relação abstrata direcionada à prestação jurisdicional”, “instrumento de exercício da jurisdição”[33], bem destacando a jurisdição como o poder soberanos dos juízes.
Nesse modelo, por aqui aplicado desde as Ordenações Filipinas de 1603, o Estado-juiz atua com discricionariedade e sem qualquer limite, em ativismo que beira a inconstitucionalidade, especialmente no que se refere à instrução probatória. É lamentável que não se lhe veja democrático ou concebido sob as luzes de teorias modernas e resgatadoras do processo como locus e medium da linguagem para a construção, desconstrução e revisitação do direito, com ampla garantia de participação do cidadão, inclusive na etapa de produção da prova para reconstrução do fato jurídico.
3 INSTRUÇÃO PROBATÓRIA NO PROCESSO ELEITORAL
A prova, pelas suas várias modalidades, estrutura o procedimento e possibilita vazão ao dever de motivação das decisões judiciais, conferindo-lhe validade e legitimidade, a par do quanto estabelecido pela Constituição (inc. IX do art. 93), permitindo reconstrução do fato jurídico para aplicação segura do ordenamento.
Nesse raciocínio, a cognoscibilidade, técnica do processo de conhecimento para esclarecer o direito a ser aplicado, valendo-se dos meios de prova fixados pelo ordenamento, guinda-se à posição essencial para validade dos julgados. Por isso, faz-se orientada por uma série de faculdades, ônus e limitações.
A primeira limitação, ante o princípio da inércia da jurisdição, é que o Estado-juiz não atua como parte, mas como garante da ampla argumentação dos envolvidos diretos na lide, não se orientando pela discricionariedade ou liberdade ilimitada para atuar.
Malgrado isso, como recentemente pontificado no Tribunal Superior Eleitoral, ao julgar o Agravo Regimental na Ação de Investigação Judicial Eleitoral 1.943/1958, relatado, à época, pelo Ministro João Otávio de Noronha, o juiz tem liberdade para “promover todas as diligências que determinar, inclusive de oficio”[34].
Esse julgado se reporta a outro ainda mais alargado, de 04.08.2005, o acórdão no Recurso Especial 25.215, originário do Rio Grande do Norte, no qual ficou consignado que “Constituindo-se o destinatário da prova, está o magistrado autorizado a determinar outras provas ou mesmo a indeferir aquelas que considera dispensáveis”[35].
Nesse caso consignou-se a prova como mera faculdade ou liberalidade do julgador, que não pode sobre ela dispor como se fosse sua propriedade pela razão mais singela que se pode encontrar: o processo é público, de fato, mas nele não há lugar para liberalidades violadoras das garantias das partes. Processo é garantia, seu destino é a implementação dos direitos fundamentais e o seu destinatário é o cidadão e não os agentes estatais.
Logo, a errônea compreensão desse julgado mantém-se com a asserção de que a prova é do juiz e o processo seu instrumento, longe da feição de garantia para a defesa dos direitos dos cidadãos envolvidos.
Curiosamente, embora os precedentes comentados digam que a prova é do juiz, o legislador transferiu aos demandados o dever de produzi-la, impondo-lhes funções que são do próprio Estado, como se lê no inc. V do art. 22 da Lei Complementar 64, de 18.05.1990, ao fixar que as testemunhas comparecerão independente de intimação.
Noutro ponto, a imposição de condução coercitiva ao alvedrio do julgador, para prestação de depoimento pessoal do demandado, é nítida violação do direito constitucional ao silêncio, se apresentando totalmente ilegal também sob a ótica processual, na medida em que viola regra expressa do Código de Processo Civil (art. 392).
Na linha de interpretação mais adequada do direito ao silêncio, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal se firmou no sentido de não se admitir tal ordem em sede de ações eleitorais, ao julgar Habeas Corpus para impedir subjugação do sujeito, isso nos idos de 2004, afirmando não haver previsão no ordenamento processual eleitoral:
(…)
1. Nem a disciplina legal da investigação judicial – objeto do art. 22 da LC 64/1990, nem a da representação por infringência à L. 9.504/97 – objeto do seu art. 96 e, a rigor, a adequada à espécie – contêm previsão de depoimento pessoal do investigado ou representado; limitam-se ambas a facultar-lhe o oferecimento de defesa escrita.
2. O silêncio da lei eleitoral a respeito não é casual, mas eloqüente: o depoimento pessoal, no processo civil, é primacialmente um ensaio de obter-se a confissão da parte, a qual, de regra, não tem relevo no processo eleitoral, dada a indisponibilidade dos interesses de que nele se cuidam.
3. Entre as diligências determináveis de ofício previstas no art. 22, VI, da LC 64/1990 não está a de compelir o representado – ainda mais, sob a pena de confissão, de manifesta incompatibilidade com o Processo Eleitoral – à prestação de depoimento pessoal, ônus que a lei não lhe impõe[36].
Em testilha injustificada, cerca de seis anos e meio depois, o Tribunal Superior Eleitoral julgou o Habeas Corpus 558-80, assentando que “O remédio constitucional não se compatibiliza com a pretensão de obstar a realização de audiência para tomada de depoimento pessoal do investigado em sede de ação de investigação judicial eleitoral, se não demonstração inequívoca de que foi posta em risco a liberdade individual do paciente”[37].
Ora, se havia intimação pessoal para coleta do depoimento era óbvio que a ordem era de comparecimento, em nítido perigo do direito de ir e vir, assim como ameaça visível ao direito de não falar.
A partir daí, banalizando o direito ao silêncio, o casuísmo impera na hipótese, decidindo cada juiz ou tribunal eleitoral como lhe aprouver, colocando risco a credibilidade da função estatal e a utilidade da medida que determinar o comparecimento do demandado para tal fim, eis que na precitada regra processual civil, “Não vale como confissão a admissão, em juízo, de fatos relativos a direitos indisponíveis” (art. 392 do Código de Processo Civil).
Diga-se o mesmo da pretensão de apoiar julgados em delações premiadas como ponto de chegada e não de partida, eis que os delatores se colocam na condição de colaboradores do Estado, parciais, portanto, não detendo isenção de ânimo para auxiliar a reconstrução segura e definitiva do fato jurídico.
Considere-se, ainda, que o delator está circunscrito à verdade que firmou no termo de delação, totalmente aliunde ao processo eleitoral e sem judicialização porque quem autoriza ou inicia a negociação é o Ministério Público ou o Delegado de Polícia, cabendo ao Magistrado apenas homologá-la, conforme art. 4º da Lei 12.850, de 2013.
Portanto, se o delator não pode se afastar da delação sob a pena de produzir prova contra si e desfazer o prêmio, ademais de se tratar de transação não judicializada, seu valor para o fim pretendido na instrução do processo judicial eleitoral é bastante relativo.
É claro que não se ignora o cenário atual no processo eleitoral brasileiro, tomando, por exemplo, a Ação de Investigação Judicial Eleitoral 1943-58, na qual se julgaram a ex-Presidente Dilma Rousseff e o atual Presidente Michel Temer perante o Tribunal Superior Eleitoral, cuja prova central se apoiava nas delações de servidores de empresas estatais e de executivos de construtoras privadas como Norberto Odebrecht, Queiroz Galvão, Andrade Gutierrez, UTC e outras grandes envolvidas no escândalo da Lava-jato, espécie tupiniquim da Operação Mãos Limpa italiana.
Na instrução dessa ação, os delatores foram compromissados como se, de fato, pudessem falar a verdade. E o valor dado a esses depoimentos é tão exacerbado que é a primeira vez na história recente do judiciário eleitoral, que se tem notícia da exposição tão rica dos detalhes da ação, inclusive a inteira disponibilidade dos autos na internet[38].
Essa validação das delações achega-se, ao que parece, à onda da “pós-verdade”, sendo crucial rechaçá-la para que não vigore a “indiferença com a verdade dos fatos”, como adverte Gabriel Priolli:
Na definição britânica, “pós-verdade” é um adjetivo “que se relaciona ou denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais”.
Não seria então, exatamente, o culto à mentira, mas a indiferença com a verdade dos fatos. Eles podem ou não existir, e ocorrer ou não da forma divulgada, que tanto faz para os indivíduos. Não afetam os seus julgamentos e preferências consolidados[39].
Na aludida Ação de Investigação Judicial Eleitoral 1.943/1958 o Tribunal Superior Eleitoral julgou improcedente o pedido de cassação dos eleitos porque entendeu não haver provas suficientes do abuso. Mas, restou indelével que as delações premiadas acostadas aos autos só não foram consideradas porque os fatos que as mesmas tratavam não constavam, originariamente, na inicial e na causa de pedir.
Ao longo da instrução, como restou claro, se chegou a decidir admissibilidade da delação premiada como prova, contando com o apoio vivaz do Presidente do Tribunal, Ministro Gilmar Mendes, que posteriormente recuou afirmando que as delações não seriam para apuração daqueles fatos concretos, como registrou o próprio Tribunal Superior Eleitoral em sua página eletrônica:
O ministro considerou que nas delações probatórias realizadas pelo relator, foram constatados fatos que surgiram no curso da ação na chamada “fase Odebrecht” que não guardam relação com a causa de pedir da inicial, ou seja, com as empresas que mantinham contratos com a Petrobras e repassavam percentual desses contratos a candidatos e partidos políticos.
“Não estou a negar, de forma meramente imaginária, que pelo menos parte desses recursos foram repassados a campanha presidencial da chapa Dilma-Temer, mas apenas concluindo, a partir das provas produzidas nos autos relacionados à causa de pedir da inicial, que o arcabouço probatório não se revela suficientemente contundente para se chegar a severas sanções, porque a prova desses autos está lastreada, em grande parte, em testemunhas que são colaboradores premiados em outras instâncias do Poder Judiciário”, frisou.
Na avaliação do presidente do TSE, todos os depoimentos dos executivos ouvidos no processo demonstraram haver um esquema de corrupção até meados de 2014 envolvendo as empresas que tinham contratos com a Petrobras, mas não comprovaram que as propinas pagas aos partidos foram utilizadas diretamente na campanha presidencial daquele ano[40].
Nota-se que nenhum repúdio foi manifestado acerca do uso da delação premiada como prova no processo eleitoral. Inegável, entretanto, que as delações e depoimentos colacionados nessa ação serviram para corroer a imagem da ex-Presidente Dilma Roussef e alavancar o impeachment que permitiu aos grupos políticos dominantes no Congresso Nacional guindarem ao seu cargo o Vice, Michel Temer.
Lênio Screck, com apoio na obra de Pedro Serrano, registra o que resume o quadro vivido no Brasil, que serve como a mão à luva no processo eleitoral brasileiro: “A democracia vai se esfacelando e se transformando em uma maquiagem, que confere a aparência de um Estado Democrático, mas o invés de ampliar e efetivar direitos, suprime-os paulatinamente (…)” (STRECK, 2017, on-line).
Fazendo coro, Francisco Fonseca, em alusão à poesia de João Bosco e Aldir Blanc que se transformou na inesquecível música “O bêbado e a equilibrista”, verdadeira ode à democracia e à ruptura da ditadura, resume o cenário atual: “A ‘democracia’ brasileira encontra-se na ‘corda bamba equilibrista’: de um lado, o autoritarismo enevoado pelas formalidades legais falsamente democráticas, desestruturadoras dos direitos políticos, sociais e trabalhistas; de outro, a luta dos trabalhadores e dos pobres em busca destes” (FONSECA, 2017, p. 8).
CONCLUSÃO
Lançando sementes para construção de respostas possíveis, conclui-se que é necessário resgatar o processo eleitoral no paradigma atual, para tê-lo como garantia a serviço da proteção dos direitos políticos fundamentais, jamais como instrumento do juiz ou de quem quer que seja.
Com a mesma compreensão, deve ser combatido o discurso de liberdade e discricionariedade do julgador na produção da prova, obturando a concepção de que é destinada ao Estado e não ao procedimento, se revelando base fundante da motivação.
Da mesma forma, o depoimento pessoal não pode ser obtido por meio de intimidação e ameaça de condução coercitiva, porque além de imprevisto para as lides eleitorais, encontra limitação expressa no art. 392 do Código de Processo Civil brasileiro. Sem contar que se aproximará, muito, a ser mantido como está, da confissão obtida mediante tortura psicológica, numa volta ao tétrico passado ditatorial.
Conclui-se também que a delação premiada não serve para reconstrução de fatos típicos eleitorais como única possibilidade, desapegada de outros elementos porque não se pode impor ao delator o compromisso com a verdade além daquela que construiu no termo de delação, sob pena de fazê-lo produzir prova contra si. Noutro giro, se a base da delação, o termo, não se fez judicializado no processo eleitoral e sem envolver o demandado na lide eleitoral, que não teve oportunidade de questioná-lo, ainda mais vivo se faz o vício.
Por fim, os direitos políticos são a base da democracia ocidental, espécies de normas supraestatais, não podendo ser desconstitucionalizados ou banalizados como se tem visto.
Com isso, as reformas políticas que se destinem aos direitos políticos e ao processo eleitoral não dispensam consulta prévia à população interessada, porque se tornarão ilegítimas, devendo ser reflexas da vontade popular construída sem biombos e jogos de cena.
A salvaguarda da democracia brasileira, como de resto da democracia em geral, é o aprofundamento da participação popular na tomada de decisões públicas, radicalizando a democracia representativa para aproximá-la ao máximo dos institutos de participação direta.
O processo judicial eleitoral brasileiro, de igual forma, deve ser refundado para que não limite o agir popular, se apoie nas garantias constitucionais, escoimado dos vícios do processo inquisitorial indisfarçado que permanece no sistema nacional desde as ordenações portuguesas do medievo.
REFERÊNCIAS
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Notas de Rodapé
[1] Doutora em Direito Processual pela PucMinas. Mestra em Direito Administrativo pela UFMG. Especialista em Processo Penal pela Universidade de Castilla La Mancha. Professora do PPG – Mestrado em Direito Proteção de Direitos Fundamentais da – e da Graduação em Direito da Universidade de Itaúna, Minas Gerais.
[2] “Hoje, como garantia, entenda-se, também, e diria prevalentemente, o conjunto dos limites e dos vínculos impostos aos poderes públicos para a garantia dos direitos fundamentais. A concepção prevalente de garantismo, no corrente uso, é aquela de ‘garantismo penal’. O garantismo de fato nasceu, na cultura jurídica italiana de esquerda da segunda metade dos anos setenta, sobre o terreno do direito penal, como réplica à legislação e à jurisdição de emergência que naqueles anos reduziram o já frágil sistema de garantias do devido processo. Ele se vincula, por isso, à tradição clássica do pensamento penal liberal e expressa a instância, justamente, do iluminismo jurídico, da minimização daquele ‘terrível poder’, como o chamou Montesquieu, que é o poder punitivo, por meio de sua rígida sujeição à lei. Essa instância veio se identificando, portanto, com o projeto de ‘um direito penal mínimo’: quer dizer de um direito penal capaz de vincular a intervenção punitiva – na previsão legal dos crimes, bem como no acertamento judiciário – a limites rígidos impostos para a tutela do direito das pessoas. No que se referem ao crime, esses limites outra coisa não são do que as garantias penais substanciais: do princípio da legalidade estrita ou da taxatividade dos fatos puníveis àqueles da sua ofensividade, materialidade e culpabilidade. No que se referem ao processo, eles correspondem às garantias processuais e do ordenamento: o contraditório, a paridade entre acusação e defesa, a separação entre juiz e acusação, a presunção de inocência, o ônus acusatório da prova, a oralidade e a publicidade do juízo, a independência interna e externa da magistratura e o princípio do juiz natural”. FERRAJOLI, Luigi. Nota de Abertura – O garantismo e a esquerda. In: Garantismo Penal no Brasil: Estudos em Homenagem a Luigi Ferrajoli. Belo Horizonte: Fórum, 2013. p. 15-16.
[3] O instrumentalismo lança o Estado-juiz para o centro de gravidade do processo exaltando a autoridade estatal e relegando os demais interessados a papel subalterno, longe da concepção cidadã de que se trata de garantia do povo para efetivação de direitos fundamentais, cabendo ao Estado-juiz o dever de eficiência e celeridade na sua implantação.
[4] Distinta do conceito de jurisdição, este mais amplo que a atividade do juiz, a que se refere a judicação, revelando a atividade no caso concreto, limitada pelo direito normado (legislado), como prefere Rosemiro Pereira Leal in Teoria Geral do Processo: Primeiro Estudos. 13. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2016.
[5] Indicada como escopo metajurídico do processo por corrente teórica majoritária no Brasil, que se apresenta falseável, eis que o gigantesco volume de ações judiciais tem servido para comprovar a ineficiência dos órgãos estatais judiciais, longe da paz prometida.
[6] É clara a proposta de retirada do sistema eleitoral da Constituição, para facilitar modificações e relaxar o controle público, em especial no presente momento em que políticos de várias matizes se veem envolvidos na corrupção, movimento destacado por Lu Aiko Otta e Vera Rosa:
Diante das turbulências provocadas pela Lava Jato, o Senador José Serra (PSDB-SP) deve apresentar na próxima semana uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que retira da Carta os dispositivos que regulam o sistema eleitoral. O assunto foi discutido no jantar realizado na quarta-feira, na casa do presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Gilmar Mendes, com a participação do Presidente Michel Temer e de vários convidados do Congresso.
(…)
Tudo indica, porém, que o Congresso pretende encaixar um “jabuti” no projeto da reforma, na tentativa de anistiar o caixa 2. A articulação para salvar políticos avançou depois que o Supremo decidiu tornar réu o senador Valdir Raupp (RO), ex-presidente do PMDB. Para a Corte, uma doação de R$ 500 mil recebida por ele da empreiteira Queiroz Galvão, apesar de declarada à Justiça Eleitoral, não passou de “propina disfarçada”. (OTTA, Lu Aiko; ROSA, Vera. Para facilitar mudança, Serra quer tirar sistema eleitoral da Constituição. O Estado de São Paulo online, São Paulo, 2017. Disponível em: <http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,serra-quer-tirar-sistema-eleitoral-da-constituicao,70001703165>. Acesso em: 16 mar. 2017.
[7] O Tribunal Superior Eleitoral brasileiro divulgou o “Seminário Internacional Sobre Sistemas Eleitorais” buscando “Contribuição Internacional para a reforma política no Brasil”, sem evidenciar que, previamente, cuidou de esclarecer aos seus cidadãos qual o modelo vigorante, as críticas existentes, e se haveria alguma contribuição nacional para a reforma política no Brasil. E, ainda, partindo da absurda compreensão de que “(…) o Direito Eleitoral é o único ramo do Direito no qual o redator da norma é o destinatário da norma (…)”, como teria dito Torquato Jardim, ex-membro do TSE, atual Ministro da Transparência, Fiscalização e Controladoria Geral da União, também literato do campo eleitoral e palestrante no evento. Essa fala, certamente aleatória e sem acuidade técnica, parece distorcer a teoria discursiva do direito, proposta por Habermas (2000), para quem o direito é legitimamente construído a partir de política deliberativa que permita o cidadão se ver como autor e destinatário das normas. Assim, ao se infligir ao direito eleitoral a pecha de único no qual esse reflexo se dá, para di-lo negativo, é no mínimo uma distorção censurável. Disponível em: <http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2017/Marco/seminario-sobre-sistemas-eleitorais-tera-participacao-de-autoridades-nacionais-e-internacionais>. Acesso em: 17 mar. 2017).
[8] O Projeto de lei em curso trata das regras eleitorais, do sistema eleitoral e do financiamento de campanhas. O texto pretende alterar as leis dos Partidos Políticos (9.096/1995), das Eleições (9.504/1997), o Código Eleitoral (4.737/1965) e a minirreforma eleitoral de 2015 (13.165/2015). Embora pouco divulgado, a reforma tramita em paralelo na Câmara dos Deputados e no Senado da República, nesta casa mais discretamente e sem holofotes, mas onde, efetivamente, se decidirá a matéria.
[9] Dessa matéria se extrai que o acordo é claro – desde o Presidente Michel Temer, do PMDB, passando pelo Ministro Presidente do TSE Gilmar Mendes, desaguando no Senado, dirigido pelo Senador Eunício de Oliveira, também do PMDB, na proposta tramada pelo Senador José Serra, do PSDB, partidos e políticos bastante questionados em operação policial que investiga corrupção e desvio de dinheiro público para financiamento das respectivas campanhas. Ou seja, antes mesmo de apresentada ao público, a reforma já foi definida e aprovada nos bastidores do poder. Dessa forma, é patente o déficit de legitimidade e o desprestígio da participação popular no debate nacional sobre a reforma política.
[10] SCAFF, Fernando Facury. Você valoriza seu voto como valoriza o imposto que paga? São Paulo: Conjur, 2017, on-line. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2017-mar-21/contas-vista-voce-valoriza-voto-tal-valoriza-imposto-paga>. Acesso em: 20 mar. 2017.
[11] Conforme estabelece o parágrafo único do art. 101; também o parágrafo único do art. 104; o art. 111-A; mais o art. 119, Inc. II, todos da Constituição.
[12] SCAFF, Fernando Facury. Você valoriza seu voto como valoriza o imposto que paga? São Paulo: Conjur, 2017, on-line. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2017-mar-21/contas-vista-voce-valoriza-voto-tal-valoriza-imposto-paga>. Acesso em: 20 mar. 2017.
[13] SCAFF, Fernando Facury. Você valoriza seu voto como valoriza o imposto que paga? São Paulo: Conjur, 2017, on-line. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2017-mar-21/contas-vista-voce-valoriza-voto-tal-valoriza-imposto-paga>. Acesso em: 20 mar. 2017.
[14] Conforme Título II, Capitulo I, art. 5º, incs. LV, LIV, LVII et al., da Constituição brasileira.
[15] O POVO. Gilmar Mendes critica reforma política via plebiscito ou referendo. Fortaleza, mar. 2017, on-line. Disponível em: <http://www.opovo.com.br/noticias/politica/ae/2017/03/gilmar-mendes-critica-reforma-politica-via-plebiscito-ou-referendo.html>. Acesso em: 20 mar. 2017.
[16] Segundo Celso Marcelo de Oliveira: “O Brasil nasceu sob o império das Ordenações Alfonsinas, editadas em 1446 (…). As Ordenações Alfonsinas não foram um verdadeira codificação do direito, e sim uma compilação coordenada que se dividia em 5 livros, sendo o Livro III, com seus 128 artigos, destinados ao processo civil. (…) As Ordenações Alfonsinas tiveram como fonte a legislação feudal ou costumeira, o direito romano justinianeu inserido no corpus juris, o direito canônico e as Decretais de Gregório IX, vigorando em nosso país até 1521, quando ocorre, então, a publicação das Ordenações Manuelinas. De 1521 a 1603 vigoraram as Ordenações Manuelinas. Atendiam mais ao interesse da realeza do que ao das outras instituições, fortalecendo o poder absoluto do Rei. A partir de 1603, foram promulgadas as Ordenações Filipinas, que seguiram o método e a sistematização das matérias manuelinas, em cinco livros” (OLIVEIRA, Celso Marcelo. Moderno direito processual civil do Brasil e de Portugal. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 10, 10.01.2006).
[17] PICARDI, Nicola; NUNES, Dierle. O Código de Processo Civil Brasileiro – Origem, formação e projeto de reforma. Revista de Informação Legislativa do Senado, Brasilia, a. 48, n. 190, p. 93-120, abr./jun. 2011.
[18] Ibidem, p. 94.
[19] PICARDI, Nicola; NUNES, Dierle. O Código de Processo Civil Brasileiro – Origem, formação e projeto de reforma. Revista de Informação Legislativa do Senado, Brasilia, a. 48, n. 190, p. 96, abr./jun. 2011.
[20] Ibidem, p. 97.
[21] GRINOVER, Ada Pelegrini. O magistério de Enrico Tulio Liebman no Brasil. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 81, p. 98-102, mar. 1987.
[22] PICARDI, Nicola; NUNES, Dierle. Op. cit., p. 100.
[23] Ibidem, p. 101.
[24] Charley Teixeira Chaves vai dizer que “O jurista citado não teve originalidade na criação da teoria da relação jurídica processual, uma vez que a idéia já era desenvolvida por Búlgaro, jurista italiano (século XII), discípulo de Irnério, que defendia bem o sistema acusatório da época e estabelecia que ‘para haver processo é preciso que três pessoas: juiz, autor e réu’ (…). Nas Ordenações Filipinas (Livro 3º, título 20, proêmio) também constava essa ideia: ‘Três pessoas são por direito necessárias em qualquer Juízo, juiz que julgue, autor que demande, e réu que se defenda’” (ALVES, Charley Teixeira. Teoria Geral do Processo. 2. ed. Belo Horizonte: D’Plácido, 2016. p. 87-88).
[25] “A teoria da relação jurídica, teoria dominante desde o seu apogeu até os dias de hoje, vem sendo aprimorada por inúmeros juristas. Temos a visão da Instrumentalidade do processo que, dentro da nova perspectiva do processo moderno é vista como realizadora de justiça, que busca a desmistificação das regras do processo e de suas formas para um modelo otimizado, acrescentando além do escopo jurídico, outros escopos, sendo eles os valores sociais e políticos sustentados pelo método teleológico de interpretação das normas processuais. (…) O papel da Instrumentalidade consiste em atenuar as exigências formais, bem como aumentar a celeridade na produção dos resultados, tudo para alcançar o ideal de efetividade jurisdicional” (Ibidem, p. 91).
[26] LÔBO, Edilene. O déficit de legitimidade no processo político brasileiro. A violação da teoria da democracia. Encontro de Internacionalização do CONPEDI. Rubens Beçak, Jordi Garcia Viña (Orgs.). Madrid: Laborum, 2015. v. 3, p. 176.
[27] “Para se ter exemplo ligeiro desse hibridismo, que gera volume descomunal de funções, no art. 22 da Lei 4737, de 15.07.1965, o Código Eleitoral brasileiro, constam as competências do Tribunal Superior Eleitoral – TSE, que vão desde o processo e julgamento do registro dos partidos e de candidatos à eleição presidencial, passando por decisão dos conflitos entre tribunais regionais e suspeição de seus membros, seguido pelos crimes eleitorais e comuns praticados por seus juízes e membros dos Tribunais Regionais Eleitorais, continuando nas reclamações relativas à contabilidade dos partidos e à apuração da origem de seus recursos, nas impugnações à apuração da eleição presidencial, nos pedidos de desaforamento de feitos, desaguando nas reclamações contra seus próprios juízes, ações rescisórias de seus julgados e recursos contra as decisões dos tribunais regionais”. Idem.
[28] LÔBO, Edilene. O déficit de legitimidade no processo político brasileiro. A violação da teoria da democracia. Encontro de Internacionalização do CONPEDI. Rubens Beçak, Jordi Garcia Viña (Orgs.)..Madrid: Laborum, 2015. v. 3, p. 177.
[29] Ibidem, p. 179.
[30] Ibidem, p. 181.
[31] Ibidem, p. 179-180.
[32] GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2016a. p. 299.
[33] Ibidem, p. 297.
[34] Tribunal Superior Eleitoral. Agravo Regimental na Ação de Investigação Judicial Eleitoral 1.943/1958, originário do Distrito Federal, julgado em 30.06.2015, relatado pelo Ministro João Otávio Noronha, publicado no Diário de Justiça eletrônico de 30.09.2015, p. 104. Disponível em: <http://www.tse.jus.br/jurisprudencia/pesquisa-de-jurisprudencia/jurisprudencia>. Acesso em: 08 mar. 2017.
[35] Tribunal Superior Eleitoral. Recurso Especial 25215, originário do Rio Grande do Norte, julgado em 04.08.2005, relatado pelo Ministro Carlos Eduardo Caputo Bastos, publicado na Revista de Jurisprudência do TSE, v. 16, t. 4, p. 353. Disponível em: <http://www.tse.jus.br/jurisprudencia/pesquisa-de-jurisprudencia/jurisprudencia>. Acesso em: 08 mar. 2017.
[36] Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 85029, Relator Ministro Sepúlveda Pertence, Tribunal Pleno, julgado em 09.12.2004, publicado no Diário da Justiça de 01.04.2005, p. 6, Ement. v. 2185-2, p. 329 RTJ, v. 195-02, p. 538, LEXSTF v. 27, n. 318, 2005, p. 422-434. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=358613>. Acesso em: 08 mar. 2017.
[37] Tribunal Superior Eleitoral. Habeas Corpus 558-80, Relator Ministro Hamilton Carvalhido, originário do Rio de Janeiro, julgado em 30.03.2011, publicado no Diário de justiça de 09.05.2011, p. 76. Disponível em: <http://www.tse.jus.br/jurisprudencia/pesquisa-de-jurisprudencia/jurisprudencia>. Acesso em: 08 mar. 2017.
[38] Tribunal Superior Eleitoral on-line. Eleições Presidenciais 2014 – AIJE 1.943/1958. Disponível em: <http://www.tse.jus.br/eleicoes/eleicoes-anteriores/eleicoes-2014/prestacao-de-contas-eleicoes -2014/acao-de-investigacao-judicial-eleitoral-no-1943-58>. Acesso em: 18 mar. 2017.
[39] PRIOLLI, Gabriel. A era da pós-verdade. Revista Carta Capital online, São Paulo. Publicado em 13 jan. 2017. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/revista/933/a-era-da-pos-verdade>. Acesso em: 20 mar. 2017.
[40] Disponível em: <http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2017/Junho/por-4-votos-a-3-plenario-do-tse-decide-pela-nao-cassacao-da-chapa-dilma-e-temer>. Acesso em: 10 jun. 2017.