Outsiders e Desvio no Trânsito: por uma Política Pública Criminal?

DOI: 10.19135/revista.consinter.0007.14

Vanessa Fontana[1] – ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5618-4035

Resumo: O objetivo deste trabalho é o de apresentar e problematizar o comportamento dos brasileiros no trânsito abordando a etiologia (causas) dos crimes de trânsito no Brasil e a resposta do Congresso Nacional a esses crimes. Para apreensão dessa realidade é importante observar e analisar os crimes em abstrato e os casos concretos, e a partir desse quadro, compreender a reação do legislador brasileiro ao enorme número de mortos no trânsito, em torno, de 60 mil mortos por ano, e, aproximadamente, 400 mil sequelados definitivamente. O Congresso Nacional tem oferecido respostas criminalizadoras para essas condutas, logo cabe pesquisá-las e explicar esses mecanismos. A questão em evidência é: compreender o funcionamento das políticas públicas criminais em relação à punição das infrações e dos crimes cometidos nas vias públicas do Brasil e as transformações do CTB ao longo de seus 21 anos de existência. Um dos problemas que envolvem essa pesquisa consiste em compreender o que o legislativo e o judiciário, por meio de suas decisões têm oferecido como resposta para os dados que temos no trânsito brasileiro. A partir desse recorte epistemológico apresentaremos um retrato de como funciona a política criminal para o trânsito, explicando seus mecanismos. Essa abordagem será desenvolvida a partir de Howard Becker (2008), David Garland (2014) e Roberto Damatta (2010). A metodologia adotada foi a de pesquisa bibliográfica, observação participante acompanhando o tribunal do júri ocorrido entre os dias 26 e 27 de fevereiro de 2018, dados da câmara federal sobre as mudanças na legislação de trânsito e a repercussão na imprensa nacional, bem como, entrevistas estruturadas com os envolvidos no caso Yared e na legislação que altera o Código de Trânsito. O intuito a partir dessa abordagem é saber se pode-se falar do “desvio no trânsito” como uma cultura da infração tanto do ponto de vista de uma relação de reciprocidade entre a sociedade e o legislador, que busca criminalizar essas condutas com penas mais duras, entendendo que essas ações são uma resposta eficiente como política criminal assertiva para frear o número de mortos e sequelados no trânsito.

Palavras-chave: Política Criminal. Epidemia no Trânsito. Cultura de Infração.

Abstract: The objective of this paper is to present and to problematize the behavior of Brazilians in traffic, addressing the etiology (causes) of traffic crimes in Brazil and the response of the National Congress to these crimes. In order to grasp this reality, it is important to observe and analyze the crimes in the abstract and the concrete cases, and from this picture, understand the reaction of the Brazilian legislator to the enormous number of deaths in traffic, around 60 thousand deaths a year, approximately, 400 thousand sequelados definitively. The National Congress has offered criminalizing answers to these behaviors, so it is important to research them and explain these mechanisms. The key issue is to understand the functioning of public criminal policies in relation to the punishment of offenses and crimes committed on public roads in Brazil and the changes of the CTB over its 21 years of existence. One of the problems involved in this research is to understand what the legislature and the judiciary, through their decisions have offered as a response to the data that we have in Brazilian traffic. From this epistemological clipping we will present a picture of how the criminal policy for traffic works, explaining its mechanisms. This approach will be developed from Howard Becker (2008), David Garland (2014) and Roberto Damatta (2010). The methodology adopted was that of bibliographic research, participant observation accompanying the jury’s court occurred between February 26 and 27, 2018, data from the Federal Chamber on changes in traffic legislation and repercussion in the national press, as well as interviews structured with those involved in the Yared case and in the legislation that amends the Traffic Code. The purpose of this approach is to know if one can speak of “traffic diversion” as a culture of violation both from the point of view of a reciprocity relationship between society and the legislator, which seeks to criminalize these behaviors with tougher penalties, understanding that these actions are an efficient response as an assertive criminal policy to curb the number of dead and sequels in traffic.

Keywords: Criminal Policy. Epidemic in Traffic. Infringement Culture.

1 POLÍTICA CRIMINAL PARA O TRÂNSITO: UM POUCO DE HISTÓRIA

Observar o trânsito é importante, não somente porque os dados brasileiros são alarmantes, mas também porque ele é uma forma de mensurar o nível de democracia versus violência de um país, como uma espécie de termômetro de uma perspectiva mais ampla. Segundo a Organização Mundial de Saúde, os acidentes de trânsito são a décima causa de morte no mundo, vitimando quase um milhão e meio de pessoas por ano e deixando sequelados ao menos 50 milhões de pessoas[2].

Os dados estatísticos demonstram que a média mundial de morte por 100 mil habitantes é de 13,1. Os dados da América Latina superam com facilidade os dados internacionais praticamente o dobro da média mundial, ou seja, 26,1 mortes por 100 mil habitantes. Já no Brasil, ocorrem 24 mortes por 100 mil habitantes, em contraponto, no Canadá, no Japão e na Suécia, as estatísticas ficam de 5 a 8 mortes por 100 mil, uma breve observação demonstra a seriedade do tema, em termos de América Latina e Brasil.

Discutir trânsito no Brasil remete a cultura, a comportamento, e a política pública criminal oriunda do legislativo federal. Como os índices de mortes e sequelados são altos no Brasil e possui impactos importantes sobre a economia e o sistema de saúde, cabe investigar e compreender o funcionamento das políticas públicas criminais em relação à punição das infrações e dos crimes cometidos nas vias públicas do Brasil e as transformações do CTB ao longo de sua maioridade (21 anos). No caso brasileiro, esses números elevados apresentam uma forte correlação entre o consumo de bebida alcoólica e direção. Honorato revela que

(…) No Brasil, estudo recente mostrou que 38% dos condutores dirigiam, naquele momento, sob efeito do álcool, sendo que 18% com valores de alcoolemia inferiores ao estabelecido por lei. Um dado alarmante é que 22,9% dos condutores acreditavam que a bebida não influenciava negativamente sua capacidade de dirigir, sobretudo se adotam medidas tidas como protetoras, como tomar café e dirigir com mais cautela. (HONORATO, 2011, p. 15)

Essa discussão para especialistas a respeito no número de mortos e sequelados na área do trânsito não é recente, no entanto, ainda é presente, pois esses dados continuam altos com leve curva de descendência. Discutir trânsito remete a cultura e ao comportamento. Estudos comprovam que, com uma dosagem entre 0,5 e 0,7 g/L, o risco de provocar um acidente fatal sobe de quatro a dez vezes em comparação com um condutor sóbrio. O Código Brasileiro de Trânsito estabelece que existe crime quando o condutor apresenta dosagem igual ou superior a 0,6 g/L de álcool no sangue (alcoolemia). Em termos práticos, isso ocorre a partir do consumo de uma lata de cerveja, uma taça de vinho ou meio copo de uísque, mas o caminho mundial, adotado pelas Organizações Internacionais, tem sido o da tolerância zero em relação ao consumo de álcool.

Vamos observar de forma sistematizada os números do trânsito no Brasil que possuem duas fontes relativamente confiáveis, os dados do Ministério da Saúde e do Seguro DPVAT. Este último foi criado por meio de Lei em 1974, com o objetivo de assegurar às vítimas de acidentes de trânsito provocados por veículos, indenizações por caso de morte ou invalidez permanente, bem como, reembolso por despesas médicas. A indenização do DPVAT ocorre independentemente de apuração de culpa ou de identificação do veículo, essa é a Lei.

Nesse contexto de violência cabe analisar o papel do Código Nacional de Trânsito – CTB, como um orientador na regulamentação do trânsito brasileiro, das políticas de prevenção e da punição das infrações cometidas nas vias públicas do Brasil. Ainda nessa linha questionamos à eficácia jurídica, do próprio Código, bem como, das políticas públicas de trânsito oriundas do Executivo Federal, Estadual e Municipal. O encaminhamento tem sido no sentido de endurecimento penal para os crimes de trânsito, a política de multas e as poucas campanhas públicas em relação à educação para o trânsito[3].

Utilizamos como referência o Plano Nacional de Redução de Acidentes e Segurança Viária para a Década 2011-2020, criado pelo Comitê Nacional de Mobilização pela Saúde, Segurança e Paz no Trânsito, instituído pelo Decreto de 19 de setembro de 2007, com o objetivo de produzir diagnósticos, promover e articular estratégias que cunho intersetorial para promover segurança, saúde e uma cultura de paz no trânsito. Esse grupo é formado por representantes de cinco Ministérios, três Secretarias Especiais da Presidência da República, da Câmara dos Deputados, do Ministério Público, da OAB e mais dez Instituições da Sociedade Civil, vinculadas ao tema do trânsito.

O trabalho do Comitê por meio de recomendações gerou três resultados no campo das políticas públicas:

a) Lei 11.705/2008 – Lei Seca.

b) Plano Nacional de Redução de Acidentes e Segurança Viária.

c) Lei 12.760/2012 – Nova Lei Seca.

d) Lei 13.546/2017 – Homicídio culposo qualificado de trânsito.

Assim, há várias ações em andamento, no entanto, as estatísticas não têm revelado a eficiência dessas medidas. Sabe-se que o preceito normativo é fundamental, daí a importância do Código Nacional de Trânsito, Lei 9.503 de 1997 e dos princípios constitucionais que preservam a vida. Nesse sentido, a natureza jurídica do trânsito é refletida na normativa máxima de que o trânsito em condições seguras é um direito de todos e é um dever dos órgãos e entidades competentes do Sistema Nacional de Trânsito, e a eles cabe adotar medidas que assegurem esse direito. Tais direitos apresentam-se no art. 5º, no art. 144, art. 22 e 37 da Constituição Federal e de maneira substantiva no Código Nacional de Trânsito.

Cabe observar o quadro que temos hoje no Brasil em termos estatísticos.

Tabela 1 – Evolução das mortes e sinistros no trânsito no Brasil

Ano de Indenização do Sinistro Sinistros de Morte Sinistros de Invalidez Permanente Sinistros de Despesas com Assistência Médica Total
1980 19.927
1991 27.986
1996 35.281
1997 35.620
1998 30.890
1999 29.569
2000 28.995
2001 30.524
2002 37.018 16.280 41.306 94.604
2003 34.735 16.929 56.087 107.751
2004 34.591 22.391 61.538 118.520
2005 55.024 31.121 88.876 175.021
2006 63.776 45.635 83.707 193.118
2007 66.838 80.333 104.959 252.130
2008 57.116 89.474 125.413 272.003
2009 53.052 118.021 85.399 256.472
2010 50.780 151.558 50.013 252.351
2011 58.134 239.738 68.484 366.356
2012 60.752 352.495 94.668 507.915
2013 54.767 444.206 134.872 633.845
2014 52.226 595.693 115.446 763.365

2015

42.501 515.751 94.097 652.349

Fonte: Vias Seguras Estatísticas Nacionais. Disponível em: http://www.vias-seguras.com/os_acidentes/estatisticas/estatisticas_nacionais/estatisticas_do_seguro_dpvat Acesso em 20 ago. 2017 (Dados Organizados pela autora).

Cabe observar o quadro que temos hoje no Brasil em termos estatísticos sobre as condições de segurança no trânsito. Tivemos oficialmente no ano de 2015 42.501 mortos no trânsito brasileiro, 515.751 com invalidez permanente e 94.097 que receberam do DPVAT sinistros com despesas de assistência médica, totalizando nesse ano de 2015, 652.349 atendimentos do DPVAT[4] relativos a eventos de trânsito com morte, invalidez permanente e ressarcimento por despesas médicas.

É perceptível que os números sofrem oscilações e percebe-se claramente uma queda entre os anos de 2013 até 2015. Alguns fatores explicam essa queda. Por exemplo, a imprensa, que divulgou de forma muito intensa o impacto da Lei Seca, o aumento de fiscalização por parte do Estado o que acabou gerando impacto nos índices apresentados, ressalta-se que esse dado deve ser considerado e será refletido ao longo do texto.

Discutir trânsito é tema multidisciplinar e também muito controverso, há posições divergentes em relação à restrição de bebida alcoólica, maior fiscalização ou ausência de fiscalização por parte dos órgãos competentes. Temos também a questão dos radares consistirem ou não em uma política pública de arrecadação ou de conscientização. Dentre outros fatores temos o problema do comportamento desafiador dos jovens, o uso freqüente e crescente dos celulares por condutores e pedestres nas cidades, o impacto das vítimas no sistema de saúde e na economia do Brasil.

Temos dois vieses nesse caso, um é a política pública de trânsito e a outra é a política criminal de trânsito. Do ponto de vista da formulação e implementação de políticas públicas de mobilidade urbana, o Brasil por meio do governo federal, incentivou o transporte individual e não coletivo com isenção fiscal e demais estímulos subsidiados. Houve o incremento pela grande mobilidade e agilidade o vertiginoso crescimento das motocicletas nas vias urbanas, tendo como conseqüência o aumento no número de colisões traduzidas em sequelados e mortos. Um grande desafio, inclusive em âmbito internacional é como passar a mensagem do comportamento desejado no trânsito, uma mídia de impacto ou educativa? Emocional ou racional? Ou de políticas criminais que mudem comportamento?

Todos esses pontos são aspectos desafiadores e que foram considerados pelas Organizações Internacionais, especialmente, pela Organização das Nações Unidas – ONU e pela Organização Mundial de Saúde – OMS. No Brasil, diversos setores tem se debruçado sobre a causa do trânsito, governos estaduais, municipais e o governo federal, por meio do Executivo procuram criar políticas públicas direcionadas ao trânsito.

A produção legislativa federal também é intensa em relação ao trânsito, e o judiciário também tem a sua parcela de responsabilidade, pois em geral esses conflitos de trânsito chegam à justiça e precisam de decisões. Sem falar nas organizações da sociedade civil, tanto brasileiras como internacionais, que tem a questão do trânsito como um compromisso e desenvolvem atividades paralelas e em parceria com os Estados e com os países.

É nesse contexto controverso e conflituoso que surgem os embates de como resolver esses números, como lidar com o comportamento humano e quais respostas institucionais devem ser oferecidas de forma mais assertiva. Pensando na questão do comportamento, houve de acordo com David Garland uma mudança de matriz da cultura do controle, a partir de uma percepção diferenciada que produziu a queda do: a) modelo de reabilitação, passando para um modelo; b) retributivo, ou de c) neutralização ou, ainda de gerenciamento de riscos (GARLAND, 2014, p. 51).

A tese da vingança era um tabu, ao menos para o Estado. Mas essa matriz buscou o caminho em conjunto com a legislação penal de considerar e colocar como foco os sentimentos das vítimas e das suas famílias que procuram ao lado dos políticos novas leis e novas políticas penais que podem ser apreendidas do ponto de vista da doutrina pautado por um sentimento de raiva e de um ressentimento público. Nesse sentido, Garland afirma que

Punição – no sentido da punição expressiva, que canaliza o sentimento público – é mais uma vez um objetivo jurídico respeitável, largamente abraçado, que afeta não só as sentenças condenatórias para a maioria dos delitos graves, mas também a própria justiça de menores e as penalidades comunitárias. A linguagem da condenação e da punição voltou ao discurso oficial, e o que se diz representar a “expressão do sentimento público” tem sido prioritário na análise de especialistas da pena. (GARLAND, 2014, p. 52-53)

Há sentimentos pessoais que são utilizados para justificar reformas penais e falar acerca da regulação do crime ou da pena que atrai e expressa um conteúdo diverso de sentimentos coletivos. Garland realiza sua reflexão a partir de crimes “genéricos”, mas obviamente, guardando as devidas proporções, apontamos os sentimentos das vítimas e dos familiares das vítimas de trânsito no Brasil e dos políticos que assumem essa narrativa da violência, como veremos adiante.

A questão a se pensar é como se controla os crimes de trânsito no Brasil e qual o papel da justiça criminal nesse contexto? – Marcadamente, o pós Constituição de 1988 no Brasil apresentou uma forma muito específica de políticas públicas sociais. Não foi diferente em relação às políticas criminais e ao sistema de justiça criminal, tanto na questão da prevenção como o da repressão. Especialmente, as políticas públicas oriundas do Congresso Nacional, isto é, do Legislativo Federal, o único legitimado para produzir legislação de trânsito, bem como, um conjunto de deputados eleitos com a pauta do trânsito e da violência urbana. Como exemplo, no Paraná, a deputada federal[5] com a maior votação, mais de 200 mil, foi eleita com a pauta do trânsito, na mesma linha a Deputada Federal Keiko Ota[6], em São Paulo.

Como os problemas dessa proposta de trabalho são ambiciosas, proporcionais a complexidade do tema, cabe apresentar a história da Deputada Federal Christiane de Souza Yared – PMN, e suas ações como legisladora. Segundo declarações da própria Deputada Federal a sua motivação para ingressar na vida política foi à perda de seu filho Gilmar Rafael Souza Yared num crime de trânsito ocorrido em Curitiba, e que teve repercussão nacional e internacional, esse evento de trânsito (acidente) ocorreu em maio de 2009, quando da morte do seu filho e do amigo, Carlos Murilo de Almeida.

Esse “acidente” alcançou grande repercussão, pois envolveu o então, Deputado Estadual Fernando Ribas Carli Filho (PSB), condutor do veículo que provocou a colisão que acabou por causar a morte dos dois jovens. Em inúmeras declarações para a imprensa, o compromisso dos Yared após a morte do filho foi evitar o mesmo sofrimento em outras famílias. Para tanto, Christiane Yared, juntamente com o marido, Gilmar Yared, criaram o Instituto Paz no Trânsito – IPTRAN, destinado a ressocialização de infratores de crimes de trânsito, ações educativas, conscientização, bem como, apoio a pessoas que perderam familiares no trânsito. Eles criaram a campanha que repercutiu em todo o Brasil, denominada “190km/h é crime”, pois havia farta matéria na imprensa e declarações dos Yared de que o velocímetro do veículo do Deputado ficou “cravado” em 190 Km, tese aliás, derrubada no momento do júri pela defesa. A luta jurídica da família Yared é para que Carli Filho, ex-deputado, fosse submetido a júri popular o que ocorreu no dia 26 e 27 de fevereiro de 2018, após 18 horas de júri, sendo o mesmo condenado a 09 anos de prisão.

Esse caso é emblemático pela questão jurídica, os agentes envolvidos, uma família de classe média alta, um deputado estadual de uma família tradicional na política no interior do Paraná, especificamente Guarapuava, e pelo fato da pessoa que lutava como mãe ter entrado para a vida política, conforme já demonstramos e com uma votação muito expressiva, a mais votada do Paraná e com recursos parcos quando comparado com a prestação de contas eleitoral dos demais candidatos.

Por outro lado, cabe observar a atividade legislativa da Deputada. Um dos projetos de Lei apresentados por ela chama atenção, trata-se do PL758/2015, cujo título é: acabando com a impunidade em crimes de trânsito.

Tabela 2 – PL758/2015: Acabando com a impunidade em crimes de trânsito – Proposta da Deputada Federal Christiane Yared[7]

Sumário: Este projeto de lei altera a redação dos arts. 302 e 303, da Lei 9.503, de 23 de setembro de 1997, que dispõem sobre os crimes de homicídio e lesão corporal praticados na direção de veículo automotor, conferindo tratamento penal adequado aos referidos crimes quando praticados com dolo (direto ou indireto) ou culpa.
Descrição: Este projeto estabelece pena de seis a vinte anos para homicídio na direção de veículo. Caso o homicídio seja culposo (sem intenção), a pena será de quatro a doze anos, porém, a pena pode ser agravada em 1/3 caso o condutor não seja habilitado, omita socorro, atropele na faixa ou em caso de tratar-se de veículo de transporte coletivo. Nos casos de lesão ao invés de morte, as penas variam de acordo com a severidade do dano causado pelo condutor, podendo alcançar dez anos de reclusão. Atualmente, os crimes de trânsito são considerados acidentes, ou seja, culposos. Através desta alteração, temos o chamado dolo eventual.

Os crimes de homicídio e lesão corporal praticados com dolo eventual são aqueles praticados na direção de veículo automotor por agentes com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência. Ou os crimes cometidos durante a prática, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística ou ainda de exibição ou demonstração de perícia em manobra de veículo automotor, não autorizada pela autoridade competente.

Justificativa: Christiane Yared acredita que um país que não pune, não educa e esta impunidade é justamente o que torna este tipo de acontecimento tão recorrente. A cada dia, o trânsito brasileiro mata 110 pessoas e deixa 500 feridos. De acordo com levantamentos realizados pelo SUS, publicados no Jornal Folha de São Paulo, de 10 de novembro de 2014, o número de mortos por acidente de trânsito ultrapassa a 40.000 por ano e o número de feridos é superior a 170.000 por ano. Atualmente, apenas 18 casos de crimes de trânsito tiveram seus condutores julgados e considerados culpados de seus delitos. Isto significa que a impunidade toma proporções cada vez mais catastróficas. Ao propor esta lei, será sanada a brecha que permite aos criminosos de trânsito continuar impunes.

Fonte: <http://christianeyared.com.br/pl7582015-acabando-com-a-impunidade-em-crimes-de-transito/> (Dados organizados pela autora).

Cabe antes de discutir os aspectos mais profundos relativos a esse artigo do Código de Trânsito adentrar algumas questões que esse PL é capaz de modificar em termos legislativos como é a redação dos arts. 302 e 303 do Código de Trânsito, in verbis:

Tabela 03 – Arts. 302 e 303 CTB

Art. 302. Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor:

Penas – detenção, de dois a quatro anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

Parágrafo único. No homicídio culposo cometido na direção de veículo automotor, a pena é aumentada de um terço à metade, se o agente:

I – não possuir Permissão para Dirigir ou Carteira de Habilitação;

II – praticá-lo em faixa de pedestres ou na calçada;

III – deixar de prestar socorro, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à vítima do acidente;

IV – no exercício de sua profissão ou atividade, estiver conduzindo veículo de transporte de passageiros.

§ 1º No homicídio culposo cometido na direção de veículo automotor, a pena é aumentada de 1/3 (um terço) à metade, se o agente: (Incluído pela Lei nº 12.971, de 2014) (Vigência)

I – não possuir Permissão para Dirigir ou Carteira de Habilitação; (Incluído pela Lei nº 12.971, de 2014) (Vigência)

II – praticá-lo em faixa de pedestres ou na calçada; (Incluído pela Lei nº 12.971, de 2014) (Vigência)

III – deixar de prestar socorro, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à vítima do acidente; (Incluído pela Lei nº 12.971, de 2014) (Vigência)

IV – no exercício de sua profissão ou atividade, estiver conduzindo veículo de transporte de passageiros. (Incluído pela Lei nº 12.971, de 2014) (Vigência)

V – estiver sob a influência de álcool ou substância tóxica ou entorpecente de efeitos análogos. (Incluído pela Lei nº 11.275, de 2006) (Revogado pela Lei nº 11.705, de 2008)

§ 2º Se o agente conduz veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência ou participa, em via, de corrida, disputa ou competição automobilística ou ainda de exibição ou demonstração de perícia em manobra de veículo automotor, não autorizada pela autoridade competente: (Incluído pela Lei nº 12.971, de 2014) (Vigência)

(Revogado pela Lei nº 13. 281, de 2016) (Vigência)

Penas – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor. (Incluído pela Lei nº 12.971, de 2014) (Vigência)

(Revogado pela Lei nº 13. 281, de 2016) (Vigência)

Fonte: BRASIL (1997). Código Nacional de Trânsito. Lei 9.503 de 1997.

A questão aqui é: qual é o bem jurídico tutelado pelo direito penal no caso desses crimes de trânsito? De acordo com Leonardo Schmitt de Bem, o que é protegido vai muito além da incolumidade pública no aspecto segurança viária, pois ocorre quebra dessa segurança quando qualquer regra de trânsito é descumprida ou desrespeitada. O que se protege é a disponibilidade da vida humana, que pode ser atingida ou não quando há quebra de normas. Nesse sentido, as políticas públicas devem ter como prioridade ações que defendam o bem jurídico mais valioso, isto é a vida, essa deve ser a prioridade dos órgãos e entidades de trânsito (BEM, 2013, p.88).

Será cabível inferir a necessidade e a aplicação do Direito Penal como subsidiário? Classicamente a política criminal, de acordo com Juarez Cirino dos Santos[8], é um programa oficial de controle do crime e da criminalidade e na teoria da pena temos a prevenção geral, prevenção especial e a retribuição. Sendo a pena como retribuição do crime representa a imposição de mal justo contra o mal injusto, fórmula para restabelecer o Direito. De uma perspectiva crítica temos que o objetivo principal do Direito Penal é preservar os bens jurídicos e não promover vinganças estatais. Por outro lado, temos a pena como prevenção geral positiva e negativa. A prevenção geral negativa tem como objetivo a evitação de crimes futuros por meio de uma negativa, utilizando como ferramenta a intimidação penal, por meio da ameaça da pena, o Estado pretende desestimular as pessoas a praticarem crimes. Já a prevenção geral positiva para Claus Roxin consiste na proteção dos bens jurídicos de forma subsidiária. ROXIN conceitua bens jurídicos como o “(…) o livre desenvolvimento do indivíduo, para a realização de seus direitos fundamentais ou para o funcionamento de um sistema estatal baseado nessas finalidades (…)” (ROXIN, 2014, p. 47).

Retornando ao nosso caso concreto a proposta do PL da Deputada Yared é o endurecimento das penas mesmo em crimes culposos de trânsito e com esse aumento o cumprimento vai para regime fechado, tendo outros impactos talvez não calculados pelo legislador. Nesse sentido, cabe chamar atenção para o objetivo da pena no Brasil que é a ressocialização, além dos aspectos anteriormente discutidos. No caso das políticas criminais de trânsito o caráter punitivista é marcante na legislação egressa da Câmara Federal. Além desse PL discutido temos outras medidas propostas pela mesma legisladora.

Tabela 4 – Projetos de Lei Deputada Federal Christiane Yared

PLs propostos pela Deputada Federal Christiane Yared (PR)

PL 7929/2017 – Obrigatoriedade da apresentação da CNH, para a aquisição de motocicleta e participação de curso de direção defensiva (Aguardando despacho do Presidente da Câmara dos Deputados).
PL 7950/2017 – Tornar inafiançável o homicídio causado por veículo automotor sob influência de álcool e altera os valores da fiança para lesão corporal causadas nas mesmas circunstâncias. (Aguardando despacho do Presidente da Câmara dos Deputados).
PL 6096/2016 – Incluir avaliação psicológica preliminar na renovação da CNH. (Tramitando em Conjunto).
PL 6097/2016 – Condiciona a conversão da multa de infração leve à participação do condutor em curso de educação para o trânsito. (Aguardando parecer).
PL 6098/2016 – Obrigatoriedade da sinalização de condutor novato no trânsito. (Aguardando parecer).
PL 6382/2016 – Estabelece a obrigatoriedade da propositura de ação regressiva, por parte da previdência social, contra os causadores de acidentes de trânsito. (Pronto para a pauta).
PL 2925/2015 – Incluir os faróis de rodagem diurna entre obrigatórios do veículo. (Tramitando em conjunto).
PL 3053/2015 – Incluir na multa reparatória às vitimas de crime de trânsito parcela indenizatória às despesas realizadas pelo SUS (Tramitando em conjunto).
PL 3105/2015 – Dispõem sobre segurado de danos pessoais causados por veículos automotores de via terrestre, ou por sua carga a pessoas transportadas ou não, para reajustar os valores das indenizações. (Tramitando em conjunto).
Em vigor: Foi aprovada a medida provisória 699/2015 da Emenda 56. Atual parágrafo único do Art. 252 do CTB”.Caracteriza-se como infração gravíssima no caso de o condutor estar manuseando o celular” (Em vigor a partir de 01/11/2016).

Fonte: Disponível em: http://christianeyared.com.br/projetos/ Acesso em: 02/05/2018 (Dados organizados pela autora).

A partir desse caso concreto via legislativo federal e de uma Deputada Federal marcada pela morte do seu filho encontra-se apoio nos estudos de Garland, onde precisamente é apontada e identificada a construção de uma narrativa a partir do sentimento das vítimas, mas agora muito além daquela narrativa, pois a vítima é o próprio legislador:

(…) tentativas explícitas de expressar a raiva e o ressentimento públicos se tornaram recorrentes para a retórica que acompanha a legislação penal e a tomada de decisões. Os sentimentos das vítimas, das famílias das vítimas ou de um público aviltado e temeroso são agora rotineiramente invocados em apoio às novas leis e políticas penais. Houve uma mudança notável no tom do discurso oficial. Punição – no sentido da punição expressiva, que canaliza o sentimento público – é mais uma vez um objetivo jurídico respeitável, largamente abraçado, que afeta não só as sentenças condenatórias para a maioria dos delitos graves, mas também a própria justiça de menores e as penalidades comunitárias. A linguagem da condenação e da punição voltou ao discurso oficial, e o que se diz representar a “expressão do sentimento público” tem sido prioritário na análise de especialistas da pena. (GARLAND, 2014, p. 52-53)

Temos uma política criminal de trânsito como resposta ao medo e a revolta coletiva que exige mais punição e mais proteção. A política pública movida pela opinião pública tem sido uma resposta legislativa. A representação do pobre como criminoso foi substituída pela criação de outros estereótipos agora de “(…) jovens rebeldes, de predadores perigosos e de criminosos incuravelmente reincidentes (…)” (GARLAND, 2014, p. 54). Assim, temos por meio de estatísticas nacionais e internacionais as principais ações que provocam os chamados eventos (acidentes) de trânsito.

Tabela 5 – Motivos dos Eventos (Acidentes) de Trânsito

Álcool.
Excesso de velocidade.
Utilização inadequada do cinto de segurança e dispositivos infantis.
Pistas ruins.
Deficiência no design dos veículos.
Aplicação insuficiente das normas de trânsito.

Fonte: OMS. (Who, 2008) (Dados organizados pela autora)

Como o foco da resposta legislativa é a revolta social, agora legitimada pela ação da própria vítima na condição de Parlamentar, que clama por retribuição, é muito diferente da construção e formulação de políticas públicas que ofereçam soluções justas, impulsionadas por especialistas e não pela opinião pública. Nesse cenário é interessante salvaguardar as informações anteriormente descritas quanto às principais causas de eventos (acidentes) de trânsito apontadas pela ONU.

Com o objetivo de ligar essas duas questões discute-se na próxima seção o papel da criminologia e as transformações sofridas ao longo do tempo, reflexo também muito próprio e específico das sociedades pós-modernas e com esses conceitos jurídico-filosóficos sobre a função da pena nos crimes de trânsito.

2 A ANTIGA CRIMINOLOGIA E A NEOCRIMINOLOGIA: VÍTIMAS NO PARLAMENTO

O medo permeia a vida social e informa o caminho das políticas públicas no caso do trânsito, a questão presente no âmbito do mundo acadêmico, do Judiciário, do Legislativo e do Executivo é: como diminuir o medo no trânsito, a violência e reduzir os crimes que acontecem nesse espaço? As vítimas do trânsito e da violência urbana passam a ocupar o espaço central de uma política criminal, dando suporte à construção de uma segregação punitiva conforme observamos no caso dos projetos apresentados pelas Deputadas.

Garland[9] aponta que nos EUA e na Grã-Bretanha ocorreu o fenômeno da centralidade das vítimas, no Brasil, identificamos também que as vítimas estão ao lado dos políticos concedendo entrevistas, anunciando novas leis, isso quando não as próprias vítimas se tornam membros do Executivo ou do Legislativo, isto é, tornam-se políticos, especialmente, ocupando cargos eletivos no Legislativo. Como no caso do estudo de Garland temos também leis com o nome de vítimas, sendo que o exemplo mais forte dessa correlação é a Lei Maria da Penha[10].

A uma nova política que emerge desse contexto criminal é que “(…) o novo imperativo político é no sentido de que as vítimas devem ser protegidas, seus clamores devem ser ouvidos, sua memória deve ser honrada, sua raiva deve ser exprimida, seus medos devem ser tratados (…)” (GARLAND, 2014, p. 55). As vítimas ganharam voz, é uma fala que extrapola o individual e atinge o coletivo, é a construção de um imaginário social, o que guia o interesse público, pode ser traduzido pelo o interesse estatal da persecução penal, formada por uma estrutura acusatória e decisões penais do Estado-juiz, que agora projeta uma história individual e atípica que pela opinião pública passa a ser típica e coletiva.

Isso consiste em dizer que: “(…) quem quer que fale pelas vítimas fala por todos nós – assim recomenda a nova sabedoria política das sociedades que possuem altas taxas de criminalidade (…)” (GARLAND, 2014, p. 52-53). As imagens das pessoas, aquele ser torna-se uma pessoa, toma forma, pois não é mais somente uma foto e esse fato sociológico emite a seguinte mensagem: “pode acontecer com qualquer um de nós, ou nas palavras de GARLAND, poderia ter sido você” (GARLAND, 2014, p. 52-53).

O apelo na construção dessa narrativa é de que é preciso criar políticas públicas que protejam a sociedade, esse é o atual compromisso da política criminal dentro da perspectiva da pena. A forma como essa preocupação adentrou ao campo político trouxe impactos importantes que incide sobre o sistema carcerário e a justiça criminal.

A justiça criminal, os movimentos sociais e pessoas que ascendem aos poderes constituídos tem se esforçado para responder ao crime, vivemos num mundo que nas palavras de Hannah Arendt[11], banalizou o mal, temos altas taxas de criminalidade e isso como nos contava Emile Durkheim, no final do século XIX, o crime era um fato social normal, mas com a conotação de reforçar laços sociais, ao contrário do que temos hoje (ARON, 1999, p. 277-348).

Nosso objetivo é tornar essa história inteligível a partir de Garland que contribui nesse sentido, ao demonstrar que as teorias do controle apresentam como problema não o processo de privação experimentado, mas sim que há um controle social inadequado. No trânsito, essa tese é bastante comum, isto é, de que falta controle. Mas talvez a seletividade penal precise de uma reflexão mais profunda e detalhada, pois a pessoa que delinque no trânsito não tem como motivo privação dos bens sociais, culturais, aliás, muito pelo contrário, os que delinquem fazem parte da classe média, média-alta. Temos inúmeros casos de advogados, membros do ministério público, médicos, engenheiros, políticos etc. que infringem normas e cometem crimes de trânsito, e talvez aqui resida uma forma de explicar as contradições da legislação brasileira nesse campo. Por isso, o trânsito é um caso muito específico e talvez por isso haja uma seletividade penal de exclusão e de atenuantes aos crimes de trânsito, ainda que, o legislativo brasileiro a esteja procurando, talvez não tecnicamente, mas sim a partir de respostas aos anseios sociais punitivistas, já que efetivamente temos altas taxas de mortes e sequelados no trânsito brasileiro[12].

Podemos nessa linha apresentar a distinção histórica anterior a década de 1970 e posterior nos conceitos criminológicos para posteriormente compreender os caminhos traçados pelo Legislativo brasileiro.

Tabela 6 – Mudança estrutural nos conceitos criminológicos

Conceitos vigentes no pós-guerra até a década de 1970 Nova Prisão – Pós Moderna
Liberdade Vigiada Contenção Neutralizante
Livramento Condicional Controle e monitoramento de riscos
Sentenças Sentenças Mais Elevadas
Penas Penas Mais Elevadas
Pretérito de Pena Perigo Futuro
Reconhecimento das liberdades civis Negligência quanto a liberdades civis de suspeitos
Reconhecimento dos direitos dos presos Negligência aos direitos dos presos
Proteção do Estado Proteção pelo Estado
Exclusão de provas obtidas por meios ilícitos Obtenção de provas ilícitas
Direito ao Silêncio Exceções ao direito ao silêncio
Especialistas Opinião Pública
Interesse Público Interesse Politizado e populista
A prisão não funciona A prisão funciona
Políticas públicas de longo prazo Políticas públicas de curto prazo
Mecanismo de Reforma e de Reabilitação Instrumento de neutralização e retribuição
Instituição Correcional Decadente e sem crédito Pilar da nova ordem social e correcional

Fonte: GARLAND, 2014, p. 57-60 (Dados organizados pela autora).

Aqui já temos aspectos de apenamento e de resposta a práticas delituosas dentro de dois pilares absolutamente distintos. O anterior a década de 1970, na antiga criminologia, calcada numa visão antropológica positiva dos homens, isto é, os homens cometiam delitos em face de uma vida de privações, então eram bons, e as condições sociais provocaram desvios de conduta. Agora, no pensamento neocriminológico o que existe é uma falta de controle, ou um controle inadequado, fruto não de uma patologia, mas sim de um conjunto de eventos, e aqui a visão antropológica é de que os homens são maus e delinquem porque querem. Sobre esse caminho Garland afirma que

(…) a criminologia contemporânea vê o crime como um aspecto normal, rotineiro, lugar-comum da sociedade moderna, sendo tais crimes praticados por indivíduos normais em seus intentos e propósitos. No ambiente penal, este modo de pensar tem ensejado o recrudescimento de políticas de retribuição e de intimidação, na medida em que afirma que deliquentes são atores racionais, refratários aos mecanismos de inibição e totalmente responsáveis por seus atos criminosos. (GARLAND, 2014, p. 61)

O que chama atenção é como essa mudança de paradigma tem um reflexo imediato sobre a ação de alguns parlamentares no Brasil. Especialmente, aqueles voltados e envolvidos com a formulação de políticas criminais de trânsito, discussão pertencente a área da segurança pública.

Tabela 07 – Antiga Criminologia e Neocriminologia

ANTIGA CRIMINOLOGIA

(Visão Antropológica Positiva)

NEOCRIMINOLOGIA

(Visão Antropológica Negativa)

Privações Sociais Falta de Controle Inadequado
Desvio de conduta Não existe uma patologia e sim um conjunto de eventos.
Reabilitá-los Guardá-los como forma de apenamento.

Fonte: GARLAND, 2014, p. 61 (Dados organizados pela autora).

A questão é que essa nova dinâmica alimenta a ação dos políticos, como no caso concreto apresentado, composto pela mãe que perdeu o filho numa colisão de trânsito e de outra mãe que perdeu o filho brutalmente arrastado em um veículo por quilômetros pelas ruas de São Paulo, ambas se tornaram parlamentares e ocupam cadeiras na atual legislatura na Câmara Federal.

Houve uma mudança de matriz identificada por Garland tanto nos Estados Unidos como na Grã-Bretanha. Houve um forte movimento para que a sociedade passasse a se envolver com a segurança pública por meio de programas de descentralização. No entanto, guardada as proporções com as diferenças entre países com culturas, economias e jurisdições constitucionais tão diferentes podemos elencar uma série de fatos identificáveis no âmbito da segurança pública, mas o mesmo não se pode dizer para as questões que envolvem o trânsito.

É necessária uma reflexão sobre institutos complexos, como: 1) a polícia; 2) as prisões; 3) a liberdade vigiada; 4) a lei penal; 5) a criminologia; 6) a teoria da pena; 7) as sentenças. E além de elencá-los é preciso explicar como esses institutos se relacionam quando a reflexão é dirigida ao trânsito. Qual é a percepção sobre os crimes e os criminosos do trânsito? Qual o comportamento dos legisladores em relação aos crimes de trânsito? Existe ou não seletividade penal? É exatamente nessa perspectiva que inserimos Howard Becker nessa discussão, com o intuito de compreender qual o perfil daqueles que cometem delitos no trânsito e perceber o papel do legislador nesse sentido.

3 OUTSIDERS E DESVIO NO TRÂNSITO BRASILEIRO

A proposta desse trabalho é analisar o comportamento das pessoas que cometem infrações e crimes de trânsito no Brasil, a partir de uma perspectiva cultural apontada por Howard Becker em seu livro – Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Este autor desenvolveu uma perspectiva em que buscou compreender e explicar porque as pessoas possuem determinados comportamentos repetitivos e que violam normas aceitas e consideradas como “normais”. Nesse sentido, o objetivo é realizar um recorte epistemológico dessa abordagem, compreender e explicar porque as pessoas adotam condutas tipificadas, isto é, considerados infrações ou crimes de trânsito? Nesse sentido, existe um trecho do livro de Becker revelador:

(…) todos os grupos sociais fazem regras e tentam, em certos momentos e em algumas circunstâncias, impô-las. Regras sociais definem situações e tipos de comportamento a elas apropriadas, especificando algumas ações como “certas” e proibindo outras como “erradas”. Quando uma regra é imposta, a pessoa que presumivelmente a infringiu pode ser vista como um tipo especial, alguém de quem não se espera viver de acordo com as regras estipuladas pelo grupo. Essa pessoa é encarada como um outsider (…). (BECKER, 2008, p. 15)

Essa resposta vai de encontro a nossa pergunta orientadora, quem são os outsiders no trânsito? – São aqueles que praticam condutas que infringem regras e normas que instruem o comportamento humano no trânsito. Nesse sentido, existe um conjunto grande de regras que podem ser informais ou formais, isto é, aquelas convertidas em Lei e que contam com o auxílio do Estado por meio de fiscalização e com o poder de polícia para impô-las. É no tipo escrito de regra, leis e normas, que o interesse de Becker tem assento. Isto porque, para o autor, “(…) Regras informais podem morrer de maneira semelhante por falta de imposição. Estou interessado, sobretudo no que podemos chamar de regras operantes efetivas de grupos, aquelas mantidas vivas por meio de tentativas de imposição (…)” (BECKER, 2008, p. 16).

Aqui cabe esclarecer o que de acordo com a doutrina brasileira, no campo jurídico, se entende por norma e regra. De acordo com Miguel Reale, a regra jurídica apresenta um dever ser de forma objetiva e também obrigatória, sendo característica própria do Direito atuar com ou contra a vontade dos obrigados, isto para impor as regras de conduta. Aqui fica muito claro que para a convivência em sociedades complexas é preciso de organização do trânsito para a segurança de todos, englobando regras formais e informais, isto é, culturalmente inscritas.

Assim, existem regras de direito que possuem como objetivo imediato disciplinar o comportamento dos indivíduos e dos grupos sociais. Há outras regras de caráter instrumental que visam à estrutura e funcionamento de órgãos a fim de assegurar uma convivência jurídica organizada. Desse desdobramento surgem normas primárias e secundárias que asseguram nossa convivência em sociedade: a) Normas primárias: apresentam as formas de ação ou comportamentos lícitos ou ilícitos. b) Normas secundárias: são as normas de natureza instrumental[13].

Para analisar a questão dos comportamentos sociais no trânsito, vamos adotar os conceitos de norma e regra de Miguel Reale. Para ele, a norma é estruturada e entendida como comportamentos que são normalmente previsíveis no homem comum, capaz de compreender e agir conforme preceitos genéricos. Já a regra, é uma medida da conduta sendo que “(…) cada regra nos diz até que ponto podemos ir, dentro de que limites podemos situar a nossa pessoa e a nossa atividade (…)” (REALE, p. 37). A regra delimita o agir, é o costume, é o trato social tanto de ordem moral como jurídica e também religiosa, constituindo-se na medida daquilo que podemos ou não podemos praticar, o que se deve fazer e o que não se deve fazer. Embora, Becker não tenha definido regra vamos trabalhá-la dentro dessa perspectiva definida por Reale, isto é, as regras impostas e resistidas, consistem no comportamento desviante.

Para Becker o grau em que uma pessoa é outsider tem variação, conforme descrição a seguir: “(…) encaramos a pessoa que comete uma transgressão no trânsito ou bebe um pouco demais numa festa como se, afinal, não fosse muito diferente de nós, e tratamos sua infração com tolerância. Vemos o ladrão como menos semelhante a nós e o punimos severamente. Crimes como assassinato, estupro ou traição nos levam a ver o transgressor como um verdadeiro outsider (…)” (BECKER, 2008, p. 16).

Aqui existe uma forte conexão entre o pensamento de Becker e Garland. Becker ao descrever especificamente uma conduta no trânsito apresenta que há um tratamento estatal e criminal mais tolerante, o ladrão é o outsider. Mas percebam a contradição identificada e apresentada por Becker, pois segundo ele, há pessoas que violam regras que “(…) não pensam que foram injustamente julgados. Quem comete infração no trânsito geralmente aprova as próprias regras que infringiu (…)” (BECKER, 2008, p. 16).

Essa máxima é bastante reveladora das contradições que marcam os formuladores e os receptores das políticas de trânsito no Brasil, fica absolutamente claro que nós aprovamos as regras de trânsito que infringimos. A partir dessas discussões apresentadas por Becker cabe refletir sobre o perfil do condutor brasileiro que é mais vulnerável a acidentes, pois de acordo com Roberto Damatta, temos uma cultura da infração de trânsito, uma naturalização, no sentido de que, quebrar as regras faz parte da vida, faz parte do jogo no trânsito (DA MATTA, 2010, p. 115). Fica absolutamente clara a dificuldade de enfrentamento desse tema, pois amanhã posso ser eu, pode ser meu filho, algum familiar, algum amigo, meu irmão, minha mãe, meu pai. Como é possível realizar políticas de trânsito nesse contexto? – O tamanho do problema, fica bastante perceptível e dessa constatação é que nasce a preocupação em verificar a presença ou não da seletividade penal nas infrações e crimes de trânsito.

Nessa linha, cabe destacar que o Estado brasileiro é conivente com a falta de cumprimento das regras, pois amanhã, talvez tenha que “cortar na carne” aplicando as punições legislativas aprovadas pelos parlamentares ou pela decisão tomada como juiz, a alguém próximo, um parente, um amigo etc. Outra característica identificada por Damatta em sua pesquisa é a indiferença às leis e a pessoalização das mesmas, tanto que criamos uma política econômica e fiscal que privilegiou o transporte individual e não o coletivo. Até porque, a aquisição do carro é uma forma de coroamento do sucesso individual, numa perspectiva da lógica capitalista. Assim, nos ensina o antropólogo que “(…) o próprio veículo é signo de uma cidadania diferenciada, um modo de ser e estar não mais individualizado, mas também relacional ou hierarquizado, o que produz procedimentos e atitudes na estrada ou na rua, de acordo não com normas universais, mas com o preço, a marca e o condutor do veículo” (DAMATTA, 2010, p. 27).

Dentro de uma perspectiva cultural, a sociedade brasileira é marcada por uma desigualdade constitutiva em binômios, isto é, da relação entre um superior e um inferior, expressa pela clássica frase: “sabe com quem está falando?” Essas características marcam um traço que nos leva a práticas de intolerância, infrações e crimes no trânsito, ou dito de outra forma, falta reconhecimento social do “outro”, a impaciência, a imprudência e a pressa, marcam o perfil do condutor brasileiro que não está disposto ao mínimo social, que é o diálogo, tolerância e cumprimento das regras no trânsito para uma convivência numa sociedade em que somos todos iguais perante a Lei.

Temos uma incapacidade histórica de nos colocar no lugar do “outro”, tarefa básica num Estado Democrático de Direito pautado pela impessoalidade e pelo reconhecimento de todos como sujeitos de direito. O trânsito pode ser entendido como um caminho para o aperfeiçoamento de práticas democráticas, onde pode haver de forma plena o exercício da alteridade, mas temos práticas anti-igualitárias, de constante relativização da norma e de não reconhecimento dos outros cidadãos. Temos parlamentares no Congresso Nacional marcados pela violência e que buscam a realização de uma justiça punitivista sem avaliar as conseqüências dessas políticas públicas de encarceramento.

Mas a questão é: o que são outsiders no trânsito? Para Becker é aquele que desvia das regras de grupo com algumas atenuantes quando se trata de trânsito, daí a importância de identificar a existência ou não da seletividade penal. Mas algumas perguntas intrigantes podem nortear esse debate e clamam por explicação acadêmica[14]:

a) Por que quebram regras?

b) Como explicar a transgressão das regras?

c) O que autoriza ou não os cidadãos a terem condutas proibidas?

d) Qual o nível de reincidência de crimes de trânsito?

Para Becker, quando avaliamos qualquer caso particular, como “(…) pessoas excessivamente gordas ou magras, assassinas, ruivas, homossexuais e infratoras das regras de trânsito (…)” (BECKER, 2008, p. 16). Esses grupos indicados contêm pessoas que são consideradas como desviantes e outros grupos que não infringiram nenhuma regra. Há na sociedade processos em andamento que diminuem a estabilidade e a chance de sobrevivência dos cidadãos no trânsito? Se respondermos afirmativamente é possível rotulá-los como desviantes e como um sintoma de desorganização social o comportamento dos brasileiros no trânsito tendo como elo a resposta dos parlamentares federais a esses comportamentos a partir das políticas criminais.

Apontar para esses traços fundamentais auxilia na compreensão desse olhar dicotômico, percebendo aspectos funcionais e desfuncionais que rompem ou criam a estabilidade na sociedade, o desvio consiste exatamente na falha em obedecer às regras do grupo e nas sequências dessas condutas, já que temos um número absolutamente alto de mortos e sequelados no trânsito.

Tabela 8 – Traços dos Motoristas Brasileiros

1) Onipotência.
2) Excesso de confiança.
3) Imprudência.
4) Inconsequente.
5) Irresponsável.
6) Individualista.
7) Desobediente.
8) Arrogante.
9) Não reconhece o outro.

Fonte: Roberto DaMatta, 2010. (Dados organizados pela autora).

A tipologia de Damatta é bastante representativa do condutor brasileiro e cada uma dessas características explica porque ocorre resistência a norma. Após a descrição das regras que a sociedade ou que o grupo impõe a seus membros pode-se identificar se essa pessoa violou ou não as regras e, portanto, é desviante. O desvio consiste em infringir alguma regra que é aceita como tal[15]. Uma forma de unificar essa abordagem é identificar a personalidade ou o grupo de pessoas que costuma cometer infrações e/ou crimes de trânsito e o que essas pessoas têm em comum, o que elas têm de homogêneo é que todas elas infringiram uma regra. Desse modo, essas pessoas reunidas são uma categoria homogênea, porque cometeram a mesma conduta desviante e isso as unifica, considerando que o desvio é uma construção social.

Logo, para Becker

(…) os grupos sociais criam desvio ao fazer as regras cuja infração constitui desvio e, ao aplicar essas regras a pessoas particulares e rotulá-las como outsiders. Desse ponto de vista, o desvio não é uma qualidade do ato que a pessoa comete, mas uma conseqüência da aplicação por outros de regras e sanções a um ‘infrator’. O desviante é alguém a quem esse rótulo foi aplicado com sucesso; o comportamento desviante é aquele que as pessoas rotulam como tal (…). (BECKER, 2008, p. 22)

A pergunta de Becker é: Que processos levam um desviante a se tornar desviante?

A nossa pergunta é: quem são os desviantes no trânsito brasileiro e qual a sua relação com as instituições que compõem o sistema de justiça criminal e o Legislativo Federal?

Um ato ser tratado como desviante ou não, depende de como outras pessoas reagem a esse fato. O fato de alguém ter cometido uma infração a uma regra não significa que as outras pessoas terão uma reação a esse fato. O grau de reação das pessoas a um ato tido como desviante tem uma grande variação. No caso do trânsito isso ficará muito claro e é aí que reside a necessidade de uma explicação e da presença dessa seletividade penal.

Existem campanhas realizadas contra vários tipos de desvios, organizadas por agentes da lei, para atacar tipos particulares de desvio, como exemplo, as campanhas de trânsito. O interessante é que existem graus de tratamento ao ato desviante, pois isso está ligado a quem comete e quem se sente prejudicado por ele. No caso do trânsito, por exemplo, regras são impostas, pois as ações contrárias resultam em conseqüências. O desvio “(…) não é uma qualidade que reside no próprio comportamento, mas na interação entre a pessoa que comete um ato e aquelas que reagem a ele (…)” (BECKER, 2008, p. 26-27).

É a partir desse contexto, que ainda depende de mais aprofundamento epistemológico, doutrinário e de casos concretos que pretendemos discutir a questão das rupturas com as regras e essa relação com o constructo social do desviante no trânsito, inclusive com reflexos na conduta dos políticos na Câmara dos Deputados. Estamos muito longe de esgotar os caminhos epistemológicos do crime e do desvio no trânsito, mas esse é o primeiro esforço. Temos ainda um paralelo a ser traçado na perspectiva do número de mortos e sequelados no trânsito brasileiro serem equiparados a dados epidêmicos, isto é, que vão muito além da quebra de regras e da capacidade do ius puniendi estatal.

Em termos de trânsito, o brasileiro tem uma incapacidade imensa de se colocar no lugar do “outro” no trânsito, e, possuímos práticas autodestrutivas, “(…) o próprio veículo é signo de uma cidadania diferenciada, um modo de ser e estar não mais individualizado, mas também relacional ou hierarquizado, o que produz procedimentos e atitudes na estrada ou na rua, de acordo não com normas universais, mas com o preço, a marca e o condutor do veículo” (DAMATTA, 2010, p. 27).

Daí a importância de compreender essa perspectiva cultural observando aquele que comete o crime, aquele que formula as leis e daquele que as aplica. Temos ou não uma seletividade da lei penal no caso em tela e como a teoria criminal tem tratado esses dados que passam ao largo da simplicidade, pois refere-se há inúmeras instituições, institutos jurídicos e políticos.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Essa abordagem e a sua correlação com cenário mundial de mortes no trânsito e o grande número de sequelados no Brasil revelam um quadro que merece destaque e que pode ser transformado a partir da correlação de inúmeras políticas públicas, não necessariamente criminais. O problema está dado!

Obviamente, o judiciário tem o seu papel, quando trata os homicídios ocorridos no trânsito como doloso, culposo, dolo eventual, culpa consciente ou como preterdoloso. O legislativo federal é fundamental nessa discussão, pois os deputados podem aperfeiçoar aspectos da legislação de trânsito, mas pelo que observamos aqui o modelo é mais vingativo do que propriamente calcado em estudos de especialistas sobre o tema.

Neste artigo, demonstramos os dados que tratam do trânsito no Brasil e de algumas políticas públicas implementadas por meio de programas e também da produção de legislação federal voltada para o trânsito. O importante é que os dados apresentados evidenciam a existência de uma epidemia de sequelados e de mortos, uma vez que, os dados produzidos no trânsito brasileiro são compatíveis com grandes conflitos armados espalhados pelo mundo como guerras civis, o que certamente merece uma resposta, mas essa resposta legislativa precisa ser analisada.

Os Organismos Internacionais têm dispensado uma atenção grande para essa temática, sendo que muitos dos chamados “acidentes” podem ser evitados. O tratamento desse tema merece o status internacional, pois existe um esforço mundial para que medidas com grande impacto sejam tomadas. Para isso também fica claro que os esforços precisam ser envidados de vários setores sociais, políticos e dos três poderes, Executivo, Legislativo e Judiciário. É um tema urgente no Município, no Estado e em termos Federais, um esforço conjunto que precisa, especialmente, do Legislativo e do Executivo nos três níveis da Federação, sem contar obviamente com as diretrizes oriundas das Organizações Internacionais, como a OMS e a ONU.

Essas iniciativas são fundamentais para que os dados de mortos e sequelados no trânsito sejam mundialmente modificados, especialmente no Brasil, inclusive a partir de documentos normativos que ofereçam um caminho a ser adotado pelos países para se combater esses dados epidemiológicos, sem descuidar da compreensão acadêmica desses fenômenos.

Vimos ao longo do caminho aqui percorrido que há fatores preponderantes na causa dos traumatismos e mortes causados pelo trânsito. Assim, havendo coincidência nesses padrões, é importante a criação de diretrizes mundiais para evitar mortes e traumas no trânsito, efetivamente esses são duas questões centrais para a ONU:

A – Estabilizar o número de mortes no trânsito.
B – Reduzir o número de vítimas.

Essas são as metas objetivas e os países são constantemente provocados pela ONU e pela OMC a responderem a essas demandas. Nesse contexto, há duas questões centrais, amplamente debatidas pela literatura e doutrina nacional e internacional:

A – Criação de um sistema homogêneo de sinais viários.
B – Estabelecer o trânsito seguro como um direito humano.

Cabe relembrar que o Brasil é o país que supera as estatísticas mundiais de mortes no trânsito, ocorrem 20 mortes por 100 mil habitantes. Na América Latina, o número é ainda mais grave com 26 mortes por 100 mil habitantes. Em todo o mundo, durante um ano, ocorre quase um milhão e meio de mortes e 50 milhões de sequelados, números condizentes com uma epidemia.

A questão é a resposta legislativa as infrações de trânsito, as formas de apenamento, a falta de unicidade entre os problemas diagnosticados e as soluções legislativas oferecidas. Aquele que quebra a regra do trânsito não é um outsider, mas há também os mecanismos identificados quanto à pesquisa de Garland em relação a essa cultura punitivista. Exatamente, por isso no trânsito a seletividade penal é não haver seletividade penal, pois aquele que infringiu poderia ter sido um de nós, há regras formais e informais de tolerância.

O caso em tela representa claramente uma “ambigüidade institucional legislativa”, pois, ao mesmo tempo em que, o legislador vítima do trânsito quer punir, a sociedade, aqui entendida como o próprio legislador, o juiz, o delegado, não percebem aquele que infringiu normas e regras de trânsito como um infrator ou criminoso (outsider), pois poderia ser qualquer um de nós, pois no trânsito ocorrem “acidentes”, certo?

REFERÊNCIAS

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Notas de Rodapé

[1] Doutora em Ciência Política – UFRGS, Mestre em Sociologia Política – UFPR, possui MBA em Gestão de Pessoas pelo Uninter, é Bacharel e licenciada em Ciências Sociais pela UFPR. É pós-graduanda em Gestão e Políticas de Trânsito – Unicesumar e pós-graduanda em Processo Penal – Fael. Cursa graduação em Direito na FAPI. Atua como Cientista Política e Pesquisadora de Trânsito, Direito Penal, Direito Processual Penal e Criminologia. E-mail: vanessadesouzafontana@hotmail.com

[2] Para aprofundamento dos dados observar: <http://portaldotransito.com.br/noticias/estatisticas/cai-numero-de-acidentes-e-mortes-nas-rodovias-em-2014>.

[3] O Maio Amarelo foi uma política pública assertiva nesse sentido. A imprensa dá ampla cobertura com casos, com legislação e com a reivindicação de soluções.

[4] Vias Seguras Estatísticas Nacionais. Disponível em: <http://www.viasseguras.com/os_acidentes/estatisticas/estatisticas_nacionais/estatisticas_do_seguro_dpvat>. Acesso em: 20 ago. 2017.

[5] A Deputada Federal Christiane Yared (PTN) foi eleita como a mais votada com 200.144 votos no Estado do Paraná, tendo 3,54% dos votos válidos. Sua votação foi tão expressiva que o segundo candidato mais votado, Alex Canziane (PTB) foi eleito com 187.368 votos. Christiane Yared estudou Belas Artes e foi empresária do ramo alimentício em Curitiba, até tornar-se Deputada.

[6] A Deputada Federal Keiko Ota (PSB-SP) perdeu o filho Ives, quando o menino, de apenas oito anos, foi assassinado por sequestradores, em São Paulo. “(…) Mais de uma década depois, ela foi eleita deputada federal pela primeira vez e, no último dia 25, lançou a frente parlamentar mista em Defesa das Vítimas de Violência, da qual será presidente. Embora na Câmara já existam outras três frentes parlamentares que têm como alvo a melhora da segurança pública no Brasil, até então, não havia um grupo cujo foco era auxiliar as pessoas que tiveram suas vidas transformadas pela violência. – Essa frente é um primeiro passo para que os diretos humanos também alcancem as vítimas de violência. No Brasil, parece que [os direitos humanos] foram feitos pra eles [os criminosos]. Eles têm seus direitos garantidos e preservados, mas as vítimas de violência não têm amparo do poder público. Em entrevista ao R7, a parlamentar disse que um dos principais objetivos do grupo é criar um fundo de amparo aos familiares das vítimas da violência, pois muitas das pessoas assassinadas sustentavam suas casas. Além disso, o grupo propõe a criação de uma secretaria nacional de apoio às vítimas, para coordenar ações voltadas ao suporte psicológico e financeiro de quem foi afetado. Algumas propostas defendidas pela deputada, porém, devem enfrentar certa resistência na Câmara. Entre os projetos que Keiko apoia está o que dificulta a progressão da pena (quando é possível cumprir parte do tempo em liberdade) para autores de crimes hediondos. Além disso, ela também é contra a concessão do benefício das saídas temporárias de detentos em feriados. Embora faça parte da nova frente, o deputado Domingos Dutra (PT-MA) – que é vice-presidente da comissão de Direitos Humanos e membro da comissão de Segurança Pública da Casa –, admite que “muita discordância virá à luz” no grupo. Ele, contudo, disse esperar poder contribuir mostrando que a prisão não é única forma de punição a criminosos. – É fundamental ter uma cultura no país de proteção às vítimas da violência, porque, por algum motivo, passou-se a ideia de que, principalmente quem defende os direitos humanos, só se preocupa com os presos e não com as vítimas, e isso não é verdade. […] Mas segurança não é só prisão, nós temos que pensar em alternativas que não sejam só lei, lei, lei e punição. Apesar de afirmar que a criação da frente é apenas ‘um primeiro passo’ e que muitos ‘desafios ainda virão, Keiko encara o projeto como uma ‘vitória pessoal (…)’”. Disponível em: <http://noticias.r7.com/brasil/noticias/deputada-que-perdeu-filho-assassinado-defende-ajuda-financeira-as-familias-de-vitimas-de-crimes-20110904.html>.

[7] O PL pode ser lido na íntegra neste endereço <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1309917&filename=PL+758/2015>.

[8] SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: parte geral. Empório do Direito. Santa Catarina, 2017, p. 427-430.

[9] Ver GARLAND, 2014, p. 55.

[10] A Lei Maria da Penha – como ficou conhecida a Lei 11.340/2006 – recebeu este nome em homenagem à cearense Maria da Penha Maia Fernandes. Foi a história desta Maria que mudou as leis de proteção às mulheres em todo o país. A biofarmacêutica foi agredida pelo marido durante seis anos. Em 1983, ele tentou assassiná-la duas vezes: na primeira, com um tiro, quando ela ficou paraplégica; e na segunda, por eletrocussão e afogamento. Somente depois de ficar presa à cadeira de rodas, ela foi lutar por seus direitos. Então lutou por 19 anos e meio até que o país tivesse uma lei que protegesse as mulheres contra as agressões domésticas. Em 7 de agosto de 2006, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei Maria da Penha, criada com o objetivo de punir com mais rigor os agressores contra a mulher no âmbito doméstico e familiar. Hoje, Maria da Penha é símbolo nacional da luta das mulheres contra a opressão e a violência. A lei alterou o Código Penal no sentido de permitir que os agressores sejam presos em flagrante ou tenham a prisão preventiva decretada. Antes disso, mulheres vítimas desse tipo de violência deixavam de prestar queixa contra os companheiros porque sabiam que a punição seria leve, como o pagamento de cestas básicas. A pena, que antes era de no máximo um ano, passou para três. Contudo, o propósito da legislação não é prender homens, mas proteger mulheres e filhos das agressões domésticas. Entre as medidas protetivas à mulher estão: proibição de determinadas condutas, suspensão ou restrição do porte de armas, restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, pedidos de afastamento do lar, prisão do agressor etc. Fonte: <https://tj-sc.jusbrasil.com.br/noticias/973411/saiba-mais-sobre-a-origem-da-lei-maria-da-penha-2>. Acesso em: 20 ago. 2017.

[11] Discussão realizada no livro de Hannah Arendt – Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

[12] Ver GARLAND, 2014, p. 52-53.

[13] Ver REALE, 2002, p. 96/7.

[14] Ver BECKER, p. 17.

[15] Ver BECKER, p. 21.