LIBERDADE DE PLANEJAMENTO FAMILIAR X RESOLUÇÃO CFM 2.168/2017: PREVISÃO DE IDADE MÁXIMA PARA SUBMISSÃO ÀS TÉCNICAS DE REPRODUÇÃO ASSISTIDA

FREEDOM OF FAMILY PLANNING X CFM RESOLUTION 2.168/2017: MAXIMUM AGE FORECAST FOR SUBMISSION TO ASSISTED REPRODUCTION TECHNIQUES

DOI: 10.19135/revista.consinter.00009.24

Carlos José Cordeiro[1] – https://orcid.org/0000-0002-8534-2805

Resumo: Objetiva o presente estudo posicionar-se a respeito da constitucionalidade ou não da previsão de idade máxima para que a mulher possa se submeter aos procedimentos de reprodução assistida, constante no item I.3, § 1º, do anexo da Resolução 2.168/2017, do Conselho Federal de Medicina (CFM), tendo em vista que referida limitação etária pode significar verdadeira afronta ao direito fundamental ao livre planejamento familiar, consagrado no art. 226, § 7º, da Constituição Federal de 1988. Para tanto, o método de abordagem adotado será, essencialmente, o método hipotético dedutivo, mediante o desenvolvimento de pesquisa teórica − conhecimento doutrinário − e documental − análises legislativas e jurisprudenciais.

Palavras-chave: Planejamento familiar. Resolução 2.168/2017 do CFM. Inconstitucionalidade.

Abstract: The objective of the present study is to position itself on the constitutionality or not of the maximum age forecast for women to undergo assisted reproduction procedures, as set out in item I.3, § 1, of the annex of Resolution 2,168/2017, Federal Council of Medicine (CFM), considering that this age limitation may mean a real affront to the fundamental right to free family planning, as enshrined in art. 226, § 7, of the Federal Constitution of 1988. Therefore, the approach method adopted will be essentially the hypothetical deductive method, through the development of theoretical research − doctrinal − and documentary knowledge − legislative and jurisprudential analysis.

Keywords: Family planning. Resolution 2.168/2017 of the CFM. Unconstitutionality.

1 INTRODUÇÃO

O presente estudo tem por objetivo firmar posicionamento a respeito da constitucionalidade ou não da previsão de idade máxima para que a mulher se submeta aos procedimentos de reprodução assistida, constante no item I.3, § 1º, do anexo da Resolução 2.168/2017, do Conselho Federal de Medicina (CFM) − “A idade máxima das candidatas à gestação por técnicas de RA é de 50 anos” −, notadamente devido à possível afronta ao direito fundamental ao livre planejamento familiar, consagrado no art. 226, § 7º, da Constituição Federal de 1988.

Para o adequado enfrentamento do tema, o método de abordagem adotado será, essencialmente, o método hipotético dedutivo, na medida em que, a partir da análise do problema eleito, buscar-se-á a posição que privilegie o exercício dos direitos reprodutivos da pessoa humana e, por consequência, torne efetivo o direito fundamental à liberdade de planejamento familiar. Referido método se concretizará por meio do desenvolvimento de pesquisa teórica − conhecimento doutrinário − e documental − análises legislativas e jurisprudenciais.

2 REGULAMENTAÇÃO DAS TÉCNICAS DE REPRODUÇÃO ASSISTIDA PELO CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA E A QUESTÃO DA LIMITAÇÃO ETÁRIA

O Conselho Federal de Medicina (CFM), autarquia federal regida pela Lei 3.268/1987[2], antes mesmo da regulamentação legal das técnicas de reprodução assistida − que ocorreu, inicialmente, com o advento da Lei 8.974/1995, a qual foi revogada no ano de 2005, com a publicação da Lei 11.105, ainda em vigor −, editou a Resolução 1.358/1992, disciplinando “Normas Éticas para a Utilização das Técnicas de Reprodução Assistida”. Em seu anexo, previa que “As técnicas de RA podem ser utilizadas desde que exista probabilidade efetiva de sucesso e não se incorra em risco grave de saúde para a paciente ou o possível descendente” (item I.2), e, ainda, que “Toda mulher, capaz nos termos da lei, que tenha solicitado e cuja indicação não se afaste dos limites desta Resolução, pode ser receptora das técnicas de RA, desde que tenha concordado de maneira livre e consciente em documento de consentimento informado” (item II.1).

Referida resolução somente foi revogada dezoito anos após o início de sua vigência, com o advento da Resolução CFM 1.957/2010, que, de modo semelhante, previa que “As técnicas de RA podem ser utilizadas desde que exista probabilidade efetiva de sucesso e não se incorra em risco grave de saúde para a paciente ou o possível descendente” (item I.2), e, ainda, que “Todas as pessoas capazes, que tenham solicitado o procedimento e cuja indicação não se afaste dos limites desta resolução, podem ser receptoras das técnicas de RA desde que os participantes estejam de inteiro acordo e devidamente esclarecidos sobre o mesmo, de acordo com a legislação vigente” (item II.1).

No ano de 2013, o Conselho Federal de Medicina expediu a Resolução 2.013, com o objetivo de “adotar as normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida, anexas à presente resolução, como dispositivo deontológico a ser seguido pelos médicos” (art. 1º). Referido texto normativo revogou a Resolução 1.957/2010, a qual, segundo manifestado pelo CFM na exposição de motivos da nova Resolução, “mostrou-se satisfatória e eficaz, balizando o controle dos processos de fertilização assistida. No entanto, as mudanças sociais e a constante e rápida evolução científica nessa área tornaram necessária a sua revisão”.

Diante desse cenário, a Resolução 2.013/2013 foi responsável por disciplinar mudanças no trato da reprodução assistida no país, as quais foram vistas pelos profissionais médicos como verdadeiro avanço na matéria, haja vista ter lhes atribuído maior clareza e segurança para a atuação. De fato, dentre as alterações promovidas, está a expressa menção à possibilidade de casais homoafetivos e de pessoas solteiras se submeterem à inseminação artificial; a permissão de descarte de embriões congelados após o transcurso de 5 (cinco) anos; e a possibilidade de parentes de até quarto grau serem doadoras do útero para a gestação.

Contudo, uma inovação trazida pela Resolução 2.013/2013 foi alvo de críticas no meio jurídico, devido à sua induvidosa inconstitucionalidade, por ser ofensiva ao direito fundamental ao planejamento familiar, qual seja, a previsão de idade máxima para que a mulher se submeta ao procedimento de reprodução assistida, constante no item I.2 de seu anexo, in verbis: “As técnicas de RA podem ser utilizadas desde que exista probabilidade efetiva de sucesso e não se incorra em risco grave de saúde para a paciente ou o possível descendente, e a idade máxima das candidatas à gestação de RA é de 50 anos”.

Tal inovação foi mantida pela Resolução CFM 2.121/2015 − que revogou a Resolução 2.013/2013 −, ao dispor, no item I.2 do seu anexo que “As técnicas de RA podem ser utilizadas desde que exista probabilidade de sucesso e não se incorra em risco grave de saúde para o(a) paciente ou o possível descendente, sendo a idade máxima das candidatas à gestação de RA de 50 anos”. Entretanto, referido texto normativo possibilitou que exceções ao limite etário máximo possam ser reconhecidas no caso concreto, de acordo com a previsão do item I.3: “As exceções ao limite de 50 anos para participação do procedimento serão determinadas, com fundamentos técnicos e científicos, pelo médico responsável e após esclarecimento quanto aos riscos envolvidos”.

E, atualmente, a Resolução CFM 2.168/2017 mantém referido cenário, ao dispor, no item 3 do seu anexo, in verbis:

3. As técnicas de RA podem ser utilizadas desde que exista probabilidade de sucesso e não se incorra em risco grave de saúde para o(a) paciente ou o possível descendente.

§ 1º A idade máxima das candidatas à gestação por técnicas de RA é de 50 anos.

§ 2º As exceções a esse limite serão aceitas baseadas em critérios técnicos e científicos fundamentados pelo médico responsável quanto à ausência de comorbidades da mulher e após esclarecimento ao(s) candidato(s) quanto aos riscos envolvidos para a paciente e para os descendentes eventualmente gerados a partir da intervenção, respeitando-se a autonomia da paciente.

A princípio, o fundamento para impedir que mulheres com idade superior a 50 (cinquenta) anos se submetam à reprodução assistida é de caráter médico, pois, de acordo com a exposição de motivos da Resolução CFM 2.013/2013, dentre os fatores motivadores de sua edição, estavam a “falta de limite de idade para o uso das técnicas e o excessivo número de mulheres com baixa probabilidade de gravidez devido à idade, que necessitam a recepção de óvulos doados”. Vale dizer, para a definição do limite etário, foi considerado, de modo genérico, que a gravidez após os 50 (cinquenta) anos traz riscos para a vida da criança e da gestante − hipertensão na gravidez, diabetes, maior ocorrência de partos prematuros etc. −, pois esta não estaria mais em sua fase reprodutiva. Contudo, conforme restará demonstrado neste estudo, referida previsão normativa padece de inconstitucionalidade, pois impede o exercício dos direitos reprodutivos da pessoa humana e, por consequência, ofende a liberdade de planejamento familiar.

3 DO DIREITO FUNDAMENTAL À LIBERDADE DE PLANEJAMENTO FAMILIAR

A família representa a unidade primária de associação dos indivíduos e, assim, a unidade fundamental da sociedade, na medida em que é entendida como a reunião de pessoas ligadas por vínculos sanguíneos e afetivos, responsável pelo desenvolvimento da personalidade de seus integrantes, bem como pela construção de suas potencialidades em prol da convivência social. Nesse contexto, a Constituição Federal de 1988, no caput de seu art. 226, prevê que a família é a base da sociedade e, por isso, tem especial proteção do Estado.

Em vista disso, cumpre destacar que a Carta Magna de 1988 foi responsável por promover importante transformação no conceito de família, a qual deixou de ser um organismo preordenado a fins externos, para se tornar “um núcleo de companheirismo a serviço das próprias pessoas que a constituem[3]. De fato, não cabe ao Estado-legislador criar o fenômeno familiar, mas apenas tutelar as famílias que se formam naturalmente, de modo a proteger a dignidade de seus membros. Portanto, a família representa o ambiente em que cada pessoa busca a sua própria realização, por meio do relacionamento com outra ou outras pessoas, não se restringindo apenas ao casamento, estrutura familiar instituída pelo Estado.

Nesse passo, a Constituição Federal de 1988, ao adotar o princípio do pluralismo das entidades familiares, reconheceu, ao lado da família conjugal, a união estável (art. 226, § 3º) e a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes (art. 226, § 4º)[4]. Ademais, estabeleceu plena igualdade entre homem e mulher no exercício dos direitos e deveres referentes à sociedade conjugal (art. 226, § 5º), além de garantir iguais direitos e qualificações aos filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, proibidas quaisquer designações discriminatórias (art. 227, § 6º).

Entrementes, para o presente estudo, a previsão constitucional que se destaca é a contida no art. 226, § 7º, a qual consagra o direito fundamental ao planejamento familiar, in verbis:

Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.

De acordo com o texto constitucional, o planejamento familiar é um direito personalíssimo dos casais, responsável por lhes assegurar a liberdade para a organização da família, tanto no aspecto da contracepção e concepção de filhos quanto na definição do modo de vida, de trabalho, de formação moral, cultural e religiosa, de educação dos filhos, dentre outras questões afetas à manutenção da entidade familiar[5]. Seu exercício deve ser orientado pelos princípios da dignidade humana e da paternidade responsável, o que, segundo o então Ministro Ayres Britto, quando do julgamento da ADI 3.510/DF, atribui ao planejamento familiar a seguinte intelecção:

I – dispor sobre o tamanho de sua família e possibilidade de sustentá-la materialmente, tanto quanto de assisti-la física e amorosamente, é modalidade de decisão a ser tomada pelo casal. Mas decisão tão voluntária quanto responsavelmente tomada, tendo como primeiro e explícito suporte o princípio fundamental da “dignidade da pessoa humana”; (inc. III do art. 5º)

II – princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, esse, que opera por modo binário ou dual. De uma parte, para aquinhoar o casal com o direito público subjetivo à “liberdade” (preâmbulo da Constituição e seu art. 5º), aqui entendida como autonomia de vontade ou esfera de privacidade decisória. De outra banda, para contemplar os porvindouros componentes da unidade familiar, se por eles optar o casal, com planejadas condições de bem-estar e assistência físico-afetiva[6].

Nesse passo, constata-se que o direito ao planejamento familiar está diretamente interligado a vários outros direitos que asseguram o livre desenvolvimento da personalidade − qualidade do ente considerado pessoa −, destacando-se os direitos reprodutivos, o exercício da sexualidade, o direito ao próprio corpo, o direito à saúde etc., os quais, de forma conjunta, possibilitam a concretização do projeto parental, o qual também constitui interesse essencial de toda pessoa, vale dizer, é dotado de caráter personalíssimo[7]. Para que referidos direitos se tornem efetivos, deve ser assegurado o seu livre exercício, o que também traz a lume a necessidade de preservação da autonomia privada de cada pessoa e do casal.

Dessa forma, tem-se que o livre exercício do planejamento familiar constitui decorrência direta do princípio da autonomia privada, que diz respeito a um dos componentes primordiais da liberdade, representado pelo poder do indivíduo de autoRregulamentar seus próprios interesses, ou seja, “a capacidade do sujeito de direito de determinar seu próprio comportamento individual[8]. Assim, o planejamento familiar corresponde ao espaço de autonomia delegado pelo ordenamento jurídico aos membros da entidade familiar, a fim de que busquem a ideal conformação da família em prol do pleno desenvolvimento de suas personalidades.

A própria Constituição Federal de 1988, no art. 226, § 7º, dispõe ser vedada qualquer forma coercitiva de intervenção, por parte de instituições públicas ou privadas, na definição do planejamento familiar pelo casal, sendo, contudo, atribuído ao Estado, o dever de propiciar os recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito. Logo, cabe ao Estado a tutela das relações familiares, em que se insere o desenvolvimento de políticas públicas orientadas a viabilizar a plena, livre e consciente construção do projeto parental por todas as pessoas, o que abrange o acesso a métodos preventivos de regulação da fecundidade, a implementação de serviços educacionais relativos ao planejamento reprodutivo, a prevenção e o tratamento de doenças sexualmente transmissíveis, dentre outras medidas e ações.

Em vista disso, a Lei 9.263/1996, responsável por regular o § 7º, do art. 226, da Constituição Federal de 1988, após definir o planejamento familiar como “o conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal” (art. 2º), traça as atividades básicas que devem ser fornecidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) no programa de atenção integral à saúde da mulher, do homem e do casal:

Art. 3º. […]. Parágrafo único. As instâncias gestoras do Sistema Único de Saúde, em todos os seus níveis, na prestação das ações previstas no caput, obrigam-se a garantir, em toda a sua rede de serviços, no que respeita a atenção à mulher, ao homem ou ao casal, programa de atenção integral à saúde, em todos os seus ciclos vitais, que inclua, como atividades básicas, entre outras:

I – a assistência à concepção e contracepção;

II – o atendimento pré-natal;

III – a assistência ao parto, ao puerpério e ao neonato;

IV – o controle das doenças sexualmente transmissíveis;

V – o controle e a prevenção dos cânceres cérvico-uterino, de mama, de próstata e de pênis.

Outrossim, a Lei 9.263/1996 prevê que o planejamento familiar se orienta “por ações preventivas e educativas e pela garantia de acesso igualitário a informações, meios, métodos e técnicas disponíveis para a regulação da fecundidade” (art. 4º, caput), além de ser “dever do Estado, através do Sistema Único de Saúde, em associação, no que couber, às instâncias componentes do sistema educacional, promover condições e recursos informativos, educacionais, técnicos e científicos que assegurem o livre exercício do planejamento familiar” (art. 5º).

Especificamente ao tema relativo às técnicas de reprodução assistida, a Lei 9.263/1996 traz as diretrizes para a sua implementação em seu art. 9º, ao dispor, in verbis:

Art. 9º. Para o exercício do direito ao planejamento familiar, serão oferecidos todos os métodos e técnicas de concepção e contracepção cientificamente aceitos e que não coloquem em risco a vida e a saúde das pessoas, garantida a liberdade de opção.

Parágrafo único. A prescrição a que se refere o caput só poderá ocorrer mediante avaliação e acompanhamento clínico e com informação sobre os seus riscos, vantagens, desvantagens e eficácia.

As técnicas de reprodução assistida constituem formas de ultrapassar a barreira da infertilidade, na medida em que, mediante a manipulação de gametas, promovem a fecundação humana e, por decorrência, o surgimento de uma nova vida. Têm, assim, “o papel de auxiliar na resolução dos problemas de reprodução humana, facilitando o processo de procriação” (item I.1 do anexo da Resolução 2.168/2017 do CFM), o que as tornam instrumentos voltados para a efetividade do planejamento familiar traçado pelos casais que se submetem à sua realização.

Quanto à abrangência e às dissonâncias acerca da denominação das técnicas de reprodução assistida, cumpre transcrever a análise sucinta feita por Dias[9], in verbis:

As expressões “fecundação artificial”, “concepção artificial” e “inseminação artificial” incluem todas as “técnicas de reprodução assistida” que permitem a geração da vida, independentemente do ato sexual, por método artificial, científico ou técnico. A fecundação, resultante de reprodução medicamente assistida, é utilizada em substituição à concepção natural, quando houver dificuldade ou impossibilidade de um ou de ambos de gerar. São técnicas de interferência no processo natural, daí o nome de reprodução assistida. Chama-se de concepção homóloga quando decorre da manipulação de gametas masculinos e femininos do próprio casal. Procedida à fecundação in vitro, o óvulo é implantado na mulher, que leva a gestação a termo. Na inseminação heteróloga, utiliza-se o esperma de um doador fértil. Ocorrendo a concepção com material genético de outrem, o vínculo de filiação é estabelecido com a parturiente. Sendo ela casada, o marido será o pai, por presunção legal, se consentiu com a prática.

Destarte, ao mesmo tempo em que se exige do Estado a garantia do livre exercício do direito ao planejamento familiar − não podendo, dessa forma, criar qualquer empecilho desarrazoado e sem fundamento à autonomia privada dos membros da entidade familiar, impedindo-os de buscar o pleno desenvolvimento de suas personalidades −, também se vê obrigado a fornecer todo o aparato educacional e científico aptos a tornar concreto o planejamento familiar traçado pelas pessoas[10], em que se insere a possibilidade de submissão às técnicas de reprodução assistida, sendo, assim, certo que:

I – a fertilização in vitro é peculiarizado meio ou recurso científico a serviço da ampliação da família como entidade digna da “especial proteção do Estado” (base que é de toda a sociedade);

II – não importa, para o Direito, o processo pelo qual se viabilize a fertilização do óvulo feminino (se natural o processo, se artificial). O que importa é possibilitar ao casal superar os percalços de sua concreta infertilidade, e, assim, contribuir para a perpetuação da espécie humana. Experimentando, de conseguinte, o êxtase do amor-a-dois na paternidade responsável[11].

Todavia, apesar da Constituição Federal de 1988 consagrar que o planejamento familiar é de livre decisão do casal e que cabe ao Estado proporcionar os recursos científicos necessários para o exercício desse direito, notadamente por aqueles que não conseguem atingir a procriação naturalmente, não há, ainda, legislação ordinária que discipline os pressupostos e os procedimentos de reprodução assistida, tendo ficado a cargo do Conselho Federal de Medicina a edição de Resolução para regulamentar as normas técnicas e éticas dos procedimentos. Diante disso, torna-se possível, frente às análises tecidas até então, verificar a inconstitucionalidade da Resolução 2.168/2017 no que diz respeito à limitação etária para que a mulher se candidate à gestação, por meio da adoção de alguma das técnicas de reprodução assistida.

4 PREVISÃO DE IDADE MÁXIMA PARA SUBMISSÃO ÀS TÉCNICAS DE REPRODUÇÃO ASSISTIDA: OFENSA À LIBERDADE DE PLANEJAMENTO FAMILIAR

Com efeito, conforme já manifestado, a Resolução 2.168/2017 do CFM, no item I.3 de seu anexo, prevê a idade de 50 (cinquenta) anos como o limite etário máximo para que as mulheres se submetam às técnicas de reprodução assistida, cujo objetivo, em tese, é evitar o surgimento de problemas de saúde para as crianças e genitoras. Contudo, tal previsão normativa contraria o comando constitucional disposto no art. 226, § 7º, na medida em que impede que os casais em que a esposa/companheira tenha idade superior a 50 (cinquenta) anos − ou mesmo mulheres solteiras que decidam pela maternidade após atingir referida idade − exerçam o seu direito ao planejamento familiar − pois estão impedidos de se socorrerem às técnicas de procriação desenvolvidas pela medicina −, bem como retira do Estado a obrigação de fornecer os recursos científicos necessários para o pleno exercício desse mesmo direito, o que significa proibir os entes estatais de cumprir um dever imposto constitucionalmente.

Aliás, conforme já consignado, a Carta Magna, ao assegurar ao casal e/ou à pessoa o direito à reprodução e ao livre planejamento familiar, também prevê que possam ser adotados métodos artificiais de reprodução na hipótese de haver alguma impossibilidade natural para tanto. Nesse contexto, a procriação é reconhecida como um direito da personalidade, exercitável se e quando a pessoa considerar pertinente e importante no contexto da sua existência[12]. Logo, em face do caráter existencial e fundamental do direito à procriação, não é cabível qualquer interferência indevida, por parte dos entes estatais, no planejamento familiar, por meio de mecanismos e previsões normativas coercitivas de cerceamento ou limitação da atividade reprodutiva do casal de modo arbitrário.

Nesse contexto, a fixação de um critério objetivo que se baseia, apenas, na idade da mulher, menosprezando as suas condições físicas e mentais, além de significar ofensa à sua autonomia privada − por não ter liberdade para decidir o momento em que exercerá o direito de procriação −, também representa verdadeira afronta ao seu direito à saúde, compreendido este como o estado de completo bem-estar psicofísico da pessoa[13]. De fato, é inquestionável que a capacidade de gerar, em regra, constitui aspecto essencial para o pleno desenvolvimento da pessoa, sendo, assim, responsável por promover a sua saúde psíquica, constatação esta, inclusive, que conta com reconhecimento internacional, conforme se verifica no item 7.2 do Programa de Ação da Conferência Internacional do Cairo sobre População e Desenvolvimento (1994)[14], in verbis:

7.2 A saúde reprodutiva é um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não simples a ausência de doença ou enfermidade, em todas as matérias concernentes ao sistema reprodutivo e a suas funções e processos. A saúde reprodutiva implica, por conseguinte, que a pessoa possa ter uma vida sexual segura e satisfatória, tenha a capacidade de reproduzir e a liberdade de decidir sobre quando, e quantas vezes o deve fazer. Implícito nesta última condição está o direito de homens e mulheres de serem informados e de ter acesso a métodos eficientes, seguros, permissíveis e aceitáveis de planejamento familiar de sua escolha, assim como outros métodos, de sua escolha, de controle da fecundidade que não sejam contrários à lei, e o direito de acesso a serviços apropriados de saúde que dêem à mulher condições de passar, com segurança, pela gestação e pelo parto e proporcionem aos casais a melhor chance de ter um filho sadio. De conformidade com definição acima de saúde reprodutiva, a assistência à saúde reprodutiva é definida como a constelação de métodos, técnicas e serviços que contribuem para a saúde e o bem-estar reprodutivo, prevenindo e resolvendo problemas de saúde reprodutiva. Isto inclui também a saúde sexual cuja finalidade é a intensificação das relações vitais e pessoais e não simples aconselhamento e assistência relativos à reprodução e a doenças sexualmente transmissíveis.

Diante disso, considerando que a procriação, para inúmeras pessoas, constitui aspecto essencial para suas vidas, cuja ausência provoca sérios reflexos psicológicos prejudiciais à saúde[15], tem-se que, ao impedir a mulher de realizar o sonho da maternidade pelo único motivo de ter atingido determinada faixa etária, consegue-se preservá-la dos supostos riscos que podem surgir com a gravidez tardia − hipertensão, diabetes, parto prematuro etc. −, mas, por outro lado, provoca-se a instalação de verdadeiro quadro de frustração emocional, apto a privá-la de sua saúde psíquica.

Ademais, ao se constatar a conexão e a interdependência existente entre os direitos à procriação, ao livre planejamento familiar, à saúde e, em suma, à dignidade da pessoa humana, bem como partindo do reconhecimento de que todos esses direitos são consagrados pela ordem constitucional pátria como direitos fundamentais, tem-se que a fixação de um limite etário máximo para a submissão às técnicas de reprodução assistida corresponde a verdadeira ofensa à proibição de retrocesso social.

De fato, por princípio da proibição do retrocesso social ou da não reversibilidade entende-se o impedimento, imposto ao legislador, para que não desconstitua, pura e simplesmente, o grau de concretização até então conferido aos direitos fundamentais. Em outros termos, uma vez “dimanada pelo Estado a legislação concretizadora do direito fundamental social, que se apresenta face a esse direito como uma ‘lei de proteção’ (Schutzgesetz), a acção do Estado, que se consubstanciava num ‘dever de legislar’, transforma-se num dever mais abrangente: o de não eliminar ou revogar essa lei[16]. Assim, após a consagração de determinado direito na ordem constitucional e de sua regulamentação pela legislação infraconstitucional, não pode o legislador retroceder no tratamento da matéria, seja pela revogação de determinada norma sem a sua substituição por norma equivalente ou ampliativa, ou mesmo pela edição de atos normativos que imponham exigências arbitrárias para o seu exercício, pois tal conduta representa verdadeira afronta ao bloco de constitucionalidade, que é a base da ordem jurídica vigente.

Nesse passo, verifica-se que tanto a Constituição Federal quanto a legislação ordinária consagram o livre planejamento familiar e o direito à saúde a todas as pessoas, impondo ao Estado o fornecimento universal e igualitário das ações e serviços para a promoção e proteção desses direitos (art. 196, caput, e art. 226, § 7º, da Constituição Federal; art. 2º, da Lei 8.080/1990; art. 3º, da Lei 9.263/1996). Por decorrência, é sim de responsabilidade do Conselho Federal de Medicina traçar as diretrizes para o perfeito desempenho ético da medicina no que tange à saúde reprodutiva (art. 2º, da Lei 3.268/1957), buscando a sua efetiva concretização. Todavia, definir um marco etário como sendo o limite para o exercício do direito à procriação, impedindo, assim, a realização de um sonho de constituição familiar, representa a negação da previsão constitucional e legal, retrocesso social este que impõe o reconhecimento de sua inconstitucionalidade[17].

Aliás, ainda no que se refere ao extravasamento da competência regulamentar conferida ao Conselho Federal de Medicina, cumpre destacar que a inconstitucionalidade do item I.3, da Resolução 2.168/2017, também reside em seu aspecto formal. De fato, a Lei 3.268/1957, em seu art. 2º, prevê que o CFM é órgão supervisor da ética profissional, cabendo-lhe zelar pelo perfeito desempenho ético-profissional, não podendo disciplinar e, muito menos, limitar o exercício dos direitos fundamentais reconhecidos a todas as pessoas, pois não se referem à atuação da profissão médica, mas sim à promoção da dignidade dos indivíduos.

Em vista disso, cumpre esclarecer que, ao mesmo tempo em que se mostra totalmente arbitrária a definição de um limite etário máximo para a submissão às técnicas de reprodução assistida, tem-se também ser totalmente desarrazoado possibilitar que toda mulher que manifeste interesse na adoção dessas técnicas possa se submeter a sua realização sem a estipulação de qualquer condicionante voltada para o êxito do procedimento. De fato, ao se reconhecer o direito ao livre planejamento familiar, deve-se ter em mente que referido direito não é absoluto, pois seu exercício é limitado pelos princípios da paternidade responsável e da dignidade humana (art. 226, § 7º), bem como pela necessidade de se assegurar a saúde da gestante e da criança ao nascer. Destarte, a medida que se mostra de acordo com os valores constitucionais é a imposição da submissão prévia a exames médicos, a fim de se aferir o real estado de saúde da candidata à gestação e, por decorrência, permitir ao médico emitir a adequada orientação quanto a técnica a ser adotada, ou mesmo desaconselhar o procedimento de reprodução assistida.

Inclusive, a própria Resolução 2.168/2017 do CFM traz as diretrizes para a verificação, no caso concreto, do cabimento ou não das técnicas de reprodução assistida, ao dispor que “podem ser utilizadas desde que exista probabilidade de sucesso e não se incorra em risco grave de saúde para o(a) paciente ou o possível descendente”. Logo, não é a idade da mulher que define a existência ou não de um maior risco obstétrico, mas sim o seu atual estado de saúde, que deve ser aferido caso a caso, conforme, inclusive, excepcionado pela própria Resolução, no § 2º, do item I.3: “As exceções a esse limite serão aceitas baseadas em critérios técnicos e científicos fundamentados pelo médico responsável quanto à ausência de comorbidades da mulher e após esclarecimento ao(s) candidato(s) quanto aos riscos envolvidos para a paciente e para os descendentes eventualmente gerados a partir da intervenção, respeitando-se a autonomia da paciente”.

Por derradeiro, cumpre destacar que o Projeto de Lei 4.892/2012[18], de autoria do Deputado Federal Eleuses Paiva, que tem por objetivo instituir o Estatuto da Reprodução Assistida, não traz, em suas disposições, qualquer limite etário máximo para submissão às técnicas de reprodução assistida, tendo, contudo, traçado diretrizes voltadas ao êxito do procedimento e à saúde da gestante e da criança, conforme se verifica em seus arts. 8º e 40, in verbis:

Art. 8º. O tratamento será indicado quando houver possibilidade razoável de êxito, não representar risco grave para a saúde física ou psíquica dos envolvidos, incluindo a descendência, e desde que haja prévia aceitação livre e consciente de sua aplicação por parte dos envolvidos que deverão ser anterior e devidamente informados de sua possibilidade de êxito, assim como seus riscos e condições de aplicação.

Art. 40. Pode se submeter ao tratamento de reprodução humana assistida qualquer pessoa maior de 18 anos, capaz que, mediante manifestação inequívoca de sua vontade e por indicação médica, deseje ter um filho.

Diante dos argumentos apresentados neste estudo, conclui-se ser necessária a declaração da inconstitucionalidade do item I.3 do anexo da Resolução 2.168/2017, do CFM, pois, ao definir 50 (cinquenta) anos como sendo a idade máxima para que a mulher se submeta às técnicas de reprodução assistida, referido Conselho extravasa o seu poder regulamentar, desconsidera as peculiaridades do caso concreto, menospreza o objetivo existencial dos procedimento de reprodução artificial e, principalmente, impede o exercício do direito fundamental ao livre planejamento familiar.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mediante os fundamentos desenvolvidos ao longo deste estudo, torna-se possível firmar posicionamento no sentido de que a definição de limite etário máximo para que as mulheres se submetam às técnicas de reprodução assistida − inicialmente prevista na Resolução 2.013/2013, mantida pela Resolução 2.121/2015 e, atualmente, prevista no item I.3 do anexo da Resolução 2.168/2017, todas do CFM −, contraria o comando constitucional disposto no art. 226, § 7º, na medida em que impede, de modo objetivo, que a mulher que já tenha atingido idade superior a 50 (cinquenta) anos possa exercer o seu direito ao livre planejamento familiar, pois não poderá se utilizar das técnicas de procriação desenvolvidas pela medicina, desconsiderando, portanto, o seu real estado de saúde, critério este que, aliás, deve ser observado pelo médico independentemente da idade da candidata à gestante, por ser consentâneo à promoção do direito à saúde, bem como por respeitar os princípios da paternidade responsável e da dignidade humana.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA JUNIOR, Vitor de Azevedo. Parentalidade tardia e reprodução assistida: os limites do direito ao planejamento familiar no ordenamento jurídico brasileiro. Revista de Direito Privado, v. 54, p. 279-313, abr./jun. 2013.

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DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

NETTO LÔBO, Paulo Luiz. Entidades Familiares Constitucionalizadas: para além do numerus clausus. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Família e a Cidadania: o novo CCB e a vacatio legis. Belo Horizonte: IBDFAM/Del Rey, 2002. p. 89-107.

PIOVESAN, Flávia; BUQUETTI, Wilson Ricardo. A proteção dos direitos reprodutivos no direito internacional e no direito interno. In: PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 332-360.

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SAMPAIO, Aurisvaldo. Contratos de Plano de Saúde: regime jurídico e proteção do sujeito mais fraco das relações de consumo (Biblioteca de Direito do Consumidor, v. 40). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. 2. ed., 3. tir. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

VILLELA, João Baptista. Família hoje. In: BARRETO, Vicente (Org.). A Nova Família: problemas e perspectivas. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 71-86.

Notas de Rodapé

[1] Doutor e Mestre em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professor dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (TJMG).

[2] Quanto ao escopo do Conselho Federal de Medicina (CFM), destaca-se o contido no art. 2º, da Lei 3.268/1957, in verbis: “O conselho Federal e os Conselhos Regionais de Medicina são os órgãos supervisores da ética profissional em tôda a República e ao mesmo tempo, julgadores e disciplinadores da classe médica, cabendo-lhes zelar e trabalhar por todos os meios ao seu alcance, pelo perfeito desempenho ético da medicina e pelo prestígio e bom conceito da profissão e dos que a exerçam legalmente”.

[3] VILLELA, João Baptista. Família hoje. In: BARRETO, Vicente (Org.). A Nova Família: problemas e perspectivas. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 71-86, p. 71.

[4] Ressalte-se o posicionamento doutrinário e jurisprudencial que defende que as modalidades de entidades familiares previstas no texto constitucional não encerram numerus clausus. De acordo com Netto Lôbo, in verbis: “Os tipos de entidades familiares explicitados nos parágrafos do art. 226 da Constituição são meramente exemplificativos, sem embargo de serem os mais comuns, por isso mesmo merecendo referência expressa. As demais entidades familiares são tipos implícitos incluídos no âmbito de abrangência do conceito amplo e indeterminado de família indicado no caput. Como todo conceito indeterminado, depende de concretização dos tipos, na experiência da vida, conduzindo à tipicidade aberta, dotada de ductibilidade e adaptabilidade”. (NETTO LÔBO, Paulo Luiz. Entidades Familiares Constitucionalizadas: para além do numerus clausus. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Família e a Cidadania: o novo CCB e a vacatio legis. Belo Horizonte: IBDFAM/Del Rey, 2002. p. 89-107, p. 95).

[5] Quanto à definição de planejamento familiar, cumpre destacar o Princípio 8 do Programa de Ação da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, aprovado na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, reunida no Cairo, no período de 5 a 13.09.1994, in verbis: “Toda pessoa tem direito ao gozo do mais alto padrão possível de saúde física e mental. Os estados devem tomar todas as devidas providências para assegurar, na base da igualdade de homens e mulheres, o acesso universal aos serviços de assistência médica, inclusive os relacionados com saúde reprodutiva, que inclui planejamento familiar e saúde sexual. Programas de assistência à saúde reprodutiva devem prestar a mais ampla variedade de serviços sem qualquer forma de coerção. Todo casal e indivíduo têm o direito básico de decidir livre e responsavelmente sobre o número e o espaçamento de seus filhos e ter informação, educação e meios de o fazer”. Disponível em: <http://www.unfpa.org.br/Arquivos/relatorio-cairo.pdf>. Acesso em: abr. 2019.

[6] STF. ADI 3510. Rel. Min. Ayres Britto, Tribunal Pleno, j. em 29.05.2008.

[7] De acordo com Piovesan e Buquetti, “Os direitos reprodutivos fundamentam-se no reconhecimento do direito básico dos indivíduos de decidir livremente e de maneira informada sobre sua vida reprodutiva e exercer o controle voluntário e seguro de sua fecundidade. Os direitos reprodutivos incluem os direitos das mulheres e dos homens de assumir decisões no campo da reprodução, livres de discriminação, coerção e violência, assim como o direito de dispor dos níveis mais altos de saúde sexual e reprodutiva, tendo direito à autodeterminação no exercício da sexualidade. Todas as pessoas têm assim o direito fundamental à saúde sexual e reprodutiva” (PIOVESAN, Flávia; BUQUETTI, Wilson Ricardo. A proteção dos direitos reprodutivos no direito internacional e no direito interno. In: PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 332-360, p. 354).

[8] SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. 2. ed., 3. tir Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 154. Sobre o significado e amplitude da autonomia privada, Sarmento completa, in verbis: “tem como matriz a concepção de ser humano como agente moral, dotado de razão, capaz de decidir o que é bom ou ruim para si, e que deve ter liberdade para guiar-se de acordo com estas escolhas, desde que elas não perturbem os direitos de terceiros nem violem outros valores relevantes da comunidade” (Ibidem, p. 174).

[9] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 4. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 329.

[10] De acordo com Piovesan e Buquetti, “a plena observância dos direitos reprodutivos impõe ao Estado um duplo papel. De um lado, demanda políticas públicas voltadas a assegurar a toda e qualquer pessoa um elevado padrão de saúde sexual e reprodutiva, o que implica garantir acesso a informações, meios, recursos, dentre outras medidas. Por outro lado, exige a omissão do Estado em área reservada à decisão livre e responsável dos indivíduos acerca de sua vida sexual e reprodutiva, de forma a vedar a interferência estatal, coerção, discriminação e violência em domínio da liberdade, autonomia e privacidade do indivíduo” (PIOVESAN, Flávia; BUQUETTI, Wilson Ricardo. A proteção dos direitos reprodutivos no direito internacional e no direito interno. In: PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 332-360, p. 355).

[11] STF. ADI 3.510. Rel. Min. Ayres Britto. Tribunal Pleno. j. em 29.05.2008.

[12] Nesse sentido, destaca-se o contido no item 7.3 do Programa de Ação da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, aprovado na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, reunida no Cairo, no período de 5 a 13.09.1994, in verbis: “Tendo em vista a definição supra, os direitos de reprodução abrangem certos direitos humanos já reconhecidos em leis nacionais, em documentos internacionais sobre direitos humanos e em outros documentos de acordos. Esses direitos se baseiam no reconhecido direito básico de todo casal e de todo indivíduo de decidir livre e responsavelmente sobre o número, o espaçamento e a oportunidade de seus filhos e de ter a informação e os meios de assim o fazer, e o direito de gozar do mais alto padrão de saúde sexual e de reprodução. Inclui também seu direito de tomar decisões sobre a reprodução, livre de discriminação, coerção ou violência, conforme expresso em documentos sobre direitos humanos. No exercício desse direito, devem levar em consideração as necessidades de seus filhos atuais e futuros e suas responsabilidades para com a comunidade. A promoção do exercício responsável desses direitos por todo indivíduo deve ser a base fundamental de políticas e programas de governos e da comunidade na área da saúde reprodutiva, inclusive o planejamento familiar. Como parte de seus compromissos, toda atenção deve ser dispensada à promoção de relações mutuamente respeitosas e eqüitativas entre os sexos, particularmente, à satisfação de necessidades educacionais e de serviço de adolescentes para capacitá-los a tratar sua sexualidade de uma maneira positiva e responsável. A saúde reprodutiva é motivo de frustração de diversos povos do mundo por causa de fatores tais como: níveis inadequados de conhecimento da sexualidade humana e informação e serviços inadequados ou de pouca qualidade na área da saúde reprodutiva; a predominância de um comportamento sexual de alto risco; práticas sociais discriminatórias; atitudes negativas com relação à mulher e à jovem; o limitado poder que têm muitas mulheres e moças sobre suas próprias vidas sexuais e reprodutivas. Os adolescentes são particularmente vulneráveis por causa de sua falta de informação e de acesso a serviços pertinentes na maioria dos países. Homens e mulheres mais idosos têm diferentes problemas de saúde reprodutiva e sexual, muitas vezes tratados de maneira inadequada”.

[13] De acordo com o contido na Introdução da Constituição da Organização Mundial da Saúde (1946), a saúde é compreendida como “estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade”. Disponível em: <http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/OMS-Organiza%C3%A7%C3%A3o-Mundial-da-Sa%C3%BAde/constituicao-da-organizacao-mundial-da-saude-omswho.html>. Acesso em: abr. 2019.

[14] De acordo com Piovesan e Buquetti, “a Conferência do Cairo sobre População e Desenvolvimento de 1994 estabeleceu relevantes princípios éticos concernentes aos direitos reprodutivos. Ineditamente, 184 Estados reconheceram os direitos reprodutivos como direitos humanos, concebendo o direito a ter controle sobre as questões relativas à sexualidade e à saúde sexual e reprodutiva, assim como a decisão livre de coerção, discriminação e violência, como um direito fundamental” (PIOVESAN, Flávia; BUQUETTI, Wilson Ricardo. A proteção dos direitos reprodutivos no direito internacional e no direito interno. In: PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 332-360, p. 333).

[15] Nesse sentido, leciona Sampaio, in verbis: “Sem dúvida, a infertilidade deve ser vista como uma questão de saúde, merecendo proteção jurídica nessa dimensão. Não se pode negar ser a capacidade reprodutiva um elemento importante da vida humana, tanto quanto outros aspectos da sua saúde, capaz de refletir fortemente no seu equilíbrio psíquico. A realidade é que grande parte das pessoas vê na geração de filhos o verdadeiro sentido da sua vida, algo que as completa e dá sentido à sua existência. A evolução as programou para isto, o que resulta na importância que atribuem à preservação do seu patrimônio genético, por intermédio dos descendentes” (SAMPAIO, Aurisvaldo. Contratos de Plano de Saúde: regime jurídico e proteção do sujeito mais fraco das relações de consumo (Biblioteca de Direito do Consumidor, v. 40). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 284-285).

[16] QUEIROZ, Cristina. Direitos Fundamentais Sociais: funções, âmbito, conteúdo, questões interpretativas e problemas de justiciabilidade. Coimbra: Coimbra, 2006. p. 103.

[17] Conforme leciona Almeida Júnior: “Em uma sociedade plural e democrática, em que a dignidade assume posição central, descartar que, cada vez mais, as pessoas deixam para mais tarde o projeto reprodutivo é desrespeitar a autonomia e reforçar um modelo de família tradicional. Em uma época em que os ‘jovens’ avós são recorrentemente convocados a desempenhar um papel mais efetivo na criação, sustento, educação e cuidado com seus netos, seria desarrazoado, por outro lado, banir que exercitem as mesmas funções, mas com filhos biologicamente vinculados e através das técnicas de reprodução assistida. Um exercício responsável da parentalidade prescinde de origem, raça, sexo, cor e idade, e, por isso, deve-se garantir que os direitos ligados à reprodução e, portanto, de constituição familiar possam ser exercidos sem preconceitos e livre de discriminações” (ALMEIDA JUNIOR, Vitor de Azevedo. Parentalidade tardia e reprodução assistida: os limites do direito ao planejamento familiar no ordenamento jurídico brasileiro. Revista de Direito Privado, v. 54, p. 279-313, abr./jun. 2013).

[18] Em consulta ao site da Câmara dos Deputados, verifica-se que o Projeto de Lei 4.892/2012 foi recebido pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania em 21.02.2013. Em 11.02.2015, foi determinado o seu apensamento ao Projeto de Lei 115/2015. E em 24.05.2017, foi determinado o seu apensamento ao Projeto de Lei 7.591/2017, aguardando, no momento, a sua apreciação pelo Plenário. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=564022>. Acesso em: abr. 2019.