O DIREITO À LIBERDADE DE AMOR HOMOSSEXUAL: DA INTERDIÇÃO MORAL DO DESEJO À PROCLAMAÇÃO DE UM EFETIVO DIREITO FUNDAMENTAL

THE RIGHT TO SAME-SEX RELATIONSHIP: THE MORAL INTERDISM OF THE DESIRE UP UNTIL PROCLAMATION OF AN EFFECTIVE FUNDAMENTAL LAW

DOI: 10.19135/revista.consinter.00009.05

Edna Raquel Hogemann[1] – https://orcid.org/0000-0003-3276-4526

Thiago Serrano Pinheiro de Souza[2] – https://orcid.org/0000-0002-8159-8918

Resumo: Procura estabelecer os fundamentos éticos para que o desejo seja recepcionado, respeitado e tutelado pelo ordenamento jurídico em detrimento de uma pretensa moral vigente, a partir de uma leitura principiológica da Constituição Federal de 1988 e da própria estruturação do ser como humano. Desse pressuposto, o desejo (homo)sexual deverá ser exercido com liberdade por sujeitos capazes, existindo, pois, um direito à liberdade de amor (afeto) homossexual como norma de personalidade (atributo que compõe a esfera íntima do humano) e norma fundamental (liberdade de exercício contra ingerências indevidas do Estado e de outros cidadãos). Do ponto de vista metodológico, trata-se de estudo reflexivo de feição dialética apoiada em fontes doutrinárias e jurisprudencial, com suporte interdisciplinar teórico em Foucault e Freud.

Palavras-chave: Afeto. Homossexualidade. Direito Fundamental. Liberdade.

Abstract: It seeks to establish the ethical foundations so that the desire is received, respected and protected by the legal order to the detriment of a prevailing moral, starting from a principled reading of the Federal Constitution of 1988 and the very structuring of being as human. From this assumption, the sexual desire (homo) should be exercised freely by capable individuals, and there is a right to homosexual freedom of love (affection) as a norm of personality (attribute that composes the inner sphere of the human) and fundamental norm freedom from undue interference by the State and other citizens). From the methodological point of view, this is a reflexive study of a dialectic feature supported by doctrinal and jurisprudential sources, with theoretical interdisciplinary support in Foucault and Freud.

Keywords: Affection. Homosexuality. Fundamental Right. Liberty.

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por objeto, no contexto da evolução da sociedade contemporânea brasileira, o estabelecimento dos fundamentos axiológicos para que o desejo seja recepcionado, respeitado e tutelado pelo ordenamento jurídico em detrimento da moral, a partir de uma leitura principiológica da CRFB/1988 e da própria estruturação do ser como humano. Diante dessa premissa, o desejo homossexual deverá ser exercido com liberdade por sujeitos capazes, existindo, pois, um direito à liberdade de amor homossexual como norma de personalidade e norma fundamental.

Não obstante avanços significativos que resultam de luta persistente e organizada contra preconceitos os mais desumanos, subsistem evidentes lacunas quanto à legislação referente ao exercício do desejo homoafetivo, no direito brasileiro.

No entendimento dessa problemática, vale sublinhar que o ordenamento jurídico e seus respectivos institutos tiveram origem no pensamento liberal, que conferia ênfase a valores como iniciativa privada e acumulação de bens materiais, na base do capitalismo como sistema econômico e no liberalismo como sistema de governo da sociedade. Diante disso, algumas dificuldades foram encontradas ao longo da pesquisa, em decorrência da apropriação do presente elemento ético pelo sistema de Direito. Assim, apenas o desejo material foi contemplado nas normativas de inspiração burguesa.

Desta forma, o Estado burguês promoveu o controle do sexo, legitimando-o dentro do matrimônio com finalidade eminentemente procriativa. Logo, o sistema civil, por meio da moral, interditou as sexualidades insubmissas ao capital, impondo norma ao exercício da sexualidade, retirando-a, artificialmente, do campo do desejo, possibilitando condenações judiciais das consideradas perversões.

Porém, como o dinamismo da sociedade é dado de realidade irretorquível, movimentos sociais duramente conquistaram transformações, que se expressam contraditoriamente no cotidiano.

Entre outras mudanças, merece relevo a luta pelo reconhecimento de direitos dos homossexuais, que vêm a lume em busca de sua proteção, como pessoas titulares de prerrogativas conferidas internacionalmente aos humanos, com destaque à dignidade, à liberdade, à isonomia, à não discriminação e à busca pela felicidade, o que faz emergir um verdadeiro direito fundamental à liberdade de amar.

Não obstante essa evolução, a produção científica jurídica e a prática nos Tribunais ainda se ressentem de estudos sistemáticos acerca de tema de tão elevada relevância, uma vez que o reconhecimento jurídico da união homoafetiva pelo STF, no ano de 2011, ainda não foi transportado à seara legislativa.

1 Noções Preliminares acerca do Desejo e suas limitações quanto ao sujeito ético

Do desejo eis que nasce o amor, desejo esse que surge inconscientemente no ser humano não possuindo limites, regras, conhecimento ou sentido, urgindo ser exercido de forma plena. E o amor é a abertura para o outro, em decorrência de um desejo sem destinatário certo. Mas a moral interditou o desejo sexual e, consequentemente, impediu a liberdade de exercício do amor. Determinou, assim, a maneira correta na utilização dos prazeres, os quais foram retirados da ordem do desejo e colocados na ordem da cultura, diante de um artificialismo em sua prática, cuja finalidade apenas se prestava aos interesses do capital: corpos úteis ao trabalho e ao consumo.

Diante da apropriação do desejo pela moral, houve o enquadramento do amor erótico: o sexo com fins procriativos e o amor surgindo na relação entre homem e mulher, pois a única biologicamente apta a gerar frutos. Nesse sentido, todas as demais formas de exercício do desejo sexual foram interditadas e deslegitimadas, o que não ocorreu apenas com a homossexualidade, sendo recente a decisão do Conselho Nacional de Justiça, que desautorizou os cartórios brasileiros em realizarem o registro do casamento poliafetivo[3].

Enclausuraram o desejo homossexual, anulando-o à clandestinidade. Ao preterirem a sexualidade anormal, retiraram-na da ordem dos desejos, desvalorizando aquilo que se encontra no âmbito mais íntimo do ser humano. Por meio de construções equivocadas, a cultura pintou um quadro em que a sexualidade humana somente se legitimaria no quarto de um homem e de uma mulher, unidos pelo sagrado matrimônio e com o único objetivo concernente à procriação. E todas as outras formas de desejo foram relegadas para fora dessa moldura, o que as tornou periféricas e marginalizadas. Nesse sentido, é de se perceber o contingenciamento das sexualidades heterodiscordantes.

Para Foucault, na constituição do sujeito ético não foi levado em consideração o conhecimento acerca de seu desejo, constituindo um dos males da razão a sua limitação, como se comprova na Antiguidade e no Cristianismo, por meio da chamada temperança sexual.

De acordo com Foucault, existe uma diferença substancial em relação à moral grega e a moral cristã, quanto ao uso dos prazeres. Enquanto que na moral grega, o homem, através de um ato voluntário, realiza o domínio de si, na moral cristã ele renuncia a si através de um código. Assim, na moral grega existe uma relação interna do sujeito para com ele mesmo, já na moral cristã existe uma relação externa do sujeito com o outro, por isso a dissimulação. Na moral grega, dentro do conceito de estética da existência, seria belo o homem dominar a si, ser temperante, dominar seus desejos e realizá-los de maneira comedida. De outra sorte, na moral cristã a renúncia de si irá proporcionar um julgamento de valor em relação aos desejos que o homem esconde, bem como aos objetos do prazer que são acessados, estimulando a conduta celibatária, a partir da apologia à virgindade, dentro do conceito de hermenêutica do desejo.

De outra sorte, quis a natureza que a realização do ato sexual, fosse associada a um prazer, orientado pelo desejo. Desejo esse que nasce da falta, ou seja, surge em desejar aquilo que falta ao homem, pois se nada lhe falta, desejo também não há de existir[4].

Segundo a filosofia grega, seria no terreno sexual que o humano concilia o instinto animal com a racionalidade que adquiriu dos deuses[5], numa interação que se reflete na psicologia, no social, no Direito, dentre outras ciências. Em todas as espécies, o sexo restringe-se à procriação, o que não deve corresponder aos seres dotados de inteligência, que o utilizam como fonte de prazer e elevação.

Na concepção freudiana[6], para a biologia a existência de necessidades sexuais no ser humano, expressa-se na suposição de haver um instinto sexual, tal qual existe nos animais, por meio da libido. Já a opinião popular possui ideias bem definidas acerca da natureza e das características desse instinto sexual, sendo ele ausente na infância e aparecendo na puberdade com a maturação do corpo, ao se revelar na irresistível atração que um sexo exerce sobre o outro. De acordo com o autor: “Mas temos motivos para ver nessas informações um quadro infiel da realidade; a um exame mais atento, elas se mostram plenas de erros, imprecisões e conclusões precipitadas[7].

Sendo o objeto sexual, a pessoa da qual vem a atração sexual e a meta sexual, a ação pela qual o instinto impele, Freud indica vários desvios no tocante aos dois e a relação entre eles e a norma suposta. Para o autor:

A teoria popular do instinto sexual tem uma bela correspondência na fábula poética da divisão do ser humano em duas metades – homem e mulher – que buscam unir-se novamente no amor. Resulta em grande surpresa, então, saber que existem homens para os quais o objeto sexual não é a mulher, mas o homem, e mulheres para as quais esse objeto não é o homem, mas a mulher[8].

Psicanaliticamente, muitos tentaram explicar a homossexualidade, entendida como sexualidade invertida. Uns a associaram a degeneração, considerada como uma patologia não traumática ou infecciosa. Porém, segundo Freud[9], os homossexuais não são degenerados; a uma, pois a inversão é encontrada em pessoas que não exibem outros desvios sérios da norma; a duas, pois a homossexualidade apresenta-se, muitas vezes, em pessoas que não possuem capacidade de funcionamento prejudicada, pelo contrário, possuem elevado desenvolvimento intelectual e cultura ética; a três, pois a homossexualidade era um fenômeno frequente, quase uma instituição dotada de funções importantes, em povos antigos, que estavam no apogeu de sua cultura; dentre outras.

Para outros a homossexualidade possuía caráter inato, pelo menos em relação às pessoas absolutamente invertidas[10], e isso com fundamento nas ponderações feitas por eles próprios, ou seja, de que em nenhum momento da vida o seu instinto sexual demonstrou outra tendência. Freud, mais uma vez, refuta o caráter inato da homossexualidade; a uma, pois em muitos homossexuais (também absolutos) pode-se demonstrar que houve, bem cedo na vida, uma impressão de natureza sexual que deixou, como consequência duradoura, a inclinação sexual; a duas, pois em outros casos, é possível indicar influências externas propiciadoras ou inibidoras, que levaram, época mais distante ou mais recente, à fixação da inversão (experiências em guerra ou prisões, perigo das relações heterossexuais, celibato, fraqueza sexual, entre outras); a três, pois a homossexualidade pode ser eliminada por sugestão hipnótica, o que não aconteceria se fosse um fenômeno inato[11]; dentre outras.

Nesse cenário, a alternativa inato-adquirida se mostra insuficiente ou não cobre todas as circunstâncias presentes na homossexualidade. Apesar da psicanálise, até Freud, não ter apresentado um esclarecimento decisivo acerca da homossexualidade, acabou desvelando o mecanismo psíquico de sua gênese. Foi constatado que os homossexuais passam, nos primeiros anos da infância, por uma fase breve e intensa de fixação na mulher (geralmente a mãe), e, após superá-la, identificam-se com a mulher e tomam a si próprios como objeto sexual, ou seja, partindo do narcisismo, buscam homens jovens e semelhantes a si mesmos, que querem amar, como a mãe os amou. Curioso notar, que muitos homossexuais não são absolutamente insensíveis aos encantos de uma mulher, mas constantemente transpunham a excitação despertada por um objeto masculino. Assim, acabavam repetindo, durante a vida, o mecanismo pelo qual sua inversão havia surgido. Segundo Freud, o anseio compulsivo por outro homem revela-se, ao homossexual, uma incessante fuga de qualquer uma mulher[12].

Importante registrar, que a investigação psicanalítica não se propõe, de forma contundente, à separação dos homossexuais das outras pessoas, considerando-os um grupo especial de seres humanos, pois não há dúvidas de que todas as pessoas sejam capazes de uma escolha homossexual de objeto, a fazendo de maneira inconsciente. A decisão sobre o comportamento sexual definitivo ocorre somente após a puberdade e é o resultado de uma série de fatores ainda não apreendidos em seu conjunto, alguns de natureza constitucional e outros de natureza acidental, sendo a vigência da escolha narcísica de objeto e a manutenção do significado erótico da zona anal suas características essenciais. Entre as influências acidentais na escolha do objeto, existe a frustração (amedrontamento sexual precoce), bem como os efeitos da presença dos dois genitores na criação do homossexual. Por fim, deve-se dissociar inversão do objeto sexual da mescla de características sexuais do sujeito[13], até porque coexistem o homoerótico no sujeito, que se sente e se comporta como mulher e o homoerótico no objeto, que é viril e apenas troca o objeto feminino por um do mesmo sexo. De acordo com Freud:

[…] Chama a nossa atenção o fato de havermos concebido a ligação entre o instinto sexual e o objeto sexual como mais estreita do que é na realidade. O conhecimento obtido em casos considerados anormais nos diz que neles há apenas, entre instinto sexual e objeto sexual, uma soldagem, que arriscamos não enxergar devido à uniformidade da configuração normal, em que o instinto parece já trazer consigo o objeto. Assim, somos levados a afrouxar a ligação entre instinto e objeto que há em nossos pensamentos. É provável que o instinto sexual seja, de início, independente de seu objeto, e talvez não deva sequer sua origem aos atrativos deste[14].

Em síntese, para Freud instinto sexual (comportamento a que se direciona) e objeto sexual (sujeito a quem se atrai) constituem situações diferentes, pois o instinto não traz consigo o objeto, pelo contrário, parecem ser independentes um do outro. Com isso, a soldagem entre instinto e objeto restringe-se a outro universo, em que se evidencia a falta de conhecimento.

2 O Desejo, a construção da sexualidade e sua Apropriação pelo Fenômeno Jurídico

Cumpre destacar, que a construção da sexualidade e do desejo, tanto das minorias quanto das maiorias, decorre da descoberta do sujeito do inconsciente, que revela que o desejo é inconsciente e que o sujeito é também desejo, pois onde se encontra o desejo está o sujeito[15]. Em outro sentido, o ser humano não se realiza sem dar sentido aos seus atos, constituídos culturalmente. Nesta perspectiva, o sexo seria o terreno onde natureza e cultura se encontraram pela primeira vez, e mais, o sexo seria o ponto de partida de toda cultura[16].

Porém, para Foucault[17]: “Nada daquilo que ele [o homossexual] é, no fim das contas, escapa à sua sexualidade”, e, com isso, tentar caber numa padronização moralmente construída, constitui um mecanismo frustrante de inclusão. Ao invés de buscarem inclusão a partir do mesmo, os homossexuais começaram um processo de inclusão a partir do oposto. Com isso, ocorreu a busca pelo encaixe perfeito, dentre a novel categoria criada (homossexualidade como sexualidade invertida), em que muitos o fizeram pelo diagnóstico psiquiátrico, alguns pela sanção penal e a maioria pela incorporação dessa invenção médico-legal como meio de auto-identificação[18].

De outra sorte, caso fosse possível estabelecer uma sociedade pura, desprovida de construtos repressivos, todas as formas autônomas de desejo sexual poderiam coexistir em harmonia, pois não haveria espaço à moral limitadora imposta pela classe dominante, que tem receio de possibilitar a transformação da conduta sexual como instrumento de exercício do desejo, ao invés de estar circunscrita, apenas, à procriação de corpos úteis ao capital e ao consumo, sem falar da transferência patrimonial decorrente da legitimidade de filhos, provenientes do sagrado matrimônio.

Diante do controle do exercício sexual pelo Estado burguês, por meio do sistema civil, refutaram-se as sexualidades insubmissas ao capital, ou seja, todos os prazeres sem frutos. Multiplicaram-se as condenações judiciais das perversões, quando o ordenamento jurídico impôs norma ao exercício sexual, inserindo no discurso moral a restrição da sexualidade à genitalidade, retirando-a, artificialmente, do universo do desejo.

De acordo com Foucault[19], em relação à evolução do comportamento sexual humano, o sujeito ocidental, durante três séculos, foi estimulado a relatar tudo quanto fosse possível acerca de sua conduta sexual. A partir da época clássica, houve uma intensificação e correspondente valorização do discurso sexual, acarretando ao homem efeitos múltiplos no que concerne à tentativa de deslocamento, reorientação e modificação de seu próprio desejo, em contexto cuidadosamente analítico.

Portanto, o discurso sobre a sexualidade humana encontra-se baseado no regime poder-saber-prazer, a fim de explicar como o poder consegue chegar às condutas sexuais íntimas e individuais. O poder tenta percorrer os caminhos das formas raras ou quase imperceptíveis do desejo, penetrando e controlando o prazer cotidiano, por meio da recusa, bloqueio e desqualificação de um lado, mas também de incitação e intensificação, constituindo, desta maneira, as técnicas polimorfas do poder[20].

Foucault afirma que o Estado, a partir do poder que lhe é investido, preocupa-se, dentre outras questões, pela forma como cada cidadão utiliza-se de seu sexo. Evidencia-se a necessidade, que o Estado saiba o que se passa com o sexo dos cidadãos e o uso que dele fazem, bem como que cada um seja capaz de controlar sua prática[21], evitando a proliferação das chamadas sexualidades insubmissas ao capital, pela ausência de procriação, demonstrando que o discurso moral na verdade trata-se de um discurso estatal.

A partir do discurso apresentado, multiplicaram-se as condenações judiciais das perversões; vinculou-se a irregularidade sexual à doença mental (dentre elas a homossexualidade); da infância à velhice foi definida uma norma de desenvolvimento sexual e foram cuidadosamente caracterizados todos os desvios possíveis; organizaram-se controles pedagógicos e tratamentos médicos; moralistas e médicos propagaram o discurso de abominação; estruturou-se uma sexualidade centrada na genitalidade, rechaçando-se os prazeres sem frutos, constituindo, desta forma, como preocupações elementares: assegurar o povoamento, reproduzir força de trabalho, reproduzir a forma das relações sociais, proporcionando uma sexualidade economicamente útil e politicamente conservadora[22].

Nesse cenário, as interdições sexuais tinham natureza jurídica. Construíram-se normativas em que apenas o matrimônio heterossexual fora contemplado com regulamentações artificiais, em que a transferência patrimonial fosse operacionalizada de forma correta, legítima e confiável. Conceitos como a virgindade e a fidelidade da mulher transformaram-se de regras morais em regras jurídicas no Código Civil brasileiro de 1916[23].

Não apenas a homossexualidade faz parte desse rol. Toda e qualquer forma estranha à heterossexualidade matrimonializada padeceu (e ainda padece) do estigma de sexualidade periférica. Dessa forma, é possível lembrar das uniões de fato, havidas entre o homem e a mulher na sociedade brasileira antes da CRFB/1988. Tais uniões não eram reconhecidas pelo Direito e sofriam o preconceito social. Somente depois da promulgação da Constituição foi que houve o reconhecimento jurídico das uniões estáveis, dispensando-se as núpcias para que os envolvidos obtivessem direitos. Direitos ainda tímidos. Somente em 1996[24], foi dispensado o exame de esforço comum para meação do patrimônio entre companheiros, e apenas em 2017[25], foi declarada a inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC, que trazia situação de diminuição de direitos sucessórios ao companheiro sobrevivente em comparação com o cônjuge viúvo.

Assim, a evolução da sexualidade heterodiscordante trouxe à evidência que a sociedade determinou padrões de conduta, baseados numa moral desarrazoada, cujo único objetivo era o de perpetuar a ordem de estruturas econômicas e valores conservadores. Atualmente, as possibilidades de variantes de orientação sexual e de estabelecimento de relacionamentos plurais constituem o patrimônio inalienável dos direitos fundamentais, tuteladas, implícita ou explicitamente, pelo Direito em importantes normas, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a maioria das constituições democráticas ocidentais[26].

A Declaração Universal dos Direitos do Homem estabelece como seu princípio fundamental, que todo ser humano nasce livre e igual em dignidade e direitos, impedindo a diminuição de prerrogativas legais por parte dos Estados, em decorrência de características peculiares da personalidade do sujeito, que não violem a esfera jurídica de outro cidadão. Consagra-se, desta maneira, a igualdade e a não discriminação como resultado do sexo, da orientação sexual e da identidade de gênero do sujeito.

Portanto, a Declaração Universal, a Carta das Nações Unidas e vários tratados de direito internacional determinam obrigações para os Estados, a fim de materializar os mencionados princípios, cabendo a eles: proteger os indivíduos contra violência, tortura e tratamento cruel, desumano ou degradante; promulgar leis contra o ódio e a discriminação; criar sistemas destinados à apuração e julgamento de atos homofóbicos e transfóbicos; permitir asilo de indivíduos perseguidos em decorrência de sua orientação sexual; revogar leis que criminalizem ou exponham a conduta sexual heterodiscordante privada entre indivíduos capazes; promulgar leis outorgando direitos às parcerias entre pessoas do mesmo sexo; e, promover uma cultura de igualdade e diversidade, que englobe o respeito aos direitos dos indivíduos homossexuais e transgêneros.

3 O Papel da Jurisprudência diante da Materialização do Direito Fundamental à Livre Preferência Sexual

O desejo, como visto, não foi precisamente recepcionado pelo fenômeno jurídico nacional, uma vez que se trata de traço inerente ao comportamento humano, sendo, pois, indispensável a apropriação de seu conteúdo orgânico, disposto por outras ciências. Sem a análise do desejo pela Filosofia, Sociologia e Psicanálise[27], o exercício jurisdicional de seu reconhecimento e proteção, resta esvaziado e, muitas vezes, calcado no imaginário pertencente ao julgador, devendo assim, a CRFB/1988 – com destaque para os arts. 1º, III e 3º, IV – ser aplicada em detrimento de subjetivismos atrelados à consciência do julgador, ante a omissão do legislador infraconstitucional.

Não resta dúvida, de que o sistema jurídico brasileiro atravessa o fenômeno da judicialização, que significa que questões relevantes do ponto de vista moral estão sendo decididas pelo STF e demais órgãos judiciários, em caráter final. Isso se deve ao fato de que os atores políticos estão, em certa medida, preferindo outorgar ao STF a função de decidir acerca de questões polêmicas, nas quais exista desacordo moral na sociedade. Barroso cita a decisão de reconhecimento das uniões homoafetivas como sendo um exemplo da relatada atuação do Supremo[28], ao clamar a liberdade de afeto homossexual como efetivo direito fundamental.

Vale destacar que:

A materialização do direito fundamental ao afeto impõe uma pesquisa detalhada, uma vez que, juridicamente, o presente direito vem sendo colocado em segundo plano, ante a impossibilidade de aferir claramente sua presença (ou sua ausência) nas relações humanas travadas socialmente. Os questionamentos acerca da responsabilização e da consequente reparação envolvendo relações desprovidas de amor encontram-se na ordem do dia, exigindo do exegeta uma visão mais técnica do fenômeno. (HOGEMANN; SERRANO, 2013, p. 02)

De acordo com Barroso, o STF tem a legitimidade para proteger e promover os direitos fundamentais, o que possibilita, na presente via, sua atuação contramajoritária, em defesa dos elementos essenciais da Constituição, sempre em favor da democracia[29]. Assim, as escolhas políticas devem ser realizadas pelos órgãos eleitos competentes, legitimando-se ao STF o caráter residual de decidir questões principiológicas, com base em argumentos de razão pública. Tal razão é estruturada a partir de fundamentações, que pessoas com formação política e moral diversas podem acatar[30], excluindo-se, pois, as de caráter religioso ou ideológico[31].

Havendo um desacordo moral, como ocorreu com o reconhecimento das parcerias homoafetivas, o papel do Direito deverá ser o de assegurar que cada pessoa possa viver sua autonomia da vontade e suas crenças, esvaziando visões filosóficas e religiosas diversas, formadas a partir de pré-compreensões do intérprete[32]. Nesse sentido, o princípio da unidade da Constituição determina que o intérprete não pode escolher arbitrariamente qualquer norma, uma vez não existir hierarquia entre normas constitucionais, fazendo com que ele precise demonstrar, de forma argumentativa robusta, à luz do caso concreto, mediante ponderação e proporcionalidade, que a solução acolhida realiza mais adequadamente o desiderato constitucional, naquela situação específica[33]. Além disso, qualquer decisão exarada pelo Supremo Tribunal necessita acolher a pluralidade de pensamentos e ideários humanos, a fim de desenvolver fundamentação que possa suprir, ao menos em parte, as reações adversas ao seu conteúdo, o que evita, em regra, o seu prematuro esvaziamento.

Desta forma, os Tribunais Constitucionais desempenham três grandes papéis: contramajoritário, quando invalidam atos dos poderes eleitos; representativo, quando atendem demandas sociais não satisfeitas pelas instâncias políticas; e, iluminista, quando promovem avanços civilizatórios independentemente das maiorias políticas circunstanciais. A postura iluminista deve ser realizada com cautela em momentos excepcionais, porém a proteção das minorias – dentre elas, os homossexuais – não pode ficar ao alvedrio de votação majoritária ou pesquisa de opinião[34].

Em síntese, conforme bem demonstra Barroso, um dos traços mais marcantes do atual constitucionalismo é a ascensão do Poder Judiciário e, consequentemente, das Cortes Constitucionais[35]. Porém, os juízes somente devem atuar de forma criativa – com restrições, frise-se – quando estejam em jogo direitos fundamentais ou a preservação dos procedimentos democráticos, devendo, fora dessas situações, acatar as escolhas legítimas feitas pelo legislador, assim como ser deferentes com o exercício razoável de discricionariedade pelo administrador, abstendo-se de impor sua valoração política de ordem subjetiva[36].

Diante da doutrina pós-positivista, o julgador deve buscar ir além da legalidade estrita, sem perder de vista o direito objetivo; empreender uma leitura moral da Constituição e das leis, mas sem recorrer a categorias metafísicas. Tal busca ocorre por meio do reconhecimento de normatividade aos princípios, além do desenvolvimento de uma Teoria dos Direitos de Personalidade e dos Direitos Fundamentais edificadas sobre a dignidade da pessoa humana, acarretando uma reaproximação entre Direito e ética[37].

Nesse sentido, defende-se o direito dos sujeitos homossexuais em ostentar para a comunidade sua identidade sexual e desejo, desfrutar de seus afetos e buscar a felicidade, a partir do reconhecimento da diversidade humana, para não mais se submeterem à clandestinidade. Atualmente, assiste-se ao progresso gradativo da superação do preconceito e da discriminação em relação aos homossexuais e suas parcerias, tanto no âmbito nacional, como no internacional. Com isso, diante da omissão legislativa a respeito, o STF foi instado a pronunciar-se em relação às mencionadas parcerias, que convivem de forma pública, contínua, duradoura e com o objetivo de formar uma família, caracterizadas pelo afeto e pelo projeto de vida em comum. Ao não atrair tal conduta ao seu espectro normativo, o ordenamento resta ameaçado de esvaziamento como instrumento de disciplina das condutas humanas.

É relevante sublinhar que a união homoafetiva decorre de orientação homossexual concreta, fato da vida, e, portanto, não podendo ser renegada pelo Direito, pois diz respeito à esfera privada da existência de cada um. Nesse passo, as relações homossexuais existem e continuarão a existir, independentemente do reconhecimento jurídico pelo Estado ou, até mesmo, de sua proibição.

O sistema normativo, desde suas origens, atraiu a responsabilidade de observar as condutas sociais, regulamentá-las e, por conseguinte, legitimá-las. Não sendo as uniões homoafetivas propiciadoras de desrespeito a direito de terceiros, elas se afiguram como verdadeiro dado concreto, configurando, portanto, situações legitimadas e relativas à esfera privada de cada um. Além do mais, o intérprete constitucional, ao analisar o caso concreto, deve ser movido por argumentos de ordem pública e não por concepções particulares[38], sejam religiosas ou morais, uma vez que o papel do Estado e do sistema jurídico é o de acolher todos que são vítimas de preconceito e intolerância[39], para que possam exercer seu desejo, alcançando, assim, a felicidade.

No caso brasileiro, coube ao Supremo Tribunal Federal, ao interpretar a Carta Constitucional, reconhecer a união estável homoafetiva, decorrente do direito fundamental à preferência sexual, implícito em seu art. 3º, inc. IV[40], bem como do direito à liberdade e à igualdade de afeto, valor inerente à dignidade humana.

A presente análise encontra respaldo, a partir do ajuizamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277/DF[41], cujo objeto era a interpretação conforme a Constituição do art. 1.723 do CC[42]. Pleiteava-se, então, a declaração de que uma das vertentes hermenêuticas do artigo em exame, encontrava-se em rota de colisão com a Constituição.

Diante da configuração dos requisitos dispostos acima, construiu-se a concepção de direitos subjetivos de natureza homoafetiva, resultantes da autonomia da vontade, materializando-se a possibilidade de buscá-los judicialmente, uma vez que configuram situação jurídica ativa. Não se trata, nessa quadra da história, de simples proibição do preconceito aos homossexuais, mas da proclamação do direito fundamental ao livre exercício do desejo sexual, que constitui, pois, verdadeira norma constitucional impermeável à mudança.

A CRFB/1988 comporta, em sua estrutura normativa, o direito fundamental à preferência sexual, em seu art. 3º, IV, o qual decorre da nítida opção política realizada pelo poder constituinte originário em reconhecer e respeitar a diversidade sexual, em contraponto à sua padronização, coibindo qualquer forma de discriminação. Não se pode, na presente perspectiva, retirar a escolha do sujeito em relação a sua sexualidade, uma vez que tal condição é inerente à esfera de sua personalidade, constituindo, assim, bem jurídico digno de tutela.

Portanto, o direito fundamental ao livre exercício do desejo sexual tem origem constitucional, correspondendo a um bem inerente à personalidade humana, decorrente do valor que alimenta todo ordenamento jurídico, qual seja, a dignidade do homem. Para o Ministro relator a preferência sexual constitui um fator de afirmação e elevação do sujeito:

De autoestima no mais elevado ponto da consciência. Autoestima, de sua parte, a aplainar o mais abrangente caminho da felicidade, tal como positivamente normada desde a primeira declaração norte-americana de direitos humanos (Declaração de Direitos do Estado da Virgínia, de 16.06.1768) e até hoje perpassante das declarações constitucionais do gênero. Afinal, se as pessoas de preferência heterossexual só podem se realizar ou ser felizes heterossexualmente, as de preferência homossexual seguem na mesma toada: só podem se realizar ou ser felizes homossexualmente[43].

Por ser considerado um Estado Democrático de Direito, o Brasil não deve apenas assegurar ao sujeito o direito de escolha entre várias alternativas possíveis, mas também legitimar condições objetivas, para que tais escolhas sejam concretizadas no plano real. Dessa forma, para um indivíduo de orientação homossexual, a alternativa não é entre estabelecer relações com pessoas do mesmo sexo ou com pessoas de sexo diferente, mas entre abster-se de sua orientação sexual, ou vivê-la clandestinamente.

O termo homoafetividade, que substituiu expressões como homossexualismo e homossexualidade, é impregnado do vínculo de afeto e de solidariedade entre pessoas do mesmo sexo. Pelo direito de não ter deveres ilegítimos, as funções sexuais devem ficar ao livre-arbítrio de cada um, indicando que o indivíduo maior e capaz tem autonomia para estabelecer relações afetivas com quem bem quiser, sendo este também maior e capaz. Tal liberdade impede ao Direito, proibir o factual, natural e axiologicamente não regulamentável.

Vale notar, que o § 3º do art. 226, CRFB[44] parecia criar verdadeiro embaraço à inclusão da entidade familiar homoafetiva na esfera normativa. É que o mencionado parágrafo faz literal alusão aos gêneros homem e mulher, para reconhecimento da união estável. Segundo o Ministro relator, somente o caput do mencionado artigo constitucional foi contemplado com a proteção estatal; ou seja, a entidade familiar gozaria da proteção, independentemente de ter sido constituída por casais heterossexuais ou homossexuais.

Em que pese a jurisprudência do STF não considerar a existência, no ordenamento jurídico pátrio, de inconstitucionalidade de normas originárias[45], há que se fazer leitura de algumas delas, como acontece com o § 3º do art. 226, à luz dos princípios, que estruturam o Estado Democrático de Direito; dos valores, que compõem o substrato fundamental do conjunto jurídico, bem como de outras normas, que possuem, também, o status constitucional. A Teoria dos Direitos Fundamentais propicia a interpretação conforme à Constituição, tanto das normas infraconstitucionais, como das normas constitucionais originárias, em respeito à coerência e integridade do sistema de direito.

Nesse passo, com o reconhecimento da união estável pelo STF, o casamento entre pessoas do mesmo sexo foi incorporado à discussão na esfera jurídica. Resultou, desse dado de realidade, a legitimação a fim de regulamentar o plano fático, pois a relação homoafetiva consta do catálogo biológico humano, apesar de configurar socialmente, comportamento sexual restrito à minoria. Além disso, o movimento homossexual defendeu outra característica, mais radical e não palatável ao senso comum, através da universalização do modelo de família às sexualidades periféricas.

A possibilidade de casamento acarreta legitimação das relações afetivas entre pessoas do mesmo sexo. Não se deve cogitar que o mero reconhecimento do Estado tenha o poder de transformar tais interações em relacionamentos aceitáveis, pois, como exposto, o Direito não tem o poder de constituí-las; apenas de reconhecê-las. Assim, o casamento constituir-se-ia como ato de vontade, na esfera de autonomia de cada indivíduo, que pode optar pela união estável, a ser respeitada e reconhecida, tanto pelo Direito quanto pela sociedade.

Nesse sentido, a Resolução 175 do CNJ, com base na decisão do STF em análise, decisão tal proferida com eficácia vinculante à administração pública e aos demais órgãos do Poder Judiciário, proíbe às autoridades competentes a recusa de habilitação, celebração de casamento civil ou de conversão de união estável em casamento entre pessoas de mesmo sexo.

Na presente perspectiva, uma das principais consequências da extensão do regime da união estável e do casamento às parcerias estabelecidas entre pessoas do mesmo sexo reside na sua legitimação como entidade familiar. Não se trata, pois, de aproximação artificial, eis que se encontram nas uniões homoafetivas os mesmos elementos considerados determinantes para o reconhecimento de entidades familiares[46].

Na presente realidade social, afirma Ayres Brito: “É a perene postura de reação conservadora aos que, nos insondáveis domínios do afeto, soltam por inteiro as amarras desse navio chamado coração[47]. Resta claro, que a postura conservadora cristalizada pelo legislador, não mais se ajusta ao tratamento do tema, cabendo ao Poder Judiciário a releitura dos princípios e valores constitucionais, a fim de albergar legitimidade a presente situação fático-jurídica, e, desta forma, desprender as amarras e permitir que o navio siga o seu caminho, como o faz o desejo.

CONCLUSÃO

Em síntese, a proposta do presente artigo é de que o desejo seja recepcionado pelo ordenamento jurídico em detrimento de uma pretensa moral vigente, a partir de uma leitura principiológica da CRFB/1988 e da própria estruturação do ser como humano (filosofia e psicanálise) e, portanto, sendo respeitado através de tutela jurídica. Diante dessa premissa, o desejo (homo) sexual deverá ser exercido com liberdade, existindo, pois, um direito à liberdade de amor (afeto) homossexual como norma de personalidade (bem que compõe a esfera íntima do humano) e norma fundamental (liberdade de exercício contra ingerências indevidas do Estado e de outros cidadãos).

Defende-se que o desejo homossexual também seja considerado um direito humano reconhecido, declarando-se como fundamental a liberdade de amor entre pessoas do mesmo sexo, tratando-se, pois, de como esse desejo foi apropriado pelo fenômeno jurídico. Ao Direito brasileiro coube a não regulamentação, o fomento à invisibilidade e, em alguns momentos históricos, a criminalização da homossexualidade. Ao Direito, como norma imposta, coube a observação social e o dado cultural foi levado a efeito.

Desta forma, o desejo passaria a ser apropriado pelo sistema jurídico, pois caso se reconheça que o homem, na verdade, é sujeito de desejo, esse desejo não deve sofrer um processo de modulação, bem como o desejo homossexual, que faz parte desse rol, fazendo nascer o direito ao desejo como direito fundamental, inerente aos princípios da liberdade, da isonomia e da busca da felicidade, a partir da realização pessoal dos indivíduos e de suas próprias configurações existenciais, o que impõe o reconhecimento, pelo ordenamento jurídico, de maneiras de exercício de amor diversas da concepção tradicional. Assim, tais princípios protegem o ser humano em face de tentativas do Estado de enquadrar a sua liberdade amorosa em modelos pré-concebidos pela legislação.

Importante ressaltar, que o Código Civil brasileiro de 2002 não proibiu o casamento entre pessoas do mesmo sexo em seu art. 1.521, que dispõe acerca dos impedimentos matrimoniais. Nem que pese a CRFB, em seu art. 226, § 3º, parecer indicar na direção de que a união estável é aquela estabelecida entre um homem e uma mulher, em sentido contrário encontra-se o art. 3º, IV, que proíbe toda e qualquer forma de discriminação na sociedade brasileira. Mesmo que não se sustente a inconstitucionalidade de normas constitucionais originárias, há que ponderar através de interpretação teleológica conforme a Constituição, o que foi efetivamente realizado no julgamento da ADI 4.277.

Não há justificativa plausível à exclusão da possibilidade de constituição de família, por pessoas que vivem uma parceria homoafetiva, seja sob o regime jurídico da união estável ou do casamento. Tais uniões são fatos lícitos e relativos à vida privada de cada um, cabendo ao Estado respeitar a diversidade, fomentar a tolerância e contribuir para a superação do preconceito e da discriminação. Ademais, a identidade homossexual não pode constituir obstáculo à livre realização de um direito fundamental, pois o caráter de um ser humano não se restringe ao exercício de sua sexualidade.

Cuidar da relação entre Desejo, Afeto e Direito exige maestria por parte do Estado e dos instrumentos humanos que realizam a ordem jurídica estatal, pois a moral interditou o Desejo, mas é o Desejo que leva ao Afeto de Amor, sendo, pois, o Afeto de Amor inerente à personalidade humana. Nesse cenário, somente a partir do respeito ao livre exercício do amor há de ser materializada a dignidade do ser humano, por meio da liberdade, do tratamento isonômico e da busca pela felicidade, fazendo florescer o mais puro dos direitos humanos: o transcendente direito fundamental ao amor.

REFERÊNCIAS

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Notas de Rodapé

[1] Pós-Doutora em Direito-UNESA. Professora permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNESA/RJ. Coordenadora da Escola de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Coordenadora do Grupo Institucional de Pesquisa Direitos Humanos e Transformação Social.

[2] Doutor em Direito-UNESA. Professor de graduação e Pós-Graduação em Direito Civil da UNESA/RJ e da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Membro do Grupo Institucional de Pesquisa Direitos Humanos e Transformação Social.

[3] O Plenário do CNJ decidiu, em 26.06.2018, que os cartórios brasileiros não podem registrar uniões poliafetivas, formadas por três ou mais pessoas, em escrituras públicas. A maioria dos conselheiros considerou que esse tipo de documento atesta um ato de fé pública e, portanto, implica o reconhecimento de direitos garantidos a casais ligados por casamento ou união estável, apenas.

[4] FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade 3. O cuidado de si. 3. ed. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque. Rev. Tec. José Augusto Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz & Terra, 2017.p. 53.

[5] ARISTÓTELES. Ética a nicômaco. São Paulo: Atlas, 2009. p. 7.

[6] FREUD, Sigmund. Obras completas: três ensaios sobre a teoria da sexualidade, análise fragmentária de uma histeria (“O caso Dora” ) e outros textos (1901-1905). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. v. 6, p. 20.

[7] Ibidem, p. 21.

[8] Idem.

[9] FREUD, op. cit., p. 25-26.

[10] Para Freud: “São absolutamente invertidas, ou seja, seu objeto sexual pode ser apenas do mesmo sexo, enquanto o sexo oposto não é jamais objeto de anseio sexual para elas, deixando-as frias ou mesmo lhes causando aversão. Sendo homens, essa aversão os torna incapaz de perfazer o ato sexual normal ou de nele sentir prazer” (FREUD, op. cit., p. 22).

[11] FREUD, op. cit., p. 27.

[12] FREUD, op. cit., p. 34.

[13] FREUD, op. cit., p. 34-35.

[14] FREUD, op. cit., p. 37.

[15] PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores do direito de família. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 74.

[16] BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. p. 55.

[17] FOUCAULT, op. cit., p. 43.

[18] MISKOLCI, Richard. Pânicos morais e controle social: reflexões sobre o casamento gay. Cadernos Pagu, Unicamp, v. 28, p. 5, 2007.

[19] FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade 3. O cuidado de si. 3. ed. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque. Rev. Tec. José Augusto Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz & Terra, 2017. p. 25-26.

[20] FOUCAULT, op. cit., p. 17.

[21] FOUCAULT, op. cit., p. 30.

[22] FOUCAULT, op. cit., p. 40.

[23] Não é possível esquecer a disposição do art. 219, inc. IV do CC/1916, que considerava erro essencial apto a gerar a anulação do casamento, a ignorância do defloramento da mulher pelo marido.

[24] Art. 5º da Lei 9.278/1996.

[25] Cf. voto do Ministro Luís Roberto Barroso no RExt. 878.694/MG. Disponível em: <http://www. stf.gov.br>.

[26] BAUMAN, op. cit., p. 73.

[27] De acordo com Barroso, surge a cultura pós-positivista, num ambiente em que a solução de problemas jurídicos não se encontra evidenciado na norma. A separação entre Direito e moral, e Direito e outras ciências resta esvaziado, necessitando construir a decisão valendo-se da filosofia moral (busca da justiça e outros valores), da filosofia política (busca de legitimidade democrática e de fins públicos que promovam o bem comum) e de outras ciências sociais aplicadas, como a economia e a psicologia (BARROSO, Luís Roberto. A Judicialização da Vida e o Papel do Supremo Tribunal Federal. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 96).

[28] Segundo o autor: “No Brasil, o fenômeno assumiu proporção ainda maior, em razão da constitucionalização abrangente e analítica – constitucionalizar é, em última análise, retirar um tema do debate político e trazê-lo para o universo das pretensões judicializáveis – e do sistema de controle de constitucionalidade vigente entre nós, em que é amplo o acesso do STF por via de ações diretas” (BARROSO, op. cit., p. 46).

[29] BARROSO, op. cit., p. 54.

[30] Sustein propõe, em relação ao momento de construção da Constituição, a observância de acordos não completamente fundamentados. Esses acordos, às vezes, dependem da aceitação de abstrações em meio a sérios desacordos a respeito de casos específicos. Assim, aqueles que têm opiniões conflitantes sobre homossexualidade e igualdade sexual podem aceitar um princípio abstrato de vedação da discriminação (SUNSTEIN, Cass R. Acordos constitucionais sem teorias constitucionais. Revista de Direito Administrativo, v. 246, p. 79-94, 2007, p. 79).

[31] BARROSO, op. cit., p. 60-61.

[32] BARROSO, op. cit., p. 64.

[33] BARROSO, op. cit., p. 65.

[34] BARROSO, op. cit., p. 177.

[35] A judicialização da política é fenômeno contemporâneo, concernente às nações democráticas, sendo uma de suas finalidades, a efetivação dos direitos fundamentais (HIRSCHL, Ran. The new constitucionalism and the judicialization of pure politics wordwide. Fordham Law Review, v. 75, n. 2, p. 721, 2006. Available at SSRN: http://ssrn.com/abstract=951610). O Poder Judiciário, a fim de concretizá-los, está ou deveria estar aparelhado com instrumentos hábeis e, mais, construções ideológicas pautadas na tolerância, a partir do respeito à pluralidade de opiniões; no abandono dos grandes relatos e na convivência com as aporias do sistema, buscando dirimi-las (NIETO, Alejandro; GORDILLO, Agustín. Las limitaciones del conocimiento jurídico. Madrid: Trotta, 2003. p. 61-62).

[36] BARROSO, op. cit., pp. 84-85.

[37] BARROSO, op. cit., p. 97.

[38] Segundo Barroso: “(…) O intérprete constitucional deve ser consciente de suas preconcepções, para que possa ter autocrítica em relação à sua ideologia e autoconhecimento no tocante a seus desejos e frustrações. Seus sentimentos e escolhas pessoais não devem comprometer o seu papel de captar o sentimento social e de inspirar-se pela razão pública” (BARROSO, Luís Roberto. Diferentes mas iguais: o reconhecimento jurídico das relações homoafetivas no Brasil. Revista de Direito do Estado, n. 5, p. 167-196, jan./mar. 2007, p. 7-8. Disponível em: <http://pfdc.pgr.mpf.gov.br>. Acesso em: 17 nov. 2012).

[39] BARROSO, op. cit., p. 6-7.

[40]Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: IV – promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

[41] Importante destacar, que a ADPF 132/RJ foi encampada pela ADI 4.277/DF. Nas palavras do Ministro relator: “(…) Conheço da ADPF 132-RJ como ação direta de inconstitucionalidade. Ação cujo centrado objeto consiste em submeter o art. 1.723 do CC brasileiro à técnica da interpretação conforme a constituição. O que vem reprisado na ADI 4.277-DF, proposta pela Exma. Sra. Vice-Procuradora Geral da República, Débora Duprat, no exercício do cargo de Procurador Geral, e a mim redistribuída por prevenção”.

[42]Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”.

[43] Cf. voto do Ministro Ayres Brito na ADI 4.277/DF, p. 20. Disponível em: <http://www.stf.gov.br>.

[44]Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”.

[45] ADI 815-3, ajuizada pelo Governo do Estado do Rio Grande do Sul, na qual sedimentou, a jurisprudência pátria, a impossibilidade de uma norma originariamente constitucional, ser, ela própria, inconstitucional. Disponível em: <http://www.stf.gov.br>.

[46] BARROSO, Luís Roberto. Diferentes mas iguais: o reconhecimento jurídico das relações homoafetivas no Brasil. Revista de Direito do Estado, n. 5, p. 167-196, jan./mar. 2007, p. 28-29. Disponível em: <http://pfdc.pgr.mpf.gov.br>. Acesso em: 17 nov. 2012.

[47] Cf. voto do Ministro Ayres Brito na ADI 4.277/DF, p. 4. Disponível em: <http://www.stf.gov.br>.