A ASSISTÊNCIA DO ADVOGADO NA INVESTIGAÇÃO PRELIMINAR: GARANTIA FUNDAMENTAL OU MERA FORMALIDADE?
THE ATTORNEY’S ASSISTANCE IN PRELIMINARY INVESTIGATION: FUNDAMENTAL WARRANTY OR FORMALITY?
DOI: 10.19135/revista.consinter.00009.01
Daniela Carvalho Almeida da Costa[1] – https://orcid.org/0000-0002-5331-4375
Fabiana Oliveira Bastos de Castro[2] – https://orcid.org/0000-0001-8053-873X
Resumo: O presente trabalho tem como escopo estudar se a presença do advogado na investigação preliminar constitui garantia fundamental do investigado. Para tanto, inicialmente, foram traçadas considerações acerca direito fundamental, a origem e sua evolução. Em seguida, foi analisado a importância da profissão do advogado na defesa dos direitos dos oprimidos. Logo depois, foi explicitado o que se entende pela investigação preliminar no direito brasileiro. Ao final, chegou-se à conclusão de que a presença e participação ativa do advogado na fase de investigação criminal constitui garantia fundamental da pessoa humana, sobretudo por se coadunar com os preceitos constitucionais de implementação das garantias fundamentais.
Palavras-chave: Direito Fundamental. Assistência de advogado. Investigação preliminar.
Abstract: This work has the objective to study whether the lawyer’s presence during the preliminary investigation constitutes a fundamental guarantee of the investigation. For this purpose, initially, considerations were drawn on fundamental rights, the origin and evolution. Then, it was analyzed the importance of the lawyer’s profession in defending the rights of the oppressed. Soon after, it was explained what is meant by the preliminary investigation in Brazilian law. In the end, we came to the conclusion that the presence and active participation of the lawyer in the criminal investigation phase is a fundamental guarantee of the human person, especially because it consistent with the constitutional principles of implementation of fundamental guarantees.
Keywords: Fundamental Right. Assistance of Counsel. Preliminary Investigation.
1 INTRODUÇÃO
O tema denominado “A assistência de advogado na investigação preliminar: Garantia Fundamental ou Mera Formalidade?” está diretamente relacionada aos direitos e garantias fundamentais, sendo o seu estudo de grande relevância social e jurídica.
A investigação preliminar, no direito brasileiro, atua como filtro da ação penal, coletando indícios de materialidade e autoria, demonstrando a justa causa que autoriza (ou não) a propositura da respectiva ação penal, serve, também, para sustentar medidas investigativas que violam a intimidade e a dignidade da pessoa humana (a exemplo: quebra do sigilo bancário e telefônico, busca e apreensão de bens, inviolabilidade do domicílio, prisão provisória), bem como a restrição da liberdade com a execução de prisões cautelares ou provisórias (flagrante, preventiva e temporária) lastreadas em provas unilateralmente produzidas e colhidas durante a fase procedimental da inquirição policial.
Contudo, apesar de a investigação preliminar ser instrumento importante para o exercício da persecução criminal do Estado contra o potencial infrator das normas jurídicas positivadas, trata-se de um procedimento administrativo, meramente informativo, desenvolvido unilateralmente pela autoridade policial e destinado a fornecer elementos de indício de autoria e materialidade para fins de instrumentalizar a instauração do processo ou não, de forma que renega, em sua essência, a participação da defesa na construção do convencimento.
Assim, estando o direito ao devido processo legal, à propriedade, à liberdade, à intimidade, assegurados como direitos fundamentais da pessoa humana, conforme preconizado na Constituição da República Federativa do Brasil, e, em contrapartida, a possibilidade dos atos praticados na investigação preliminar (ou procedimento de inquérito policial) interferirem sobremaneira em direitos e garantias individuais, estuda-se a possibilidade de atuação do advogado na defesa dos interesses do investigado e a prática da investigação criminal defensiva.
O fundamento do estudo basear-se-á no advento da Lei 13.245/2016, que alterou o art. 7º, inc. XXI, “a” do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei 8.906/1994), bem como o Projeto de Lei do Novo Código de Processo Penal, que, respectivamente, estabeleceu o direito básico do advogado no acompanhamento do depoimento de seu cliente na investigação preliminar, bem como a possibilidade de formular quesitos e apresentar razões e prevê a figura da investigação criminal defensiva. Por conseguinte, tornando relevante a discussão acerca da obrigatoriedade da presença de defesa técnica na fase pré-processual como uma garantia fundamental do investigado (indiciado, suspeito ou qualquer outra denominação que se dê).
Dessa forma, por meio da revisão da literatura existente e disponível, pretende-se explorar os estudos acerca do Direito Processual Penal e Direito Constitucional no direito brasileiro, especialmente mediante consulta de livros, dissertações e monografias publicadas por autores brasileiros e estrangeiros, inicia-se explicando sobre os sistemas processuais penais, contextualizando a evolução história do modelo inquisitivo ao neoinquisitivo, apontando as críticas ao sistema vigente, e norteando o sistema ideal para a efetivação dos direitos.
Em seguida, averigua-se as características da investigação policial preliminar às raias da legitimidade exigida no Estado Democrático de Direito, abordando, de forma sucinta, a importância do advogado para a defesa dos direitos e garantias fundamentais, bem como seu papel de atuação na sociedade contemporânea brasileira. Por fim, é enfrentado o tema diretamente, indicando as correntes doutrinárias e jurisprudenciais a respeito da obrigatoriedade da presença do advogado na investigação preliminar como direito fundamental do suspeito, a fim de assegurar o cumprimento da lei, e, sobretudo garantir a ampla defesa.
Com atenção especial para a aplicabilidade dos direitos humanos na política criminal e a proteção do acusado/indiciado como elemento intransponível da legitimidade da persecução penal no Estado Democrático de Direito foram dadas as conclusões do trabalho e do estudo realizado no sentido de ser possível a participação da defesa na produção de convencimento da investigação preliminar.
2 DESENVOLVIMENTO
O processo é uma série ou sequência de atos conjugados que se realizam e se desenvolvem no tempo, destinando-se à aplicação da lei penal no caso concreto. Feita tal premissa, cuidou a doutrina em identificar três sistemas processuais penais.
O modelo inquisitivo, que surgiu do direito canônico, durante os tempos sombrios da Idade Média, e consistia em uma espécie de tribunal religioso (Tribunal do Santo Ofício) destinado a perseguição e condenação de todos aqueles que eram contra os dogmas pregados pela Igreja Católica, na forma como alumia o historiador Vicentino (2010, p. 302):
A inquisição surgiu na Europa durante o período medieval com o objetivo de perseguir e condenar hereges. Foi oficializada em 1231, quando o Papa Gregório IX convocou uma comissão de dominicanos para apurar os casos de heresia e de bruxaria. […] A tortura foi amplamente utilizada na inquisição desde o período medieval, juntamente com o confisco de bens, a exposição pública e, em casos mais graves em que não havia confissão e/ou arrependimento, a morte.
Partindo desses pressupostos, o sistema inquisitorial espalhou-se pelos Tribunais civis de toda a Europa (e em consequência os países por eles colonizados, a exemplo do Brasil)[3], tendo como principal característica a reunião em uma só pessoa (ou órgão) as funções de acusar, defender e julgar. No modelo inquisitorial, existe ampla discricionariedade para a produção de provas com o objetivo de atingir uma pretensa verdade real absoluta, admitindo-se, pois, quaisquer métodos e meios para a descoberta dessa verdade.
Explana Lima (2011a, p. 09):
[…] Dotado de amplos poderes instrutórios, o magistrado pode proceder a uma completa investigação do fato delituoso. No sistema inquisitorial, o acusado é mero objeto do processo, não sendo considerado sujeito de direitos. Na busca a verdade material, admitia-se que o acusado fosse torturado para que uma confissão fosse obtida.
Tal sistema é duramente criticado pela doutrina, visto que, a confusão de interesses reunidas em um só órgão, indubitavelmente, compromete a imparcialidade do julgador, e a defesa, a liberdade do acusado, refletindo, desse modo, na legitimidade do uso do poder estatal. Neste sentido, Lopes Jr. (2001a, p. 67):
A imparcialidade corresponde exatamente a essa posição de terceiro que o Estado ocupa no processo, por meio do juiz, atuando com órgão supra-ordenado às partes ativa e passiva. O juiz é sujeito da relação processual, mas não é parte. Ademais de ser impartial deve ser imparcial, pois na sua atuação deverá despojar-se de influências de caráter subjetivo que o impeçam de resolver com exatidão e justiça.
Inclusive, saliente-se que o modelo inquisitivo contrapõe ao axioma do garantismo penal da necessária distância do julgador da acusação, consubstanciado na máxima nullum judicium sine accusatione[4]. Sob esse prisma, explica Ferrajoli (2010, p. 464-465):
Chamarei eqüidistância ao afastamento do juiz dos interesses das partes em causa; independência à sua exterioridade ao sistema político e em geral a todo sistema de poderes; naturalidade à determinação de sua designação e à determinação das suas competências para escolhas sucessivas à comissão do fato submetido ao seu juízo. Esses três perfis da imparcialidade do juiz requerem garantias orgânicas que consistem do mesmo modo em separações: a imparcialidade requer a separação institucional do juiz da acusação pública; a independência requer a sua separação institucional dos outros poderes do Estado e por outro lado a difusão da função judiciária entre sujeitos não dependentes um do outro; a naturalidade requer exclusivamente a sua separação de autoridades comissionadas ou delegadas de qualquer tipo e a predeterminação exclusivamente legal das suas competências. E supérfluo acrescentar, por fim, que a imparcialidade, além das garantias institucionais que a suportam, forma um hábito intelectual e moral, não diverso do que deve presidir qualquer forma de pesquisa e conhecimento.
Sem embargo, verifica-se que a figura do juiz inquisitor está em desconformidade com o postulado das garantias processuais, na medida em que é severamente questionada a sua imparcialidade diante da confusão existente entre o julgador e acusador. O sistema acusatório, por sua vez, ao promover a separação das funções de acusar, defender e julgar, atribuindo um órgão diferente para cada atividade persecutória. O juiz somente julga, não participa na produção de provas nem defende o acusado[5], bem como atua de forma desinteressada pelo resultado final do processo em julgamento.
Assim, a principal diferenciação do sistema inquisitório para o modelo acusatório, é que o julgador só age quando provocado (terceiro imparcial), ou seja, mantém-se distante das funções de acusar e defender. Como aponta Pacelli (2011, p. 09):
De modo geral, a doutrina costuma separar o sistema processual inquisitório do modelo acusatório pela titularidade atribuída ao órgão da acusação: inquisitorial seria o sistema em que as funções estariam reunidas em uma só pessoa (ou órgão), enquanto o acusatório seria aquele em que tais papéis estariam reservados a pessoas (ou órgãos) distintos. A par disso, outras características do modelo inquisitório, diante de sua inteira superação no tempo, ao menos em nosso ordenamento, não oferecem maior interesse, caso do processo verbal e em segredo, sem contraditório e sem direito de defesa, no qual o acusado era tratado como objeto do processo.
Ainda, com relação às provas, no sistema acusatório puro (ou ideal), não é possível a realização de provas pelo juiz, haja vista que contradiz com os seus postulados, embora haja entendimento diverso no sentido de que o princípio da verdade real admite tal medida em casos excepcionais. Encabeça esse posicionamento Avena (2011, p. 39), para quem: “[…] o juiz possui o dever de apurar os fatos com o intuito de descobrir como estes efetivamente ocorreram, de forma a permitir que o jus puniendi seja exercido em relação àquele que praticou ou concorreu para a infração penal e somente contra essa pessoa”.
Contudo, em verdade, esse entendimento coaduna-se ao conceito de sistema processo penal misto, o qual possibilita ao juiz o controle das provas em situações específicas previstas na lei, ao tempo que se destina a assegurar a imparcialidade do julgador.
O inquérito policial sendo um procedimento administrativo, meramente informativo, desenvolvido unilateralmente pela autoridade policial e destinado a fornecer elementos de indício de autoria e materialidade para fins de instrumentalizar a instauração do processo ou não.
A evolução do sistema processual brasileiro permite a conclusão de que a ordem constitucional foi adotar o sistema acusatório, à mercê de não conter na constituinte menção expressa neste sentido. Denota-se isto por causa do imenso zelo da Constituição Federal de 1988 com as garantias e liberdades individuais, visualizados pelos inúmeros princípios e direitos fundamentais expressos (contraditório, separação entre acusação e órgão julgador, publicidade, ampla defesa, presunção de inocência etc.).
O vigente Código de Processo Penal inaugurado em 1941, entretanto, ainda sob os tempos do Estado Novo, possui grande afinidade ao sistema inquisitivo, que é evidentemente contrário às garantias fundamentais previstas no Texto Maior. É dizer, apesar de a Constituição Federal estabelecer que o processo penal segue o sistema acusatório, ainda permanece o ranço da inquisitividade na persecução criminal[6].
Essa dicotomia de sistemas processuais segundo Lopes Jr. (2001b, p. 181-182), perfaz-se com “a divisão do processo penal em duas fases (pré-processual e processual propriamente dita) possibilitaria o predomínio, em geral, da forma inquisitiva na fase preparatória e acusatória na fase processual, desenhando assim o caráter ‘misto’”. O sistema misto[7] surgiu com o Código Napoleônico em 1808, e o seu modelo serviu como base para diversos países europeus, latinos, inclusive, depois de centenas de anos influenciou o modelo brasileiro. Duras críticas são ditas a esse sistema, principalmente porque quando as provas produzidas no inquérito acompanham o processo, contaminam (mesmo que inconsciente) o pensamento do julgador. Neste sentido, novamente Lopes Jr. (2001c, p. 186):
[…] Enquanto não tivermos um processo verdadeiramente acusatório, do início ao fim, ou, ao menos, adotarmos o paliativo da exclusão física dos autos do inquérito policial de dentro do processo, as pessoas continuarão sendo condenadas com base na “prova” inquisitorial, disfarçada no discurso do ‘cotejando’, ‘corrobora’[…] e outras fórmulas que mascaram a realidade: a condenação está calcada nos atos de investigação, naquilo feito na pura inquisição.
Sob a influência de tais aspectos, vê-se que o modelo de investigação criminal adotado pelo sistema brasileiro é um procedimento administrativo, sigiloso, meramente informativo, desenvolvido unilateralmente pela autoridade policial e destinado a fornecer elementos de indício de autoria e materialidade para fins de instrumentalizar a instauração do processo criminal ou não. Nesse modelo inquisitorial, existe ampla discricionariedade para a produção de provas com o objetivo de atingir a pretensa verdade real, admitindo-se, pois, quaisquer métodos e meios para a descoberta dessa verdade, desde que, logicamente, respeitem os limites da Constituição Federal. Isso é o que se extrai dos ensinamentos de Lima (2011, p. 09): “[…] Dotado de amplos poderes instrutórios, o magistrado pode proceder a uma completa investigação do fato delituoso. No sistema inquisitorial, o acusado é mero objeto do processo, não sendo considerado sujeito de direitos. Na busca a verdade material, admitia-se que o acusado fosse torturado para que uma confissão fosse obtida”.
Em que pese os 31 (trinta e um) anos da promulgação da Constituição Federal de 1988, ainda existem certas dificuldades na defesa do investigado, entre elas, destaca-se a presença de advogado na oitiva do eventual suspeito (por vezes chamados apenas de testemunhas) do crime investigado pela autoridade policial. Os cenários das delegacias brasileiras, especialmente àquelas mais remotas, ainda persistiam em dizer que o caráter da inquisitoriedade veda qualquer intromissão do advogado no curso do inquérito com o intuito de “não atrapalhar as investigações”.
Tanto é que foi preciso o Supremo Tribunal Federal editar a Súmula Vinculante 14[8], estabelecendo o direito do advogado a acesso aos autos e documentos já produzidos pela investigação, como garantia do direito de defesa. Nesse cenário, com o advento da Lei 13.245/2016, que alterou o art. 7º, XXI, “a” do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei 8.906/1994)[9] para estabelecer o direito básico do advogado no acompanhamento do depoimento de seu cliente na investigação preliminar, bem como a possibilidade de formular quesitos e apresentar razões. E mais, previu a nulidade dos procedimentos posteriores acaso seja violada a disposição normativa.
Ao se debruçar sobre o dispositivo legal, parece-nos que a investigação preliminar brasileira passaria a ter um novo rumo a partir de então, uma vez que a garantia de que o advogado acompanharia o investigado, formulasse quesitos e apresentasse razões findaria com a inquisitoriedade da fase pré-processual devido o atendimento ao contraditório e a ampla defesa. Todavia, numa análise aprofundada não parece que o inquérito tenha perdido seu caráter inquisitório, não passando o novo dispositivo legal de ser uma das várias prerrogativas que já possuem o advogado no exercício da profissão. Nesse sentido, mais uma vez, expõe Lopes Jr. (2016):
[…] o que demarca o sistema inquisitório ou acusatório é a gestão da prova nas mãos de quem decide (acúmulo de funções). Em se tratando de sistema processual, a figura do juiz-ator, com poderes para determinar a produção de provas de ofício, é a marca característica do sistema inquisitório. Já a figura do juiz espectador e a gestão da prova nas mãos das partes, funda o sistema acusatório.
No mesmo sentido, importante nota de Hoffmann (2016):
[…] Ora, sempre foi uma luta dos advogados ter voz ativa no contexto de apurações inquisitoriais, principalmente quando da realização de oitivas. Frequentemente, os advogados queriam expor razões ao presidente das investigações, bem como fazer questionamentos circunstanciados a seus clientes, e acabavam sendo silenciados, sob o argumento de que não deveriam interferir no curso da oitiva. Certamente, esse parece ser um dos motes de tal dispositivo, o qual permite ao defensor apresentar razões e quesitos nesse contexto, ou seja, garante ao causídico, além de poder assistir o seu cliente quando de sua oitiva, também justificar fatos e formular perguntas que auxiliem na apuração dos fatos. Evidentemente, a participação do defensor no interrogatório policial não deve se convolar em protagonismo na direção da colheita de elementos. A condução do ato deve ser feita pela autoridade policial, que ao final pode admitir perguntas pertinentes e relevantes. (CPP, art. 188)
Outro problema verificado na novel legislação é que aqueles que não possuem condições de custear um advogado particular – grande parte da população – não teriam acesso à defesa no procedimento investigatório, acentuando a desigualdade de tratamento entre as pessoas. Porém, não há como negar a importância da legislação no que se refere a mudança de paradigma da legislação brasileira, a qual está seguindo a tendência de novas garantias e direitos. A mudança trazida pela Lei 13.245/2016 apesar de não tornar a presença do advogado durante o inquérito policial obrigatória, traz uma nova garantia ao cidadão durante uma investigação, qual seja, a positivação do direito de defesa e a participação da defesa técnica, ainda que tímida, nessa fase procedimental.
Apesar da nova lei apenas reforçar as prerrogativas do advogado prevendo a nulidade absoluta do ato quando obstaculizada a sua participação no procedimento, inaugurou-se (ou destacou-se) a discussão se a presença de defesa técnica na fase pré-processual seria uma garantia fundamental do investigado (indiciado, suspeito ou qualquer outra denominação que se dê). Eis a questão.
Há um capítulo específico dentro do Título IV da Constituição Federal do Brasil, versando sobre as organizações dos Poderes, às funções que considera essenciais à Justiça Pública, dentre elas, ganha destaque que o texto constitucional preocupou-se em dizer que o advogado é indispensável à administração da justiça[10], dessa forma, dentro dos fundamentos constitucionais, conclui-se que a indispensabilidade do advogado reflete no direito de defesa, do contraditório e o devido processo legal. É necessário capitular que a indispensabilidade do advogado não se restringe aos âmbitos do Poder Judiciário, mas, sobretudo fora dele, pois o que se pretende alcançar é que o imperativo da lei seja estritamente cumprido em sua universalidade. Sob esse prisma, sabe-se que o procedimento investigativo tem a natureza jurídica informativa, uma vez que se presta como fundamento para o ingresso ou não da ação penal.
A investigação preliminar pode afetar direitos e garantias individuais, ao servir, a guisa de exemplificação, como base para uma prisão cautelar, uma quebra do sigilo bancário e telefônico, sequestro ou apreensão de bens, portanto, somente pelos exemplos citados, verifica-se que está em jogo a liberdade, a intimidade e propriedade das pessoas, como destaca, mais uma vez, Lopes Jr., (2014, p. 322) no sentido de que: “[…] os atos do inquérito servem de base para restringir a liberdade pessoas (através das prisões cautelares) e a disponibilidade de bens (medidas cautelares reais, como arresto, sequestro etc). Ora, se com base no inquérito o juiz pode decidir sobre a liberdade e a disponibilidade de bens de uma pessoa, fica patente sua importância!”.
A realidade, entretanto, está longe do que se pode chamar de ideal, pois se avista confissões que foram obtidas a força pelas autoridades policiais, parcialidade na persecução das provas, má infraestrutura dos postos policiais, e pouco treinamento na humanização dos procedimentos. Ressalte-se que, evidentemente, essas características não se aplicam a todos, mas, tristemente, ainda fazem parte do cotidiano brasileiro. Por tratar sobre direitos fundamentais tão básicos e valiosos deve-se acautelar a investigação preliminar dos maiores cuidados, sobretudo pela força probatória que, infelizmente, ainda transborda ao processo judicial. Para tanto, as garantias fundamentais somente estarão protegidas caso a fase preliminar seja obrigatória a presença do advogado, precisamente na oitiva do interrogado, e no acompanhamento de provas cuja repetição fica comprometida.
Nesse ponto específico, a Constituição Federal de 1988 inovou ao inserir diversas garantias no corpo de seu texto, e foi além, trouxe em seu Título II os direitos e garantias fundamentais, subdividindo-os em cinco capítulos, quais sejam, direitos individuais e coletivos, direitos sociais, nacionalidade, direitos políticos e partidos políticos. Inegavelmente uma das mais importantes garantias expressamente positivadas pela atual Constituição foi à do princípio do devido processo legal, do qual derivam os princípios do contraditório e a ampla defesa. Como salientado por Moraes (2006, p. 95), ao tratar sobre o tema:
O devido processo legal configura dupla proteção ao indivíduo, atuando tanto no âmbito material de proteção a liberdade, quanto no âmbito formal, ao assegurar-lhe paridade total de condições com o Estado-persecutor e plenitude de defesa (direito a defesa técnica, à publicidade do processo, à citação, de produção ampla de provas, de ser processado e julgado por juiz competente, aos recursos, à decisão imutável, à revisão criminal).
E continua advertindo que:
O devido processo legal tem como corolários a ampla defesa e o contraditório, que deverão ser assegurados aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, conforme texto constitucional expresso (art. 5º, LV). […] Por ampla defesa entende-se o asseguramento que é dado ao réu de condições que lhe possibilitem trazer para o processo todos os elementos tendentes a esclarecer a verdade ou mesmo de omitir-se ou calar-se, se entender necessário, enquanto o contraditório é a própria exteriorização da ampla defesa, impondo a condução dialética do processo (par conditio), pois a ato produzido pela acusação caberá igual direito de defesa de opor-se lhe ou de dar-lhe a versão que melhor lhe apresente, ou, ainda, de fornecer uma interpretação jurídica diversa daquela feita pelo autor.
A própria Constituição Federal determina que as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata, desprezando, assim, a necessidade de qualquer regulamentação para a efetividade delas. Inclusive, convém salientar que no sistema de investigação criminal dos Estados Unidos da América, berço do devido processo legal, a participação do advogado constitui garantia do suspeito, sendo assim, a tomada de depoimento do suspeito formal deve ser realizada com o acompanhamento e presença do defensor, sob pena da imprestabilidade de seu valor probatório.
No direito português, está assegurada a presença de advogado no ato do interrogatório. No direito francês, no procedimento de instruction, o sujeito, também, tem direito a assistência de advogado por toda a fase pré-processual[11]. Esse direito reveste-se de caráter fundamental, pois compõe o próprio estatuto constitucional do direito de defesa, enquanto complexo de princípios e de normas que amparam qualquer acusado em sede de persecução criminal, seja perante o Tribunal, seja na fase da investigação preliminar.
Desse modo, afirma Lopes Jr. (2014b, p. 396), o principal direito que detém o suspeito, nessa fase, é o de ser assistido por um advogado, assim, inobstante a inércia legislativa, à luz da interpretação sistemática da Constituição Federal do Brasil poder-se-ia afirmar que a assistência de defesa técnica desde a fase da investigação preliminar criminal seria direito fundamental da pessoa humana, ao passo que constitui verdadeira efetivação do princípio-norma da ampla defesa.
No direito positivado brasileiro, a necessidade da presença do advogado nos atos relacionados a oitiva do investigado somente será obrigatória nos casos em que houver defensor previamente constituído. Ocorre que a presença do advogado consiste na proteção do indivíduo investigado e que sofre a persecução criminal do Estado, de que todas garantias previstas em leis e princípios serão rigorosamente respeitadas, trazendo a sensação de um processo justo e equilibrado.
O projeto de lei que trata do novo Código de Processo Penal (Projeto de Lei 156/2009) prevê a investigação criminal defensiva como a possibilidade de o investigado promover, diretamente, diligências investigativas como meio de prova, reunindo subsídios à sua defesa. Significa dizer, ao indiciado seria permitida a investigação criminal, por meio de seu advogado, de defensor público ou de outros mandatários com poderes expressos (detetive particular), tomar a iniciativa de identificar fontes de prova em favor de sua defesa, podendo inclusive entrevistar pessoas. Ao final, o material produzido poderá ser juntado aos autos do inquérito, a critério da autoridade policial.
As pessoas desprovidas de recursos financeiros para a contratação de um advogado particular para que tenha habilitado o seu direito de defesa seriam socorridas pela Defensoria Pública, a qual, inclusive, já está dentre seus objetivos previstos no art. 4º, inc. XIV, da Lei Complementar 80/1994, com a redação dada pela Lei Complementar 132/2009, a qual estabelece expressamente:
Art. 4º. São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras:[…] XIV – acompanhar inquérito policial, inclusive com a comunicação imediata da prisão em flagrante pela autoridade policial, quando o preso não constituir advogado;
Acrescente-se que deve ser prestada pelo Estado a assistência jurídica e gratuita para qualquer do povo que necessite dela, nos termos do art. 5º, inc. LXXIV, da Constituição Federal. E, aqui, a obrigação constitucional de criar condições objetivas que possibilitem, de maneira concreta, o efetivo acesso à justiça, sob pena de configurar-se inaceitável omissão governamental, apta a frustrar, injustamente, por inércia, o integral adimplemento, pelo Poder Público, de prestação estatal que lhe impôs o próprio texto da Constituição Federal.
Sendo o investigado integrante de um grupo economicamente vulnerável, a Defensoria Pública, por força da nova redação do art. 7º, XXI, do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil – EOAB deverá assistir o investigado conforme previsto no projeto de lei do novo Código de Processo Penal (PL 156/2009) isso porque não há razão jurídica que justifique tratamento diferente entre pessoas de distintos níveis sociais, sob pena de violação ao princípio da igualdade que é a base do Estado Democrático de Direito.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A ampla defesa é a garantia de acesso a todos os meios de provas legalmente permitidos em direito. Já o princípio do contraditório, caracteriza-se no direito que as partes têm de se manifestar sobre qualquer fato alegado ou prova produzida pela parte contrária, de modo que influencie no resultado da demanda e se obtenha uma decisão justa e democrática.
Os princípios que constituem o caráter dialético do processo judicial, equacionando o direito de punir do Estado ao tão importante direito de liberdade do acusado, pressupõe a defesa ter acesso aos autos do processo ou procedimento, a todos os documentos e informações nele contidos, a possibilidade de manifestação e, também, o direito de ver seus argumentos apreciados e analisados pelo órgão julgador, de forma a prestigiar o ordenamento constitucional brasileiro esculpido no art. 5º, inc. LV, da Constituição Federal de 1988, que dispõe acerca da observância do contraditório e a ampla defesa em todos os processos, sejam eles judiciais ou administrativos, sob pena de inobservância do devido processo legal.
Em tempos onde se idealiza a efetivação dos direitos básicos das pessoas humanas, o Estado não pode desamparar o seu povo, deixando à mercê de sofrerem danos dos mais variados tipos, sobretudo porque a investigação preliminar (ou procedimento de inquérito policial) pode afetar direitos e garantias individuais tão valiosos.
Destarte, apesar da Lei 13.245/2016, que alterou o art. 7º, inc. XXI, “a” do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei 8.906/1994) estabelecer apenas uma prerrogativa ao advogado dentre tantas outras já positivadas no ordenamento jurídico vigente, mesmo assim, verifica-se a sua importância pelo destaque que ela trouxe sobre o direito fundamental do sujeito passivo em ser assistido por advogado na fase pré-processual da persecução penal.
O Projeto de Lei 156/2009, que trata da reforma do Código de Processo Penal, vai ainda mais além, facultando ao investigado, por meio de seu advogado, de defensor público ou de outros mandatários com poderes expressos (detetive particular), tomar a iniciativa de identificar fontes de prova em favor de sua defesa, podendo inclusive entrevistar pessoas. Em uma interpretação sistemática da Constituição Federal do Brasil, conclui-se que a presença do advogado e o direito de participação nas provas, quando possível, na fase da investigação preliminar criminal constitui grande avanço aos direitos fundamentais da pessoa, ao passo que constitui verdadeira efetivação dos princípios-normas da ampla defesa e do contraditório.
Nessa perspectiva, garante-se ao indivíduo que sofre a persecução criminal do Estado, de que todas as garantias previstas em leis e princípios serão rigorosamente respeitadas, trazendo a sensação de um processo justo e equilibrado. Em razão disto, por se coadunar com a implementação efetiva dos direitos fundamentais aos cidadãos, a obrigatoriedade da presença do advogado no acompanhamento da investigação preliminar funda ao Estado Democrático de Direito.
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Notas de Rodapé
[1] Possui graduação em Direito pela Universidade Federal de Sergipe (1998), mestrado em Direito pela Universidade de São Paulo (2001) e doutorado em Direito pela Universidade de São Paulo (2005). Advogada. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3245592995839786.
[2] Mestranda pela Universidade Federal de Sergipe – UFS, Juíza de Direito do Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4575156507563795.
[3] O sistema jurídico que vigorou durante todo o período do Brasil-Colônia foi o mesmo que existia em Portugal, ou seja, as Ordenações Reais, compostas pelas Ordenações Afonsinas (1446), Ordenações Manuelinas (1521) e, as Ordenações Filipinas.
[4] Não há processo sem acusação.
[5] No sistema brasileiro, nada obsta do juiz defender os direitos individuais das pessoas, à guisa de exemplo poderá declarar a nulidades absolutas ou produzir provas ex officio, nas hipóteses dos arts. 156 e 564 ambos do Código de Processo Penal.
[6] Outros autores (a exemplo de TOURINHO), contudo, classifica o sistema brasileiro de acusatório, baseados que a fase investigatória, inquisitiva, não é propriamente processual, pois tem caráter administrativo.
[7] Aury Lopes prefere conceituar como sistema (neo)inquisitório.
[8] “Súmula Vinculante 14. É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”. (BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=jurisprudenciaSumulaVinculante>. Acesso em: fev. 2016)
[9] Art. 1º. O art. 7º da Lei 8.906, de 04.07.1994 (Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil), passa a vigorar com as seguintes alterações: “Art. 7º. […] XXI – assistir a seus clientes investigados durante a apuração de infrações, sob pena de nulidade absoluta do respectivo interrogatório ou depoimento e, subsequentemente, de todos os elementos investigatórios e probatórios dele decorrentes ou derivados, direta ou indiretamente, podendo, inclusive, no curso da respectiva apuração: a) apresentar razões e quesitos; (NR)”.
[10] “Art. 133. O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”.
[11] Conclusões sobre o direito estrangeiro retirada da obra de Investigação Preliminar no processo penal (Op. cit., et seq., p. 363-397).