Uma Abordagem da Administração Pública Brasileira e do Estado Administrativo Norte-Americano, sob uma Teoria de Enfraquecimento do Poder da Lei nos EUA: a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) Brasileira, Deferência e Legalidade

DOI: 10.19135/revista.consinter.0007.07

Luigi Bonizzato[1] – ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3221-4068

Alice Ribas Dias Bonizzato[2] – ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3787-2553

Resumo: Este Artigo jurídico inicia-se com a abordagem do princípio da legalidade, suas relações e desdobramentos vinculados à figura das Agências Reguladoras, com o exame de fundo da Administração Pública contemporânea brasileira, consolidada a partir de meados da última década, do século XX. Em seguida e, a partir de referenciais teóricos, quais sejam, estudo específico de Adrian Vermeule e demais Autores, sobre o Estado Administrativo norte-americano e a Administração Pública no Brasil, o Artigo valeu-se da utilização de método dedutivo qualitativo, alicerçado em teorias modernas e contemporâneas, assim como em decisões jurisprudenciais brasileiras, para que se pudesse proceder a um exame específico e conclusivo do papel dos Poderes Legislativo, Judiciário e, no âmbito Executivo, da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) nacional, a partir da qual são embasados os exemplos utilizados para fixação e demonstração da ideia de menor ou maior deferência, no Brasil e nos Estados Unidos da América, à tecnicidade administrativa.

Palavras-chave: Estado. Administração Pública empresarial e gerencial. Agências reguladoras. Poder normativo. Saúde.

Abstract: This legal article begins with the approach of the principle of legality, its relations and unfolding linked to the Regulatory Agencies figure, with the background examination of the Brazilian Public Administration consolidated from the middle of the last decade of the twentieth century. In a second stage, and from clear theoretical references, that are specifics studies of Adrian Vermeule and other Authors about the US Administrative State and the Public Administration in Brazil, the article has used a qualitative deductive method, based on modern and contemporary theories, as well as on Brazilian jurisprudential decisions, to be able to proceed a specific examination of the role of the Legislative, Judiciary Powers and, in the Executive scope, of the National Supplementary Health Agency (ANS – initials, in Portuguese), from which are based the examples used to establish and demonstrate the idea of ​​lower or higher deference, in Brazil and in the United States of America, to the administrative technicity.

Keywords: State. Business and management Public Administration. Regulatory agencies. Normative power. Health.

INTRODUÇÃO

A partir de uma onda, sobretudo no final do século XX, de desestatizações e privatizações, acompanhada de concessões de serviços públicos ao setor privado, algumas das quais vinculadas a serviços politicamente essenciais e estratégicos ao Estado brasileiro, foram criadas, no país, as chamadas Agências Reguladoras. A ideia de Estado mínimo, resultado de políticas na época chamadas de neoliberais, foi uma das bases para que o Brasil passasse a adotar um modelo de apenas regulação e controle, pelo Estado, de atividades e funções passadas para a responsabilidade do setor privado.

Dentro, assim, deste modelo, anos se passaram e a experiência brasileira contemporânea já pode ser examinada sob diversos prismas, um dos quais o escolhido neste breve Artigo. Assim, abordagem da relação entre função legislativa – tradicionalmente exercida pelo Poder Legislativo –, função judicial e a função normativa especificamente executada pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), tem o objetivo de trazer à tona, sobretudo, a conclusão de que, no Brasil, a deferência do Poder Judiciário às normas emanadas das Agências Reguladoras, em especial, da mencionada Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), é muito reduzida, fato que, em breve comparação também realizada ao longo desta pesquisa, ocorre de maneira diversa nos Estados Unidos da América (EUA), uma das principais referências utilizadas pelo Brasil quando da decisão de adoção do modelo das Agências Reguladoras. Ou seja, Estados Administrativos com figuras semelhantes, mas funcionamento e comportamento institucionais bastante diferentes, como demonstrado ao longo das linhas subsequentes.

1 BREVE EXAME DA EVOLUÇÃO E CONSOLIDAÇÃO DE ESPECÍFICAS IDEIAS POLÍTICO-ADMINISTRATIVAS E JURÍDICAS DA REGULAÇÃO, SOB A ÉGIDE DA LEGALIDADE, DE UM ESTADO GERENCIAL E DAS AGÊNCIAS REGULADORAS

O Estado regulatório brasileiro, mantido no Brasil mesmo após a mudança política de 2002, a partir da qual novas propostas de uma ação estatal mais presente foram implantadas, primou pela continuidade, pelo menos em sua essência e elementos fundamentais, do modelo de regulação instaurado no país, máxime no final da década de 90, do século XX. E, tal preservação, sem dúvida, trouxe desdobramentos variados, alguns dos quais a serem aqui examinados, no recorte temático proposto. Se inúmeras foram as desestatizações, privatizações e, entre outros atos, concessões, dos quais redundou a necessidade de se criar um modelo chamado regulador, no sentido, aqui e, inicialmente, mais amplo da questão, este Artigo escolherá, entre tantos, um caminho, referente a uma das Agências Reguladoras criadas no país. Caminho, entretanto, que poderá servir de firme base para um entendimento mais extenso do que se avaliará ao longo do presente texto.

Nesse sentido e mais especificamente, serão ventiladas, nas linhas subsequentes, questões pontuais ligadas ao poder normativo da Agência Reguladora de Saúde – pinçada, reforce-se, por mera escolha e opção do aqui Autor, principalmente por entender altamente proveitosa a exemplificação daquela decorrente –, qual seja, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), em constante embate com o princípio da legalidade e a tão importante função judicante, corolário natural do poder jurisdicional.

Assim, valendo-se, inclusive, de relevante exemplo norte-americano, inspirador para a adoção da figura das Agências Reguladoras no Brasil, far-se-á pontual avaliação de como o Poder Judiciário nacional, atualmente, após aproximadas duas décadas de existência das referidas Agências, encara o papel regulador no país. E base teórica, também atual, norte-americana, será de grande valia para que um, ainda que breve, paralelo, possa ser estabelecido entre os dois países, fato, certamente, indutor e provocativo a futuras pesquisas sobre o tema, apesar de também já conclusivo, para os fins maiores, neste Artigo, pretendidos.

Feitas as considerações antecedentes e brevemente introduzidos os temas maiores deste Artigo, o caminho a ser ora seguido remete, logo de início, a uma abordagem essencial, a saber, a relativa ao tradicional e clássico princípio da legalidade. O exame apenas reforçará seus alicerces já bastante, máxime juridicamente, conhecidos, mas reputados relevantes para se contraporem ideias subsequentes. Nesse sentido, a avaliação será pontual, breve e de cunho meramente introdutório ao que se seguirá.

Levando-se em conta a supremacia do Documento Constitucional pátrio na ordem normativa nacional, mostra-se oportuno e condizente com os objetivos propostos a apreciação exordial do princípio da legalidade nos moldes do presente no corpo de nossa Constituição, a qual, como não poderia deixar de ser, não o desprezou, sobretudo em sua nuança clássica e tradicional, vinculada à noção de Estado Constitucional e Direito[3]. Assim, não se limitando a meramente prevê-lo no bojo de suas normas, inseriu-o no rol de direitos e garantias individuais, elevando-o à categoria de direito fundamental no Brasil. Nestes termos, o inc. II, do art. 5º, da Constituição brasileira vigente, estatui, in verbis, que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Destarte, nos lindes a ele conferidos pela Constituição, somente a lei pode obrigar alguém a realizar ou não realizar algo. E, frise-se, por lei há de se entender todo trabalho organizado, regulado, de forma primária, pelas normas da Constituição vigente e, secundariamente, pelas regras e princípios emanados dos Documentos Magnos de cada membro da Federação, sejam eles Estados, Municípios ou Distrito Federal, além de proveniente dos órgãos legislativos respectivos[4]. Em resumo, lei é o resultado máximo da labuta do Poder Legislativo, possuidor predominante da função legiferante. O princípio da legalidade, genericamente tratado, conforme neste momento se objetiva abordar, é pressuposto mor de um Estado de Direito, vale dizer, calcado na lei, e onde somente esta pode obrigar ou desobrigar[5]. Frise-se, essa a orientação fornecida pela Constituição de 1988, a qual, por sua vez, permite desdobramentos múltiplos, dada a magnitude do princípio[6].

Assim é que, entre outras, pode-se, outrossim, atingir subespécies e formatos do princípio em voga, máxime quando de sua utilização e invocação no âmbito da Administração Pública brasileira. Nesse viés, conforme já salientado, o art. 5º, inc. II, da Constituição nacional, traz a geral concepção do princípio, o qual comporta, contudo, especializações e particularizações diversas, facilitadoras de sua aplicação prática. Em seara penal, exempli gratia, é sabido da totalidade dos criminalistas e estudiosos pátrios que não pode haver crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal[7]. Ainda a título exemplificativo, nos confins do Direito Financeiro e Tributário encontra-se, da mesma forma, a necessidade de respeito à legalidade, visto que, nos termos do art. 150, inc. I, da Carta Constitucional brasileira, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça. Enfim, entre outros exemplos, na esfera do Direito Administrativo, o art. 37[8] da Constituição da República prevê o princípio da legalidade, que, aplicado ao administrador público, representa a ideia maior segundo a qual somente pode este agir de acordo e em estrita conformidade com a lei. Assim, imprescindível apontar o princípio da legalidade como também condicionante das atividades da Administração Pública. Neste sentido, o Administrador Público deve respeito incondicional à lei, seja no exercício de suas atribuições discricionárias, seja no de seus atos vinculados.

De todo modo, esta breve introdução tem por fim um objetivo específico: recordar o confronto crescente entre a força e magnitude da lei, nos moldes acima demonstrados, e o poder normativo conferido às chamadas Agências Reguladoras, instituições criadas para serem dotadas de tecnicidade e capacidade especificamente voltadas para temáticas relacionadas ao controle, fiscalização e, entre outras funções, regulação e regulamentação[9] de atividades outrora exercidas e executadas pelo Estado e que passaram para as mãos de terceiros, ou seja, do setor privado. E, frise-se, tudo isso nascendo, em um primeiro momento, sem desrespeitar o princípio da legalidade, examinado nas linhas antecedentes. Pois a ideia básica seria a de atuação regulatória com base na lei. Mas, de acordo com o neste Artigo especificamente examinado, a regulação pretendida findou por, gradativamente, ser questionada e, sobretudo, não adequadamente utilizada e, até mesmo, bem aproveitada pelo Poder Público brasileiro, principalmente, pelo Poder Judiciário, provocado para decidir sobre conflitos que traziam e trazem à tona embates políticos e jurídicos sobre normas oriundas de Agências Reguladoras e normas diretamente derivadas da função legiferante tradicional, ou seja, aquela emanada do Poder Legislativo, de acordo com o que foi nas linhas antecedentes anunciado e explorado[10].

De qualquer maneira, retomando o caminho desde o início trilhado e, conforme exposto na primeira parte deste Artigo, o cenário, quadro e contexto nacional e internacional favoráveis às privatizações de serviços públicos, inclusive essenciais e estratégicos, fez com que as referidas Agências Reguladoras, copiadas, a princípio e, preponderantemente, do modelo adotado nos Estados Unidos da América (EUA), fossem também instauradas no Brasil, sobretudo no final da última da década do século findo e primeiros anos do século atual. Agência Nacional de Petróleo (ANP), Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL), Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), entre várias, foram sendo criadas, sob um modelo dito gerencial de Estado e se encontram em plena atividade, sem previsões de sua eliminação. Entretanto, a chegada de tais Agências, no Brasil, teve circunstâncias distintas de sua chegada nos EUA. Por aquelas bandas, máxime no período Pós-guerra e com claros objetivos de reconstrução de um Estado repleto de incertezas administrativas e de problemas decorrentes do esvaziamento do Estado Liberal, as Agências significaram uma fortificação para a figura estatal. Em sua vertente moderna, surgiram, repita-se, em um momento em que se visava um fortalecimento do Estado, disposto a investir muito mais do que investira sob a égide de comandos liberais. E ao ponto de o Direito Administrativo norte-americano ser, até os dias de hoje, um tanto quanto coloquialmente, denominado de “Direito das Agências”.

Nada obstante, em conformidade com o acima exposto, esteja-se associando o surgimento moderno[11] das Agências Reguladoras nos Estados Unidos da América no período Pós-guerra (Segunda Grande Guerra), com o advento de políticas como a do New Deal, o surgimento da primeira Agência Reguladora norte-americana remonta ao ano de 1887[12]. Esta a razão pela qual se utilizou, anteriormente, a expressão “vertente moderna”, a fim de deixar claro o modelo que se quer, aqui, referenciar. Por outro lado, no Brasil, as Agências Reguladoras, conforme acima já anunciado, surgem em época relacionada a um verdadeiro desmantelamento do Estado brasileiro. Mais precisamente, em período em que as políticas governamentais, fortemente influenciadas pelas ondas neoliberais e globalizantes, precisavam esvaziar as funções estatais, diminuir o peso sobre o Poder Público, a fim de, a partir de revigorada concepção de um Estado Mínimo, permitir que a iniciativa privada aumentasse seu papel e participação em negócios e serviços, até então tradicionalmente sob o comando estatal.

As Agências, assim, surgiram no país, na conjuntura mencionada, com o fito de serem o apoio técnico para, novamente, frise-se, o controle, a fiscalização e a regulamentação das atividades – muitas das quais entendidas como serviços essenciais e/ou estratégicos, tais como transporte, saúde, telecomunicações, exploração de petróleo em território nacional etc. – que passaram a ser exercidas pelo setor privado. Suas funções e poderes, acima apenas destacados, foram-se enrobustecendo administrativa, burocrática e politicamente, o que, gradativamente, conduziu o país a uma necessidade de adaptação ao novo modelo, o qual, até os dias de hoje, não somente amadurece como ocorre com institutos e instituições em sociedades minimamente dinâmicas e submetidas a, um tanto naturais, mutações constantes (MOREIRA NETO, 2001), mas também já mostra claros sinais de estabilidade em vários aspectos, um dos quais, por exemplo, conforme no capítulo subsequente se verá, o relativo à relação entre função judicante, o poder regulatório-normativo e a própria legalidade, com seus contornos anteriormente esboçados e em seu sentido mais amplo. Ressalte-se, sentido que inclui aplicação e deferência a leis ordinárias e complementares de todos os entes federativos brasileiros, às suas Leis Orgânicas (âmbito municipal) e Constituições Estaduais, assim como, logicamente, à Constituição republicana de 1988. E, tudo, levando-se em conta e sem se perder de vista a teoria básica que gravita em torno do próprio poder normativo das Agências Reguladoras, o qual deve, em tese, ter caráter eminentemente técnico, ligado às capacidades institucionais especializadas de cada Agência e, ao mesmo tempo, completo respeito às produções legislativas nacionais, nos moldes do supra já delineado.

2 RECORTADA E ESPECÍFICA COMPARAÇÃO CONTEMPORÂNEA DOS MODELOS NORTE-AMERICANO E NACIONAL: UM EXEMPLO A PARTIR DA AGÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE SUPLEMENTAR (ANS) BRASILEIRA, DE SEU PODER NORMATIVO ADMINISTRATIVO E DA FUNÇÃO JUDICIAL DEFERENTE À LEI

Portanto e, tendo em vista os objetivos aqui pretendidos, imperioso salientar que, no tocante, especificamente, à atividade normativa, décadas após a criação e funcionamento de inúmeras Agências Reguladoras no Brasil, o cenário criado e atualmente vigente pode ser reputado um pouco desolador, se se defender a relevância e importância do poder técnico e da capacidade institucional das referidas Agências, em face, por exemplo, do Poder Legislativo, a quem compete criar leis, de caráter mais abstrato e amplo, e do Poder Judiciário, a quem compete julgar, com base nas leis, mas também, com o apoio que deveria ser entendido como fundamental e indispensável do corpo técnico mais capaz para auxiliar um magistrado, com presumido alto grau de tecnicidade jurídica, mas, não necessariamente, por óbvio, o mesmo grau em matérias que naturalmente escapam do universo jurídico e se referem a outros ramos e áreas do saber humano. Assim, a título não somente de ilustração, mas também de respeito ao recorte temático escolhido, o caso de decisões judiciais, no Brasil, que envolvem matérias de grande especificidade na área médica, é paradigmático para demonstrar fenômeno parcialmente oposto[13] ao vivenciado nos EUA, inclusive nos dias de hoje, onde o por lá intitulado Estado Administrativo possui força tal que se pode, até mesmo, usar a expressão “Law’s Abnegation”, ou seja, em tradução livre, “abnegação da lei” a partir de transcrição de parte central do título de obra recente de Adrian Vermeule (VERMEULE, 2016). Em dizeres mais precisos, a indicação de que o poder de instituições técnicas nos EUA possui tamanha força, que pode levar a uma, quiçá, abnegação, afastamento ou preferência de normas técnicas, não oriundas do Poder Legislativo da União, nem dos Estados, assim como não decorrentes de antecedentes jurídicos pautados em atos legislativos, mas, sim, de atos normativos produzidos por Agências (instituições) ligadas ao Poder Executivo e, portanto, carentes da legitimidade direta para a criação de normas.

No entanto, se críticas também são admitidas e bem construídas em território americano, o propósito de qualquer estudo no sentido do aqui selecionado como base e um dos marcos teóricos do presente Artigo, é também deixar clara a magnitude e importância depositada, nos EUA, pelo Poder Público e, principalmente, pelas Cortes, no trabalho normativo executado pelas ditas Agências Reguladoras. Confiança, respeito e distribuição institucional de competências e credibilidade técnica[14]. É certo que esta figura e modelo estatais, ao longo dos tempos, pode-se tornar, também um problema, mas denota, a título comparativo, uma diferenciação clara para o que foi construído no Brasil, sobretudo pelas Cortes nacionais, no que diz respeito à valorização e credibilidade de atos normativos provenientes de Agências Reguladoras. Sobre o referido problema, debruça-se Adrian Vermeule ao aprofundar seus estudos e identificar, por exemplo, em casos por ele nomeados como de incerteza (under uncertainty) para a tomada de certas decisões, posicionamentos tanto de Cortes inferiores, como da Suprema Corte norte-americana, no que diz respeito ao papel de Agências[15]. E, esmiuçando o tema e suas análises, chega a defender a existência de “decisões racionalmente arbitrárias” (rationally arbitrary decisions). Em dizeres do autor citado (VERMEULE, 2016, p. 129):

As we will see, the Supreme Court has understood its proper role in such cases quite intelligently, and with surprising consistency. The Court has been very clear that agencies are to enjoy the broadest possible latitude to make predictive judgements under uncertainty, judgements that cannot be proven correct or incorrect, and that necessarily embody irreducible choices – what I will call rationally arbitrary decisions.

E Vermeule prossegue (VERMEULE, 2016, p. 129):

There is a category of agency decisions in wich it is rational to be arbitrary, in the sense that no first-order reason can be given for agency choice within a certain domain, yet some choice or other is inescapable, legally mandatory, or both.

Não é este o momento, dado o sempre lembrado dever de respeito ao recorte temático ora escolhido, para se continuar o aprofundamento “vermeuliano” sobre o comportamento das Cortes e Agências, máxime a partir de casos concretos por ele utilizados como exemplos. De todo modo, o momento, no presente Artigo, é o de, a partir, também, da certeza de o modelo norte-americano de utilização das Agências Reguladoras ser bem mais antigo, alicerçado e maduro do que o brasileiro (note-se, em tradução livre, o trecho final do texto acima, no qual se afirma que pode ser racional ser arbitrário, “…no entanto uma escolha ou outra é inescapável, legalmente obrigatória ou ambas…”, como singela ilustração da relevância do papel e do poder e confiança depositados sobre as Agências nos Estados Unidos), extrair elementos comparativos bem delimitados para se poder chegar a conclusões do funcionamento de macro e micro instituições no país, mais precisamente, de Agências Reguladoras e do Poder Judiciário, por meio de seus órgãos e respectivas decisões. The deference, ou seja, a deferência existente nos confins do Direito, no sentido amplo da palavra, dos Estados Unidos da América, pode não ser realmente a mesma da que ocorre e acontece em terras brasileiras e, com maior rigor técnico, no Direito brasileiro.

Que, então, conclusivamente, proceda-se à ilustração comprobatória do que ora, reforce-se, de forma especificada, se afirma. E, realce-se, escolher-se-ão dois casos, duas jurisprudências, duas decisões, em um grande universo, as quais representarão centenas e milhares de decisões judiciais, nas quais, muito embora existissem normas técnicas específicas e emanadas, precisamente, da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) – órgão, pelas políticas governamentais e, outrossim, por lei, considerado o tecnicamente mais capaz de criar normas específicas em matéria de coberturas, procedimentos e questões médicas –, foram aquelas simples e meramente ignoradas, abandonadas ou desprezadas pelo poder judicial. Uma deferência exagerada, no Brasil, às leis, à Constituição, toda vez que questões técnicas são trazidas à análise judicial? Ou uma desconfiança nas normas técnicas prevalente sobre qualquer deferência? E nos EUA? Pelo anúncio acima feito e, com relação a esta última indagação, uma, quiçá, deferência maior, adequada às instituições produtoras de normas técnicas, que pode, em uma análise mais acurada, chegar a se tornar excessiva, com a defesa, por Vermeule, das decisões racionalmente arbitrárias e, embora neste artigo não trabalhado, pelo que o mesmo autor sugere, chegar a precisar de, em tradução literal e livre, uma “fina revisão racional” (thin rationality review), com os desdobramentos judiciais da utilização do vocábulo review[16].

Por fim e, paralelamente ou não, estar-se-ia diante de uma desvalorização de atividades legiferantes diversas? Conforme anteriormente já exposto, o princípio da legalidade possui sua força, entretanto, com foco aí sim direcionado, em maior grau, ao Direito nacional – uma vez que, nos EUA, de acordo com o bem exposto por Vermeule, a questão da racionalidade e existência ou não de precedentes sobre determinadas matérias, assim como inúmeros outros fatores, pode mitigar e tornar mais seletivas certas abordagens sobre a aplicação da lei e à maneira pela qual o Poder Judiciário deseja que ela seja aplicada –, perceber-se-á, em tantos e tantos casos ligados à saúde suplementar no Brasil, uma deferência muito maior e mais ampla às leis, ainda que abstratas e francamente genéricas para a solução de casos concretos específicos e com possíveis resultados encontráveis em diretrizes e normas precisas e técnicas emanadas da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

As indagações e subsequentes colocações dos parágrafos antecedentes são a alavanca para que, sem delongas, proceda-se ao exame final deste Artigo e, paralelamente, de acordo com o já assinalado, também a provocações a futuras pesquisas sobre o comportamento de micro e macroinstituições no Brasil e, também, nos Estados Unidos da América (EUA), onde, teoricamente e, a nível prático, tem-se substancial avanço em estudos e pesquisas do gênero, máxime no tocante ao comportamento das instituições. Mas que se proceda ao acima prometido. Que, abaixo, sejam examinadas, com o olhar direcionado do pesquisador e seu tema, o que ora se pretende demonstrar, no Brasil e, concomitante e já automaticamente, comparar com o quadro estadunidense acima exposto e contemporaneamente sob foco de estudiosos daquele país. Assim, repita-se, levar-se-ão em conta duas decisões judiciais proferidas por Cortes brasileiras, abaixo identificadas e nas quais o presente Autor entende ter havido não somente uma completa deferência à Lei brasileira, em seu sentido mais extenso, mas também um desprezo a entendimentos normativos técnicos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Frise-se, está-se diante, por um lado, de decisões recorrentes no Direito brasileiro, ainda mais em matéria de saúde privada, mas que, por outro lado, guardam uma complexidade intrínseca se consideradas as questões que são trazidas, neste momento, à baila. Eis, assim, os trechos centrais e que ora interessam, das referidas duas decisões, ambas do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a primeira de Relatoria do Ministro Marco Buzzi e a segunda de Relatoria do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, e que representam o entendimento da maioria dos Tribunais, inferiores e superiores, do país. A primeira (BRASIL, 2016):

AgInt no AREsp 919368 / SP AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL 2016/0141298-4; Relator: Ministro Relator: Marco Buzzi; 4ª Turma do STJ; Julgamento em 25 de outubro de 2016.

Ementa: Agravo Interno no Agravo (Art. 544 do CPC/73). Ação de obrigação de fazer. Negativa de cobertura. Decisão monocrática negando provimento ao reclamo, mantida a inadmissão do recurso especial. Irresignação da operadora de plano de saúde.

1. Ainda que admitida a possibilidade de o contrato de plano de saúde conter cláusulas limitativas dos direitos do consumidor (desde que escritas com destaque, permitindo imediata e fácil compreensão, nos termos do § 4º do art. 54 do Código de Defesa do Consumidor), revela-se abusivo o preceito excludente do custeio dos meios e materiais necessários ao melhor desempenho do tratamento clínico, indicado pelo médico que acompanha o paciente, voltado à cura de doença efetivamente coberta. Incidência da Súmula 83/STJ. 2. Agravo interno desprovido.

(…) consoante já decidiu esta Corte Superior, o fato de eventual tratamento médico não constar do rol de procedimentos da ANS não significa, por si só, que a sua prestação não possa ser exigida pelo segurado, pois, tratando-se de rol exemplificativo, a negativa de cobertura do procedimento médico cuja doença é prevista no contrato firmado implicaria a adoção de interpretação menos favorável ao consumidor.

E a segunda (BRASIL, 2016):

AgRg no AREsp 845190 / CE AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL 2016/0004958-9; Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva; 3ª Turma do STJ; Julgamento em 16 de junho de 2016.

Ementa: Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial. Plano de saúde. Cobertura de tratamento. Criança com encefalopatia crônica. Cláusula contratual. Abusividade. Urgência no tratamento. Reexame do conjunto fático-probatório dos autos. Súmulas 5 e 7/STJ. Procedimento. Previsão. Rol da Agência Nacional de Saúde. Desnecessidade. (…) 3. Como ressaltado pela instância ordinária, o direito ao tratamento postulado também se encontra assegurado em razão da urgência no procedimento, tendo em vista que o autor, ora agravado, corre o risco de sofrer lesões, piorando seu quadro de paralisia cerebral. 4. A falta de previsão de procedimento médico solicitado no rol da ANS não representa a exclusão tácita da cobertura contratual.

De acordo com as referidas Decisões, leis brasileiras variadas, entre as quais o próprio Código de Defesa do Consumidor, sobrepõem-se com facilidade hermenêutica sobre a norma técnica da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Mais precisamente, nas referidas Decisões, assim como em milhares de outras por todo o país, uma vez que a citação acima é meramente exemplificativa, o denominado “Rol de Procedimentos da ANS” é afastado para que prevaleça o dever de cobertura das Operadoras de Plano de Saúde[17], instituições que representam a saúde suplementar e privada no Brasil. Vale salientar, o Rol de Procedimentos nada mais é do que uma lista, elaborada, por meio de Resolução (principal instrumento de materialização do poder normativo de Agências Reguladoras, no Brasil), criada, pela primeira vez, sob a responsabilidade já da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), autarquia federal vinculada ao Ministério da Saúde, repita-se, responsável pela regulamentação e fiscalização dos planos privados de assistência à saúde, em 2000, pela Resolução (RDC) 41, de 14 de dezembro daquele ano, seguida por várias outras, entre as quais a de n. 167, de 09 de janeiro de 2007, a Resolução Normativa (RN) 211, de 12 de janeiro de 2010, a qual entrou em vigor em 07.07.2010, a RN 262, de 01º de janeiro de 2012, a RN 238, de 02 de janeiro de 2014 e a mais recente[18], RN 387, que passou a vigorar a partir de 02 de janeiro de 2016. Nos dias de hoje, pelo menos, a cada dois anos, tal lista é atualizada, tendo em vista o avanço da medicina e da tecnologia, assim como estudos a estas últimas relacionados. E, frise-se, tal lista representa aquilo que, de acordo com o entendimento técnico da Agência Reguladora de Saúde no Brasil, têm as Operadoras de Plano de Saúde que cobrir e custear para seus clientes. Portanto, o entendimento jurisprudencial de ser o referido Rol de Procedimentos da ANS uma listagem exemplificativa não se coaduna, de forma alguma, com a tecnicidade de sua criação. Pois, se assim se entender, desnecessária se mostra sua criação, pois bastaria admitir que todo e qualquer procedimento e tratamento médico deveria ser coberto pela dita saúde privada brasileira.

Por conseguinte, muito embora os Tribunais, inclusive e, sobretudo, superiores brasileiros, venham solidificando a tese de afastamento de utilização Rol de Procedimentos da ANS em prol do consumidor, minimamente embasado com um pedido médico, credenciado ou não a uma Operadora de Plano de Saúde, é mister atentar para o fato de a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) continuar exercendo seus misteres técnicos e administrativo/normativos, um dos quais emitir Resoluções periódicas portadoras do por vezes referido Rol de Procedimentos. As discussões, pelo que se pode, então, perceber, permitem inúmeros desdobramentos e inúmeras conclusões. Mas, tendo em vista o recorte ora escolhido, é fundamental apenas ratificar o anteriormente já salientado. Em precisos dizeres, o fato de que, no Brasil, normas técnicas emanadas da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) ou são afastadas e ignoradas pelos membros e órgãos do Poder Judiciário, em deferência à Lei em seu sentido amplo (leis ordinárias, complementares, Constituição e, até mesmo, como fonte secundária, a própria jurisprudência dos Tribunais), ou costumam, sequer, serem ou chegarem ao conhecimento adequado e, portanto, minimamente aprofundado, dos magistrados brasileiros.

Se o problema é de ordem jurídica, política, social e/ou econômica, a discussão passa a ser outra e não mais compete a este breve Artigo, no qual apenas e tão somente se buscou, a partir de delimitação temática específica, estimular a visualização da Administração Pública brasileira a partir de uma visão englobante de um também, ainda que suposto, Estado Administrativo brasileiro contemporâneo, rodeado de preocupações diversas e do, por exemplo, Estado Administrativo norte-americano, no qual foi o Poder Público brasileiro buscar, para implantação, o exemplo e modelo das chamadas Agências Reguladoras.

CONCLUSÃO

O exame, escolhido neste Artigo, da aplicabilidade e aceitação das normas oriundas do exercício do poder normativo pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) deixa claro que, no Brasil, o Poder Judiciário é preferencialmente deferente à legalidade e à função legiferante do que às normas emanadas de Agências Reguladoras. Ora por desconhecimento, ora por desprezo, ora, também e, principalmente, por clara vontade interpretativa de afastamento da aplicação das referidas normas em casos concretos, fato é que inúmeras decisões judiciais comprovam que, em eventual conflito, ainda que classificado como simples, entre resoluções normativas da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e a Lei, entendida esta em seu sentido mais amplo, pretere o Judiciário a aplicação das primeiras, em prol da aplicação e interpretação da segunda, no caso concreto com o qual se depara.

Se levado em conta que o Brasil foi fortemente influenciado, no final do século XX, pelo modelo norte-americano, utilizador da figura das Agências Reguladoras, uma pontual e específica comparação, nos dias de hoje, entre a Administração Pública brasileira e a estadunidense, demonstra que, nos Estados Unidos da América (EUA), críticas teóricas e práticas igualmente existem, entretanto mais relacionadas a uma deferência judicial mais intensa ao poder normativo de suas Agências, o que, em uma visão mais ampla e elástica, não foi – e nem poderia, dadas as limitações teleológicas e espaciais –, objeto de exame neste breve Artigo jurídico.

REFERÊNCIAS

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BARROSO, Luís Roberto. Temas de Direito Constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

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Notas de Rodapé

[1] Doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professor Associado de Direito Constitucional e do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FND/UFRJ). Coordenador/Integrante do LETACI/FND/UFRJ (Laboratório de Estudos Teóricos e Analíticos sobre o Comportamento das Instituições). Editor da REI (Revista Estudos Institucionais). Criador do APP “Constituição para Leigos” (disponível em IOS e ANDROID). Site: www.bonizzato.com.br.

[2] Mestre em Direito pela Universidade Gama Filho (UGF/UVA/RJ). Especialista em Direito Administrativo-Empresarial e Graduada em Direito pela Universidade Candido Mendes (UCAM – Unidade Centro – RJ). Assessora Técnica de Desenvolvimento da Secretaria de Saúde do Estado do Rio de Janeiro. Advogada e Pesquisadora no Rio de Janeiro.

[3] Isto porque, entre várias previsões a serem, a seguir, relembradas, logo no art. 1º, a Carta Magna assim estatui: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (…)”. É de notar-se, por corolário, que foi a legalidade alçada à categoria de condição indispensável à mantença da República brasileira.

[4] Luís Roberto Barroso assim se posiciona: “Lei não é qualquer ato de vontade emanado dos agentes públicos estatais, mas, ao revés, identifica uma peculiar espécie normativa, dotada de caráter geral e abstrato, normalmente produzida no órgão de representação popular, isto é, o Legislativo”. E, continuando, aduz: “Nos países em que o direito se filia à tradição romano-germânica, como é o caso do Brasil, somente a lei está apta a inovar, originariamente, na ordem jurídica” (BARROSO, 2002, p. 166).

[5](…) Com o primado da lei, cessa o privilégio da vontade caprichosa do detentor do poder em benefício da lei, sendo assegurada ao particular a possibilidade de recusar as imposições estatais que não respeitarem o devido processo legislativo” (MORAES, 2002, p. 197).

[6] Paralelamente, a título de acréscimo à célere abordagem inicial do princípio, abordagem faceta que há tempos também merece realce é a perquirida por Germana de Oliveira Moraes. Frise-se, apesar de não ser objeto de pesquisa no presente esboço, o entendimento proferido pela referida autora praticamente inaugurou vertente de estudo, no país, sobre a relação mais próxima entre regras e princípios jurídicos, entretanto, no âmbito do Direito Administrativo, tão tradicionalmente vinculado à legalidade em sentido mais estrito. Realçando a participação também da principiologia jurídica no âmbito do referido ramo do Direito, a mencionada autora teoricamente consolidou uma diversa abordagem do princípio da legalidade, alcançando, também, sua vertente administrativa. Com efeito, conclui que: “Ao ordenar ou regular a atuação administrativa, a legalidade não mais guarda total identidade com o Direito, pois este passa a abranger, além das leis – das regras jurídicas, os princípios gerais de Direito, de modo que a atuação do Poder Executivo deve conformidade não apenas à lei, mas ao Direito, decomposto em regras e princípios jurídicos, com a superação do princípio da legalidade pelo princípio da juridicidade” (MORAES, 1999, p. 23). Para mais recente e específica abordagem do tema, mas já reputada, praticamente, uma clássica pesquisa, recomenda-se conferir a Obra intitulada “Uma teoria do Direito Administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização”, de autoria de Gustavo Binenbojm (BINENBOJM, 2008). Ressaltem-se estudos outros como “A discricionariedade administrativa na Constituição de 1988” de Maria Sylvia Zanella Di Pietro (DI PIETRO, 2001) e, com a aproximação à sempre relevante abordagem sobre o devido processo legal em sua nuança material, o trabalho de Danielle Anne Pamplona, intitulado “Devido Processo Legal – aspecto material” (PAMPLONA, 2004).

[7] Art. 5º, inc. XXXIX, da Constituição de 1988.

[8]Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte (…)”.

[9] Respeitadas as distinções formais entre o poder regulamentar do administrador público, de conceituação ligada ao Direito Administrativo, e o poder regulatório, também conceitualmente ligado ao mesmo Direito Administrativo, mas com maior proximidade com a vertente dita regulatória, neste Artigo não haverá espaço para distinções formais e teóricas entre as expressões e vocábulos, podendo ocorrer de as palavras regulamentação e regulação, no tocante à figura de Agências Reguladoras, serem usadas como sinônimas. Entretanto, o leitor poderá perceber quando o ora Autor pretender igualar ou diferenciar o poder regulamentar do poder regulatório, em sentido estrito de análise dos dois poderes.

[10] O próprio Supremo Tribunal Federal encontra-se com tarefa decisória inglória, pois, a depender de decisão final sobre a validade ou não da Resolução 14/2012, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), pela qual se proíbe a venda de cigarros com sabor no país, pode ser criado imbróglio entre o referido Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional, onde tramita projeto de lei sobre o mesmo tema, assim como ser comprometido o poder normativo e regulatório das Agências Reguladoras, como um todo, no Brasil. Liminarmente, em sede de medida cautelar em Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4.874), já foi proferida decisão para a suspensão da proibição constante da Resolução. Em resumo, questiona-se, por meio da referida Ação, a constitucionalidade do Art. 7º, da Lei Federal 9.782/1999, que confere poder regulatório considerado muito extenso, pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), proponente da Ação Direta de Inconstitucionalidade. Paralelamente, uma decisão final de mérito proferida no âmbito do controle concentrado de constitucionalidade, especificamente direcionado à Ação Direta de Inconstitucionalidade que versa, em linhas gerais, sobre a ANATEL (Agência Nacional de Telecomunicações), poderá também criar, por um lado, grande obstáculo ou, por outro, o sustentáculo ao poder normativo das Agências Reguladoras. Já se decidiu, em sede de medida cautelar nesta Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 1668-DF), com entendimento resultante de reunião plenária especificamente voltada para o exame da tutela cautelar, que, no caso específico da ANATEL, seu poder normativo, desde que, logicamente, respeitadas as leis brasileiras, estaria preservado. E tal posicionamento, desde a decisão plenária referida, é adotado para se defender, ainda que formalmente, o poder normativo das Agências Reguladoras no Brasil. Eis trecho conclusivo da decisão do Supremo Tribunal Federal na medida cautelar mencionada: “Quanto aos incs. IV e X do art. 19, sem redução de texto, dar-lhes interpretação conforme a Constituição Federal, com o objetivo de fixar exegese segundo a qual a competência da Agência Nacional de Telecomunicações para expedir normas subordina-se aos preceitos legais e regulamentares que regem a outorga, prestação e fruição dos serviços de telecomunicações no regime público e no regime privado” (BRASIL, 1998). No voto do então Ministro Sepúlveda Pertence, restou estabelecido que “(…) nada impede que a Agência tenha funções normativas, desde, porém, que absolutamente subordinadas à legislação, e, eventualmente, às normas de segundo grau, de caráter regulamentar, que o Presidente da República entenda baixar” (BRASIL, 1998).

[11] Países como Inglaterra tiveram experiência prévia com a figura das Agências, ainda que na modalidade chamada executiva e, não necessariamente, regulatória, diferenciação que não será enfrentada neste Artigo. “A ideia básica do Ministério da Administração e Reforma do Estado (oriunda da experiência da Reforma Inglesa, além da experiência americana, Francesa e da Nova Zelândia) era que houvessem unidades da Administração com alto padrão de excelência (…)” (SOUTO, 2000, p. 248).

[12] Tratou-se da Interstate Commerce Commission, voltada para a regulamentação dos serviços interestaduais de transporte ferroviário. Foi substituída, em 1995, pela Surface Transportation Board (STB), criada pelo Interstate Commerce Commission Termination Act. E, ainda sobre as Agências Reguladoras nos Estados Unidos da América, vale conferir, entre outros, os estudos intitulados “O constitucionalismo após o New Deal”, “Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico” e o acima já mencionado “Desestatização, privatização, concessões e terceirizações”, de autoria, respectivamente, de Cass R. Sunstein (SUNSTEIN, 2004), Alexandre Santos de Aragão (ARAGÃO, 2002) e Marcos Juruena Villela Souto (SOUTO, 2000). Muito embora escape dos fins diretos deste trabalho, ressalte-se, desde já, que o Direito Administrativo estadunidense foi enrobustecido pelo APA (Administrative Procedure Act), de 1946, que teve o principal fito de uniformizar o procedimento de decisões administrativas, sobretudo das Agências, denominando-se rulemaking o procedimento de criação das normas pelas Agências Reguladoras daquele país e que, a partir, então, do APA, passaram a se submeter, de forma mais precisa, ao controle judicial formal, pelo qual atos agenciais poderiam ser considerados, também, contrários à referida Lei de Procedimentos (APA) e, portanto, ilegais. Sucederam-se várias outras normas – as quais não serão aqui citadas, nem, muito menos, esmiuçadas, por questões, principalmente, ligadas ao tema e sua respectiva delimitação – e, enfim, neste momento se ressalta, também, o CRA (Congressional Review Act), de 1996, pelo qual passaram as duas Casas Legislativas federais norte-americanas a poderem vetar, com confirmação presidencial (sanção) posterior, normas de regulação criadas pelas Agências Reguladoras.

[13] Seria sobremaneira temerário, em uma breve comparação entre Brasil e Estados Unidos (EUA) no tocante ao funcionamento dos respectivos Estados Administrativos, sobretudo a partir do exemplo das Agências Reguladoras, taxar casos como diametralmente opostos, pura e simplesmente. Na realidade, a ideia pode ser de oposição, mas, não necessariamente, de situação que indique características idênticas e capazes de permitir uma oposição perfeita de ideias. A complexidade dos funcionamentos institucionais dentro de cada ordenamento jurídico e social é fato incontroverso e precisa ser atentamente respeitado.

[14]Daí porque a prevenção dos conflitos é um dos principais aspectos da regulação, através da elaboração de diretrizes que traduzem os conceitos de eficiência técnica e financeira para o caso concreto do segmento regulado” (SOUTO, 2000, p. 251-252).

[15] Vale sempre lembrar, embora já um tanto estudada, da chamada doutrina Chevron, decorrente do leading case Chevron v. Natural Resources Defense Council, a partir do que se concedeu às Agências federais norte-americanas, possibilidade interpretativa ampla relativamente a atos do Congresso dos Estados Unidos da América (EUA) que representassem alguma ambiguidade, mas desde que a mencionada possibilidade/discricionariedade interpretativo-administrativa trouxesse um resultado reputado razoável. A base, em resumo, de uma deferência judicial a decisões técnicas executivas.

[16] Para Vermeule, há uma dimensão negativa e uma positiva para a “fina revisão racional”. Sobre dimensão negativa, começa expondo: “On the negative dimension, here are many things that rationality review does not require and that the Court has generally disavowed, despite contrary assumptions or arguments scattered through the lower-court caselaw and especially the commentary”. Prossegue, exemplificando, neste momento se transcrevendo apenas duas das ilustrações, em respeito aos fitos ora colimados e se aproveitando para provocar o leitor interessado a perscrutar os demais exemplos para novas e futuras pesquisas, com seus respectivos recortes temáticos: “Judges may not require agencies to conduct quantified cost-benefit analysis, even presumptively; may not Always require agencies to conduct comparative policy evaluation, obliging agencies to show that the chosen policy is superior to feasible alternatives, or superior to the agency’s own past choices (…)”. Já no tocante à dimensão positiva, afirma: “On the positive dimension, a simple affirmative formulation of thin rationality review runs this way: agencies must act based on reasons, where the set of admissible reasons includes second-order reasons to act inaccurately, nonrationality, or arbitrarily. The formulation seems paradoxical, but the paradox is illusory. Neither the theory of rational decision-making nor caselaw requires agencies to exercise a kind of unbounded ideal rationality (…)” (VERMEULE, 2016, p. 167). Para demais aprofundamentos sobre algumas teorias institucionais de Adrian Vermeule, “The Constituion of Risk” (VERMEULE, 2014), “The System of the Constitution” (VERMEULE, 2011), “Law and limits of reason” (VERMEULE, 2009), “Mechanisms of Democracy – Institutional Design Writ Small” (VERMEULE, 2007) e “Judging under uncertainty: an institutional theory of legal interpretation” (VERMEULE, 2006) merecem especial destaque. E a própria ideia de sistemas institucionais complexos, a partir dos quais é de grande dificuldade a obtenção de resultados exatos sobre determinadas consequências de atos praticados em conjunto ou separadamente, em âmbitos institucionais, com a condução à noção de propriedades emergentes, passa a ser digna de nota, sobretudo em ambientes administrativos em que tanto uma produção normativa, quanto várias outras práticas, podem levar a desdobramentos múltiplos e, muitas vezes, de difícil controle e previsibilidade. De qualquer maneira, tudo isto apenas reforça a necessidade de cada vez mais se pesquisar os comportamentos institucionais ora sob análise, ou seja, da relação entre Judiciário e Executivo, mais precisamente, entre Agências Reguladoras e decisões judiciais e, enfim, ainda mais especificamente, entre a ANS e os entendimentos judiciais sobre suas normas técnicas.

[17] Apesar de já existirem, desde muito antes, o marco legislativo em matéria de saúde privada no Brasil foi a Lei 9.656/1998, a qual, finalmente, trouxe normas e passou a regular as Operadoras de Plano de Saúde, assim como os Planos comercializados, suas características e relações entre aquelas e os usuários finais. E da leitura e análise da própria Lei 9.656/1998, com facilidade extraem-se menções à Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e seu poder regulatório/normativo, frise-se, como não poderia deixar de ser, em consonância e complementador das previsões legais. Mas, conforme se demonstra ao longo do presente Artigo jurídico, a relação entre Poder Judiciário e Agências Reguladoras e, também, entre o mesmo Poder Judiciário e o próprio Poder Legislativo em matéria de distribuição e entrega de competências às Agências Reguladoras, encontra-se bastante desgastado no país, em razão, principalmente, de uma visão judicial precarizada e um tanto desprezadora de uma fatia da Administração Pública brasileira, sobretudo a representada pela figura das Agências citadas, sobre a qual mui recortadamente aqui se aproveita para debruçar e fazer estudo e inicial comparação com um também específico olhar sobre o Estado Administrativo norte-americano.

[18] Leva-se em conta a data de conclusão do presente Artigo, cabendo salientar que outras Resoluções atualizadoras do Rol de Procedimentos, na toada atual, naturalmente sobrevirão.