Adolescente: Ato Infracional e Medidas Socioeducativas

DOI: 10.19135/revista.consinter.00006.10

Mário Luiz Ramidoff[1] – ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0777-4944

Luísa Munhoz B. Ramidoff[2] – ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3141-7602

Resumo: O presente artigo tem por objeto de estudo e pesquisa a responsabilização diferenciada dos adolescentes a quem se atribui a prática de condutas consideradas conflitantes com a lei. A responsabilização diferenciada pode ser realizada através da determinação judicial do cumprimento de medidas de proteção e de medidas socioeducativas. Os atos infracionais são normativamente assemelhados às condutas, então, tipificadas como substrato fático (núcleo do tipo penal) de crimes e contravenções penais, mas com esses não se confundem. As medidas socioeducativas, de igual maneira, não podem ser tomadas como sanções penais, haja vista que possuem como vetor orientativo preferencialmente o caráter pedagógico, e, não, diversamente, o repressivo-punitivo.

Palavras-chave: Adolescente; Ato infracional; Medidas protetivas; Medidas socioeducativas; Responsabilização diferenciada.

Abstract: The purpose of this article is to study and research the differentiated responsibility of adolescents who are attributed to the practice of conduct considered to be in conflict with the law. Differentiated accountability can be achieved through judicial determination of compliance with protective measures and socio-educational measures. The infraction acts are normatively similar to the conduct, then, typified as sub-factual (nucleus of the penal type) of crimes and criminal contraventions, but with these they are not confused. Socioeducative measures, likewise, can not be taken as criminal sanctions, given that they have as a guiding vector preferentially the pedagogical character, and not, differently, the repressive-punitive.

Keywords: Adolescent; Infraction; Protective measures; Socioeducative measures; Differentiated accountability.

INTRODUÇÃO

No presente artigo, faz-se destaque de algumas passagens que se encontram atualmente nas pautas públicas, em debate, são elas: a responsabilização penal da criança e do adolescente; a distinção entre a responsabilização diferenciada e o sentimento de impunidade difundido na opinião pública; a contrariedade epistêmica entre a doutrina da proteção integral e a matriz teórico-pragmátido do direito penal juvenil, dentre outros aspectos relevantes, que, em razão da atração central dessas temáticas, certamente, restaram ainda que indiretamente contemplado.

Sob o epíteto da doutrina da proteção integral – que se constitui na matriz jurídico-legal (constitucional e estatutária) e epistêmica fundante do novo Direito da Criança e do Adolescente –, entende-se que não se afigura adequada; e, sequer, legítima, a utilização de institutos jurídico-penais para a resolução das questões relativas aos interesses indisponíveis, direitos individuais e garantias fundamentais afetas à criança e ao adolescente.

As reações repressivo-punitivas próprias do Direito Penal não têm o condão de resgatar os conflitos e, muito menos, as pessoas envolvidas, senão, que, pelo contrário, causa “mais problemas e conflitos do que aqueles que se propõem a resolver com a agravante dos seus altos custos sociais[3].

Na construção do conhecimento inúmeras injunções político-ideológicas são utilizadas, através dos processos de formação pessoal e de informação cognitivo-intelectual, para influenciar decisivamente a consubstanciação do ser que conhece e do objeto a ser conhecido.

Portanto, é preciso ter tempo para adolescer, e, com isto, evitar determinismos biopsicológicos – por exemplo, o “discernimento” eventualmente constatável, atualmente, tem servido discursivamente para sustentar as propostas de redução da idade de maioridade penal – amplamente utilizados, ao longo da história, por poderes tecnocráticos, para oferecer soluções imediatistas socialmente inconsequentes.

1 DIREITO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

É preciso, inicialmente, não confundir o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei 8.069, de 13.07.1990 – com o surgimento do Direito da Criança e do Adolescente, no Brasil. O Direito da Criança e do Adolescente surgiu no Brasil à época da criação da Constituição da República de 1988, através de movimentos sociais – como, por exemplo, movimento nacional de meninos e meninas em situação de rua – em prol da criança e do adolescente. Assim, ao se fazer consignar, especificamente, nos arts. 227 e 228 da Constituição da República de 1988, a síntese dos direitos humanos destinados à criança e ao adolescente, consolidou-se, no Brasil, o Direito da Criança e do Adolescente através da adoção do que se convencionou teórico-pragmaticamente denominar de doutrina da proteção integral.

A origem das mencionadas figuras legislativo-constitucionais tem lugar no projeto do que viria ser a Convenção Internacional dos Direitos da Criança, que, somente em 20.11.1989, tornou-se publicamente conhecida e adotada pelos países que fazem parte da comunidade internacional perante a Organização das Nações Unidas – ONU. O Estatuto da Criança e do Adolescente, entretanto, apenas veio a lume, na data de 13.07.1990; e, nesses quase 20 (vinte) anos de sua vigência, é possível constatar uma verdadeira mudança cultural a partir do marco teórico e pragmático dos direitos humanos, principalmente, nas relações políticas e sociais pertinentes à infância e à adolescência.

Essas legislações nacionais e internacionais se constituem nas “Leis de Regência[4] do Direito da Criança e do Adolescente. A importância do conhecimento dessas “Leis de Regência” é vital mesmo para a formação de atores sociais que devem intervir na realidade social a partir de suas diversas potencialidades.

O Direito da Criança e do Adolescente requer, por isso, a formação e a mobilização da opinião pública, através do incentivo da prática profissional responsável e socialmente consequente, a partir de um “olhar” respeitoso e humanitário. No Brasil, em alguns Estados já existem legislações específicas que determinam a inclusão da disciplina Direito da Criança e do Adolescente nos concursos para assunção de cargos públicos pertinentes e que possuam atribuições diretas e indiretas junto à comunidade infantojuvenil.

Algumas Universidades já possuem estudos, pesquisas e extensão relativos ao Direito da Criança e do Adolescente; até porque, a Academia deve ter sempre por diretiva principal a função de capacitar as diversas potencialidades para atuação direta e indireta nas comunidades.

A matriz normativa (jurídico-legal) é apenas um ponto de partida para a regulamentação – e por vezes a mutação – das relações interpessoais que se estabelecem socialmente entre crianças e adolescentes – por exemplo, familiares, escolares, associativas, dentre outras. Para tanto, o viés para identificação, reconhecimento e abordagem dos interesses e conflitos que se estabelecem, necessariamente, exigem o estabelecimento de uma metodologia transdisciplinar. Na construção e desenvolvimento do Direito da Criança e do Adolescente deverão ser sempre utilizadas quando possível as importantes contribuições inter, multi e transdisciplinar. O intuito precípuo é a integração dos saberes para que, cada vez mais, seja possível oferecer resoluções adequadas aos casos concretos (legais) que cotidianamente são apresentados não só ao Sistema de Justiça Infanto-juvenil, mas, também, naquelas diversas instâncias – isto é, familiares, escolares, administrativas e deliberativas (Conselhos dos Direitos e Tutelares).

Em cada uma dessas instâncias deverão ser adotadas metodologias que se revelem aptas e capazes de oferecer resoluções adequadas às questões pertinentes à infância e à adolescência, tendo-se em conta, que a criança e o adolescente são sujeitos de direito que se encontram na condição humana peculiar de desenvolvimento. As importantes contribuições interdisciplinares são aquelas adotadas pelo discurso jurídico, com o intuito de (re)significarem e criarem sentidos no âmbito jurídico-legal. As intersecções transdisciplinares, por sua vez, mantêm a tensão entre os âmbitos de conhecimento – por exemplo, jurídico e psicológico – precisamente, para determinar os limites cognitivos e de vinculação semiológica.

A diferença de abordagem, no entanto, não implica em eliminação ou mesmo incorreção, mas, verdadeiramente, complementaridade, na ação que se tiver de adotar – como, por exemplo, seja acolhimento, proteção, tratamento ou responsabilização diferenciada. Contudo, observa-se que o discurso jurídico assim como os demais que se apresentam para a resolução adequada de questões relativas à infância e à adolescência, na verdade, continuam a fazer um “jogo de poder”; pois, para o discurso jurídico a relação que se estabelece demanda resolução adequada e contemplativa das importantes contribuições inter e transdisciplinares, ainda, que, continue a produzir discursividade jurídica determinativa e vinculativa das relações sociais – “de poder” – que regulamenta. Assim, no Direito da Criança e do Adolescente a metodologia apesar de ser diferenciada, necessariamente, deverá prestigiar a complementaridade através da integração das discursividades que se estabelecem para a regulamentação dos direitos individuais – atendimento médico, psicológico; formulação de políticas públicas; adoção de medidas judiciais etc. – e o asseguramento das garantias fundamentais que são afetas à criança e ao adolescente.

No entanto, por incrível que pareça, nos Cursos de Graduação e Pós-graduação em Direito, no Brasil, é muito raro o Direito da Criança e do Adolescente constar dos programas e currículos como disciplina obrigatória; quando não, figuram apenas como disciplinas optativas. Antes da Constituição da República de 1988, a criança e o adolescente tinham proteção pela legislação civil; contudo, em relação àqueles que praticavam atos considerados desviados a responsabilização era regulamentada a partir da concepção repressivo-punitiva própria ao Direito Penal. E, por isso, até então, houve um descaso muito grande tanto pela Universidade – que muito pouco formou profissionais capacitados –, quanto pelas políticas públicas relacionadas à educação, para a integração dos estudos e das pesquisas relacionados às diversas áreas do conhecimento pertinentes à infância e à adolescência.

O Direito da Criança e do Adolescente e suas “Leis de Regência” raramente são divulgados adequadamente pelos meios de comunicação social, salvo sazonalmente nas oportunidades em que se comemoram os adventos das mencionadas figuras legislativas, quando não, limitam-se a questionar a eficácia jurídica e social das medidas legalmente previstas. Em relação à aplicação das mencionadas “Leis de Regência”, por vezes, de forma preconceituosa, são consideradas como excessivamente protetivas, quando se pensa nas garantias fundamentais reconhecidas ao adolescente a quem se atribui a prática de ato infracional; outras vezes, sugere-se que tais legislações são muito pouco conhecidas, e, por isso, de igual maneira, muito pouco aplicadas judicialmente e ou socialmente observadas.

Enfim, os meios de comunicação social não têm se preocupado com o tratamento adequado a respeito do Direito da Criança e do Adolescente – que, por certo, não deverá ser reduzido à discussão sobre as “Leis de Regência” –; quando não, desconhecem as denominadas “fontes” capacitadas para oferecer informações coerentes ao desenvolvimento teórico e pragmático da matéria relativa à infância e à adolescência, bem como as atuais discussões levadas a cabo em congressos, grupos de pesquisas e agências que se destinam à veiculação e divulgação da cidadania infantojuvenil.

Por exemplo, para que se evitem estigmatizações ou mesmo tratamentos pejorativos, não se deve mais utilizar expressões, como, por exemplo, “menor”, “menor infrator”, “ECA”, “punição”, dentre outros. Ao invés disso, é respectivamente possível usar criança ou adolescente. Criança é a pessoa com até 12 (doze) anos de idade incompletos; e adolescente pessoa com idade entre 12 (doze) anos completos e 18 (dezoito) anos – art. 2º da Lei 8.069/1990.

Não se denomina de “menor infrator”, mas, sim, de criança ou de adolescente “em conflito com a lei”, senão, de criança ou de adolescente “a quem se atribui a prática de ato infracional”, “ECA” além da abreviação não recomendada, também pode sugerir pouco caso, quando não dubiedade acerca do que se quer dizer. Por isso, é possível utilizar simplesmente a expressão “Estatuto”. E “punição” e ou “sanção” são expressões que não se utilizam mais na seara infanto-juvenil, cujas medidas são as específicas de proteção e ou socioeducativas, as quais possuem conteúdos protetivos e sociopedagógicos.

Por tudo isto, o estudo e a pesquisa do Direito da Criança e do Adolescente estão por exigir a construção de uma teoria jurídica que possa oferecer instrumentos próprios à efetivação jurídica e social da doutrina da proteção integral, enquanto consolidação dos direitos humanos especificamente destinados à infância e à adolescência.

2 DIREITO PENAL JUVENIL

O direito penal juvenil não deixa de ser uma vertente jurídico-penal que se pretende ver aplicada na nova área jurídico-legal (protetiva) infantojuvenil. Com efeito, tal versão repressivo-punitiva apresenta, de forma argumentativa, as eventuais garantias penais e processuais penais que têm sido oferecidas às pessoas incriminadas perante o Sistema de Justiça Penal. Entretanto, tais garantias apenas têm servido para cooptação das críticas que são teórico-pragmaticamente lançadas ao funcionamento do Sistema de Justiça Penal. Pois, de forma diminuta, a mera declaração constitucional e legal dessas garantias, sequer, tem refreado o expansionismo repressivo-punitivo – objetivado nas restrições legais[5], sumulares[6] e resolutivas[7] acerca da aplicação da prescrição penal, no Brasil –, afigurando-se, assim, incapazes de oferecer minimamente adequada proteção à criança e ao adolescente.

A discursividade garantista que busca legitimar e justificar a intervenção estatal repressivo-punitiva, na área jurídico-legal (protetiva) infanto-adolescente, não oferecer nenhuma segurança plausível à efetivação jurídica e social das liberdades públicas (substanciais[8]) afetas à criança e ao adolescente.

A lógica e racionalidade oferecidas pela epistemologia jurídico-penal, sequer, na verdade, têm permitido a superação das ambiguidades identificadas, senão, produzidas pela própria dogmática jurídica[9] (penal), no âmbito do Sistema de Justiça Penal. Pois, apesar de oferecer critérios de limitação da intervenção estatal repressivo-punitiva desde a formulação da legislação penal, perpassando pela aplicação judicial e a execução das sanções penais, hodiernamente, o Direito Penal tem sido, mais do que nunca, autorizativo das práticas antidemocráticas.

Pois, como se sabe, o Direito Penal Juvenil tem por pressuposto teórico a “missão” funcional-utilitarista destinada ao “controle” do que se tem denominado historicamente como “delinquência juvenil” – e, hoje, a partir de metodologias estatísticas de duvidosa credibilidade, denominado de “criminalidade juvenil” – procurando, assim, legitimar o discurso jurídico-penal autorizativo e justificador da intervenção estatal de cunho repressivo-punitivo a título de “limitação” do poder punitivo do Estado.

Na verdade, a “delinquência juvenil” ou a “criminalidade juvenil” servem como dados estatísticos seletivamente criados através de metodologias tendencialmente comprometidas com a legitimação do controle sócio penal violento, agora, sob as escaramuças de um pretenso “Direito Penal Juvenil”.

Esta análise crítica é decorrente das importantes contribuições oferecidas pela Criminologia Crítica que sempre advertiu sobre os riscos epistemológicos da aceitação rápida de medidas emergenciais e extraordinárias que são propostas em relação às “urgências” ditadas pelas hegemonias político-econômicas. E, assim, nesta toada, pretende-se admitir a existência de um suposto “Direito Penal Juvenil”, na área jurídico-legal destinada à proteção da infância e da adolescência, presumindo-se a adequação teórica e pragmática de institutos jurídico-penais, que, para além do objetivo de limitar a intervenção estatal repressivo-punitiva, orientam-se pela criminalização seletiva de comportamentos, pessoas e segmentos sociais.

A preocupação residual com as importantes contribuições da Criminologia Crítica é a centralidade de seu objeto de estudo, qual seja: o Direito Penal; e, que, aqui, na área jurídico-legal protetiva pertinente à infância e à adolescência poderia sugerir a existência de um “Direito Penal Juvenil” a ser criticamente analisado. O que importa aqui são as importantes contribuições multidisciplinares para que se possa ter a mais ampla compreensão do fenômeno da violência social urbana em que haja envolvimento de criança e/ou de adolescente.

Contudo, é importante dizer que não existe na área jurídico-legal infanto-adolescente o pretendido “Direito Penal Juvenil”, nem normativa e nem político-ideologicamente, obliterando-se, assim, qualquer possibilidade de reconhecimento de sua validade teórico-pragmática, por vezes, pleiteada através da utilização indevida de alguns institutos jurídico-penais, que, sequer têm o condão de confirmar a sua e adequabilidade resolutiva.

O Direito da Criança e do Adolescente surge sob o signo da humanidade e da negação das práticas supressivas das liberdades substanciais que ofendem o regime democrático, cujas pretensões teórico-pragmáticas meramente cooptativas apenas se destinam a autorizações interventivas de viés repressivo-punitivo – como, por exemplo, a ressocialização (reintegração) penal.

A partir da orientação fundamental estabelecida nos arts. 227 e 228 da Constituição da República de 1988, quando não através de previsão estatutária que revogou expressamente as legislações contrárias[10], não se afigura mais possível admitir a utilização de expedientes jurídico-penais, ainda, que, juvenil, para a resolução adequada de questões pertinentes à criança e ao adolescente.

Logo, não se tem qualquer possibilidade de identificar através da matriz epistemológica penal, seja qual for o expediente interpretativo, qualquer possibilidade de asseguramento ou efetivação dos direitos individuais e das garantias fundamentais afetas à criança e ao adolescente.

Certamente, o direito penal juvenil[11] não tem essa objetividade, pois, enquanto vertente da dogmática jurídico-penal, não se destina a proteger integralmente a criança e ou o adolescente nas hipóteses em que lhes são atribuídas a prática de ato infracional.

Desta maneira, torna-se interdito reconhecer um suposto direito penal juvenil, no interior do Sistema de Justiça Infanto-Juvenil, pois é absolutamente incompatível com os princípios, fundamentos e objetivos constitucional e estatutariamente estabelecidos sob a orientação humanitária oferecida pela doutrina da proteção integral.

O Direito da Criança e do Adolescente pode oferecer contribuições resolutivas humanitárias, e, assim, colaborar para que a tutela jurisdicional então prestada no interior do Sistema de Justiça Penal possa ser cada vez mais adequada[12] ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana.

Exemplo disto é o que se encontra disposto no § 1º do art. 112 da Lei 8.069/1990, segundo o qual: toda e qualquer medida a ser judicialmente aplicada ao adolescente deverá levar em conta a sua capacidade de cumpri-la, para além é certo das circunstâncias fáticas e condições pessoais, bem como da gravidade da infração.

Na verdade, o movimento epistemológico que se desenvolve hoje é precisamente o inverso, vale dizer, é justamente as orientações humanitárias consolidadas na doutrina da proteção integral que têm servido para tornar, cada vez mais adequadas, as resoluções oferecidas no âmbito do Sistema de Justiça Penal.

3 RESPONSABILIZAÇÃO DIFERENCIADA

A responsabilização diferenciada de criança ou adolescente a quem se atribua a prática de ato infracional, certamente, distingue-se da penal ainda que adaptada a um suposto direito penal juvenil.

A responsabilização diferenciada se realiza através da aplicação de medidas específicas de proteção, nas hipóteses em que a criança pratique um ato infracional – consoante a combinação dos arts. 98, 101, 105, e 136, inc. I, todos do Estatuto da Criança e do Adolescente –; enquanto, que, ao adolescente, em tais hipóteses, não só se aplicam essas medidas legais, mas, também, as socioeducativas – conforme dispõe os arts. 104 e 112 da Lei 8.069/1990.

A não aceitação teórico-pragmática da responsabilização penal infantojuvenil, por isso mesmo, é consequência direta da própria negação da existência de um suposto direito penal juvenil no interior do Estatuto da Criança e do Adolescente.

O suposto direito penal juvenil não se constitui numa adequada matriz resolutiva para os casos que envolvem interesses indisponíveis, direitos individuais e garantias fundamentais afetos à criança e ao adolescente a quem se atribua a prática de ato infracional.

É responsabilização, pois, na verdade, o que se realiza é um processo de atribuição dos deveres sociais e educativos – nos termos do que dispõe o art. 6º do Estatuto[13] – através de estratégias pedagógicas; e, não, diversamente, uma qualidade inerente à personalidade da criança ou do adolescente a ser identificada e obliterada repressivo-punitivamente.

É diferenciada, pois, é possível a aplicação de medidas legais distintas precisamente para serem adequadas para cada um daqueles sujeitos de direito. Assim, nas hipóteses em que à criança for atribuída a prática de ato infracional, é o Conselho Tutelar que possui atribuição legal para aplicação tão somente de medidas específicas de proteção.

Diversamente, nas hipóteses em que for o adolescente, a competência é do Juiz de Direito, o qual pode através do devido processo legal – estatutário-infracional – aplicar tanto as medidas específicas de proteção, quanto as socioeducativas, inclusive, cumulativamente.

Portanto, ao se consignar as expressões responsabilização diferenciada, tem-se a nítida intenção de ressalvar a possibilidade de aplicação de medidas legais adequadas a cada caso concreto. Para crianças responsabilização protetiva, enquanto que para adolescentes a responsabilização tanto pode ser protetiva quanto socioeducativa. Entretanto, diz-se precisamente diferenciada, com o intuito de que seja um processo de responsabilização absolutamente distinto daqueles que tenham bases epistemológicas no Direito Penal, ainda, que, pretensamente juvenil. A responsabilização diferenciada, assim, prende-se ao fato de que se deve sempre ter presente a ideia dos processos de formação pessoal e social. É, precisamente, através desses processos, que serão estabelecidas as limitações adequadas e necessárias a crianças e adolescentes. Logo, não é legitimamente possível admitir que se identifique a equivocada percepção de que a responsabilidade diferenciada da criança ou adolescente a quem se atribua a pratica de ato infracional possa significar, senão, mesmo, redundar em impunidade!

O intuito precípuo é o de romper os círculos de violências – por vezes, estruturais[14], como, por exemplo, a miséria, a fome, dentre outros – em que se encontram crianças e adolescentes, no Brasil, e, que, sintomatologicamente, muito provavelmente sinalizam através da prática de atos infracionais. É, por isso, que, para além de uma teoria jurídica da responsabilização diferenciada, impõe-se a construção de uma “interpretação protetiva”, de viés humanitário, para a aplicação adequada de medidas legais – específicas de proteção e ou socioeducativas – consoante as reais necessidades pessoais e sociais da criança e do adolescente a quem se atribui a prática de ato infracional. A capacidade de cumprimento da medida socioeducativa a ser judicialmente aplicada, e, que se encontra prevista no § 1º do art. 112 da Lei 8.069/1990, constitui-se num critério normativo que orienta a devida adequação a ser levada a cabo na “interpretação protetiva”. Até porque, afigura-se completamente incompatível as soluções repressivo-punitivas oferecidas pelo Direito Penal – ainda, que, juvenil – como forma de educação, na perspectiva socioeducativa.

Senão, principalmente, em relação aos adolescentes com sofrimento mental grave, aos quais se destinaria invariavelmente o atendimento hospitalicêntrico, através de institucionalizações totais. Nos termos do § 3º do art. 112 da Lei 8.069/1990, o adolescente que apresentar sofrimento mental grave deverá receber “tratamento individualizado e especializado, em local adequado às suas condições”, como, por exemplo, nos Centros de Atenção Psicossocial Infantil ou para tratamento de Álcool e Drogas – respectivamente CAPSi e CAPSad.

No entanto, tendo-se em conta a redemocratização das relações sociais que também se operou na área da psicologia, no Brasil, deve-se evitar ao máximo toda e qualquer espécie de institucionalização. A novel Lei 12.852/2013, então, denominada de Estatuto da Juventude, também, contempla similar regulamentação acerca do atendimento integral à saúde do jovem, dispondo, que, as pessoas com idade entre 15 e 29 anos têm “direito à saúde e à qualidade de vida, considerando suas especificidades na dimensão da prevenção, promoção, proteção e recuperação da saúde de forma integral” (art. 19).

Em destaque, observa-se que a legislação especial supramencionada incentiva a articulação das instâncias de saúde e justiça na prevenção do uso e abuso de álcool, tabaco e outras drogas, inclusive esteroides anabolizantes e, especialmente, o crack, nos termos do inc. XI do art. 20 da Lei 12.852/2013.

Em decorrência disto, é possível verificar que “houve uma aproximação efetiva do Judiciário-Administração-Família e, muitas vezes, dependente, reconhecendo-se que o problema não é só de um indivíduo e que ele sozinho não conseguirá livrar-se do vício, mas que há necessidade da ação conjunta e livre de preconceitos de todos os envolvidos, de forma articulada, em rede[15].

A institucionalização como medida preferencial atualmente se encontra dissociada dos princípios democráticos estabelecidos na área do atendimento e proteção integral da saúde mental infantojuvenil, quais sejam: o antimanicomial e anti-hospitalicêntrico, os quais se constituem em vetores orientativos para a intervenção técnica interprofissional.

Neste sentido, Simone Fagundes Messias[16] tem advertido que a institucionalização provoca na pessoa a perda do “senso crítico, banalizando todas as situações cotidianas, criando uma apatia frente à própria vida”.

Com isto, procura-se evitar os lombrosianismos contemporâneos defendidos por psicólogos que cada vez mais exigem responsabilidades dos jovens; senão, também por pedagogos que só pensam em disciplinar o comportamento infanto-juvenil; bem como por juristas – que, com aportes nas máximas psicológicas (responsabilização) e pedagógicas (disciplinares) – ao programarem soluções argumentativamente lógicas a partir de expectativas deterministas, mas socialmente inconsequentes.

4 ATO INFRACIONAL

Ato infracional não se constitui num pressuposto legal para aplicação de sanções penais, uma vez que o pressuposto para tal desiderato é o crime devidamente comprovado através dos meios de prova, em Direito, admitido. O art. 103 da Lei 8.069/1990 assemelha normativamente o ato infracional à conduta descrita como crime, e, não propriamente o crime.

A elaboração legislativa do art. 103 da Lei 8.069/1990, que, por economia legislativa, não descreveu as possíveis condutas que poderiam configurar o elemento nuclear de cada espécie de ato infracional, tem ensejado discussões acerca da natureza jurídica do ato infracional.

No entanto, o ato infracional é o pressuposto lógico-formal para a eventual aplicação de medidas específicas de proteção e ou socioeducativas ao adolescente a quem se atribui a prática de ato infracional; e, em relação à criança, em idêntica condição infracional, apenas a aplicação de medidas específicas de proteção. Para a teoria normativa pura da culpabilidade[17], a imputabilidade penal – capacidade psíquica – constitui-se num dos aspectos de verificação da culpabilidade, enquanto elemento estrutural do crime.

Portanto, uma vez ausente a capacidade psíquica, isto é, verificada a inimputabilidade penal, culmina por impedir o reconhecimento da própria culpabilidade. E, assim, consequentemente, uma vez não estando presente a culpabilidade enquanto elemento estrutural que dá qualidade ao injusto penal – isto é, à conduta típica e antijurídica –, por certo, não é possível reconhecer a existência de crime.

O ato infracional não se confunde com o que se entende por crime, precisamente, por faltar tanto à criança e quanto ao adolescente, capacidade psíquica para a culpabilidade.

Isto é, não se verifica presente a imputabilidade penal vinculada ao sujeito que pratica o ato infracional, pressupostamente, por não possuírem 18 (dezoito) anos de idade, nos termos do art. 228 da Constituição da República de 1988; senão, de igual maneira, no art. 27 do Código Penal brasileiro. O instituto jurídico-legal denominado de “ato infracional”, assim, é pertinente ao Direito da Criança e do Adolescente, de viés político-ideológico claramente humanitário e metodologicamente protetivo, uma vez que se orienta pelos ditames da doutrina da proteção integral, através da garantia da absoluta prioridade.

O ato infracional se insere, assim, na dimensão não só social, mas, também, (inter)pessoal tanto da criança quanto do adolescente, enquanto sintoma de suas exposições a violências. A sintomatologia que se propõe a partir da prática do ato infracional oferece a possibilidade de identificação e compreensão dos círculos de violência – estruturais, pessoais, sociais, dentre outras – em que se encontra exposta a criança e ou o adolescente. A intervenção estatal, por isso, deve ser tão adequada quanto complexa for a situação pessoal, familiar e social da criança ou do adolescente a quem se atribuiu a prática de ato infracional.

Assim, não se afigura apta para tal desiderato qualquer proposição resolutiva que se vincule simplesmente ao âmbito comportamental[18] da criança ou do adolescente em conflito com a lei, senão, muito menos, toda aquela que se vincule político-ideologicamente ao viés repressivo-punitivo. Neste sentido, é importante perceber que “a agressividade não significa sempre a dita ‘delinquência’, mas um momento da vida do Sujeito”, segundo Alexandre Morais da Rosa[19], para quem, o adolescente como Sujeito “protagonista de um momento de passagem, sem ritos sociais de apoio, lançado aos seus próprios mitos, na eterna tentação de existir, se constituir como sujeito, numa sociedade complexa”.

Por isso mesmo, a medida legal que tiver de ser judicialmente adotada, necessariamente, deverá ter por objetivo a ruptura dos círculos de violência, nos quais crianças e adolescentes que praticaram atos infracionais encontrem-se inseridos pessoal (comportamental), familiar e comunitariamente.

Eis, pois, os motivos pelos quais, entendeu-se por bem construir técnica (epistemológica), político (democrática) e ideologicamente (cultura humanitária) o instituto jurídico-protetivo denominado de medida socioeducativa.

Bem por isso, a medida socioeducativa não pode ser confundida legal, teórica ou pragmaticamente como a sanção penal.

Para além da medida socioeducativa, também é possível a aplicação judicial de medidas específicas de proteção em relação tanto à criança, quanto ao adolescente a quem se atribua a prática de ato infracional.

Com a aplicação judicial das medidas específicas de proteção, objetiva-se resgatar os sujeitos de direito infantojuvenis das situações de ameaças e violências aos seus direitos e garantias fundamentais.

De igual maneira, através de tais medidas, também, intenta-se (re)estruturar a ambiência parental indispensável para o exercício do direito fundamental à convivência familiar e comunitária – nos termos do que dispõe o caput do art. 19 da Lei 8.069/1990.

5 MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS

Como acima se disse, a medida socioeducativa é uma reação estatal adequada pedagogicamente às necessidades educacionais e sociais dos adolescentes que através da prática de conduta conflitante com a lei (ato infracional) sinalizaram situação de ameaça ou violência aos seus direitos individuais e ou às suas garantias fundamentais[20].

Por isso, a construção técnico-epistemológica, político-democrática e ideológico-humanitária determina que o conteúdo deva ser sempre pedagógico de toda e qualquer medida socioeducativa a ser judicialmente aplicada, e, assim, consequentemente, cumprida.

A medida socioeducativa, em decorrência disto, possui conteúdo pedagógico (educacional), orientação protetiva (direitos humanos) e especial (absoluta prioridade na efetivação dos direitos e garantias fundamentais).

A medida socioeducativa se constitui, assim, num expediente legislativo destinado à resolução adequada dos casos concretos que envolvam interesses indisponíveis (conflito de interesses), direitos individuais (ameaçados ou violados) e garantias fundamentais (inobservância e desrespeito) afetas ao adolescente a quem se atribua a pratica de conduta conflitante com a lei (ato infracional).

As medidas socioeducativas exigem a implementação orçamentária para a construção de equipamentos adequados, e, a decorrente estruturação material e pessoal – capacitação permanente – que são indispensáveis para a efetivação dos direitos individuais e das garantias fundamentais afetos ao adolescente a quem se atribui a prática de ato infracional.

O art. 4º da Lei 8.069/1990 ao descrever a garantia da absoluta prioridade, destaca a “preferência na formulação e execução das políticas sociais públicas”, bem como “destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude”.

A absoluta prioridade se constitui num dos principais instrumentos legais (estatutário) para a construção de uma política jurídica em prol da criança e do adolescente.

Isto é, ao lado da instrumentalização operacional dos organismos estatais para o atendimento adequado da criança e do adolescente a quem se atribui a prática de ato infracional, também se procura (re)estruturar os respectivos núcleos familiares através de políticas sociais públicas de atendimento, o que se constitui em fator preponderante para a não reiteração de atos infracionais, e, o rompimento dos círculos de violência.

A Lei 8.069, de 13.07.1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), prevê no seu art. 112 as medidas socioeducativas aplicáveis apenas ao adolescente a quem se atribuiu e comprovadamente demonstrou ter praticado ato infracional, são elas: advertência; obrigação de reparar o dano; prestação de serviço à comunidade; liberdade assistida; inserção em regime de semiliberdade; internação em estabelecimento educacional.

Além destas medidas, consoante anteriormente já havia sido destacado, existe previsão legal permissiva para aplicação judicial cumulativa das medidas específicas de proteção estabelecidas nos incs. I a VI do art. 101 da Lei 8.069/1990[21].

A medida socioeducativa denominada estatutariamente de advertência (art. 115 da Lei 8.069/1990) consiste numa admoestação verbal a ser aplicada judicialmente em audiência especificamente destinada para tal desiderato. Nesta audiência judicial, para além dos servidores e eventuais policiais da escolta apenas deverão permanecer no recinto que lhe for destinado, o adolescente e seus pais ou responsável, bem como o Defensor, o Promotor de Justiça e o Juiz de Direito.

A medida socioeducativa que determina a obrigação de reparar o dano (art. 116 da Lei 8.069/1990), por sua vez, estabelece que o adolescente deverá restituir a coisa; senão, de acordo com a sua capacidade econômico-financeira, promover o ressarcimento do dano, bem como compensar o prejuízo causado à vítima. Em não sendo possível a restituição, o ressarcimento e a compensação, a medida socioeducativa poderá ser substituída por outra que se afigurar adequada.

A prestação de serviços à comunidade também se constitui numa medida socioeducativa, que, consiste na realização de tarefas gratuitas de interesse geral junto a entidades assistenciais, hospitalares, escolas e outras congêneres, bem como em programas comunitários ou governamentais. Contudo, por período que não seja superior a 6 (seis) meses (art. 117 da Lei 8.069/1990). Atente-se, ainda, para o fato de que, as tarefas a serem atribuídas ao adolescente necessariamente deverão ser conformadas às suas aptidões físicas, morais, intelectuais e sociais.

Não fosse isto, a jornada semanal não deverá ser superior a 8 (oito) horas, que, poderá ser cumprida aos sábados, domingos e feriados ou em dias úteis desde que não prejudique a frequência escolar ou a jornada de trabalho do adolescente.

A liberdade assistida se constitui na medida socioeducativa que melhor tem oferecido resultados adequados às orientações humanitárias e pedagógicas então propostas pela doutrina da proteção integral. A medida socioeducativa da liberdade assistida consiste no acompanhamento, auxílio e orientação do adolescente que praticou ato infracional (art. 118 da Lei 8.069/1990).

Para tanto, o Juiz de Direito competente deverá designar pessoa capacitada, a qual ficará encarregada de promover socialmente o adolescente e sua família; supervisionar a frequência e o aproveitamento escolar do adolescente; diligenciar para profissionalização e inserção do adolescente no mercado de trabalho; e apresentar relatório do caso.

O regime de semiliberdade enquanto uma das espécies de medida socioeducativa, na verdade, deve se constituir numa estratégia jurídico-protetiva a ser adotada primordialmente para evitar a privação total da liberdade do adolescente.

Por isso mesmo, a regra estatutária assevera que é possível ser aplicada desde o início, e, não somente como forma de transição para o meio aberto (art. 120 da Lei 8.069/1990). Dessa maneira, através do regime de semiliberdade é possível a realização de atividades externas, independentemente, de autorização judicial; contudo, são obrigatórias a escolarização e a profissionalização.

O regime de semiliberdade não comporta prazo determinado, porém, sua manutenção deve ser reavaliada no máximo a cada 6 (seis) meses, e, por certo, em nenhuma hipótese, tal regime excederá o período de 3 (três) anos.

A medida socioeducativa da internação é uma espécie diferenciada de privação da liberdade, a qual se orienta pelos princípios da brevidade, excepcionalidade e respeito à condição humana peculiar do adolescente enquanto pessoa em desenvolvimento (art. 121 da Lei 8.069/1990).

Durante o período de internação, o adolescente poderá realizar atividades externas, como, por exemplo, escolarização e profissionalização.

A medida socioeducativa da internação assim como o regime de semiliberdade não comporta prazo determinado, porém, sua manutenção deve ser reavaliada no máximo a cada 6 (seis) meses, e, por certo, em nenhuma hipótese, a privação da liberdade poderá exceder o período de 3 (três) anos.

Contudo, ao ser atingido o período máximo de internação, o órgão julgador competente, uma vez ouvido o órgão de execução ministerial, determinará a liberação do adolescente, senão, a sua colocação em regime de semiliberdade ou de liberdade assistida.

No entanto, caso o então adolescente durante a internação alcançar a idade de 21 (vinte e um) anos deverá ser compulsoriamente liberado, através de determinação judicial.

Entretanto, a medida socioeducativa de internação somente pode ser judicialmente aplicada quando se encontrar devidamente comprovada uma das hipóteses taxativamente descritas no art. 122 da Lei 8.069/1990, quais sejam: ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência à pessoa; reiteração no cometimento de outras infrações graves; descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente imposta.

Permanece, pois, a determinação legal acerca da aplicação judicial da medida socioeducativa da internação, segundo a qual em nenhuma hipótese deverá ser aplicada se houver outra medida legal – socioeducativa e ou específica de proteção – que se afigura adequada às circunstâncias do caso concreto, bem como à condição humana peculiar do adolescente.

Para o mais, é importante frisar que a violência social produzida por crianças e adolescentes, nos centros urbanos, sequer alcançam índices estatísticos significativos.

Atos de indisciplina tão próprios à infância e à adolescência como expressões das experiências interpessoais e sociais, certamente, não podem ser confundidos com o que se entende por ato infracional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A evolução do Direito, senão, aqui, especificamente, do Direito da Criança e do Adolescente, é decorrência mesmo do desenvolvimento civilizatório e humanitário.

A experiência comunitária decorrente, por assim dizer, da organização político-social, também, é sentida não só a partir das regras legalmente estabelecidas, mas, também, através da aplicação judicial consequente e responsável.

A reação estatal socialmente consequente, seja através do reconhecimento (respeito) e regulamentação legislativa de valores (direitos e garantias) democraticamente compartilhados, seja mediante o estabelecimento de instrumentos jurídicos protetivos (doutrina da proteção integral), de igual maneira, corresponde ao ideal (político-ideológico) humanitário adotado na Constituição da República de 1988.

O Direito da Criança e do Adolescente possui como corolário para criação, aplicação e efetivação jurídico-social das normas que regulamentam os interesses indisponíveis, os direitos individuais, e as garantias fundamentais afetos à criança e ao adolescente, as denominadas “Leis de Regência[22], quais sejam: a Constituição da República de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente.

Logo, não se pode legitimamente reconhecer um suposto direito penal juvenil, no interior do Sistema de Justiça Infantojuvenil, haja vista que é inconciliável com os princípios, fundamentos e objetivos constitucional e estatutariamente estabelecidos, senão, com a própria doutrina da proteção integral.

A responsabilização diferenciada da criança e do adolescente em conflito com a lei deverá ser judicialmente efetivada através da aplicação de medidas específicas de proteção e ou socioeducativas, respectivamente. Contudo, ressalte-se que isto não significa impunidade!

Entretanto, as medidas legais específicas de proteção e as socioeducativas são reações estatais a serem adotadas judicialmente através do devido processo legal (estatutário) e, em observância, aos seus consectários da ampla defesa e do contraditório.

O ato infracional não pode ser equiparado ao que se entende por crime. À criança e ao adolescente falta capacidade psíquica para culpabilidade, isto é, não são passíveis de imputabilidade penal.

A imputabilidade penal enquanto aspecto da culpabilidade, segundo a teoria normativa pura da culpabilidade, determina a sua própria existência.

Portanto, uma vez não verificada a culpabilidade se torna impossível o reconhecimento do próprio crime, segundo a concepção operacional-analítica, senão, eventual equiparação a ato infracional.

O ato infracional não se confundindo com o conceito operacional-analítico de crime, por certo, não se constitui validamente no pressuposto legal para aplicação de sanção penal.

O ato infracional se constitui, sim, no pressuposto estatutário para aplicação judicial de medidas específicas de proteção e/ou socioeducativas, as quais, portanto, não possuem caráter repressivo-punitivo.

As medidas específicas de proteção e as socioeducativas se constituem nas medidas legais adequadas para a responsabilização diferenciada de criança e/ou adolescente a quem se tenha atribuído a prática de ato infracional.

No mais, destaca-se que a atuação das equipes interprofissionais – arts. 150 e 151 da Lei 8.069/1990 – tem se constituído em importante fator de não repetição da prática infracional, por crianças e adolescentes, uma vez que proporciona a (re)estruturação pessoal e dos respectivos núcleos familiares para criarem, educarem e assistirem aqueles sujeitos de direito.

É o que se encontra objetivamente consignado no art. 227 da Constituição da República de 1988, enquanto síntese da doutrina da proteção integral, a qual se alinha às diretrizes internacionais dos direitos humanos especificamente destinados à proteção da criança e do adolescente, in verbis:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

A responsabilização diferenciada de crianças e adolescentes, assim, deve ser uma oportunidade para emancipação subjetiva, isto é, de melhoria da qualidade de vida individual e comunitária, a ser assegurada democraticamente através da efetivação dos direitos e garantias reconhecidos à cidadania infanto-juvenil.

REFERÊNCIAS

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SEN, Amartya K. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

Notas de Rodapé

[1] Desembargador no Tribunal de Justiça do Estado do Paraná; Mestre (PPGD-UFSC), Doutor (PPGD-UFPR), e Pós-Doutor (PPGD-UFSC); Professor Universitário (Unicuritiba e Uninter); marioramidoff@gmail.

[2] Assessora no Ministério Público do Estado do Paraná; Mestranda no Programa de Pós-graduação em Direito do Unicuritiba; luh_ramidoff@hotmail.com

[3] ANDRADE, Vera Regina Pereira. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. p. 292. “Se a violência institucional é ‘consubstancial a todo o sistema de controle social’ (Muñoz Conde, 1985, p. 16) ou ‘intrínseca à ação de controle social’ (Cirino dos Santos, 1984, p. 123) a violência institucional como expressão e reprodução da violência estrutural das relações sociais, isto é, da injustiça social, sintetiza o modus vivendi experimentado pelo sistema de controle penal da modernidade. Por todos estes motivos e porque o Estado expropriou uma das partes envolvidas – a vítima – da sua gestão, o modelo penal não pode ser considerado, diferentemente de outros campos do Direito, como um modelo de ‘solução de conflitos’ gerando, ao revés, mais problemas e conflitos do que aqueles que se propõem a resolver com a agravante dos seus altos custos sociais” (HULSMAN, 1993, p. 91).

[4] RAMIDOFF, Mário Luiz. Lições de direito da criança e do adolescente: ato infracional e medidas socioeducativas. 3. ed. Curitiba: Juruá, 2011.

[5] BRASIL, Lei 12.234, de 05.05.2010. Alteração no Código Penal brasileiro, através da qual foi extinta a prescrição retroativa que se verificava entre a data do fato e a do recebimento da denúncia.

[6] BRASIL, SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, Súmula 438. É inadmissível a extinção da punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva com fundamento em pena hipotética, independentemente da existência ou sorte do processo penal.

[7] BRASIL, CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, Resolução 112, de 06.04.2010. Institui mecanismo para controle dos prazos de prescrição nos tribunais e juízos dotados de competência criminal.

[8] SEN, Amartya K. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. Segundo o Autor, “as liberdades individuais substantivas são determinantes fundamentais para a própria iniciativa individual e da eficácia social. Pois, ao se ter mais liberdades, as pessoas melhoram a capacidade de cuidar de si mesmas e para influenciar o mundo. Ser agente – no sentido de ser autor social, e, não meramente ator ou partícipe social – significa dizer algo sobre alguém que age e ocasiona mudanças – interna, ou seja, pessoalmente, e, externa, socialmente – cujas realizações podem ser julgadas de acordo com seus próprios valores e objetivos. A preocupação é com desenvolvimento do papel da condição de agente do indivíduo como membro do público e como participante de ações sociais que interage direta ou indiretamente nas atividades individuais ou conjuntas na esfera política ou em outras esferas. E isto importa na influencia sobre numerosas questões fundamentais de política pública”.

[9] BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 1990. p. 50-51. Por “dogmática jurídica”, aqui, pretende-se identificar o conhecimento ou saber oficial que legitima, autoriza e justifica a intervenção estatal repressivo-punitiva; senão, na concepção de “ciência do direito penal” referida por Nilo Batista. Para o Autor, “ao empregarmos a expressão direito penal estamos nos referindo ao estudo do direito penal, à apropriação intelectual de conhecimentos sobre aquele conjunto de normas jurídicas ou aquela faculdade do estado; usa-se a expressão, aí, numa acepção de ciência do direito penal, ou direito penal-ciência”.

[10] BRASIL, Lei 8.069, de 13.07.1990. Estatuto da Criança e do Adolescente.

Art. 267. Revogam-se as Leis 4.513, de 1964, e 6.697, de 10.10.1979 (Código de Menores), e as demais disposições em contrário”.

[11] LEAL, César Barros. La justicia de menores en Brasil y el sistema garantista: la edad de la responsabilidad penal. In: PIERANGELI, José Henrique; SILVEIRA, Solange (Coords.). Direito penal e processual penal: estudos em homenagem ao Prof. Paulo Cláudio Tovo. Porto Alegre: Sapiens, 2010. p. 311-341. Para o Autor, no “plano del adolescente infractor, el Estatuto ha innvocado con la doctrina de la protección integral y la incorporación de un modelo de responsabilidad penal juvenil fundado en los principios del garantismo, que tiene en Ferrajoli su principal teórico”.

[12] QUEIROZ, Paulo. Funções do direito penal: legitimação versus deslegitimação do sistema penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 126. Afirma o Autor que “dentro de um rol prefixado de possibilidades” deveria ser permitida uma maior liberdade de decisão, facultando-se, assim, “optar por aquela menos injusta e menos inadequada para o caso concreto, sem prejuízo das garantias constitucionais. […] o Estatuto da Criança e do Adolescente poderia ser uma fonte inspiradora importante”.

[13] BRASIL. Lei 8.069, 13.07.1990. Estatuto da Criança e do Adolescente.

Art. 6º. Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento”.

[14] RAMIDOFF, Mário Luiz. Custo do não investimento na infância e na juventude. De Jure –Revista Jurídica do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, n. 11, p. 92-96, jul./dez. 2008. “A compreensão para o enfrentamento das inúmeras e diferenciadas espécies de ameaças e de violências – por vezes endêmicas, como, por exemplo, a corrupção – aos direitos fundamentais afetos à infância e à juventude, perpassa não só pela análise de suas ‘origens e teorias’, mas, também, pela elaboração de estudos e pesquisas acerca das reais condições de vida experimentadas pela população infanto-juvenil brasileira. Por isso, é fundamental a participação popular nas discussões acerca da formulação da ‘Lei de Diretrizes Orçamentárias’, bem como do ‘Plano Plurianual’ e da ‘Lei Orçamentária Anual’”.

[15] LÉPORE, Paulo Eduardo; RAMIDOFF, Mário Luiz; ROSSATO, Luciano Alves. Estatuto da juventude comentado – Lei 12.852/2013. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 72.

[16] MESSIAS, Simone Fagundes. Cartilha buscando direitos, encontrando soluções. Porto Alegre: Conselho da Comunidade de Porto Alegre, 2009. p. 22. E a Autora arremata ao esclarecer que a “institucionalização age de forma profunda, cerceando não somente o corpo, mas penetrando e deteriorando paulatinamente sentimentos como a emoção, sonhos, etc., ou seja, a subjetividade do indivíduo” (GOFFMAN, 1974).

[17] SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. 3. ed. Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2008. p. 294. Para o Autor, a “estrutura do conceito de culpabilidade é constituída por um conjunto de elementos capazes de explicar porque o sujeito é reprovado: primeiro, a capacidade de culpabilidade (ou imputabilidade), excluída ou reduzida pela menoridade ou por doenças e anomalias mentais; segundo, o conhecimento do injusto, excluído ou reduzido pelo erro de proibição; e terceiro, a exigibilidade de conduta diversa, excluída ou reduzida por anormalidades configuradas nas situações de exculpação”.

[18] CASTRO, Eduardo. Arqueología del poder e ideología indoeuropea: Dumézil, Foucault, Agamben. Cultura e Fé – Revista de Humanidades, Porto Alegre: Instituto de Desenvolvimento Cultural, a. 32, v. 127, p. 493-536, out./dez. 2009. O Autor pontua que “los mecanismos disciplinarios parten de un determinado modelo que ha sido establecido en función de los objetivos que se quieren alcanzar. A partir de aquí, según su mayor o menor adecuación a la norma preestabelecida, se lleva a cabo la discriminación entre lo normal y lo anormal. En el caso de los dispositivos de seguridad, en cambio, nos encontramos con un funcionamento inverso: la norma es fijada a partir de las normalidades diferenciadas, es decir, del estabelecimiento de las diferentes curvas de normalidad”.

[19] ROSA, Alexandre Morais. Direito infracional: garantismo, psicanálise e movimento antiterror. Florianópolis: Habitus. 2006. p. 110. Para o mais, o Autor pontua que “deve-se buscar entender este possível movimento agressivo como o sintoma de que algo não vai bem e buscar construir um caminho com o outro e o Outro. Sem esperança, a agressividade é mais que esperada, mormente diante das condições sociais dos sujeitos frequentadores das Varas Criminais e da Infância e da Juventude: a pobreza”. Percebe-se, assim, “que a estrutura psíquica condiciona o sujeito nas suas relações com o meio, constituindo-se a adolescência, no caso do ato infracional, uma possibilidade de intervenção em Nome-do-Pai, na perspectiva de trazer o adolescente para o laço social, sabendo-se, ademais, que a maneira como será significada depende de cada singularidade do sujeito adolescente, sem que haja, portanto, uma regra universal de ouro”.

[20] RAMIDOFF, Mário Luiz. Direitos difusos e coletivos IV: Estatuto da criança e do adolescente. (Coleção Saberes do Direito). São Paulo: Saraiva, 2012. v. 37, p. 85.

[21] BRASIL. Lei 8.069, de 13.07.1990. Estatuto da Criança e do Adolescente.

Art. 101. Verificada qualquer das hipóteses previstas no art. 98, a autoridade competente poderá determinar, dentre outras, as seguintes medidas:

I – encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo de responsabilidade;

II – orientação, apoio e acompanhamento temporários;

III – matrícula e freqüência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental;

IV – inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente;

V – requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial;

VI – inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos;”.

[22] RAMIDOFF, Mário Luiz. Direito da criança e do adolescente: teoria jurídica da proteção integral. Curitiba: Vicentina, 2008. p. 231 e ss.